NIETZSCHE E UMA ÉTICA DIONISÍACA Paulo Cesar Jakimiu

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NIETZSCHE E UMA ÉTICA DIONISÍACA
Paulo Cesar Jakimiu Sabino
UNESPAR-Fafiuv/PIBIC-Fundação Araucária
[email protected]
Samon Noyama
RESUMO:
O presente trabalho tem por intuito apresentar uma perspectiva de uma possível ética
dionisíaca, que pensamos poder ser encontrada na obra de Nietzsche. O legado do autor
para a ética é fundamental, pois rompe com diversos pensadores da modernidade e abre
novos leques para as interpretações dessa área. No autor de Assim falou Zaratustra, a ética
pode ser pensada não regida a partir de valores que permanecem no campo da idealização,
mas sim daqueles que provém da condição fisiológica do indivíduo. Nietzsche rompe com
a metafísica da ética e permite-nos pensar que não há uma norma ou regra que o homem
deve criar para o agir, mas sim, se colocar em uma nova postura perante a vida, uma
postura afirmativa, e que, desse modo, poderá ter como consequências ações saudáveis.
Palavras-chave: Dionísio, Fisiologia, Afirmação da Vida.
A filosofia de Nietzsche possui duas características que são fundamentais para o
desenvolvimento do tema a ser aqui tratado: a) ela proporciona uma pluralidade de
diferentes interpretações já que o próprio filósofo se coloca em uma postura onde não cria
sistemas, mas como livre para escrever e discordar do que escrevera1, por esse motivo,
nunca oferece algo pronto e acabado, mas pensamentos a serem desenvolvidos pelos seus
próprios leitores e b) no que diz respeito à ética, assume uma postura nova para com os
outros pensadores da modernidade – que iremos tratar adiante. É justamente por essa
segunda característica que, talvez, ao se falar em uma ética dionisíaca, podemos ter certo
estranhamento.
Vania Dutra de Azeredo (2008) no livro Nietzsche e a aurora de uma nova ética,
nos oferece uma interpretação onde entende-se uma ética do amor fati, a ética é vista pelo
crivo da interpretação, do destruir e do criar, do negar e do afirmar. Não discordamos nem
mesmo concordamos com a autora, mas queremos a partir disso, pensar iniciando por
1
Vale lembrar que escreve uma Tentativa de Autocrítica para o Nascimento da Tragédia.
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De 21 a 24 de outubro de 2013 – UNIOESTE Campus de Toledo
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outro ponto de vista, algo que foque precisamente na condição fisiológica do indivíduo
para seu agir.
Para se pensar uma possível ética dionisíaca é preciso ter em mente a primeira
característica mencionada acima. Ora, Dionísio não aparece na obra nietzschiana sempre
da mesma maneira, o deus grego é entendido de uma forma no período inicial, cujo
principal texto por referência é O Nascimento da Tragédia, e de outra nos textos
posteriores a Assim Falou Zaratustra – contudo, ambas interpretações são essenciais e
pensamos que se complementam de certa forma.
Mas o quem era o Dionísio dos gregos antigos? Segundo Jean-Pierre Vernant, os
cultos a essa divindade apresentavam características peculiares e originais, por exemplo:
“Ele exprime o reconhecimento oficial, por parte da cidade, de uma religião que,
sob muitos aspectos, escapa à cidade, contradizendo-a e ultrapassando-a. Instala
no centro da vida pública comportamentos religiosos, que, sob forma alusiva,
simbólica ou de maneira aberta, apresentam aspectos de excentricidade” (2006,
p.76-7).
E ainda, no que diz respeito o que Dionísio oferecia, nota-se uma extrema
diferença entre o que entendemos hoje por divino ou divindade:
“Plenitude do êxtase, do entusiasmo, da possessão, é certo, mas também
felicidade do vinho, da festa, do teatro, prazeres de amor, exaltação da vida no
que ela comporta de impetuoso e de imprevisto, alegria das máscaras e do
travestismo, felicidade do cotidiano. Dionísio pode trazer tudo isso, se os
homens e cidade aceitarem reconhecê-lo. Mas em nenhum caso vem anunciar
uma sorte melhor no além. Ele não preconiza a fuga para fora do mundo, não
prega a renúncia nem pretende proporcionar às almas, por um tipo de vida
ascético, o acesso à imortalidade. Ele atua para fazer surgirem, desde esta vida e
neste mundo, em torno de nós e em nós, as múltiplas figuras do Outro. Ele nos
abre, nesta terra e no próprio âmbito da cidade, o caminho de uma evasão para
uma desconcertante estranheza. Dionísio nos ensina ou nos obriga a tornar-nos o
contrário daquilo que somos comumente” (Ibidem, p.80).
Essas são características fundamentais da divindade grega que parecem ter
inspirado a filosofia de Nietzsche. O romper com a civilidade, com a idealidade presente
em nossas vidas – onde habitam os valores – que nos faz pensar em uma realidade outra,
para além desta. É o deus da natureza, desse mundo, da exuberância e do êxtase. Qualquer
um assim poderia dizer que, tais características, de modo nenhum poderiam representar o
que hoje nós entendemos por um agir correto, ou então, pelo menos, podemos dizer que
não é exatamente o bom ideal de ética – que prezaria pela justa medida, que ainda crê na
existência dos valores bem e mal. Quem se ocupa da leitura de Nietzsche bem sabe, tais
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valores são, para o filósofo, criações, não existem em si, mas foram inventados, por isso, o
único modo de conceber uma ética dionisíaca é pensar para além desses valores.
Porém, vejamos como isso ocorre primeiramente em O Nascimento da Tragédia.
No texto, Nietzsche trata da arte trágica grega, ele entende que o seu desenvolvimento se
dá pela duplicidade apolíneo e dionisíaco. Apolo é considerado o deus grego da arte
plástica, configurador, do sonho e aquele que engendrou o mundo onírico, ao qual permitiu
aos gregos viver superando os horrores e temores do existir (Cf. NIETZSCHE, 2005,
p.36). Além disso, há o “[...] caracterizar de Apolo com a esplêndida imagem divina do
principium individuationis” (Ibidem, p.30, grifo do autor). O principium individuationis é
o que permite aos gregos a caracterização de seus heróis e deuses, é o que difere os
indivíduos – pois ao se tratar de ideias, é o que estabelece ideais entre os homens. Coube a
Dionísio romper esse principium, os ritos dionisíacos repletos de orgias e êxtase como
descrito anteriormente, unirá o ser humano, mas não a união entre os homens a partir de
ideais de direitos iguais, mas ao obrigar o homem a ser o que comumente é, o dionisíaco
destrói a ilusão da individuação perante ao Uno-Primordial:
“Agora o escravo é homem livre, agora se rompem todas as rígidas e hostis
delimitações que a necessidade, a arbitrariedade ou a ‘moda impudente’
estabeleceram entre os homens. Agora, graças ao evangelho da harmonia
universal, cada qual se sente não só unificado, conciliado, fundido com o seu
próximo, mas um só, como se o véu de Maria tivesse sido rasgado e, reduzido a
tidas, esvoaçasse diante do misterioso Uno-primordial” (Ibidem, p.31).
O rompimento, contudo, que Dionísio estabelece, resulta em alguns pontos, pois
não se trata de pensar apenas da ótica estética, mas também da ética. Enquanto “Apolo,
como divindade ética, exige dos seus a medida e, para poder observá-la, o autoconhecimento” (Ibidem, p.40), a divindade Dionísio vista dessa ótica acaba por colocar por
terra todos os preceitos de uma ética – e com isso, entende-se que não é mais uma questão
de medir as ações pelos valores, ou ideais, mas sim pela condição do ser humano, sendo
que, o retorno a natureza, o “reencontro” do homem com a natureza é algo necessário. O
que se pode perceber em O Nascimento da Tragédia, é um dionisíaco que restaura o
homem com aquilo que pertence a ele e que por anos teimamos em negar ou reprimir – os
instintos, as pulsões e paixões. Porém, apenas posteriormente existirá uma nova concepção
de Dionísio que é afetada por todos os elementos do pensamento tardio de Nietzsche,
principalmente as críticas a moral cristã, sem porém, abandonar algumas ideias vistas no
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Nascimento da Tragédia. É então que a divindade grega se coloca como a afirmação da
vida e contra os ensinamentos que negaram o corpo até então.
Por isso, nesse determinado ponto surge uma originalidade, por assim dizer, da
ética de Nietzsche em contraposição aos pensadores da modernidade – que diz respeito a
segunda característica que citamos:
“Ao tomar a História da Filosofia em seu conjunto, Nietzsche refuta as
formulações éticas que aparecem como reflexões sobre o agir em busca de um
elemento último como seu definidor ao apresentá-las como imposições de
perspectivas. Enquanto os filósofos modernos estabelecem máximas universais e
de validade incondicional que respaldam a afirmação da subjetividade como
fundante e fornecem parâmetros seguros para compreender e explicar a ação, o
autor de Assim falava Zaratustra empreende uma genealogia da moral a fim de
realizar o resgate histórico das configurações erigidas no decurso da história
humana enquanto proposição de sentidos. Ao resgatar motivos não conscientes
como determinantes do agir, recusa o governo absoluto da razão em termos de
moralidade e a universalidade de sua legislação” (AZEREDO, 2008, p.23-4).
Na obra O Crepúsculo dos Ídolos a concepção de dionisíaco e apolíneo se
alteram, ao começar pelo fato de que agora Nietzsche os entende como dois estados de
embriaguez, necessária ao artista, porém a embriaguez apolínea mantém o olhar excitado
para adquirir força de visão, já o dionisíaco é a excitação e intensificação dos afetos (Cf.
NIETZSCHE, 2010, p.69). Porém, a mudança mais significativa é no que representa a
divindade Dionísio – afastado de suas influências iniciais, isto é, Wagner e Schopenhauer,
bem como do movimento alemão que traz uma nostalgia da Grécia antiga, iniciado com
Winckelmann –; o fato fundamental do instinto helênico, o triunfante Sim à vida, a
verdadeira vida, o eterno retorno, eis os elementos fundamentais de Dionísio –
consequências da aceitação dos instintos e dos afetos, ou do corpo, como preferirem.
Nessa fase, o dionisíaco surge como forma de se contrapor ao cristianismo, muitas das
viscerais críticas do autor a essa doutrina se fundamentam nos elementos citados acima.
Para Nietzsche a doutrina cristã influi na condição física e psíquica do ser humano, sendo
que a negação da vida é apenas sintoma, resultado de uma vida decadente e degenerada –
contudo, diz o autor que é impossível levantar a questão da justificação de condenar a vida,
como faz o cristianismo, pois o homem é um ser vivente e o problema do valor da vida
necessitaria de uma posição fora dela, é para nós, então, inacessível –, o que caberia ao
homem, por este motivo, é criar valores sob a ótica da vida (Cf. Ibidem, p.36).
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É nesse sentido que o autor não estabelece qualquer elemento último para o agir,
não se tratando de medir as ações a partir desse elemento, mas sim de medir as ações a
partir do valor que o indivíduo cria para si – e que traz consigo marcas da condição
fisiológica do indivíduo2. Condena-se, desse modo, qualquer ética normativa, que
estabeleceria um dever ser:
“Consideremos ainda, por fim, que ingenuidade é dizer ‘assim deveria ser o
homem!’. A realidade nos mostra uma fascinante riqueza de tipos, a opulência de
um pródigo jogo e alternância de formas: e algum pobre e vadio moralista vem e
diz: ‘Não! o ser humano deveria ser outro!’ [...] O indivíduo é, de cima a baixo,
uma parcela de fatum [fado, destino], uma lei mais, uma necessidade mais para
tudo o que vira e será. Dizer-lhe ‘mude!’ significa exigir que tudo mude, até
mesmo o que ficou para trás” (Ibidem, p.37, grifo do autor)
Uma ética dionisíaca, assim sendo, parte da perspectiva nietzschiana de não
estabelecer nenhum fundamento ou regra – mesmo temporária – que parta de outro e não
do indivíduo em si. O homem é resultado de todo um processo histórico, exigir dele uma
mudança é ir contra a sua natureza, os seus instinto, suas paixões e desejos é exigir que se
mude pelo fato de não conseguir suporta-los3. O que se propõe é uma possibilidade de
pensar o agir do indivíduo livre das amarras da moral, e sem o seus apoios metafísicos,
para que dessa maneira consiga explorar suas potencialidades. Por tempos a humanidade
enxergou nas paixões e nos instintos os culpados pelos males e atrocidades no mundo – a
visão nietzschiana é oposta, é focar justamente no que fora até então negado, pois “[...]
atacar as paixões pela raiz, significa atacar a vida pela raiz [...]” (Ibidem, p.34).
Então a postura de Azeredo da ética do amor fati onde se necessita da
interpretação volta à tona. Trata-se de um interpretar, mas antes necessita-se de uma
condição saudável para isso, logo se evidencia que a ética não é pensada de uma
perspectiva para o coletivo, mas sim para o indivíduo, pois apenas ele poderia focar em
sua natureza, estando conectado de maneira mais íntima, onde suas paixões e seus desejos
resultariam em valores que passam pelo crivo da vida. Nas palavras de Zaratustra, não se
oferece um caminho, pois o caminho não existe (Cf. Idem, 2011, p.186).
2
Nesse aspecto, podemos também entender que o além do homem nietzschiano não se trata de um “fazer o
que queres”, mas sim de liberdade para criar valores e aceitar as consequências deles. Quem supera a
decadência da moral, seria capaz da criação de valores e, por isso, valores fortes e afirmativos.
3
“Aniquilar as paixões e os desejos apenas para evitar sua estupizes e as desagradáveis consequências de sua
estupidez, isso nos parece, hoje, apenas uma forma ajuda de estupidez” (NIETZSCHE, 2010, p.33, grio do
autor).
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Referências Bibliográficas:
AZEREDO, V. D. Nietzsche e a autora de uma nova ética. Ijuí: Uniju, 2008.
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
_____________. Crepúsculo dos Ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
_____________. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
VERNANT, J.P. Mito e Religião na Grécia Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
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