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SUMÁRIO
Considerações iniciais
I
| Território e multiterritorialidade entre
OS conceitos da Geografia
1. 2. 3. 4. 5. II
11
Por uma constelação geográfica de conceitos 19
Território e multiterritorialidade em questão 53
Sentido global de lugar e multiterritorialidade 87
Lógica territorial zonal: limites e potencialidades 103
O território e a nova des-territorialização do Estado 125
| Biopolítica, in-segurança e contenção
territorial
6. 7. 8. 9. Sociedades biopolíticas de in-segurança e des-controle
dos territórios 153
Precarização, reclusão e exclusão territorial 181
Contenção territorial: “campos” e novos muros 207
Cidade vigiada, cidade i-mobilizada: Rio de Janeiro do
Big Brother aos novos muros 229
10. Viver no limite: da transterritorialidade
ao contornamento 271
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
(…) onde nós estamos — o lugar que ocupamos (…) —
tem tudo a ver com o que e quem somos (e, enfim, que nós
somos). Estar no mundo, estar situado, é estar em um lugar1.
(Casey, 1993: xiii, xv, destaque do autor)
O
debate sobre o espaço, o território e outros conceitos geográficos ganha destaque nas últimas décadas, sobretudo no bojo da
chamada “virada” ou “giro espacial” (spatial turn) nas Ciências
Sociais, notadamente as de origem anglo-saxônica. Correntes influenciadas
pelos chamados Estudos Culturais, como a de matriz pós ou decolonial,
passaram a considerar a própria contextualização geográfica e histórica
como definidora dos nossos modos de pensar o mundo e de fazer teoria2.
A leitura espacial ou geográfica passa a compor com outras leituras
que, em diferentes perspectivas teóricas, tentam explicar o desdobramento
das mudanças contemporâneas em termos de suas diversas “crises” e/ou
“reestruturações” — incluindo, a nível econômico, a “crise do trabalho” e a
reestruturação produtiva, no âmbito do poder, a chamada crise do Estadonação, e a crise identitária, em suas mais diversas manifestações. Cabe-nos
Tradução livre. No original: “where we are — the place we occupy (…) — has
everything to do with what and who we are (and finally, that we are). To be in the
world, to be situated at all, is to be in place.”
2
A esse respeito ver, por exemplo, Mignolo (2004) e suas “localizações epistemológicas”
ou “epistemologia fronteiriça” e Souza Santos (2006) e sua “hermenêutica diatópica”.
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indagar, entretanto, em meio a toda essa ebulição social, por que um certo
privilégio ao espaço, até então bastante negligenciado?
Entre os grandes pensadores da segunda metade do século XX, sem
dúvida um dos que tiveram maior sensibilidade para com as questões espaciais foi Michel Foucault, sempre lembrado quando se fala dessa mudança
de uma perspectiva dominantemente temporal para uma perspectiva espacial da sociedade. Para Foucault, numa afirmação reiterada por muitos
autores, ao longo do século XX — e especialmente na sua metade final,
poderíamos acrescentar — a preocupação com o espaço passou a suplantar
aquela, dominante há muito, que colocava o tempo como o centro e muitas
vezes como a própria razão de ser do debate filosófico e, de forma mais
implícita, como a dimensão dominante dentro dos estudos sobre a sociedade. Segundo ele, passamos da “grande obsessão” pela história, no século
XIX, para uma época que “talvez seja a época do espaço”. A emergência
do espaço com tamanha força dar-se-ia porque estaríamos vivendo agora
a “época da simultaneidade”, da “justaposição”, “do perto e do distante, do
lado a lado, do disperso” (Foucault, 1986:22).
Nas palavras de Edward Saïd:
A visão que Foucault tinha das coisas (...) era espacial, o que torna um pouco
mais fácil entender sua predileção pela análise de espaços, territórios, esferas
e sítios descontínuos, mas reais — bibliotecas, escolas, hospitais, prisões —,
em vez de uma tendência a falar principalmente de continuidades, temporalidades e ausências, como seria de esperar de um historiador (Saïd, 2003
[2001]:94).
Numa visão mais simplista, o espaço era visto como aquilo que é fixo,
estático, destituído de movimento, domínio implícito do conservador e
do reacionário, entrave ao “progresso” e responsável mesmo pela “desacelaração da história”, como indicava o primeiro Fernand Braudel em seu
“tempo de longa duração” como “tempo geográfico” (Braudel, 1983 [1946]).
Alguns irão associar essa visão mais estática com a leitura provavelmente
mais difundida de espaço, que faz alusão apenas a um espaço absoluto,
bastante distinta das abordagens ditas relativa e relacional, discutidas por
autores como David Harvey (1980, 2012) e Doreen Massey (2005).
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Algumas evidências justificam esse olhar algumas vezes até mesmo
superestimado sobre a dimensão espacial da sociedade. Por exemplo, a
descrença em “valores temporais”, como o de progresso histórico e desenvolvimento cumulativo, com toda a crise da racionalidade instrumental
moderna e de seu pretenso domínio irrestrito sobre a dinâmica da natureza. Tudo isso fez com que abordássemos com outro olhar o espaço que
nos envolve, ainda que isso tenha se dado inicialmente mais pela ótica
ambiental ou ecológica. O domínio da simultaneidade e da justaposição,
alegados por Foucault, foi também uma consequência do novo padrão tecnológico, informacional, que passou a marcar nosso tempo.
Poderíamos crer que, concomitantemente e de forma paradoxal, vivenciamos a “aniquilação do espaço [enquanto simples distância física] pelo
tempo”3, como já antevia Marx, e a “aniquilação do tempo” [enquanto
distância-duração] transformado em “tempo real”, instantâneo, tempo “de
fato” porque materializado no espaço presente, regendo assim um certo
“império do presente”, das coexistências e do “distante que se tornou
próximo” pela instantaneidade dos contatos virtuais. Mas esse mesmo
domínio da telemática e dos contatos instantâneos levou à emergência de
um crescente mundo ou espaço “virtual” (em outras palavras, um ciberespaço) onde a materialidade — ou, se quisermos, numa visão simplificada, a
espacialidade concreta — não teria mais o peso que tivera até aqui. Como
entender tamanhos paradoxos, numa época em que se chegou a defender
tanto o “fim da História” (Fukuyama, 1992) quanto o “fim da Geografia”
(Virilio, 1997)?
É claro, e já estamos mais do que convencidos disso, o mundo não se
“desmaterializa” — ou, num sentido simplista de território (como sinônimo de espaço material), não se desterritorializa — nem o tempo histórico está deixando de ser (re)configurado, na sua multiplicidade de
ritmos e velocidades. Se ainda restava alguma dúvida, ela se foi a partir do
mega-atentado de 2001 às torres gêmeas de Nova York, um dos principais
referenciais ao mesmo tempo materiais e simbólicos do capitalismo globalizado, da manutenção (e mesmo do fortalecimento) do poder estratégico
Para uma crítica à leitura simplista dessa “aniquilação do espaço pelo tempo”, ver
nosso trabalho em Haesbaert, 2004 (especialmente o capítulo 4) e Massey, 2005.
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ligado às principais fontes de energia (ser o caso do gás e do petróleo russos
em relação à União Europeia) e da emergência de questões ecológicas de
grande amplitude, como o aquecimento global.
O que ocorre é que temos uma nova realidade ao mesmo tempo altamente tecnificada/informatizada e dependente de redes materiais de alimentação/energia (que se esgota). Dentro desse novo contexto, a relação
espaço-tempo, a realização espaço-temporal da sociedade, torna-se muito
mais complexa, marcada por múltiplas formas de organização territorial e,
assim, por uma intensificação daquilo que denominamos multiterritorialidade (Haesbaert, 2004).
É essa, de algum modo, a problemática central enfrentada por este livro:
a multiplicidade contemporânea de tempo-espaços, mobilidades e fixações,
aberturas e fechamentos territoriais, e que reforçam práticas ligadas a uma
percepção de crescente incerteza e insegurança, uma espécie de “vida no
limite” ou “nas fronteiras”. Como argumentou Prigogine (1996), enquanto
“a ciência clássica privilegiava a ordem, a estabilidade”, “em todos os níveis
de observação reconhecemos agora o papel primordial das flutuações e da
instabilidade”, as quais aparecem associadas às noções de “escolhas múltiplas” e “horizontes de previsibilidade limitada” (p. 12). Assim, “as leis
fundamentais exprimem agora possibilidades e não mais certezas” (p. 13).
Contudo, Prigogine também afirma que isso não significa pensar apenas
em termos de incerteza e acaso:
O acaso puro é tanto uma negação da realidade e de nossa exigência de compreender o mundo quanto o determinismo o é. O que procuramos construir
é um caminho estreito entre essas duas concepções que levam igualmente à
alienação, a de um mundo regido por leis que não deixam nenhum lugar
para a novidade e a de um mundo absurdo, acausal, onde nada pode ser
previsto nem descrito em termos gerais (Prigogine, 1996:198).
É importante lembrar que este é um livro que foi construído a partir da
ampla revisão e reestruturação de diversos artigos, alguns anteriormente
publicados. Ao reunirmos a maior parte de nossa produção na última década,
percebemos a possibilidade clara de articulação entre diversos artigos e/
ou capítulos de livros que, ainda que não deliberadamente, constituíram
uma linha de reflexões coerente e com desdobramentos suficientemente
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concatenados para, reescritos, se transformarem num trabalho de maior
consistência.
O livro inicia com uma primeira parte de caráter mais explicitamente
conceitual, focalizando o território entre os demais conceitos trabalhados
pela Geografia — território (e multiterritorialidade), que é o principal
conceito retomado e desdobrado na segunda parte do livro. Começamos
por uma discussão ampla sobre a possibilidade de uma “constelação” ou
família de conceitos, que resultou na proposição de uma teia conceitual
em que se situam, relacionalmente, os principais conceitos trabalhados
pela Geografia e que, hoje, interessam às mais diferentes áreas das Ciências
Sociais. A seguir, introduzimos o debate, a ser retomado na sequência de
artigos, sobre o território e a multiterritorialidade, que também, no capítulo seguinte, são discutidos em relação ao conceito de lugar, na perspectiva da Geografia anglo-saxônica, através de um diálogo com o trabalho da
geógrafa Doreen Massey, com quem desenvolvemos intensa interlocução a
partir de sua supervisão de nosso pós-doutorado. A discussão conceitual
mais ampla se completa com a abordagem da relevância, questionada por
alguns, da lógica zonal ou de áreas no tratamento do território e o novo
papel des-territorializador do Estado, um dos principais articuladores
dessa lógica zonal de controle.
Num segundo bloco de capítulos, analisamos os processos de des-territorialização a partir da perspectiva da insegurança e da biopolítica que
marcam a sociedade contemporânea. Começamos pelo debate mais amplo
sobre as atuais sociedades de in-segurança definidas a partir dos mecanismos biopolíticos identificados por Foucault. É desse contexto que, no
nosso ponto de vista, emergem dinâmicas de territorialização específicas
,que, para além da simples precarização e reclusão territorial, envolvem o
que denominamos de contenção e exclusão territorial — bastante evidentes
no caso de uma megalópole como o Rio de Janeiro, analisada enquanto
cidade vigiada e “i-mobilizada”, mas, ao mesmo tempo também “contornada” pelas formas com que a população reage a esses dispositivos de
controle. Uma reflexão específica sobre essas formas de contornamento e
transterritorialidade, abrindo para futuros desdobramentos, encerra este
livro.
Gostaria de agradecer ao CNPq pela bolsa de pesquisa que permitiu
a realização deste trabalho. Agradeço também a todos os companheiros
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que, através de seminários, congressos, conferências ou simples conversas
informais, auxiliaram na construção dessas ideias. Um obrigado especial
àqueles que, ao longo da construção destes textos, entre alunos de graduação, mestrandos, doutorandos, pós-doutorandos e colegas docentes,
participaram de nosso grupo de debates vinculado ao NUREG (Núcleo de
Estudos sobre Regionalização e Globalização). Suas contribuições foram
fundamentais. Contamos novamente com eles e com outros colegas para
a leitura-ação crítica que é a única razão de ser de um texto: servir como
instrumento para novos debates intelectuais e, sobretudo, como ferramenta
para novas práticas que o reavaliem a partir de sua apropriação concreta
em ações políticas efetivamente transformadoras.
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I.
TERRITÓRIO E
MULTITERRITORIALIDADE ENTRE OS
CONCEITOS DA GEOGRAFIA
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1
POR UMA CONSTELAÇÃO
GEOGRÁFICA DE CONCEITOS4
Formar conceitos é uma maneira de viver, e não de matar a
vida: é uma maneira de viver em uma relativa mobilidade
,e não uma tentativa de imobilizar a vida; é mostrar, entre
esses milhares de seres vivos que informam seu meio e se
informam a partir dele, uma inovação que se poderá julgar
como se queira, ínfima ou considerável: um tipo bem particular de informação.
(Foucault, 2000:363-364)
(...) apesar de datados, assinados e batizados, os conceitos
têm sua maneira de não morrer, e todavia são submetidos
a exigências de renovação, de substituição, de mutação, que
dão à filosofia uma história e também uma geografia agitadas (...).
(Deleuze e Guattari, 1992:17)
Este capítulo é uma versão revista e ampliada dos artigos “Espaço como categoria e
sua constelação de conceitos” e “Espaço-terra-território: o dilema conceitual numa
perspectiva latino-americana”, publicados, respectivamente, em Tonini et al. (org.), “O
ensino da Geografia e suas composições curriculares” (Porto Alegre, UFRGS, 2011)
e Bethônico, M. (ed.) “Provisões: uma conferência visual [World of Matter]” (Belo
Horizonte, Instituto Cidades Criativas, 2013).
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N
osso objetivo neste primeiro capítulo é discutir, ainda que de forma
introdutória, a relevância dos conceitos ligados à análise espacial
e elaborar uma proposta preliminar de “constelação de conceitos”
em Geografia, inspirados, entre outros autores, nas proposições de Gilles
Deleuze e Felix Guattari, especialmente em seu livro O que É a Filosofia?”
(1992 [1991]). Essa inspiração poderia ser questionada pelo fato de os
autores se reportarem à construção de conceitos no âmbito mais estrito
da Filosofia. Eles chegam mesmo a propor que o que define a Filosofia é
a construção de conceitos: “a filosofia é a arte de formar, de inventar, de
fabricar conceitos” (p. 10), “a filosofia, rigorosamente, é a disciplina que
consiste em criar conceitos” (p. 13).
Se a Filosofia deve sua existência enquanto disciplina à criação do conceito, sendo o filósofo um “conceito em potência” (p. 13), e se a ciência não
tem como objeto conceitos, mas funções (“functivos”), como a Geografia,
considerada uma “ciência social” (por alguns geógrafos pelo menos, desde
os anos 1930)5, poderia também criar conceitos?
Em primeiro lugar, é muito discutível definir a Geografia, hoje, como
simples ciência social, tamanha a importância (re)adquirida pelas relações sociedade/natureza no núcleo de suas problemáticas e pelos próprios debates contemporâneos sobre a definição de espaço geográfico que
demandam a consideração de sua dimensão natural. Em segundo lugar,
não seremos, nesse caso, tão fiéis a Deleuze e Guattari, e admitiremos,
como a grande maioria dos autores, que a Ciência também vive de conceitos, embora conceitos de outra natureza (reconhecendo, como o fazem
aqueles autores, que há uma “diferença de natureza” entre os objetos da
Filosofia e os da Ciência), mas que não se resumem a uma “lógica ordinária”, “tradicional” ou representacional do conceito (utilizando os termos
de Patton, 2013 [2000], em sua releitura de Deleuze).
Já em 1933 Walter Christaller afirmava, pelo menos na perspectiva econômica da
Geografia por ele privilegiada: “acreditamos que a geografia dos assentamentos [geography of settlements — o tradutor para o inglês ressalta em nota que o termo alemão
Siedlungsgeography implica estudar a ordem ou regularidade pela qual qualquer área é
ocupada/povoada] é uma disciplina das ciências sociais” (Christaller, 1966 [1933]:397,
grifos meus).
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A propósito, vale a pena destacar que Deleuze e Guattari não fazem
distinção entre ciências exatas e naturais e ciências humanas e/ou sociais.
Patton, por sua vez, ao discutir Deleuze, faz uso de exemplificações de
conceitos no campo das Ciências Sociais (Ciência Política, mais especificamente) para expor a posição deleuzeana. Desse modo, consideramos plenamente justificável falar aqui de conceitos em Geografia mesmo tomando
como inspiração várias colocações feitas por Deleuze e Guattari para a área
mais específica da Filosofia.
Nosso debate inicia pela problematização do conceito ou, como preferem alguns, categoria central da Geografia, o espaço, elaborando a seguir
uma proposta introdutória de “constelação” (como diriam Deleuze e
Guattari) dentro da qual se situam os principais conceitos trabalhados pela
Geografia (e que será objeto de desdobramento no futuro). É importante
destacar que nossa perspectiva será construída especialmente a partir da
realidade geográfica em que estamos inseridos, isto é, das questões levantadas no nosso contexto latino-americano (questões essas que, especialmente no que se refere ao conceito de território, serão explicitadas a partir
do próximo capítulo).
Comecemos, então, por uma breve discussão sobre o sentido de “categoria”. No senso comum, categoria significa simplesmente um conjunto de
espécies do mesmo gênero — isto é, que compõem, assim, uma mesma
“categoria”, ou seja, são espécies reunidas a partir de um determinado nível
de generalização. Filosoficamente, sabemos que a origem do debate se
encontra em Aristóteles, quando este define as diferentes classes de predicados do ser, que ele identifica como sendo: substância, quantidade,
qualidade, relação, lugar, tempo, situação, ação, paixão e possessão ou
hábito. Destas, é claro que nos interessam mais de perto “lugar”, “tempo” e
“situação”, pois adquirem uma clara conotação histórica e geográfica. Em
Aristóteles, espaço é identificado como lugar, e este é considerado “o limite
adjacente do corpo que o contém, considerando que esse corpo não esteja
em movimento” (Jammer, 1993:54). Como focalizaremos criticamente
mais à frente, estabelece-se aí uma interpretação problemática de espaço/
lugar imersa no imóvel, no fixo, na ausência de movimento.
Já na Idade Média “categoria” adquire a condição de “gêneros supremos
das coisas”, ou o mais elevado gênero de coisas do mundo. O Dicionário
Cambridge de Filosofia afirma que “mente” ou espírito e “matéria”, em
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Descartes, fazem parte dessa categorização filosófica mais ampla. Kant,
por sua vez, definirá categorias como “conceitos do entendimento puro” ou
“conceitos ] fundamentais a priori do conhecimento”, mediante os quais se
torna possível o conhecimento da realidade fenomênica6. Outro kantiano,
o filósofo francês Renouvier, proporá duas categorias fundamentais, tempo
e espaço, como “leis primeiras e irredutíveis do conhecimento, leis fundamentais que lhe determinam a forma e lhe regem o movimento” (Lalande,
1993:141-142).
Ainda que em outras ocasiões nossa definição de categoria tenha sido
mais ampla, podendo incluir formas distintas de abordar um conceito
(quando, por exemplo, falamos de um conceito como “categoria de análise”
e “categoria da prática”7), enfatizaremos neste capítulo a ideia mais estrita de
categoria como uma espécie de conceito mais amplo ou geral — um pouco
(descontado o viés idealista) como na posição kantiana há pouco aludida.
Nesse sentido, em Geografia podemos propor “espaço” como categoria,
nosso conceito mais geral, e que se impõe frente aos demais conceitos —
região, território, lugar, paisagem... Esses comporiam assim a “constelação”
ou “família” (como preferia Milton Santos) geográfica de conceitos.
Numa leitura metafórica bastante simples, mas didática, essa constelação seria composta por uma espécie de conjunto de planetas girando em
torno de uma estrela, cuja luz seria o espaço — cada astro-conceito só existindo na medida em que compõe o mesmo sistema (aberto), devendo seu
movimento (“translação”) e seu potencial de esclarecimento (sua “luz” ou
capacidade de iluminação) à relação que mantém com a categoria central, o
espaço. Cada conceito, ele próprio, através de nova projeção dessa luz, iluminaria também outras derivações conceituais ou elementos que girariam
em função dele, seus “satélites”.
Espaço, bem sabemos, em sentido mais amplo, tem pelo menos duas
grandes formas de abordagem: enquanto espaço absoluto e enquanto
espaço relativo. No primeiro caso, absoluto significa “independente”, que
Na visão clássica kantiana, “todos os conhecimentos, isto é, todas as representações
conscientemente referidas a um objeto, são ou intuições ou conceitos. A intuição é uma
representação singular, o conceito, uma representação universal ou representação refletida” (Kant, 2003, p. 181, grifos do autor).
7
Tal como o fizemos em Haesbaert, 2010a, no tratamento do conceito de região.
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não depende de outros, da existência de objetos ou, no seu extremo, independe da existência da própria materialidade, considerada finita frente ao
caráter infinito do espaço. Assim, numa visão idealista de espaço absoluto, o
espaço teria uma existência independente da matéria, servindo como referente a priori a partir do qual intervimos no mundo empírico. Geralmente
os filósofos aos quais essa concepção está associada são Immanuel Kant e
Isaac Newton.
Newton reconhecia a existência tanto do espaço absoluto quanto do
relativo, mas este estava subordinado ao primeiro, considerado a realidade
(“absoluta”) para além das aparências, estas relacionadas, assim, ao espaço
relativo. Segundo Casey (1998), Newton considerava o espaço absoluto
como imóvel, contraposto à mobilidade, sem relação com algo exterior
(por exemplo, simples localização), não necessitando de um sistema adicional de referência e inteligível (por contraposição a “sensível”).
O espaço relativo, que muitos associam à figura do filósofo Leibniz,
implica valorizar a relação entre os objetos, seu movimento, portanto.
David Harvey sintetizou de forma muito didática essa distinção, acrescentando ainda sua própria versão do que ele denominou de “espaço relacional”, um espaço considerado não apenas enquanto relação entre objetos,
mas também como relações contidas nos próprios objetos, inerentes a eles.
Assim, diz ele:
Se tomarmos o espaço como absoluto, ele se torna uma coisa em si mesma,
com uma existência independente da matéria. Ele possui então uma estrutura que podemos utilizar para classificar ou para individualizar fenômenos.
A caracterização de um espaço relativo propõe que ele deve ser entendido
como uma relação entre objetos, a qual existe somente porque os objetos
existem e se relacionam. Há outra acepção segundo a qual o espaço pode
ser tomado como relativo, e proponho chamá-lo espaço relacional — espaço
tomado, à maneira de Leibniz, como estando contido em objetos, no sentido
de que um objeto existe somente na medida em que contém e representa
dentro de si próprio as relações com outros objetos (Harvey, 1980:4-5, destaque do autor).
Fica claro, então, que o espaço enquanto categoria pode assumir a
condição de espaço absoluto, relativo e/ou relacional. O próprio Harvey
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(2012 [2006]), mais recentemente, fez questão de afirmar que não se trata
de excluir uma condição em relação à outra, mas de mostrar sua interação.
Ele propõe até mesmo um quadro-síntese abordando essas três concepções, aliadas às proposições de Henri Lefebvre de espaço percebido (as
“práticas espaciais”), concebido (as representações do espaço — conhecimentos, signos, códigos concebidos por cientistas, urbanistas, tecnocratas)
e vivido (espaços de representação, de “simbolismos complexos”, de usuários, artistas, escritores).
Um conceito, nunca é demais lembrar, não é unicamente uma “representação” do real, e menos ainda no sentido mais simples (empirista-positivista) de reconhecimento e fixação de significado, plena “revelação” de um
real que ele conseguiria traduzir “em sua essência”. Um conceito não seria
também, no extremo oposto, unicamente uma idealidade que caberia impor
sobre a realidade concreta, num idealismo de objetividade às avessas, onde
a “verdade” estaria mais no campo conceitual ou dos “modelos” teóricos
(como em algumas proposições da Geografia neopositivista) do que no real
efetivo. Embora reconhecendo seu caráter abstrato, o conceito não é nem
simples reflexo ou espelho nem uma pura idealização a priori e “correta”.
Em outras palavras, o conceito, ao longo da história de sua filiação teórico-filosófica, se estende no interior de um amplo continuum que vai desde
a posição estritamente empirista e/ou realista de alguns que o consideram
como um retrato fiel da“realidade” e que, ao ser enunciado, parece carregar
consigo o próprio “real” (o que pode incluir também o “concreto pensado”
de muitos materialistas), até, no outro extremo, a posição racionalista e/
ou idealista em que o conceito não passa de um produto do nosso pensamento, “verdade” instaurada agora unicamente na capacidade reflexiva de
nossa mente, e que não tem outra fonte de elaboração se não a construção
teórica do investigador. Aí, em alguns casos, num viés mais estritamente
metodológico, o conceito pode não passar de um instrumental ou técnica,
um “operacionalizador” que não tem outro compromisso se não o de servir
ao pesquisador enquanto instrumento de análise.
Na Geografia, posições como essas aparecem muito claramente, por
exemplo, em relação a um de nossos conceitos centrais, o de região (que
será retomado mais à frente). É bem conhecido o contraponto entre a visão
de “um certo” Vidal de la Blache, mais empirista objetivo, cuja “região-
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personagem” aparecia inscrita na própria morfologia da paisagem8, e um
Hartshorne mais racionalista9, para quem “uma ‘região’ é uma área de localização específica, de certo modo distinta de outras áreas, estendendo-se
até onde alcance essa distinção. A natureza da distinção é determinada
pelo pesquisador que empregar o termo” (Hartshorne, 1978:138, grifos do
autor).
Hartshorne foi depois “radicalizado” por posturas neopositivistas que
viam a região como simples classe de área, numa analogia entre regionalização e classificação de espaços, totalmente variável, portanto, conforme o
critério adotado pelo pesquisador. Neste último caso, para além da alegada
visão idealista objetiva, defendida por muitos, trata-se, no fim das contas,
de uma posição bastante subjetiva, pois restringe o valor do conceito ao
próprio universo do sujeito pesquisador10.
Dizemos “um certo” Vidal de la Blache porque se trata de um autor que propôs
diversas conceituações de região, incluindo a própria “região nodal” (sobre a multiplicidade de concepções de região em Vidal, ver Ozouf-Marignier e Robic, 2007[1995], e
Haesbaert, 2012). É em seus primeiros escritos que encontramos a região autoevidente,
“algo vivo a que o geógrafo deve pretender reproduzir” e onde “a natureza nos adverte
contra as divisões artificiais” (Vidal de la Blache, 2012 [1888]:205). Mesmo entre
autores considerados como tendo sido influenciados por La Blache já aparece explicitamente a região como “artifício lógico”. Camille Vallaux, por exemplo, afirmava: “para
que a síntese descritiva das regiões” pudesse atender a todas as nossas expectativas,
seria necessário que os “fatos da Geografia física e humana” concordassem plenamente
entre si. Como isso está longe de ocorrer, pelo menos para muitas partes do globo “a
síntese regional” não é “nada mais do que um artifício lógico e um método de ensino”
[“un artífice logique et un procédé d’enseignement”] (Vallaux, 1929:164).
9
Também aqui é importante lembrar que não se trata de “um único” Hartshorne. Nesse
caso, nos referimos mais ao Hartshorne do Perspectives on the Nature of Geography
(editado em português como Propósitos sobre a Natureza da Geografia), de 1959, do
que ao de The Nature of Geography, de 1939.
10
O geógrafo Walter Christaller, por exemplo, afirmava: “é necessário desenvolver
os conceitos imprescindíveis para posterior descrição e análise da realidade” (apud
Mendoza et al., 1982:108-109), tendo a teoria “uma validade independente da realidade, uma validade baseada em sua lógica e coerência interna”, quase como se a realidade fosse o domínio do “equívoco” e nossas teorias ou modelos fossem a “verdade”
ou, no seu extremo, até mesmo o (modelo) “justo” a ser buscado e implementado,
confundindo assim o analítico e o normativo.
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Conceito e problemática vivida
Muitas vezes afirmamos que o conceito “reapresenta” — e, por isso, já nasce
com uma carga de novidade — ou, em outras palavras, justamente para
torná-la compreensível, “condensa” ou sintetiza uma realidade. Porém, ao
mesmo tempo que tenta expressar ou condensar um fenômeno, de alguma
forma, ainda que implícita, justamente por nunca se confundir com um
fenômeno ou problema, também ajuda a (re)criá-lo, a propô-lo sob novas
bases.
O conhecimento permitido pelo conceito não se opõe à vida — como
lembra Deleuze, pensar significa descobrir, inventar novas possibilidades
de vida. Analisando a obra de G. Canguilhem, Foucault comenta que ele
quer reencontrar “o que foi feito do conceito na vida”, isto é:
(...) do conceito enquanto ele é um dos modos dessa informação que todo
vivente extrai de seu meio e pela qual, inversamente, ele estrutura seu meio.
O fato de o homem viver em um meio conceitualmente arquitetado não prova
que ele se desviou da vida por qualquer esquecimento ou que um drama histórico o separou dela, mas somente que ele vive de uma certa maneira, que
ele tem, com seu meio, uma tal relação que ele não tem sobre ele um ponto de
vista fixo, que ele é móvel sobre um território indefinido ou muito amplamente
definido, que ele tem que se deslocar para recolher informações, que tem que
mover as coisas, uma em relação às outras, para torná-las úteis. Formar
conceitos é uma maneira de viver, e não de matar a vida, é uma maneira de
viver em uma relativa mobilidade e não uma tentativa de imobilizar a vida, é
mostrar, entre milhares de seres vivos que informam seu meio e se informam a
partir dele, uma inovação que se poderá julgar como se queira, ínfima ou considerável: um tipo bem particular de informação (Foucault, 2000:363-364).
Foucault enaltece Canguillem como o “filósofo do erro”, pois “no limite,
a vida — daí seu caráter radical — é o que é capaz de erro”, o homem como
“um vivente que nunca se encontra completamente adaptado”, “condenado
a ‘errar’ e a se ‘enganar’”. Daí, então, admitindo “que o conceito é a resposta
que a própria vida dá a esse acaso, é preciso convir que o erro é a raiz do que
constituiu o pensamento humano e sua história” (Foucault, 2000:364).
Assim:
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A oposição do verdadeiro e do falso, os valores que são atribuídos a um e a
outro, os efeitos de poder que as diferentes sociedades e instituições associam
a essa partilha, tudo isso talvez seja apenas a resposta mais tardia a essa possibilidade de erro intrínseca à vida. Se a história das ciências é descontínua,
ou seja, se ela só pode ser analisada com uma série de “correções”, como uma
nova distribuição que nunca libera finalmente e para sempre o momento
terminal da verdade, é que ainda ali o “erro” constitui não o esquecimento
ou o atraso da realização prometida, mas a dimensão peculiar da vida dos
homens e indispensável ao tempo da espécie (Foucault, 2000:365).
Se o erro é essa “dimensão peculiar da vida dos homens”, a problematização é tão importante quanto a busca de respostas ou soluções, já que estas
podem constituir a própria recolocação de um problema em novas bases.
Antes do conceito, portanto, temos a vida e suas problemáticas. Montaigne
(2001) já alertava que antes de perguntar “como é que isso acontece” temos
que nos indagar “mas [efetivamente] acontece?”. Cada conceito parte de
uma questão particular e, ao problematizar o real, de certa forma desestabiliza conhecimentos herdados, diante da permanente transformação em
que estamos mergulhados.
Milton Santos dirá que os conceitos são questões postas à realidade.
A própria questão entre verdadeiro e falso, segundo Deleuze (1999), deve
ser colocada não apenas à solução, como também ao problema: um “verdadeiro” problema, um problema bem colocado já constitui, de algum
modo, sua solução. Ele denomina de “preconceito social” a colocação de
problemas prontos à espera que encontremos apenas sua solução:
(...) o professor é quem ‘“dá” os problemas, cabendo ao aluno a tarefa de
descobrir-lhes a solução. Desse modo, somos mantidos numa espécie de
escravidão. A verdadeira liberdade está em um poder de decisão, de constituição dos próprios problemas: esse poder, “semidivino”, implica tanto o esvaecimento de falsos problemas quanto o surgimento criador de verdadeiros
(Deleuze, 1999:9).
Deleuze dirá também, comentando Foucault, que “a verdade é inseparável do processo que a estabelece”, e o “verdadeiro só se dá ao saber
através de ‘problematizações’ e que as problemáticas só se criam a partir de
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‘práticas, práticas de ver e práticas de dizer’”, com uma disjunção entre o ver
e o falar, o visível e o enunciável (Deleuze, 1988:72-73).
O geógrafo Claude Raffestin, nas “Notas Prévias” de seu Por uma
Geografia do Poder, afirma que “teríamos desejado mais livros que questionassem do que livros que respondessem. É pelo questionamento, e
não pelas respostas, que se alcança a medida do conhecimento” (1993:8).
Bergson, por sua vez, defendia que um problema bem colocado de algum
modo já estaria praticamente resolvido: “colocação e solução do problema
estão quase se equivalendo: os verdadeiros grandes problemas são colocados apenas quando resolvidos” (Bergson, apud Deleuze, 1999:9). Deleuze
aqui lembra também de Marx, em sua célebre frase de que “a humanidade
coloca tão-só os problemas que é capaz de resolver”. E acrescenta:
... é a solução que conta, mas o problema tem sempre a solução que ele
merece em função da maneira pela qual é colocado, das condições sob as
quais é determinado como problema, dos meios e dos termos de que dispõe
para colocá-lo. Nesse sentido, a história dos homens, tanto do ponto de vista
da teoria quanto da prática, é a da constituição de problemas (Deleuze,
1999:9).
É claro que essa “constituição de problemas” é geo-historicamente
situada, pois cada momento da história em cada espaço geográfico
(re)coloca seus próprios problemas. Toda proposição conceitual, portanto,
profundamente mutável, é sempre contextualizada geográfica e historicamente através de sujeitos específicos que a mobilizam e como que “lhe
dão vida”. Como indicam Deleuze e Guattari na citação com que abrimos
este capítulo, os conceitos devem ser constantemente reavaliados, transformados e, quando utilizados, demarcada claramente sua “paternidade”,
reconhecendo-se não apenas o(s) autor(es) que o formulou(aram), mas
também o contexto geo-histórico dentro do qual ou para o qual foram elaborados.
Os autores se reportam à própria Grécia antiga e referem-se a uma geohistória nos moldes braudelianos para compreender um fenômeno como o
nascimento da Filosofia. Assim, propõem:
A filosofia é uma geo-filosofia, exatamente como a história é uma geo-história,
do ponto de vista de Braudel (p. 125). (...) Se a filosofia aparece na Grécia,
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é em função de uma contingência, mais do que de uma necessidade, de um
ambiente ou de um meio, mais do que de uma origem, (...) de uma geografia
mais do que de uma historiografia (...) (Deleuze e Guattari, 1992:126).
Para Patton, por sua vez, os conceitos têm uma história, que pode
incluir sua história como componentes de outros conceitos e suas relações
com problemas particulares. Os conceitos sempre são criados em relação
com problemas específicos: “Um conceito carece de significado na medida
em que não está conectado com outros conceitos e não está vinculado a um
problema que resolve ou ajuda a resolver” (Deleuze e Guattari). A história
dos conceitos inclui, portanto, as variações que sofrem em sua migração de
um problema a outro (Patton, 2013:26).
Algumas problemáticas constituem o “foco” central do conceito, que
sempre evidencia determinadas questões ou relações, deixando outras em
segundo plano, reconhecendo sua presença, mas deixando-as como que
fora de foco. Por exemplo, enquanto “espaço” coloca seu foco no caráter de
coexistência e coetaneidade dos fenômenos (sem, obviamente, reduzir-se a
ele), “território” discute a problemática do poder em sua relação indissociável com a produção do espaço.
Conceitos geográficos como espaço e território revelam um pouco esse
ir e vir dos problemas a que se referem e sua diferenciação ao longo da história. As obras de Casey (1998), pelo viés filosófico, em relação ao espaço
(que ele geralmente denomina “lugar”, demonstrando, também aqui, que o
mais importante não é a palavra que sintetiza um conceito, mas seu conteúdo teórico-filosófico) e de Elden (2013), pelo viés geográfico, em relação
ao território, constituem exemplos de abordagens histórico-conceituais
onde, ainda que nem sempre de maneira explícita, fica evidente que é a
problemática em relação a espaço e território que transforma suas concepções ao longo do tempo. Se Elden, por exemplo, ao final de seu livro,
propõe território como uma “tecnologia política”, é também porque questões contemporâneas de certa forma impõem essa leitura — ela permite
explorar melhor questões, como a própria crise (e reformulação) das tecnologias estatais de controle da sociedade pelo espaço.
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