À PRIMEIRA VISTA: UMA ANÁLISE DA APROPRIAÇÃO DO CONHECIMENTO NA DEFICIÊNCIA VISUAL. Maria Aparecida Santiago da Silva 1 , UEM; Mariane Zanella Ferreira 2 , UEM; Maria Rosa Ferrucci Monção 3 , UEM; Taiane Do Nascimento Andrade 4 , UEM; Mayara Almeida Bérgamo 5 , UEM; Fernanda Elisa Aymoré Ladaga 6 , UEM; Cláudia Yaísa G. Da Silva 7 , UEM; Carla Fernanda Barbosa Monteiro 8 , UEM. RESUMO: O presente trabalho é resultado de estudos acerca da deficiência visual e tem por base o filme “À primeira vista” (At First Sight, 1999, Irwin Winkler, Fox Home Entertainment). Tal filme retrata a história verídica de Virgil, que sofreu catarata congênita com retinite pigmentosa, resultando em cegueira total ainda na infância. Quando adulto e adaptado à sua deficiência, passa por uma intervenção cirúrgica e recupera a visão, deparando-se, então, com dificuldades ao se relacionar com o mundo agora enquanto vidente. A partir da análise do filme, foram elencados aspectos relevantes para a compreensão da apropriação do conhecimento pelo deficiente visual total, discutidos à luz da Psicologia Histórico-Cultural. Os aspectos dizem respeito ao modo como o homem se relaciona com o mundo por meio da utilização dos órgãos dos sentidos, à formação de conceitos, à compensação cultural da deficiência visual e, por fim, considerações acerca do desenvolvimento das funções psicológicas superiores, que são descritas por Vigotski como fundamentais para a formação do psiquismo. O presente trabalho refere-se a um estudo teórico acerca dos aspectos citados acima sob a referida teoria, utilizando o cinema como um recurso mediador para o entendimento dos fenômenos humanos. A partir desse estudo, pode-se compreender de forma diferenciada e mais ampla o processo de aprendizagem e apropriação do mundo pelo deficiente visual, o que permite à psicologia contribuir com as discussões já existentes acerca do tema, bem como possibilitar uma melhor atuação junto a esses indivíduos, especialmente no que tange aos processos de ensino e aprendizagem proporcionados pela educação. Desse modo, a tarefa concreta é no sentido de desenvolver o que falta às crianças com cegueira, contrariamente à direção do defeito, assim como afirma a teoria vigotskiana. Palavras-chave: 1 2 3 4 5 6 7 8 deficiência visual; apropriação Autora. E-mail: [email protected] Co-autora. E-mail: [email protected] Co-autora. E-mail: [email protected] Co-autora. E-mail: [email protected] Co-autora. E-mail: [email protected] Co-autora. E-mail: [email protected] Co-autora. E-mail: [email protected] Co-autora. E-mail: [email protected] do conhecimento; cinema; 2 aprendizagem; desenvolvimento. O presente trabalho é resultante de estudos acerca da deficiência visual realizados no Projeto de Ensino “Arte e Deficiência: o cinema mostrando a vida”, vinculado ao Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá. Os estudos desenvolvidos no projeto acerca das concepções de deficiência e as relações entre deficientes e não deficientes baseiam-se na construção teórica da Psicologia Histórico-Cultural e utilizam-se do cinema como um recurso mediador na compreensão dos fenômenos humanos, ou seja, na linguagem artística que constitui uma via fértil para análise e reflexão acerca das questões humanas. Segundo o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1979, apud DUARTE, 2002), desenvolver um olhar capaz de analisar, compreender e apreciar histórias contadas cinematograficamente não se resume apenas a assistir filmes, uma vez que tal competência é adquirida também através da cultura na qual o indivíduo está inserido. Dito de outro modo, a análise de um filme é influenciada também pelas experiências culturais e pela maneira de ver do espectador. Blasco (2006) afirma que vivemos uma cultura do espetáculo, na qual imperam as emoções e a imagem e, nesse sentido, o cinema colabora para uma possível educação afetiva, por possibilitar a ampliação das vivências, do concreto, assim como do ver e do ouvir ao permitir, muitas vezes, situações que o homem ainda não viveu e nem viverá. Permite conhecer os rostos, as feições, as mais leves mudanças de expressão e, em consequência, os sentimentos e as paixões encontram no cinema sua versão sensorial. Como instrumento por excelência da educação, o cinema propicia que os alunos desenvolvam um debate amplo e multi-temático, no qual consigam criar oportunidades para abordar questões que o espaço acadêmico formal nem sempre possibilita. Assim, o uso do cinema se relaciona com o propósito da educação moderna, pois quando os alunos contam histórias decorrentes de seu contato e da experiência com o cinema, há uma inserção do que é humano na prática. O aluno pode esclarecer sentimentos ou conflitos que surgiram e trocar experiências, investigar e contestar concepções diferenciadas acerca de determinado assunto, perceber a historicidade dos temas estudados, bem como compartilhar o universo afetivo através da cultura da imagem e dos sentimentos. O cinema é um recurso promovedor de reflexão (BLASCO, 2006). Dessa maneira, o cinema pode ser um ótimo recurso para a discussão de conceitos e teorias que, no filme, tomam forma e corpo, vindo a enriquecer os debates 3 acadêmicos acerca dos mais variados temas. O presente trabalho parte dessa perspectiva, propondo exemplificar, a partir de aspectos selecionados em uma obra cinematográfica, os pontos relevantes acerca da aquisição de conhecimento pelo deficiente visual, tal como é compreendida pela Psicologia Histórico-Cultural. Nesse sentido, com o intuito de promover essa discussão, o filme selecionado foi “À primeira vista” (At First Sight, 1999, Irwin Winkler, Fox Home Entertainment), que tem como contexto a deficiência visual e as dificuldades pelas quais passa o indivíduo quando, adaptado às suas condições, volta a enxergar. A história retratada no filme baseia-se em um conto da obra “Um Antropólogo em Marte”, de Oliver Sacks (2006), neurologista que aborda casos clínicos a partir de explicações biológicas que não se encerram em si mesmas, mas também consideram as vivências e o desenvolvimento do homem na sua inserção social. Um dos protagonistas, Virgil Adamsom (representado por Val Kilmer), é deficiente visual total, cujo diagnóstico é catarata congênita com retinite pigmentosa, uma doença hereditária que compromete as retinas de forma lenta, mas implacavelmente. A cegueira acompanha-o desde a mais tenra infância, no entanto Virgil não a considera como problema, uma vez que demonstra ser um homem feliz, bem humorado e bastante adaptado a sua rotina. Mora com a irmã Jennie Adamsom (Kelly McGillis) e trabalha como massagista num SPA de um hotel, onde conhece Amy Benic (Mira Sorvino), uma arquiteta de Nova York, que se percebe incapaz de lidar com a cegueira do massagista por se tratar de uma realidade diferente da sua. Ambos se apaixonam e Virgil muda-se para Nova York, onde, influenciado por Amy, aceita fazer uma cirurgia que restabelece sua visão. O mundo da escuridão passa a ganhar cores e muitas consequências começam a surgir para Virgil. O que antes era considerado uma solução, tornou-se um problema e trouxe muitas dificuldades, principalmente para Virgil e para Amy. Ao ter a possibilidade de se apropriar do mundo pela primeira vez a partir do sentido da visão, Virgil experienciou diversas sensações, ao demonstrar encantamento com tantas descobertas, ao mesmo tempo em que mostra-se assustado quando lançado no mundo de objetos, das imagens e dos sentimentos que não têm significados em relação à maneira que ele os apropriou enquanto cego. Essas consequências e a maneira pela qual o protagonista lida com elas, comparada a seu modo de ser antes da cirurgia, nos permitem analisar o processo de apropriação de conhecimento vivenciado pelo deficiente visual, bem como refletir 4 acerca das implicações práticas desse processo. Foram elencados alguns aspectos relevantes para essa análise, que compreendem: o modo como o homem se relaciona com o mundo por meio da utilização dos órgãos dos sentidos; a formação de conceitos e a compensação cultural da deficiência visual, todos eles passando pelo desenvolvimento das funções psicológicas superiores na constituição do psiquismo humano. A apropriação do conhecimento na deficiência visual O homem precisa, ao contrário dos outros animais, produzir continuamente sua própria existência e, para tal, transforma a natureza para que ela se adapte as suas necessidades, o que é possível por meio de uma ação intencional, isto é, o trabalho, produzindo o mundo humano. Nesse sentido, segundo Leontiev (1978), o homem é um ser de natureza social, uma vez que o que tem de humano nele não é transmitido por hereditariedade biológica, mas adquirido no decurso de sua vida em sociedade, por meio da apropriação da cultura criada pela humanidade. Nestas relações, os homens criam instrumentos, o que compõe a mediação, que é o traço fundamental da atividade humana, na qual os instrumentos interpõem-se entre o sujeito e o objeto de sua atividade, garantindo-a como um fenômeno social, que proporciona o desenvolvimento do psiquismo do homem (FACCI; SILVA, 1998). Desse modo, o homem aprende a ser homem a partir do movimento transitório das funções elementares para as funções psicológicas superiores, o que decorre do caráter mediatizado da atividade humana, visto essencialmente na Educação. Por meio da inserção da criança na cultura, esta reequipa-se e transforma seu comportamento, suas funções psicológicas, um salto qualitativo interno que é provocado pelo meio externo. Nesse movimento de construção da existência humana, conforme Saviani (2003), vê-se que o que a natureza não garante é produzido historicamente pelos homens, e cabe ao trabalho educativo transmitir essa humanidade produzida pelo conjunto dos homens, na forma de elementos culturais, para os indivíduos. A educação tem como uma de suas especificidades a institucionalização do pedagógico através da escola. Para o referido autor, a função da escola é a de socializar o saber sistematizado, isto é, o conhecimento elaborado, científico. Em outras palavras, a existência da escola garante a aquisição de instrumentos que possibilitam o acesso a esse saber, por meio da 5 mediação entre a passagem do saber espontâneo ao saber sistematizado, da cultura popular à cultura erudita. Nesse sentido, conforme os pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, o desenvolvimento cultural das funções especiais, tais como a memória, a atenção e a abstração, não é simples maturação, mas sim mudanças culturais, reequipamento cultural, ou seja, essas funções são transformadas de seu nível natural para o cultural, que é possível no decorrer da experiência social (VYGOTSKY E LURIA, 1996). Da mesma forma, os sentidos humanos são culturais, uma vez que se aprende a ver, a ouvir e, então, os significados são dados ao mundo, a partir das apropriações que serão feitas no decorrer do desenvolvimento. Para Caiado (2006 apud VENTORINI, 2007), os sentidos exercem papel fundamental na apropriação da realidade. Entretanto, não devemos compreendê-los como “puro aparato biológico individual”. A construção dos sentidos sociais é tarefa histórica, cultural e social, sendo que o homem enxerga, ouve e sente aquilo que o outro lhe aponta para ver, ouvir e sentir, dentre outras possibilidades do seu tempo e lugar social. A partir dessas considerações, é possível entender o fato de que o personagem Virgil, que recuperou a visão após a cirurgia, não teve este sentido adaptado a nova realidade, identificando e reconhecendo o mundo que anteriormente havia sido apropriado por meio dos outros sentidos, principalmente do tato. O procedimento cirúrgico recuperou o defeito biológico da falta de visão, mas os médicos não se atentaram ao fato de que o sentido da visão é aprendido, é cultural, uma vez que por meio da apropriação da cultura, o homem vai significando o mundo e se desenvolvendo. O mundo não nos é dado: construímos nosso mundo através de experiência, classificação, memória e reconhecimento incessantes. Mas quando Virgil abriu os olhos, depois de ter sido cego por 45 anos […] não havia memórias visuais em que apoiar a percepção; não havia mundo algum de experiência e sentido esperando-o. Ele viu, mas o que viu não tinha qualquer coerência. Sua retina e nervo óptico estavam ativos, transmitindo impulsos, mas seu cérebro não conseguia lhes dar sentido; estava, como dizem os neurologistas, agnósico [não consegue identificar, designar os objetos] (SACKS, 2006, p. 119). De acordo com Sacks (2006), Virgil era mentalmente cego, uma vez que o cérebro não aprendeu a enxergar, mas significava o mundo a partir do sentido do tato. Em muitas situações, seus olhos não lhe diziam nada a respeito de determinado objeto, 6 mas ao tocá-los, por exemplo, o objeto tinha seu significado, apropriado ao longo de seu desenvolvimento enquanto cego. Dessa forma, após a cirurgia, passou a ser capaz de ver, mas não de decifrar o que via, estava agnósico. Nesse momento, deveria se reapropriar do mundo e se recompor da identidade de cego para a de alguém que enxerga, como se fosse um bebê aprendendo a ver. Virgil, ao se tornar uma pessoa que enxerga, precisava apropriar-se dos signos e instrumentos e aprender a usar a visão, desenvolvendo este sentido culturalmente. Nesse sentido, As aquisições do desenvolvimento histórico das aptidões humanas não são simplesmente dadas aos homens nos fenômenos objetivos da cultura material e espiritual que os encarnam, mas são aí apenas postas. Para se apropriar destes resultados, para fazer deles as suas aptidões, “os órgãos da sua individualidade”, a criança, o ser humano, deve entrar em relação com os fenômenos do mundo circundante através doutros homens, isto é, num processo de comunicação com eles (LEONTIEV, 1978, p. 272). Dessa maneira, é possível afirmar, assim como assinala Leontiev (1978), que o homem não nasce homem e, portanto, os sentidos são humanizados. Em outras palavras, na constituição histórica e social do psiquismo, o modo como o homem se relaciona com o mundo por meio dos órgãos de sua individualidade (ver, ouvir, cheirar, degustar, pensar, amar, querer etc.) existe em sua forma especificamente humana porque são sociais, provenientes das relações mediadas dos homens com outros homens. Tal fato comprova-se na cirurgia feita por Virgil, na qual todos esperavam que de imediato ele passaria a enxergar e reconhecer o mundo, como se o sentido da visão fosse biologicamente dado. Todos, incluindo Virgil, esperavam algo mais simples. Um homem abre os olhos, a luz entra e bate na retina: ele vê. Como num piscar de olhos, nós imaginamos. […] embora tenha havido uma cuidadosa consideração cirúrgica da operação e de possíveis complicações pósoperatórias, houve pouca discussão ou preparação para as dificuldades neurológicas e psicológicas que Virgil poderia encontrar (SACKS, 2006, p. 119 – 120). No entanto, ao contrário do que pensavam os médicos, tal como assinala Sacks (2006), a partir do sentido da visão Virgil precisaria de mediações para se apropriar novamente dos significados, conquistados anteriormente por vias alternativas de desenvolvimento. De acordo com Nuernberg (2008), o termo mediação assume uma dupla acepção nas reflexões teóricas de Vigostki: 7 a) como mediação semiótica, em que ele considera que a palavra promove a superação dos limites impostos pela cegueira, ao dar acesso àqueles conceitos pautados pela experiência visual - tais como cor, horizonte, nuvem, etc. – por meio de suas propriedades de representação e generalização; b) como mediação social, em que ele aponta para as possibilidades de apropriação da experiência social dos videntes. (p. 313) A criança normo-visual encontra dificuldades nos primeiros três anos de vida, fase da elaboração da fala, quando ela busca entender o mundo e expressar suas percepções por meio de sua linguagem em desenvolvimento, mas ela tem o processo facilitado pela mediação de alguém com as mesmas informações sensoriais da criança, que presta assistência com base nessa percepção comum. A criança cega, por outro lado, possui um mediador que, na maioria das vezes, usa uma percepção visual para lhe explicar os conceitos, o que a coloca em um processo contínuo de solução de problemas (SANTIN; SIMMONS,1996 apud VENTORINI, 2007). Nesse sentido, Ventorini (2007) afirma que a descrição verbal de um objeto, tendo como base o visuocentrismo, desvaloriza a experiência por meio dos outros sentidos pelos quais os cegos exploram, prejudicando qualitativamente a formação de conceitos. Assim, pelo verbalismo, ocorre um excesso de linguagem na explicação da realidade de objetos e fenômenos, que atribuí mais importância às palavras do que às ideias. Quanto a isso, Custforth (1932, 1933, 1951 apud VENTORINI, 2007) considera que o verbalismo ocasiona no cego um pensamento superficial e incoerente sobre as diversas características que compõem os objetos. Tal fato pode ser observado no filme, quando Virgil pede que Amy descreva para ele o horizonte e ela dá uma descrição que vai além do que ela mesma vê, mas perpassa por sua forma de sentir em relação àquilo, um conceito construído a partir de sua experiência não só visual. Dessa forma, Virgil pode enfim ter compreensão acerca do termo, sendo que até então todas as descrições que tivera estavam relacionadas apenas com o que as pessoas captavam pela visão. Por outro lado, muitas vezes, os objetos, lugares e fenômenos que o próprio Virgil experienciou tinham conceitos muito claros para ele, que podia dar uma descrição bem mais profunda e rica em detalhes do que alguém que enxerga, pois se utilizava de todos os seus outros sentidos para apreender o objeto. Com os estudos do desenvolvimento das funções especiais em indivíduos sem nenhuma limitação, Vygotski (1997) atribui às pessoas com deficiência um processo 8 similar, no qual estas buscam maneiras novas e diferentes de resolver determinado problema, por um sistema de compensação, isto é, o comportamento cultural compensatório sobrepõe-se ao biológico defeituoso. Nesse sentido, conforme o referido autor, a deficiência torna-se um defeito não só pelos processos naturais, mas principalmente pelo seu uso cultural, pela incapacidade de usar instrumentos para mediar seu comportamento, ou seja, não se consegue criar e usar os dispositivos culturais para lidar com as mais variadas situações e limitações pertinentes à deficiência visual. No que se refere à compensação, Ventorini (2007) afirma que “alguns estudiosos do desenvolvimento humano 'anormal' supõem que a ausência de um órgão sensorial pode ser compensada com o aumento do funcionamento dos outros órgãos sensoriais” (p. 40, grifos da autora). Entretanto, a autora discorda dessa concepção e apresenta as ideias de Caiado (2006 apud VENTORINI), em concordância com os pressupostos vigotskianos, para quem a compensação deve ser compreendida como um processo social e não orgânico. Dessa maneira, o cego rejeita menos os estímulos auditivos que as pessoas mormo-visuais, utilizando a audição para reconhecer as particularidades das vozes humanas, diferenças de ruídos, som dos próprios passos e dos passos de outras pessoas, notas musicais, dentre outros, com maior precisão que os demais. O desenvolvimento da acuidade auditiva passa pelo mesmo processo, no entanto, o cego adquire certas habilidades auditivas devido a maior utilização dos estímulos auditivos, sendo que o mesmo ocorre com os demais sentidos. Dessa forma, pode-se compreender porque Virgil apreende o mundo com tamanha facilidade, uma vez que, mesmo privado do recurso da visão, passou por formas alternativas de desenvolvimento, comparado às pessoas que enxergam, a partir da compensação cultural, isto é, do uso cultural dos sentidos que supera o limite biológico dado pela cegueira. Ele reconhece as pessoas pela voz e pelo cheiro, consegue se localizar no espaço e distinguir objetos apenas pelo toque, sem nenhuma dificuldade na vida adulta em atividades cotidianas, como também lida com o conhecimento sistematizado necessário ao seu trabalho e às suas leituras, por exemplo, por ter passado por processos educativos que lhe garantiram essas aprendizagens e seu desenvolvimento. Pode-se dizer então, que Virgil vê com as mãos, ou seja, apropria-se do mundo pelo sentido mais imediato nos deficientes visuais, o tato, diferente no videntes, que recorrem mais à visão. Entretanto, existem algumas diferenças na compreensão do que 9 se vê com a visão e com o tato. Um desses aspectos, ressaltados por Ventorini (2007) diz respeito à estética tátil. Segundo a autora, “o tato não contempla a beleza dos objetos da mesma forma que a visão. Neste sentido, o objeto que possui uma beleza estética tátil é aquele que tem textura, forma e tamanho adequados à exploração tátil” (p. 38). Assim, quando Virgil toca em Amy o que ele sente são as formas do seu rosto, do seu corpo e a textura de sua pele, sendo que quando a vê pela primeira vez depois da cirurgia exclama “então isso que é a beleza?”, expressando a diferenciação entre a beleza explicitada pelos olhos e pelas mãos. O posicionamento de Vygotsky e Luria (1996), na obra “Estudos sobre a história do comportamento”, em relação às crianças que possuem alguma deficiência vale discussões, visto que eles atentam-se para as características positivas e potenciais que estas crianças possuem quanto à capacidade de aprender e se desenvolver. Nesse sentido, o trabalho educativo com deficientes visuais é legitimado, baseado no desenvolvimento do psiquismo a partir da apropriação do conhecimento construído pela humanidade ao longo da história, com mediações que promovam um ambiente social no qual a criança possa fazer uso e se apropriar das ferramentas e signos externos. Dessa maneira, desenvolve-se para além de suas limitações, ao passo que se constitui como uma personalidade social válida, assim como o protagonista do filme “À primeira vista”. Diante dessas considerações, podemos afirmar que o desenvolvimento do indivíduo é um processo dialético complexo, no qual ocorre o desenvolvimento de diferentes funções, a transformação qualitativa de uma forma em outra, na qual a superior supera a função mais elementar por incorporação e, assim, dá movimento ao desenvolvimento. Permanecer focado no que a criança já tem, ao seu comportamento natural, é prendê-la em sua deficiência e desperdiçar todo o potencial a ser desenvolvido. É preciso ensiná-la a usar seus próprios recursos naturais de forma racional, tal como fazem as crianças sem deficiência (VYGOTSKY E LURIA, 1996). Diante disso, fica evidente que as capacidades inatas da pessoa configuram o ponto de partida, cujo caminho é determinado pelo desenvolvimento cultural que pode produzir resultados dessemelhantes nos indivíduos, por depender de sua interação com o meio ambiente, das mediações realizadas e da disponibilidade de recursos culturais encontrados ao longo desse desenvolvimento. Tem-se a superação do determinismo biológico pela formação histórica e cultural do homem, tese fundante da Psicologia Histórico-Cultural que encontra força e base quando falamos de alunos/pessoas com 10 deficiência. Nesse sentido, Vygotsky e Luria (1996) afirmam que o percurso do desenvolvimento das funções psicológicas superiores é decorrente da interação do indivíduo com a cultura, que, por tal fato, passa a ser um processo de aprendizagem, muito além do amadurecimento fisiológico, o que implica no fato de que são funções construídas no decorrer do desenvolvimento humano. Tal questão direciona para a possibilidade de, por meio de atividades que as estimulem, de informações e de um trabalho para as crianças que as coloquem em contato com tais problemas, seja alcançado o comportamento cultural, que permitirá o uso inteligente e intencional das funções psicológicas superiores da melhor forma possível. Ao entender o processo de desenvolvimento cultural das funções psicológicas superiores, assim como Vygotsky e Luria (1996) afirmam, é possível que o educador direcione sua atuação para as possibilidades de compensação e busque formas de usálas, uma vez que a limitação pode funcionar como um estímulo, no sentido da reorganização cultural da personalidade. Vygotski (1997) afirma que a supercompensação vem orientada para a formação de uma personalidade válida, da conquista de uma posição na vida social. Tomando como exemplo a criança cega, o autor pontua que seu desenvolvimento segue o sentido contrário ao da cegueira, tendo a linguagem como a garantia de uma posição social em meio aos videntes, tal como pode ser observado na história de Virgil. As formulações teóricas desenvolvidas por Vigotski, assim como por outros autores da Psicologia Histórico-cultural, contribuem para a organização do ensino que prioriza o desenvolvimento de capacidades dos alunos, a partir de novas aprendizagens realizadas por meio de mediação, que, por isso, estão além do efetivo desenvolvimento alcançado por ela, na zona de desenvolvimento próximo. Desse modo, a tarefa concreta do educador e do próprio psicólogo escolar, orienta-se no sentido de desenvolver o que falta às crianças com cegueira, contrariamente à direção do defeito, assim como afirma a teoria vigotskiana. Quanto a isso, Laplane e Batista (2008) chamam a atenção para a importância de inserir os deficientes visuais em um ambiente que promova ativamente seu desenvolvimento através dos canais sensoriais que a criança possui, tornando possível que ela participe das atividades cotidianas e aprenda como qualquer criança, impedindo que elas tenham seu interesse diminuído pela falta de estímulos, tornando-se apáticas e quietas. Para tal, os autores sugerem atividades grupais de ensino e recreativas, 11 envolvendo diferentes recursos pedagógicos, a fim de estimular não só o aprendizado, como a inserção social das crianças no grupo. Destacam ainda que há uma grande carência de material adaptado para as fases iniciais do processo educativo, onde é comum o uso de recursos visuais (objetos, figuras, imagens), que dificultam a inclusão das crianças com deficiência visual nos processos de aprendizagem. Assim, há que se pensar, especialmente no contexto escolar, que na educação do deficiente visual “valorizar suas experiências táteis, auditivas e cinestésicas é tão importante quanto proporcionar intervenções que favoreçam a formação de conceitos por meio dos processos de significação, promovendo assim o desenvolvimento das funções psicológicas superiores (NUERNBERG, 2008, p. 314). Considerações finais Diante da discussão exposta, quando falamos na apropriação do conhecimento científico pelo deficiente visual, em especial no espaço educativo, é possível afirmar que o fundamental, com a organização do currículo escolar e das práticas pedagógicas, é orientar o trabalho por meio de mediações adequadas conforme as necessidades educacionais especiais dos alunos com deficiência, que propicie aos mesmos um processo de ensino e aprendizagem do conhecimento historicamente produzido e sistematizado. A educação é um espaço privilegiado, no qual o homem tem acesso às relações sociais, em que incorpora em sua subjetividade as formas de comportamentos e ideias construídas pela humanidade no decorrer da história, apropriadas por ele e pelos que convivem, por meio do processo de humanização. Tal como a Psicologia Histórico-Cultural propõe, este estudo possibilita a afirmação de que as funções psicológicas superiores são aprendidas e desenvolvidas, em um processo no qual, no contexto escolar, o professor trabalha com o aluno concreto, assinalado por Saviani (2004), como educador, mediador e transmissor desse conhecimento sistematizado e acumulado, com o alunado em toda a sua diversidade. Para tanto, é necessário o fornecimento de estrutura e suporte para que a educação cumpra estes princípios, para que a escola cumpra sua função e os alunos possam apropriar-se do conhecimento. REFERÊNCIAS 12 DUARTE, R. (2002). A pedagogia do cinema. In: DUARTE, R. A. Cinema & Educação. 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