Quando o Catolicismo se reencontra no Judaísmo: aspectos da identidade da Congregação Nossa Senhora de Sion em Sergipe Robson Dias de Assis1 - UFS Este artigo tem como foco analisar a identidade social representada pela Congregação Nossa Senhora de Sion em Sergipe dada a peculiaridade comportamental observada nas freiras da congregação. Para o desenvolvimento deste artigo parte-se de uma reflexão histórica feita por Eric Hobsbawm e que representa a volatilidade identitária nos jovens desencadeada pelas alterações sociais ocorridas durante os decênios de 60 e 70 do século passado A cultura jovem tornou-se a matriz da revolução cultural no sentido mais amplo de uma revolução nos modos e costumes, nos meios de gozar o lazer e nas artes comerciais, que formavam cada vez mais a atmosfera respirada por homens e mulheres urbanos. Duas de suas características são portanto relevantes. Foi ao mesmo tempo informal e antinômica, sobretudo em questões de conduta pessoal. Todo mundo tinha de “estar na sua”, com o mínimo de restrição externa, embora na prática a pressão dos pares e a moda impusessem tanta uniformidade quanto antes, pelo menos dentro dos grupos de pares e subculturas. (HOBSBAWM, 1995, p. 323) Assim como para Hobsbawm, Laclau afirma que o que levou a juventude a essa instabilidade identitária foi a falência das explicações universais (LACLAU, 2001, p. 233-4). No instante em que as explicações universais de grande abrangência social perdem espaço para explicações racionais diversas baseadas em conceitos éticos, morais entre outros, facultam aos indivíduos a opção de escolher e constituir a identidade a ser representada. O ponto crucial da análise identitária atual não deve ser encarado nos binômios antagônicos racional/irracional, físico/metafísico, católico/não-católico, mas no novo par dual escolher/ou não escolher, esta dualidade tem algo que os binômios anteriores não tiveram em seu tempo, e é o que o torna tão singular, há a opção de escolher parte de uma religião, parte de outra e fundi-las, mesclá-las e agregar o resultado desta fusão à própria identidade. Um exame muito bem detalhado desta possibilidade é o trabalho de Danièle Hervieu-Léger O peregrino e o convertido. Neste trabalho está presente a reflexão de como a pluralidade religiosa que é acessível aos jovens faculta a possibilidade de juntar partes de vertentes diferentes, bricolá-las e 1 Pesquisador do Grupo de Estudos Diáspora Atlântica dos Sefarditas na Universidade Federal de Sergipe. Graduado em História pela UFS e Mestre em Sociologia também pela mesma instituição. Endereço eletrônico: [email protected] 1 desencadeá-las quando for necessário. Tendo por base estas inflexões qual a autonomia na composição identitária das freiras (MARIZ, 2006, p. 59-60), pensa-se isto apoiado na evidência pública destas ao Catolicismo e da aproximação ao Judaísmo. Antes de analisar a identidade das freiras de Sion é necessário fazer um exame de como se constituem as identidades nos dias atuais. Para auxiliar o desenvolvimento destas reflexões são usadas algumas análises feitas por Joanildo Burity2 (1997). A partir do estudo deste sociólogo foi traçada uma linha de exame crítico e que, de acordo com o observado em campo com a CNSS, é essencial para tentar compreender a prática do conceito de identidade, aspecto de vital importância, não apenas para a Congregação de Sion, mas para outras congregações religiosas. É preciso estabelecer questionamentos que colaborem para o entendimento das identidades. Abordagens tais como por que são novas, o que as tornam novas, e talvez o mais importante, em relação a que são consideradas novas? Segundo o estudo feito por Burity estas características das identidades têm que ser relacionadas às velhas identidades, um dos parâmetros para categorizá-las como novas é associá-las com as já conhecidas, com as práticas, comportamentos, com as ações responsivas antecipadas dos agentes possuidores de velhas identidades. Na visão do sociólogo o “novo está, pois, cindido de partida entre velho/familiar/teorizado/teorizável e um excesso, um resto, uma inadequação ou oscilação que nos anuncia a chegada do outro” (BURITY, 1997). Assim para conceber uma identidade como nova se faz necessário ter conhecimento prévio daquela que será, se não oposta, pelo menos vista como ultrapassada pela nova identidade. Baseados nesta perspectiva a identidade sionesa tem características díspares (velho/novo) em relação à identidade tradicional católica. Vale lembrar que a identidade católica, sobretudo para os sacerdotes, freiras, sempre foi altamente rígida no sentido de não tolerar outros credos, mesmo cristãos. Assim, seguindo este pensamento argumentativo, as freiras ao agregarem aspectos da cultura judaica na identidade católica viabilizam afirmar que a característica inovadora para este grupo social em particular faz parte de uma cultura também milenar, e que 2 O artigo do autor foi publicado na revista eletrônica encontrada neste endereço da web. http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/brasil/cpda/estudos/nove/burity9.htm acessado em: 09/03/2012 2 corrobora o outro panorama elencado por Joanildo, isto é, o novo já estava incluído na identidade velha, já existia só não era tolerado (BURITY, 1997), o que não significa dizer que atualmente seja tolerada em sua amplitude a postura tomada pela CNSS. Neste ínterim vem à mente a inflexão de que se a CNSS amplia com novos hábitos, reune em seu leque de tradição religiosa traços distintos e diversos para além do original da congregação, ou seja, o católico, isto pode ser visto como um fator agregador de agentes sociais. Deste modo os processos interativos, dinâmicos entre os agentes relegam a estes a opção de fazer parte, ou não, de um grupo religioso no qual existe duas tradições ricas material e simbolicamente. Esta característica agregadora também foi investigada por Joanildo Burity. Na concepção do autor a identidade com particularidades agregadoras, chamada por ele como “disseminativas” corresponde àquelas que estão relacionadas às modificações que ocorrem com base nas experiências subjetivas e levam os indivíduos a se inserirem em grupos, instituições, e movimentos sociais. (BURITY, 1997). O que se observa em Sergipe junto às freiras de Sion é que a postura comportamental das mesmas, o habitus incorporado por elas tem particularidades disseminativas as quais incitam a participação em grupos sociais que possuem ideais similares aos que correspondem à biografia dos agentes. O que também se observou em alguns leigos que frequentam a CNSS é que estes não tinham um vínculo forte com a Igreja Católica, eram praticantes esporádicos, de ocasiões e aderiram às atividades das freiras para não se distanciarem do credo cristão e terem como desempenhar um papel de auxílio social e religioso. Neste sentido quando as experiências subjetivas dos indivíduos passam a determinar nas escolhas de aspectos e de gostos que caracterizam a identidade, tais escolhas também são fundamentais para a definição do grupo social que o indivíduo fará parte. Entretanto o que foi observado nos agentes que frequentam a CNSS é que estes estão receptivos a novas configurações indentitárias. Não significa afirmar que os mesmos agentes não tenham uma identidade social previamente estabelecida, pelo contrário além de terem-na possuem abertura para inclusão de novos identificadores significantes. Uma das características da Modernidade é exatamente essa, a de conciliar num único agente diversos aspectos identitários que em outros tempos não eram aceitados. Em poucas palavras, incorpora-se particularidades de identidades variadas, 3 naturaliza-os, mescla-os e os exterioriza numa nova e singular identidade. Essa nova dinâmica nos grupos societários acontece devido ao aprofundamento do processo de individualização citado por Elias (ELIAS, 1994, p. 105), a saber, a imagem que cada agente tem de si e do outro é fundamentada, independente do grau de especialização ou individualização social, pela percepção que cada agente tem da identidade-eu e da identidade-outro, como duas realidades distintas porém, não excludentes. Fator bastante presente nas freiras de Sion e nos agentes que participam das atividades da Congregação, pois buscam a todo instante se diferenciar das outras congregações afirmando a grande divergência de carismas. É habitual presenciar nas afirmações destas freiras que são diferentes porque não rezam o terço devido ao conhecimento de que a reza do terço pode ser substituída pela leitura dos Salmos, ou se diferenciam porque sabem hebraico para a leitura da Torá, ou que buscam guardar o máximo possível o Shabbat para fazer uma imitação daquilo que Deus fez após a criação do mundo. Nesta oração em específico, uma das freiras afirmou que é similar à preparação para o shabat para os judeus, isto é, organizar e preparar tudo que for necessário para que no shabat fiquem apenas destinados à reflexões religiosas, no caso das freiras o mesmo acontece de sábado para domingo. Do momento em que a CNSS/SE começou a estudar mais detidamente as práticas judaicas em sua rotina e estas tiveram seu uso estendido entre os leigos, tais práticas foram “desterritorializadas” de seu ambiente natural (BURITY, 1997) e, desvinculadas de seu contexto histórico e religioso. Algo que deve ser notificado é que não há um planejamento de estudos sistematizados que permitam aos leigos se aprofundarem nas novas incorporações, nem por parte da Congregação e muito menos por uma comunidade judaica organizada, já que esta última não existe em Sergipe mesmo que haja algumas famílias de judeus. É preciso perceber que por trás da desterritorialização há nuances típicas às quais direcionam em grande medida a configuração atual das comunidades religiosas e não apenas no Brasil. Uma primeira a ser mencionada é referente a um tópico bastante conhecido no meio científico, o pluralismo religioso, o moderno pluralismo religioso para ser mais exato. Sem esta especificidade hodierna a junção de características distintas de vertentes religiosas dissemelhantes seria bastante complexa, como é o caso da Congregação Nossa Senhora de Sion. Uma segunda nuance é referente à hibridização das diferentes tradições, neste 4 caso particular da CNSS. Quando a Congregação interrelaciona práticas, ritos, guarda de datas específicas os sujeitos envolvidos buscam conhecer o novo parâmetro que foi adicionado a sua identidade religiosa. Já para os leigos e freiras da CNSS a (re)descoberta das origens religiosas do Catolicismo no Judaísmo são inevitáveis e estimuladas pelos indivíduos que as conhecem, e pela chance de poder mesclá-las segundo o atual pluralismo. Percebe-se, desta forma, que na CNSS/SE a assertiva de Peter Berger no que toca ao pluralismo religioso, ou seja, “a situação pluralista, porém, engendrou não apenas a 'era do ecumenismo' mas também, em aparente contradição com esta, a 'era das redescobertas das heranças confessionais'” (BERGER, 2004, p. 159, leva a constatar que a Congregação tenta seguir os dois caminhos, da tradição católica enfatizando as (re)descobertas das raízes judaicas. As mudanças na sociedade ocasionaram o surgimento de uma dinâmica específica nas relações entre fiéis, sacerdotes e freiras. Nos dias atuais onde os meios de comunicação e de transportes facilitam a circulação de ideias e deixam para trás as barreiras geradas pelo desconhecimento científico e informativo, as igrejas, e isto não se restringe à Catolica, a todo instante precisam avaliar sua postura e manter uma constante negociação com os indivíduos e as identidades sociais acionadas por estes. Os jovens buscam criar laços com alguma instituição religiosa que se identifique, assim a mais atraente às vontades, desejos e gostos destes terá os jovens que conseguir despertar. Não seria demasiado afirmar que em outros tempos a Igreja detinha o poder de definição identitária, no entanto, atualmente a situação não se inverteu mas as constantes (re)contruções de identidades religiosas dúplices dos jovens faz com que lentamente uma das instituições sociais mais rígidas se modifique. Isto fica mais claro na fala das freiras em Sergipe quando as mesmas afirmam que o estudo do Judaísmo permite aos cristãos se tornarem “completos” em termos religiosos. Para estas freiras há um enobrecimento ético, moral, e sobretudo espiritual ao interiorizar aspectos judaicos, para elas também não há antagonismo ou concorrência entre as duas tradições, mas sim complementariedade. Vale frisar novamente que a interiorização de aspectos das duas tradições religiosas torna viável a constituição de um habitus singular, nos termos de Danièle (2008) feito de bricolagens, das experiências subjetivas de cada uma no Catolicismo e no Judaísmo. Portanto, ao exteriorizá-lo 5 defronte dos leigos criam uma nova estrutura social para estes na qual a essência condiz com a moderna percepção da religiosidade, isto é, religiosidade constituída pelas experiências individuais e resultantes daquilo que foi considerado agradável na vivência religiosa. Assim as freiras da CNSS/SE ao escolherem uma festividade ou outro evento que consideram importante no calendário judaico o fazem pela simbologia que significa e pela afinidade que tem pelo evento. Por exemplo, cita-se o Shabbat ao estipularem este dia como digno de ser guardado o consideram uma “imitatio dei” como declaram em um de seus sites3, logo há afinidade com a sacralidade inicialmente respeitada pelos judeus e assumem para a religiosidade sionesa o poder simbólico que é intríseco a esta data. É, de acordo com os fiéis que as conhecem, um traço distintivo bastante marcante. Questionado a uma das freiras sobre a reação dos fiéis ao conhecerem a CNSS/SE a resposta obtida foi que logo que estes sabem do relacionamento das freiras com os judeus e Judaísmo afirmam que os católicos não têm nenhuma afinidade com o Judaísmo, mas na medida em que o trabalho de estudo e conhecimento sobre o Judaísmo é passado eles percebem e dão importância às relações entre as duas tradições. Dado revelador porque mostra que ainda há no imaginário dos leigos católicos a ideia de que estes são totalmente diferentes e não fazem parte da tradição transmitida pelo Judaísmo. Há dois momentos importantes a serem re-destacados destas inflexões. O primeiro é relativo ao estranhamento dos fiéis que iniciam relações sociais com a Congregação. O segundo é a aceitação, por parte dos fiéis, das práticas que eram consideradas estranhas o que leva à consequente incorporação das mesmas práticas que as freiras, muitas destas imbricadas no cerne da tradição católica. Ainda sobre o estranhamento das práticas os fiéis se deparam e necessitam saber lidar com uma nova estrutura de significados, símbolos e ritos, no caso do objeto de estudo a CNSS/SE, o shabbat, o estudo dos Salmos seguindo o modelo de leitura judaica, o aprendizado do hebraico, uma nova compreensão sobre um aspecto complexo que permeia a história da Igreja Católica até os dias atuais, isto é, acerca da morte de Cristo atribuída a todos os judeus embora o Concílio Vaticano II seja claro em afirmar o contrário, porém a postura encontrada nas igrejas ainda seja a do judeu como deicida. Os agentes sociais próximos ou que se aproximam à Congregação ao incorporarem (segundo momento) estas 3 Ver site: http://www.batkol.info/?page_id=76 acesso: 17/01/2012 6 práticas o faz racionalmente, são “escolhas conscientes” (BERGER, 2004a, p. 61). Portanto a vivência deste habitus, conscientemente estruturado com duas tradições religiosas distintas revela que não apenas nos grandes centros urbanos mas também em capitais com menor expressão em termos demográficos os agentes religiosos complementam suas religiões com fragmentos de outras denominações. Bourdieu clarificou bem este complexo sistema de incorporação de gostos, práticas e exteriorização daquilo que é aprazível aos agentes e, neste sentido, extrapolase para o campo religioso local o pensamento deste sociólogo, O gosto, propensão e aptidão para a apropriação – material e/ou simbólica – de determinada classe de objetos ou de práticas classificadas e classificantes é a fórmula geradora que se encontra na origem do estilo de vida, conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos – mobiliário, vestuário, linguagem ou hexis corporal – a mesma intenção expressiva. (BOURDIEU, 2008, p. 165) Assim ao se apropriarem de frações culturais do Judaísmo e por consequência gerarem um novo estilo de vida religiosa a CNSS/SE constitui uma estrutura, na linguagem bourdieusiana estruturada e estruturante (BOURDIEU, 2008, p. 164), aos fiéis que a cercam e para estes indivíduos é tornada legítima a possibilidade de viver no Catolicismo mesmo que sejam possuidores de novas práticas. Ao adquirir bens materiais judaicos, ao expô-los acessivelmente aos indivíduos que frequentam a casa sede da Congregação em Aracaju, converte-os em capital simbólico (BOURDIEU, 2007, p. 189). Nas interações sociais iniciais de indivíduos que não conheciam a congregação e passam a interagir com as freiras da CNSS/SE, de tal forma não possuindo o capital cultural necessário para compreender aqueles bens materiais expostos, reconhecem inconscientemente o poder simbólico exercido pelos bens que estão exibidos, mesmo desconhecendo-os. Como bem explicou Bourdieu esta situação acontece porque os símbolos são os instrumentos por excelência da “integração social”: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação […] eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social (BOURDIEU, 2010, p. 10). Portanto, a congregação detém um traço distintivo conhecido no campo religioso local para os próprios fiéis se referirem a ela como “as freiras do Judaísmo”. Ao indagar estes agentes sobre o que pensam sobre freiras que estudam e se dedicam a 7 conhecer o Judaísmo os mesmos afirmam que na primeira vez acham que é “esquisito freiras que fazem isso” mas ao se aproximarem mais e conhecerem o trabalho e o estudo percebem que são vários os “pontos de ligação” entre as duas religiões. Ao expor na residência bens materiais oriundos da tradição judaica as freiras os trasmutam do local de origem ressignificando-os e almejando legitimá-los em ambiente católico. Perguntado às freiras sobre o significado de adquiri-los e adornar a casa com aqueles objetos a resposta obtida foi que eles, os bens, simbolizam o apreço que elas têm a respeito dos bens e da tradição judaica. Fica perceptível essa postura também nos agentes que frequentam a casa, os quais usam colares, brincos, anéis entre outros adornos que remetem ao Judaísmo. Uma vez adotado bens materiais classificados como pertencentes ao Judaísmo a posse e exposição dos mesmos passam a classificar os possuidores destes bens (BOURDIEU, 2008, p. 166), sendo que esta classificação direciona a uma nova configuração religiosa onde o imperativo é a junção de pontos considerados positivos de outras experiências religiosas, éticas e morais compondo por fim um habitus religioso híbrido. Uma das práticas incorporadas pela congregação é o shabat. O termo em si significa descanso em hebraico. De acordo com a tradição judaica o shabat (UNTERMAN, 1992, 237) inicia no pôr do sol da sexta-feira e termina no pôr do sol do sábado. Para o judeu praticante respeitar esta prática é considerar uma Imitatio Dei, a celebração do shabat é caracterizada pelo acendimento de duas velas na sexta-feira à noite e tem toda uma liturgia a ser seguida e desenvolvida pela família. O encerramento se dá na noite de sábado com a cerimônia da havdalá, palavra hebraica para “separação”, separação do dia de descanso, do tempo sagrado e, por conseguinte, do tempo profano (UNTERMAN, 1992, 114). Segundo as freiras de Sion houve adaptação na forma de celebrar o shabat por elas. De acordo com o relatado as freiras não fazem a cerimônia de sexta-feira, isto revela que mesmo ao incorporar fragmentos ritualísticos do Judaísmo fizeram modificações que julgam ser viáveis para a religiosidade da Congregação. As mesmas afirmaram que durante o sábado lembram do dia como o dia estabelecido na Bíblia para o descanso, que fazem leituras bíblicas especificas para celebrar o dia em que Deus descansou. À noite quando do encerramento do shabat, momento no qual é realizada a havdalá também houve modificações não apenas de processos tais quais os feitos pelos judeus, mas de se comemorar duas situações em 8 conjunto, o início da semana, comum para judeus e católicos, e o dia santo para estes últimos. A comemoração é simples e realiza-se com um jantar onde são feitas orações. Outra prática incorporada pela CNSS é a leitura da porção semanal, ou parashat. A palavra parashat significa porção e neste caso em específico se refere à porção semanal na qual contém o texto de uma determinada parte da bíblia a ser lida. O que é interessante observar na porção semanal escrita pela congregação é a similitude de termos usados na composição do texto, alguns em particular estão em hebraico para que a interpretação não seja tão alterada. Há também citação de referências e fontes rabínicas como suporte para uma leitura mais intimista. Assim como na parashat judaica a porção semanal católica dedica algumas linhas para desenvolver a reflexão daquilo que foi abordado no texto. As referências bibliográficas que foram usadas são na grande maioria de livros de estudos eminentemente judaicos, chegando a mencionar Rashi, um rabino francês do medievo que fez comentários sobre o Talmude e que é utilizado até os dias atuais. No mesmo site numa seção destinada a comentários adicionais sobre a parashat existe uma ressalva aos que se iniciam na leitura de textos judaicos. If you are a beginner in reading Jewish commentaries, I recommend that you begin your study in the order in which the books are listed. If you have even a minimal knowledge of the Hebrew language, you will take special joy in Etz Hayim. For new insights from women rabbis on the Torah portions, read Goldstein. The commentaries by Nehama Leibowitz will introduce you to a rich variety of rabbinic and medieval Jewish commentaries 4. Disponível em http://www.batkol.info/?page_id=238 Embora o texto das duas porções semanais, judaica e católica, seja de cunho religioso, nas duas está presente a incitação a reflexão crítica sobre o texto bíblico. Tal reflexão não tenta destituir o texto bíblico de seu status sagrado para os fiéis das duas religiões, apenas estimula compreender os meandros que os textos entrelaçam para dar o sentido final da prática religiosa, fator que difere substancialmente para as duas religiões. Para os judeus a prática religiosa e o estudo dos textos sagrados levam a uma melhor atitude e respeito diante dos outros seres humanos, aqui na terra e não num mundo vindouro, por isso é considerada uma prática ética, já para os católicos os textos também estimulam um comportamento exemplar, embora a “recompensa” para as boas ações seja usufruída num mundo espiritual. A diferença subentendida é que para os 4 Todos os exemplares são livros que tratam do Judaísmo e interpretação de seus textos, este rol de livros demonstra que a CNSS incorporou como base de estudos os mesmos livros que são usados pelos judeus para a análise e construção de seus textos, mormente aqueles da parashat haShavua. 9 judeus, caso este não seja correto no trato com as pessoas, o torna mal neste mundo, e apenas mudando a postura ética e moral desempenhada neste mundo que o fará um ser humano “melhor”. Para os cristãos, não apenas os católicos, mesmo que o fiel tenha sido durante toda a vida uma pessoa má, caso haja arrependimento “sincero”, este obterá as benesses do mundo vindouro, segundo a teologia cristã. Uma terceira prática judaica relembrada pelas freiras da CNSS/SE é o Seder. De acordo com o relatado pela freira o jantar do Seder é feito de maneira esporádica e não necessariamente na data do Pessach. O motivo para esta “destemporalização” do Seder é que o objetivo para o jantar, feito pelas freiras, é essencialmente educativo. A mesma afirma que se algum dos “amigos de sion” não souber como é feita a organização do jantar elas organizam-no com o intuito de instruir àqueles que desconhecem porém, têm curiosidade em aprender. Por mais que as freiras assumam que estão apenas fazendo uma representação do Seder visando à educação do laicato o que é depreendido com este comportamento é a transferência de toda uma estrutura simbólica, material e cultural do Judaísmo. A conseqüência, desta transferência cultural sui generis, é que os indivíduos que participam da “celebração” começam a constituir um habitus religioso tal qual a Modernidade incita, ou seja, fragmentado, composto pela eleição de elementos considerados atraentes de religiões diversas. Por fim é possível afirmar que, diante do observado nas freiras da Congregação Nossa Senhora de Sion em Sergipe, a representação identitária destas é fruto de uma nova religiosidade. O que torna diferente este objeto de estudo não é necessariamente a junção de práticas ou ritos de vertentes religiosas diversas mas sim os agentes que compõem o grupo estudado, ou seja as freiras. Percebe-se em fiéis “comuns” esta transição entre credos e há vários estudos acerca deles. Neste caso são indivíduos que estão oficialmente vinculados e reconhecidos pelo Vaticano que fazem uso desta religiosidade fragmentada. 10 Referências BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. 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