o princípio do estado de inocência e a sua violação pela mídia

Propaganda
O PRINCÍPIO DO ESTADO DE INOCÊNCIA E A SUA VIOLAÇÃO
PELA MÍDIA
Luiz Fernando Pereira Neto
Mestre em Ciências Criminais (PUC-RS), Professor de Processo Penal
(UPF-RS), Conselheiro Regional IBRAPP, Advogado Criminalista.
A favela é a nova senzala, correntes da velha tribo
E a sala é a nova cela, prisioneiros nas grades do vídeo
E se o sol ainda nasce quadrado, e a gente ainda paga por isso
E a gente ainda paga por isso
(Trecho da música Revanche. Autoria: Lobão e Bernardo Vilhena)
Resumo: A garantia constitucional da inocência surge no ordenamento jurídico brasileiro com
o advento da Constituição Federal de 1988. No entanto, o Código de Processo Penal, editado
em 1941, apesar da reforma de 2008, ainda reproduz a presunção de não inocência. Também, a
sociedade de insegurança, estigmatizadora e extremamente influenciável pela mídia, colabora
com a descaracterização do princípio da inocência. Assim, o presente estudo visa analisar a
relação entre a presunção de inocência e a mídia.
Palavras-chave: Estado de inocência; Mídia; Sociedade de insegurança.
Abstract: The constitutional guarantee of innocence appear in the brazilian legal system with
the advent of the Constitution of 1988. However, the Code of Criminal Procedure, published in
1941, despite the reform of 2008, still reproduce the presumption of innocence like non
innocence. Also, the society of insecurity, influenced by the media, contributes to distorce the
principle of innocence. Thus, this study aims to examine the relationship between the
presumption of innocence and the media.
Keywords: State of innocence; Media; Insecure society.
INTRODUÇÃO
Garantia constitucional e princípio reitor do processo penal, em Estado de Inocência é
que deve permanecer o suspeito de um delito, até sentença condenatória irrecorrível. Sendo
assim, podemos dizer que a pessoa incriminada está envolta por uma camada protetora, tendo
função de assegurar que o acusado não será condenado por nenhum crime até que se tenha
comprovado sua culpa e não haja mais como recorrer de tal decisão. Arraigado nas bases da
Revolução Francesa, e inserido na Constituição daquele país, logo ganhou proporções
maiores, sendo recebido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem. No Brasil ele só
veio a ser estabelecido na chamada Constituição Cidadã, a Constituição de 1988.
Este princípio mudou o curso da história processual penal, dando a todos os cidadãos o
direito de não ser pré-julgado e condenado também encaminhando a sociedade a romper seus laços
com tão importante princípio. É a partir deste aspecto que se fundamenta o presente trabalho.
Realizando um levantamento sobre a questão, percebemos que a nova sociedade de
risco formada nos últimos tempos, foi altamente influenciada pela mídia, que no afã de elevar
sua programação a numerosos índices de audiência, vem violando constantemente o princípio
Congresso Internacional de Ciências Criminais, II Edição, 2011
98
do Estado de Inocência. Percebemos que na guerra pela audiência vale tudo até mesmo
infringir os princípios constitucionais. Procuraremos neste estudo retratar as definições sobre
o Princípio da Presunção de Inocência, conhecer o seu processo histórico, analisar a formação
da sociedade de insegurança e o papel da mídia na espetacularização da notícia.
1 NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE O PRINCÍPIO DO ESTADO DE INOCÊNCIA
O estado de inocência advém do próprio princípio do direito natural, fundamentado nas
bases de uma sociedade livre, democrática, que respeita os valores éticos, morais, mas
principalmente os valores pessoais, aqueles que têm por essência a proteção da pessoa humana.
Tal instituto remonta ao Direito Romano. Durante a Idade Média este pressuposto foi
fortemente atacado, neste período a presunção era de culpa e não de inocência. Se as provas
não eram suficientes para libertar ou mesmo para prender o réu era condenado por suposição.
De acordo com Aury Lopes Júnior, “No Directorium Inquisitorum, EYMERICH orientava
que o suspeito que tem uma testemunha contra ele é torturado. Um boato e um depoimento
constituem juntos, uma semiprova e isso é suficiente para uma condenação”.
1
No final do século XVIII, ainda durante o iluminismo, o princípio de presunção de
inocência era contraditório a sua essência. Nesta fase a Europa Continental vivia sob um
regime de sistema penal inquisitório, onde na maioria das vezes, as pessoas eram condenadas
antes mesmo de se ter sido comprovada a culpa.
Um exemplo clássico do que foi o bárbaro sistema inquisitório na época da inquisição
religiosa foi o processo de Joana D’Arc. Essa história foi transcrita em inúmeros livros e
retratada nas telas de cinema, mostrando ao mundo a história da jovem francesa, que seguindo
suas crenças, promoveu um dos mais famosos processos a época da inquisição. Instaurado na
França em 21 de fevereiro de 1431, o processo teve como juiz e acusador o Bispo Cauchon,
que deu a Joana o direito de escolher entre seus acusadores, um defensor.
Agora só resta a Joana a possibilidade de apelar à benevolência dos juízes. O
texto da acusação está pronto e será lido e rebatido durante longos dias. A
donzela só pode ter como defensores os seus próprios acusadores: a pior
situação para qualquer acusado. Ela decide defender-se sozinha. 2
1
JÚNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen
Juirs, 2008, p.187.
2
BENAZZI, Natale. D’AMICO, Matteo. O Livro Negro da Inquisição: A Reconstituição dos Grandes
Processos, Lisboa: Âncora, 2001, p.65, apud, RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2005, p.52.
Congresso Internacional de Ciências Criminais, II Edição, 2011
99
Durante este período não havia em que se falar em direitos e garantias. Era urgente e
necessário proteger o cidadão contra os desmandos do Estado, que buscava de qualquer forma
a condenação do réu. A regra era a presunção de culpa e não de inocência. Nas palavras de
Paulo Rangel:
Nesse período e sistema o acusado era desprovido de toda e qualquer garantia.
Surgiu a necessidade de se proteger o cidadão do arbítrio do Estado que, a
qualquer preço, queria sua condenação, presumindo-o, como regra, culpado. 3
No final do século XVIII, mais precisamente no ano de 1789 explode a maior de todas
as revoluções que mudaria o mundo. A Revolução Francesa marcada principalmente pela
queda da Bastilha, local em que durante anos, todos os direitos e garantias dos cidadãos
franceses ou não, foram suprimidos. Deu-se nesta fase então o início de um novo tempo.
Portando a bandeira da Liberté, Égalité et Fraternité, surge o diploma dos direitos e
garantias fundamentais do homem. A Constituição francesa proclamava: “todo homem é
presumido inocente até que ele tenha sido declarado culpado; se ele está julgado
indispensável prendê-lo, todo rigor que não seria necessário para a segurança de sua pessoa
deve ser severamente reprimido pela Lei”. 4
Estava desta forma estabelecida a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
de 1789, que trouxe em seu art. 9º:
Todo homem é considerado inocente, até ao momento em que, reconhecido
como culpado, se julgar indispensável a sua prisão: todo o rigor
desnecessário, empregado para a efetuar, deve ser severamente reprimido
pela lei. 5
Começava naquele momento uma grande mudança do sistema processual penal na
Europa que influenciaria fortemente outros países.
O Processo Penal dava um grande salto, saindo de um modelo inquisitório passando
então para o sistema acusatório. Este nova realidade figura em pólo diverso do inquisitivo, um
o contrário do outro. Se no sistema inquisitivo o juiz é o autor e a acusação, no acusatório
cada personagem tem papel próprio e distinto não cabendo ao juiz decidir, mas mediar o
processo de forma a se aplicar a lei adequadamente.
O sistema acusatório, antítese do inquisitivo, tem nítida separação de funções,
ou seja, o juiz é órgão imparcial de aplicação da lei, que somente se manifesta
3
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005, p.24.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2000, p.65.
5
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005, p.25.
4
Congresso Internacional de Ciências Criminais, II Edição, 2011
100
quando devidamente provocado; o autor é quem faz a acusação, assumindo,
todo o ônus da acusação, e o réu exerce todos os direitos inerentes à sua
personalidade, devendo defender-se utilizando todos os meios e recursos
inerentes à sua defesa. Assim, no sistema acusatório, cria-se o actum trium
personarum, ou seja, o ato de três personagens: juiz, autor e réu. 6
Proclamado em 1948 na Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU –
Organização das Nações Unidas, o princípio da presunção de inocência ganhou força,
legalizado no Art. 11: “ninguém será condenado à pena de ofensa tendo o direito de ser
presumido inocente até provado a culpa de acordo com a Lei no processo público ele tem
toda a garantia necessária para a sua defesa”. 7
Seguindo a mesma concepção da Declaração Universal dos Direitos do Homem a
Convenção do Conselho da Europa, estabeleceu em seu Artigo 6º, inciso 2º: “ninguém será
condenado de um crime de ofensa, sendo presumido inocente até que seja provada a culpa de
acordo com a Lei”.
No Brasil, tal princípio em sua essência só veio a ser consagrado na Constituição
Federal Brasileira no ano de 1988. O art. 5º, inciso LVII, que trata especificamente deste
princípio traz:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória; [...] 8
A partir da promulgação da CRFB, entrava então o Direito Processual Penal Brasileiro
em uma nova fase, mais humanista, protetora dos direitos sociais, coletivos e individuais,
garantindo principalmente a preservação da dignidade da pessoa humana. O princípio da
inocência vinha naquele momento assegurar, ou seja, garantir que ninguém fosse considerado
culpado até sentença condenatória definitiva.
Alexandre de Moraes faz uma ressalva importante, quando consagra a presunção de
inocência, como um dos princípios basilares do Estado de Direito de garantia processual
penal, no intuito de se obter à tutela da liberdade pessoal: “dessa forma, há a necessidade de
6
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p.52.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2000, p.65.
8
BRASIL. Constituição. Brasília: Senado Federal, 1988.
7
Congresso Internacional de Ciências Criminais, II Edição, 2011
101
o estado comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é constitucionalmente presumido
inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio estatal”.9
O fato é que com a adesão do Brasil à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos
(Pacto de São José da Costa Rica), conforme Decreto nº 678, de 06.11.1992, vige em nosso
país a regra do art. 8º, 2, da Convenção: “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se
presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.
1.1 PRINCÍPIO DO ESTADO DE INOCÊNCIA COMO DEVER DE TRATAMENTO
No Brasil, consagrado no art. 5º da Constituição Federal, o princípio da presunção de
inocência tomou seu próprio sentido. Estudado e avaliado por muitos processualistas penais,
ganhou de cada um uma interpretação própria e características diferentes.
Na visão de Paulo Rangel não há em que se falar em presunção de inocência e sim em
declaração, para ele a Constituição Federal não presume que ninguém seja inocente, mas
declara sim, que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença
penal condenatória.
Primeiro não adotamos a terminologia presunção de inocência, pois, se o réu
não pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença
penal condenatória, também não pode ser presumidamente inocente.
A Constituição não presume a inocência, mas declara que ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória (art. 5º, LVII). Em outras palavras, uma coisa é a certeza da
culpa, outra, bem diferente, é a presunção da culpa. Ou, se preferirem, a
certeza da inocência ou a presunção da inocência.10
Para Amilton Bueno de Carvalho, a presunção de inocência é pressuposto. De acordo
com o autor, mesmo que este princípio não estivesse normatizado na Declaração dos Direitos
do Homem, ou, em nossa Carta Magna, assim mesmo ele seria garantia fundamental.
Segundo o autor “o princípio da presunção de inocência não precisa estar positivado em
lugar nenhum: é pressuposto [...]”. 11
Na visão de Aury Lopes Júnior o princípio é um dever de tratamento. Ensina que a
presunção de inocência impõe que o réu seja tratado como inocente: “a presunção de
inocência impõe um verdadeiro dever de tratamento (na medida em que exige que o réu seja
9
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2003, p.132.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010, p.24.
11
CARVALHO, Amilton Bueno de. Lei, para que(m)? In: Escritos de Direito e Processo Penal em homenagem ao
Professor Paulo Cláudio Tovo. Alexandre Wunderlich(coordenador).Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p.51.
10
Congresso Internacional de Ciências Criminais, II Edição, 2011
102
tratado como inocente), que atua em duas dimensões: interna ao processo e exterior a ele”.
Esse dever impõe ao juiz que a carga de provas seja obrigatoriamente do acusador, afinal se o
réu é inocente ele não precisa provar nada. Além do que outro princípio constitucional garante
ao acusado o direito de não ter que produzir provas contra si mesmo. Na dimensão externa ao
processo a presunção de inocência irá atuar como um limitador, afim de que o réu seja
protegido da publicidade que na maioria das vezes é extremamente abusiva e da
estigmatização precoce do acusado.
Significa dizer que a presunção de inocência (e também as garantias
constitucionais a imagem, dignidade e privacidade) deve ser utilizada como
verdadeiros limites democráticos à abusiva exploração midiática em torno do
fato criminoso e do próprio processo judicial. O bizarro espetáculo montado
pelo julgamento midiático deve ser coibido pela eficácia da presunção de
inocência.” 12
Eugênio Pacelli de Oliveira, fala em estado ou situação jurídica de inocente. Para ele
este princípio impõe ao Estado a observância e respeito a duas regras específicas ao acusado,
uma com relação ao tratamento e outra de fundo probatório.
[...] tratamento, segundo o qual o réu, em nenhum momento do inter
persecutório, pode sofrer restrições pessoais fundadas exclusivamente na
possibilidade de condenação, e a outra, de fundo probatório, a estabelecer
que todos os ônus da prova relativa à existência do fato e à sua autoria
devem recair exclusivamente sobre a acusação. 13
Na prática cria-se uma presunção de culpa contrária ao acusado, que terá desde o
início da persecução criminal uma carga de contraprovar sua inocência, alterando-se os
primados mais subliminares do processo penal constitucionalizado, que por sua vez deve ser o
norte do Estado Democrático de Direito.
O fato é que inúmeros artigos do CPP não possuem compatibilidade constitucional
neste ponto, mesmo que a reforma processual penal de 2008, tenha significativas e pontuais
alterações no modelo processual anterior, dentre eles a não incorporação dos arts. 408 e 594.
Porém, não entendemos por que o legislador perdeu o momento e deixou passar a excelente
oportunidade de mudar o dispositivo do art. 393 do CPP, que também é inaplicável, visto sua
incompatibilidade com a própria Constituição.
É preciso que nossos magistrados façam uma avaliação dos velhos conceitos e
posicionamentos. O juiz não deve ser um mero aplicador da lei tal qual ela é, mas ser um
12
13
Idem, ibidem, pp.191–192.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p.31.
Congresso Internacional de Ciências Criminais, II Edição, 2011
103
intérprete perspicaz e humanista, aplicando desta forma a norma, mas buscando em sua
essência a justiça. Para tanto, é preciso que não se deixe levar pelo clamor público, que se
faça a justiça tal qual deva ser.
Não há dúvida que a liberdade é o bem mais precioso de qualquer cidadão, por isto, é
relevante que a prisão do réu seja mesmo necessária. O juiz ao decretar na sentença
condenatória a prisão do réu, também, deve fundamentar a decretação do ato constritivo,
demonstrando de acordo com o artigo 312 do Código de Processo Penal, a real necessidade da
medida cautelar, e neste nos parece que a reforma de 2008 andou bem. Neste sentido é que
tem se norteado a jurisprudência da Suprema Corte, quando em HC de relatoria do Ministro
Eros Roberto Grau entendeu pelo efeito suspensivo aos recursos especiais e extraordinário, no
que diz respeito a possibilidade de execução provisória da pena 14.
Luigi Ferrajoli destaca que o importante é que todos os inocentes sejam sem exceção
protegidos.
[...] é um princípio fundamental de civilidade, fruto de uma opção garantista
a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que para isso tenha-se
que pagar o preço da impunidade de algum culpável. Isso porque, ao corpo
social, lhe basta que os culpados sejam geralmente punidos, pois o maior
interesse é que todos os inocentes, sem exceção, estejam protegidos.15
O princípio da presunção de inocência, reitor do Processo Penal, estabelece assim
parâmetros para que a dignidade humana seja respeitada, sendo um estado em que se encontra
o acusado até ser declarado culpado. Uma forma de tratamento que internamente impõe ao
juiz que a carga de provas seja obrigatoriamente do acusador; e externamente tem o
importante dever de atuar como um limitador.
O acusado necessariamente deve ser protegido da publicidade que na maioria das
vezes é extremamente abusiva e a estigmatização precoce do imputado se torna uma violação
de proporções irreparáveis a pessoa e a moral do réu.
2 A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE DE INSEGURANÇA INFLUENCIADA PELA
MÍDIA: DESCARACTERIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
É realmente extraordinário o progresso experimentado pelos meios de comunicação de
1970 para cá. A humanidade hoje é outra, uma conquista antes inimaginável, a difusão da
14
15
HC 84.078-7(MG). 05/02/2009. TRIBUNAL PLENO. RELATOR : Min. EROS GRAU.
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, Ed. Trota: Madrid, 1995, p. 549.
Congresso Internacional de Ciências Criminais, II Edição, 2011
104
notícia e do conhecimento vai além do que previam os especialistas de décadas anteriores. A
rapidez, a versatilidade e a simplicidade, com que tudo é transmitido nos levam a duas
reflexões, uma do desafio e a outra do risco.
Na visão de Tony Schwartz este desafio é definido como uma séria revisão da
comunicação: “Desafio, na medida em que o avanço tecnológico impõe uma séria revisão e
reestruturação dos pressupostos teóricos de tudo que se entende por comunicação”. 16
O risco é calculado, no sentido de que não havendo esta reestruturação, muitos de
nossos princípios fundamentais garantidos mediante muitas lutas e conflitos, se percam na
espetacularidade das notícias.
Ignácio Ramonet desestrutura a clássica formação de Montesquieu de poderes, para
dar uma nova roupagem, na visão dele, primeiramente o poder econômico, em segundo plano
o poder da mídia e em terceiro o poder político. 17
Tony Schwartz, também criou sua própria definição, mas numa escala digamos de
poder sobrenatural, empostado pela possibilidade de estar em todos os lugares:
Deus é um espírito onisciente e todo-poderoso que está dentro e fora de nós.
Deus está sempre conosco porque é onipresente. É um mistério, e não
poderemos nunca entendê-lo.
Em termos gerais esta é a descrição de Deus do modo que nossos pais a
aprenderam, mas esta descrição aplica-se também à mídia eletrônica: “um
segundo deus”, criado pelo homem. 18
Assim, a mídia, consegue estabelecer um senso comum para os fatos. Eles transmitem
a todos a mesma informação, letrados ou analfabetos, basta uma simples ação do próprio
homem, ligar seu aparelho de comunicação.
Tony Schwartz, ainda, aborda a questão da problemática produzida pelos efeitos
colaterais da mídia. Quem pode prever o efeito que uma notícia pode causar em toda uma
sociedade? Para Tony os efeitos são mais poderosos e perigosos do que a mensagem pretendida.
Uma campanha publicitária tem como objetivo aumentar suas vendas; uma campanha
política tem por escopo aumentar seus votos. Os resultados de cada um podem ser calculados,
mas como tudo na vida, para estes também existem os chamados efeitos colaterais, estes por
sua vez completamente indefiníveis, “(...) as pessoas que assistem e ouvem tais mensagens
16
SCHWARTZ, Tony. Mídia O Segundo Deus. São Paulo: Summus Editorial, 1985, p. 05.
RAMONET, Ignácio. Propagandas Silenciosas – Massas, Televisão e Cinema. Petrópolis: Vozes, 2002, p.41.
18
SCHWARTZ, Tony. Mídia O Segundo Deus. São Paulo: Summus Editorial, 1985, p. 19.
17
Congresso Internacional de Ciências Criminais, II Edição, 2011
105
não o fazem da mesma maneira que aqueles que as planejaram: o público responde de
acordo com o contexto de sua própria problemática de vida”. 19
De acordo com Umberto Eco esses meios de comunicação e informação hoje são
utilizados ainda com outras finalidades, a de manipulação de informações, idéias e até
mesmos desejos, dissociadas pela cultura de massa, difundida principalmente nas últimas
décadas pelas mídias, impressas, falada e televisionada.
O problema da cultura de massa é exatamente o seguinte: ela é hoje
manobrada por “grupos econômicos” que miram fins lucrativos, e realizada
por “executores especializados” em fornecer ao cliente o que julgam mais
vendável, sem que se verifique uma intervenção maciça dos homens de
cultura na produção. 20
Desta forma se pode calcular os resultados aparentes, mas não podemos calcular os
efeitos colaterais, haja vista, cada um responder de acordo com aquilo que vivencia, como
poderemos definir os sentimentos que cada notícia ou informação pode provocar nas pessoas
que a recebem.
Receber uma informação, se inteirar das notícias do Brasil e do Mundo, são tarefas
cotidianas e obrigatórias na vida de cada cidadão. Ao chegarmos ao trabalho, conversamos
com quase todo mundo, como foi o futebol do fim de semana, se alguém assistiu aquela
matéria bombástica e outras coisas mais; ao sairmos do trabalho ligamos logo no carro o
rádio, queremos saber o que se passa ao nosso redor; ao chegarmos em casa ligamos de
imediato a TV, queremos informações sobre as últimas e mais importantes notícias do dia;
antes de irmos para cama, uma passada pela internet, que por muitas vezes se estende por
horas. Toda esta rotina é influenciada pela obsessiva necessidade da informação.
A mídia como o próprio nome sugere, desempenha o papel de mediadora entre o
sujeito e a notícia, ou seja, ela é o instrumento que media a realidade levada às pessoas,
através dos mais variados meios de comunicação.
Maria Grelolin relata sem receio o lado negro da mídia, afirmando que a realidade que
recebemos é uma realidade construída de acordo com os interesses de cada veículo de
comunicação.
Os textos da mídia oferecem não a realidade, mas uma construção que
permite ao leitor produzir formas simbólicas de representação da sua relação
com a realidade. [...] O real é, pois, determinado pelo imaginário, nele os
19
20
SCHWARTZ, Tony. Mídia O Segundo Deus. São Paulo: Summus Editorial, 1985, p.26.
ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001, pp.50–51.
Congresso Internacional de Ciências Criminais, II Edição, 2011
106
sujeitos vivem relações e representações reguladas por sistemas que
controlam e vigiam a aparição dos sentidos.21
A tendência é de que cada receptor entenda a mensagem a sua maneira, mais
precisamente, de acordo com aquilo que está vivenciando. Sendo assim dentro da realidade
construída pela mídia, o leitor ou telespectador irá conseqüentemente criar uma nova
realidade embasado no que recebeu e naquilo que já possui.
Baczko já dizia: “Funcionando como uma extensa rede de criação de símbolos que,
por sua vez, alimentam o imaginário social, a mídia constitui verdadeiras comunidades de
imaginação ou comunidade de sentido”. 22
O poder dos meios de comunicação é tão grande que manipula-se entre o “bem” e o
“mal”, ou seja, os “bons” e os “maus”. O discurso jornalístico, sempre direcionado, articula-se
com saber e com poder.
Quanto ao poder, à relação entre a chamada grande imprensa, as elites e os
detentores do poder aparecem na forma daquilo que Mattiussi (1997) chama
de “denuncismo”: o uso da imprensa para legitimar as atitudes de uma
autoridade política ou conferir tratamento pejorativo aos fatos a ela
relacionados. A mídia cria, portanto, mocinhos e bandidos, heróis e
derrotados. 23
Aqui se determina o perigo de ir além do que se pode e deve; perigo de passar da
informação a propriamente dita opinião; perigo do pré-julgamento, ou até mesmo, de uma
pré-condenação.
Quando a imprensa atribui determinado delito a alguém, paira no ar até então a incerteza
da culpa. Porém a partir do momento que ela faz um pré-julgamento, o sujeito passa a ser
culpado, não sendo respeitado aqui o princípio norteador do direito processual penal e garantia
constitucional, o de estar em estado de inocência até sentença condenatória irrecorrível.
A mídia provoca com isto a violação de tão importante princípio, pré-condenando o
suspeito, uma vez, que fora feita a exposição de sua imagem. Se comprovada a culpa a mídia
confirmou sua arriscada aposta. Mas se os veículos de comunicação erram o que fazer? Quando
a moral da pessoa já fora completamente denegrida? Em muitos casos existe a chamada
retratação, mas, até que ponto ela realmente surte efeito? Danos morais e a imagem revertidos
em dinheiro? Ou tudo pode terminar em nada, em homenagem a liberdade de impressa.
21
GREGOLIN. Maria do Rosário. Discurso e Mídia: a cultura do espetáculo. São Paulo: Claraluz, 2003, p.97 e 98.
BACZKO, 1984, apud, GREGOLIN. Maria do Rosário. Discurso e Mídia: a cultura do espetáculo. São
Paulo: Claraluz, 2003, pp.97-98.
23
BARBOSA. Pedro Luis Navarro, apud, GREGOLIN. Maria do Rosário. Discurso e Mídia: a cultura do
espetáculo. São Paulo: Claraluz, 2003, p.113.
22
Congresso Internacional de Ciências Criminais, II Edição, 2011
107
Durante o período da ditadura militar, a imprensa teve sua liberdade suprimida. Com o
advindo da fase democrática, os meios de comunicação tomavam um importante e
fundamental papel na sociedade, o de fiscalizador e controlador do poder e dos desmandos do
Estado. Este é um poder positivo da mídia e que deve a qualquer custo ser mantido.
Todavia há que se esclarecer que o limite da liberdade de imprensa deve terminar no
exato momento onde começa a violar os direitos de qualquer cidadão. Deixar a imprensa livre
para noticiar é uma conquista democrática, no entanto, deve sempre se pautar pela divulgação
do fato com a devida proteção de imagem do sujeito detentor de garantias constitucionais.
A questão maior é que a desgraça humana, e do outro, exercem poder absolutamente
sedutor sobre o telespectador/consumidor neste sentido diz bem Pedro Barbosa que
Escravos aos leões, enforcamentos em praça pública, autos-de-fé com gente
ardendo na fogueira sempre foram, ao longo da história, campeões de
audiência. Nossa sociedade midiática só aprofunda o sucesso das execuções
sem julgamento e sem “formalidades” que protejam os direitos individuais. 24
3 REMÉDIOS PARA OS ERROS FOMENTADOS PELA MÍDIA
A retratação é um dos meios utilizados para de certa forma, tentar concertar aquilo que
se fez ou disse servindo como um meio de se envergonhar e pedir desculpas publicamente
pelo erro cometido.
Outro artifício pode ser a chamada ação por danos morais e a imagem a exemplo do
célebre caso Escola Base, localizado no bairro da Aclimação na capital São Paulo. A notícia
absurdamente divulgada pela mídia não passou de um erro gravíssimo. Em 1994 seis pessoas,
entre elas os donos da escola, funcionários e um casal de pais, foram acusados de estarem
envolvidas no abuso sexual de crianças que ali estudavam. Segundo as notícias o motorista da
escola, levava as crianças no horário das aulas para a casa do casal, onde os abusos eram
cometidos e filmados. Sem verificar a veracidade dos fatos e violando o princípio da
presunção de inocência o delegado responsável pelo caso divulgou as informações à
imprensa, que transformou o caso em mais um espetáculo.
Quando veio a confirmação de que tudo não passava de um erro, a escola já havia sido
depedrada, os donos já estavam falidos, além de todos os acusados, sofrerem constantes
ameaças de morte. Dava-se início então, a uma incansável batalha judicial por indenizações.
De acordo com informações do site O Globo Online “Além da empresa ‘Folha da Manhã’,
24
Idem, ibidem.
Congresso Internacional de Ciências Criminais, II Edição, 2011
108
outros órgãos de imprensa também foram condenados, além do Governo do Estado de São
Paulo. Outros processos de indenização ainda devem se julgados”. 25
Entre os processos já julgados, um destaque especial para a Rede Globo de Televisão
que foi condenada a pagar mais de um milhão de reais em indenizações.
Icushiro Shimada, Maria Aparecida Shimada e Maurício Monteiro de
Alvarenga devem receber, cada um, o equivalente a 1,5 mil salários mínimos
(R$ 450 mil).
Os jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e a revista IstoÉ também
já foram condenados. Em todos os casos já julgados, ainda não houve
decisões do Superior Tribunal de Justiça.
Segundo o site Espaço Vital, a decisão contra a Globo foi tomada por
unanimidade na manhã de quarta-feira pela 7ª Câmara de Direito Privado do
TJ-SP. O TJ entendeu que a atuação da imprensa deve se pautar pelo
cuidado na divulgação ou veiculação de fatos ofensivos à dignidade e aos
direitos de cidadania. 26
Façamos uma análise: nós temos um lindo vaso de cerâmica, certo dia com muita pressa
ao limpá-lo o deixamos cair. O valioso vaso se quebra em vários pedaços, como remédio,
juntamos todas as partes e vamos colando uma a uma até montá-lo novamente. Os antes
pedaços agora voltam a ser o nosso vaso, mas será este o mesmo dantes, terá ele ainda o mesmo
valor? Esta é uma reflexão importante, quando se pensa na violação da presunção de inocência.
Muitos autores falam em retratação, direito de resposta, danos morais e a imagem, mas
devemos ir além, sendo necessário urgentemente invocar o princípio do estado de inocência,
fazendo com que ele seja respeitado, de maneira a frear, impor limites, aos excessos
provocados pela mídia. Repercutir uma notícia não significa ter que espetacularizá-la. Muitas
vezes um fato deixa de ser notícia, para virar cena de cinema sob vários holofotes.
Vanice Sargentini costuma dizer: “Escapar do espetáculo não é fácil, talvez nem seja
possível”. 27 Já para P. Nora “a lei do espetáculo é a mais totalitária do mundo livre”. 28
Na concepção de Airton Franco não importa se no final do processo o suspeito será
culpado ou inocente, o que tem que ser mantido é o direito de que ninguém será declarado
culpado até sentença final irrecorrível. Para ele independentemente do clamor público,
fomentado pelos veículos de comunicação.
25
http://oglobo.globo.com/sp/mat/2006/11/13/286621871.asp – Acessado em 25/03/2011.
http://noticia.terra.com.br – Acessado em 12/11/08.
27
SARGENTINI. Vanice Maria Oliveira, apud, GREGOLIN. Maria do Rosário. Discurso e Mídia: a cultura do
espetáculo. São Paulo: Claraluz, 2003, p.133.
28
NORA. P. O Retorno do Fato. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p.186, apud, GREGOLIN. Maria do
Rosário. Discurso e Mídia: a cultura do espetáculo. São Paulo: Claraluz, 2003, p.133.
26
Congresso Internacional de Ciências Criminais, II Edição, 2011
109
A sociedade leiga, contudo, impulsionada pelo espetáculo de mídia, continua
esperando do criminoso que ele confesse seu crime. O que importa como
penso, é que se dê - ao homem - seus precisos direitos (previstos em lei), seja
ele vítima ou autor de um crime [...] Uma norma fundamental, consoante o
ensinamento de Hans Kelsen, adquire contornos tão superiores - como
entendo - de modo que se perfaz alçada à divindade da norma natural que,
por isso mesmo, não pode ser mais valorada, pois já se constitui de pureza
irretocável, daí sua força de coação inexpugnável.29
O poder legislativo acusa a mídia dos excessos na transmissão das notícias, na defesa
a mídia acusa o poder legislativo de falta de leis mais rigorosas para combater os altos índices
de criminalidade. Rogério Greco diz que nesta briga nem um nem outro tem razão, visto que
ambos são culpados e a própria natureza do homem é má.
Diariamente assistimos aos telejornais, cujos âncoras, efusivamente,
atribuem a chamada “onda de criminalidade” à falta de rigor das leis penais,
como se não houvesse rigor suficiente. A cada dia, nossos congressistas,
com finalidades eleitoreiras, criam novas infrações penais, almejando com
isso satisfazer os desejos da sociedade, que se deixa enganar pelo discurso
repressor do Direito Penal. Não se iluda, pois o Direito Penal não é a solução
para qualquer problema. O problema está na natureza do homem, que é má.
Por isso, somente Deus pode resolver todos os problemas da humanidade. 30
O fato é que a mídia quando utilizada adequadamente, pode ser um grande e poderoso
instrumento para melhorar a qualidade de vida de toda uma comunidade. Ela tem por sua
própria natureza potencial criar e mudar comportamentos. Um bom exemplo deste potencial
foi uma campanha realizada no Japão e que foi retratado por Tony Schwartz.
Em Osaka, o dramático crescimento da industrialização, provocou um
aumento da criminalidade. Objetivando atacar o problema, a polícia utilizouse do antigo método de sociedade centradas no grupo. Usaram o sentimento
da vergonha como um meio de controlar os gangsters, a campanha dirigia-se
não somente aos criminosos, como também às suas famílias, amigos e outros
elementos que mantivessem contato diário com os vagabundos de rua. Isto
gerou um problema junto às famílias e amigos, que se sentiram socialmente
embaraçados, pressionando os criminosos a mudar de vida. O chefe de
polícia de Osaka descreveu esse processo com “tentar trocar a água onde
nadam os criminosos. 31
Avaliando a experiência japonesa, nos deparamos com um questionamento: Porque
não usar a mídia para coibir o crime ao invés de fomentá-los? Utilizar dos meios de
comunicação, não para denegrir a imagem do suspeito, ou para violar o princípio da
29
FRANCO, Airton. Disponível em: <www.associacaonacionaldosdelegadosdepolíciafederal.com.br>
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Niterói: Impetus, 2011.
31
SCHWARTZ, Tony. Mídia O Segundo Deus. São Paulo: Summus Editorial, 1985, p.83.
30
Congresso Internacional de Ciências Criminais, II Edição, 2011
110
presunção de inocência, mas sim para criar hábitos morais e éticos, restabelecer os princípios
tão esquecidos pela nossa sociedade.
Se em uma nação, em que seu povo, valoriza a moral e os bons princípios, um
determinado cidadão vier a delinqüir, seu sentimento de vergonha com relação às demais
pessoas será quase insuportável. Numa sociedade onde estes princípios não são valorizados o
criminoso não possui este sentimento de arrependimento.
O novo Código de Ética dos Jornalistas aprovado no Congresso Nacional
Extraordinário dos Jornalistas, realizado em Vitória, ES em 2008, nos trouxe novas
esperanças, principalmente quando ratificaram a presunção de inocência como um dos
fundamentos da profissão. Na interpretação de Venício Lima o código vem restabelecer os
limites da imprensa na obrigação de respeitar o texto constitucional.
O novo código reforça o preceito constitucional de que qualquer pessoa é
inocente até prova em contrário, com o objetivo de "coibir a ação de meios
de comunicação que, em sua cobertura jornalística, denunciam, julgam e
submetem pessoas à execração pública. Isto é crime, mas muitas vezes
sequer o direito de resposta é concedido aos denunciados. Por que não se
aplicaria ao jornalista o princípio da presunção de inocência, que tem sua
origem na Revolução Francesa e está consagrado na Constituição de 1988?
O texto constitucional diz, no seu art. 5º, inciso LVII: "Ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória".
Não seria a obediência a este princípio dever elementar de qualquer cidadão
e, sobretudo, dos jornalistas, independente das informações que obtiver e de
sua convicção pessoal? 32
É simplesmente impressionante como na maioria das vezes os meios de comunicação
agem, como se a lei não se aplicassem a eles, uma visão poderosa de que estes são princípios
a serem obedecidos por cidadãos comuns, não por esta entidade tão magnânima.
Sendo assim, fica claro não ser possível obrigar a mídia a respeitar o princípio da não
violação do estado de inocência, quando a própria sociedade fomenta esses espetáculos
proporcionados pelos veículos de comunicação, dando audiência a fatos que massacram
nossas garantias constitucionais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O “Estado de Inocência” é uma garantia constitucional e princípio reitor do processo
penal. Ele advém do próprio direito natural, fundamentado nas bases de uma sociedade livre,
32
LIMA, Venício A. de. Disponível em: Consultor Jurídico, <www.observatoriodaimprensa.com.br> Acessado
em 12 nov. 08.
Congresso Internacional de Ciências Criminais, II Edição, 2011
111
democrática, que respeita os valores éticos, morais, mas principalmente os valores pessoais,
aqueles que têm por essência a proteção da pessoa humana.
Com todo o escorço histórico, o princípio torna absolutamente relativizado na nossa
época, para alguns sendo o princípio da presunção de inocência, para outros o estado de
Inocência. A par da terminologia, tornou-se pressuposto fundamental da Constituição de 1988
e encontrou no Código de Processo Penal de 1941, - este mais de quarenta anos mais velho- ,
vários encalços, até hoje não resolvidos mesmo depois de sensível reforma no ano de 2008.
Mas além desses percalços o princípio tem outros entraves, bem maiores e poderosos, que não
se conflitam a ele, mas que o denigrem e o violam diariamente. Aqui em especial falamos da
mídia, como ela influencia e comanda a grande massa da sociedade de inseguranças, na
violação desta garantia constitucional tão importante.
Ao longo dos anos a mídia (2º poder), controlada diretamente pelo poder econômico
(1º poder), tem estabelecido padrões morais e sociais. Ela também tem criado através de suas
propagandas silenciosas, consumidores compulsivos afoitos em seus desejos de consumir.
Este é o perfil da sociedade moderna, ou melhor, de consumo. Nesta nova espécie de
sociedade, apegamo-nos a tecnologia, que em muito nos tem ajudado, mas ao mesmo tempo,
abrimos as portas para uma sociedade de riscos.
Criamos novos hábitos, novos desejos, alguns necessários, mas em sua maioria
completamente desnecessários. Trocamos, invertemos a satisfação interna do ser, pela
satisfação externa do ter e possuir. Emanados por estas vontades banais, muitas pessoas só
estão felizes e satisfeitos, quando estão consumindo, quando compram algo. Mas logo aquele
desejo é substituído por outro, e por outro, e por outro. Como nesta sociedade tudo é muito
volante logo aquilo que foi adquirido é deixado de lado, sem importância, em desuso, pois
criamos uma sociedade efêmera onde tudo é passageiro. É neste exato momento que damos
vazão a este novo perfil de sociedade, nele as proporções de nossos desejos são tão grandes
quando o risco direto que trazemos para dentro de nossas casas.
Nosso sentimento hoje é de medo e desconfiança. Estamos tão fragilizados que
atualmente acusamos e incriminamos as pessoas antes mesmo de conhecermos a verdade,
antes mesmo de o devido processo legal ser estabelecido e a questão julgada por seu juízo
competente. Nesta fase em que vivemos o princípio constitucional objeto deste articulado foi
posto de lado, hoje, todos são culpados até que se prove ao contrário. Este é o perfil da nova
sociedade, cheia de receios e inseguranças que ela própria criou.
Congresso Internacional de Ciências Criminais, II Edição, 2011
112
O grande conflito começa então, quando esta sociedade que agora passamos a chamar
de “sociedade da insegurança”, rompe os limites da lei, infringindo e desestabilizando
princípios fundamentais do homem adquiridos mediante muita luta e sofrimento, passado ao
longo de todo o processo de democratização de nosso país, em especial o princípio do estado
de inocência.
Percebemos que a mídia tem um papel muito forte na criação deste grupo social de
consumo, assim como também influencia a grande massa abertamente, sobre aquilo que para
ela é a notícia real. Não existe uma preocupação em respeitar princípios constitucionais, pois
na maioria das vezes os meios de comunicação acham que estão acima de tudo, como um
segundo Deus. Ela pré- julga e condena na medida do que declara como certo, transforma um
fato ocorrido em um espetáculo, é a chamada teatralização ou espetacularização da notícia,
ocorrendo na maioria das vezes em detrimento da preservação da imagem e violação do
estado de inocência.
Quando a imprensa atribui determinado delito a alguém, paira no ar até então a
incerteza da culpa. Porém a partir do momento que ela faz um pré-julgamento, o sujeito passa
a ser culpado, não sendo respeitado aqui o princípio norteador do direito penal e garantia
constitucional, o de estar em estado de inocência até sentença condenatória irrecorrível. A
mídia atuar como árbitro ou juiz nos crimes, mesmo os mais graves ou hediondos.
Diante de tudo ora exposto, observamos a necessidade de proteger o suspeito da
publicidade abusiva. Devemos lembrar que a estigmatização precoce do acusado é uma
violação de proporções irreparáveis a pessoa e a moral do réu. A mídia monta em cima de
cada fato que lhe possa render audiência um espetáculo de julgamento de horrores é o reality
show, o show da vida real, em que o acusado é presumidamente culpado até que se prove ao
contrário, ou melhor, todos somos presumidamente inocentes até que a mídia nos impute
determinado crime. Para limitar esses excessos cada vez mais comuns é que invocamos a não
violação do princípio mais importante do processo penal o do estado de Inocência, também
chamado por outros autores de não-culpabilidade.
Em mãos erradas a mídia foge da essência para qual foi criada, transformando-se em
instrumento de interesse individual e não coletivo. É justamente neste contexto que
encontramos o perigo de ter nossos direitos suprimidos e banalizados, como ocorre com o
tema retratado.
Quando a mídia praticar o que prega, poderemos descansar desta vigilância exaustiva
a nossos preceitos e garantias fundamentais, sabedores que o Estado de Inocência será um
Congresso Internacional de Ciências Criminais, II Edição, 2011
113
princípio respeitado, valorizando a Constituição e os Tratados Internacionais além da
dignidade da pessoa humana, afinal o processo penal deve ser visto endemicamente, de dentro
para fora, eis que feito para todos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2011.
BUZAR, Kátia. Câmara debate espetacularização da notícia do caso Eloá. Disponível em:
<www.agencia.brasil.gov.br> Acesso em 16/11/08.
CAVALCANTI, Eduardo Medeiros. Crime e Sociedade Complexa: Uma abordagem
interdisciplinar sobre o processo de criminalização. São Paulo: LZN, 2005.
COSTA, Maria Cristina Castilho. Sociologia Introdução à Ciência da Sociedade. São Paulo:
Moderna, 1987.
ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Trota: Madrid,1995.
FILHO, Arnaldo Malheiros. Presunção de Inocência Atropelada. Disponível em:
<http://blogdofavre.ig.com.br/2008/07/presuncao-de-inocencia-atropelada> Acessado em 12
nov. 08.
FRANCO, Airton. Princípio da presunção de inocência. Disponível em:
<www.associacaonacionaldosdelegadosdepolíciafederal.com.br>. Acesso em 12 nov. 08.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Niterói: Impetus, 2008.
GREGOLIN. Maria do Rosário. Discurso e Mídia: a cultura do espetáculo. São Paulo:
Claraluz, 2003.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Rio de
Janeiro: Lúmen Juirs, 2007.
LIMA, Venício Arthur de. Antídotos contra o assassinato de reputações. Disponível em:
<www.conjur.com.br>. Acesso em 12 nov. 2008.
______. Ética, presunção de inocência e privacidade. Disponível em:
<www.observatoriodaimprensa.com.br/ http://www.intervozes.org.br>. Acesso em 12 nov.
2008.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2005.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2008.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Processo e Hermenêutica na Tutela Penal dos Direitos
Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
RAMONET, Ignácio. A Tirania da Comunicação. Petrópolis: Vozes, 2004.
RAMONET, Ignácio. Propagandas Silenciosas – Massas, Televisão e Cinema. Petrópolis:
Vozes, 2002.
Congresso Internacional de Ciências Criminais, II Edição, 2011
114
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
2005.
ROUSSEAU, Jean- Jacques. O Contrato Social. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
RUSSEL, Bertrand. O Poder – uma nova análise social. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
SCHWARTZ, Tony. Mídia O Segundo Deus. São Paulo: Summus Editorial, 1985.
SILVA, Francisco de Assis. História do Brasil - Império e República. São Paulo: Moderna,
1991.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros,
2008.
THOMPSON, John B. A Mídia e a Modernidade – Uma teoria social da mídia. Petrópolis:
Vozes, 2005.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo : Saraiva, 2000.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Martin Claret,
2001.
Congresso Internacional de Ciências Criminais, II Edição, 2011
115
Download