A mulher sem pecado: fantasia rodrigueana

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Gilberto Gobbato
A mulher sem pecado: fantasia rodrigueana
Trata-se da mostração da fantasia fundamental, tal qual Freud propõe a partir dos
três tempos da gramática da fantasia, na peça teatral “A mulher sem pecado” de
Nelson Rodrigues.
> Palavras-chave: Psicanálise, fantasia fundamental, Nelson Rodrigues
pecado”, fantasia em cena de Nelson Rodrigues e os três tempos da fantasia, tal qual
Freud descreve no seu texto de 1919, “Batese numa criança”.
Sobre a peça:
“A mulher sem pecado”
Peça em três atos, escrita em 1941, encenada pela primeira vez em 9/12/1942, no teatro
Carlos Gomes, do Rio de Janeiro, dirigida por
Rodolfo Mayer. O contexto da peça pode se
resumir assim: Olegário, obcecado pela idéia
de infidelidade de sua mulher Lídia, finge-se
paralítico e impotente com o objetivo de testar a fidelidade de sua esposa. D. Aninha,
mãe de Olegário, é definida pelo autor como
“doida pacífica”, “... de preto, sentada numa
poltrona, está perpetuamente enrolando um
pulsional > revista de psicanálise >
ano XIX, n. 186, junho/2006
Introdução
Seria arriscado, selvagem mesmo, lançar hipótese de que a peça “A mulher sem pecado” consiste na construção da fantasia
fundamental de Nelson Rodrigues. A razão
é simples: A construção da fantasia fundamental realiza-se apenas dentro do dispositivo analítico. Entretanto, nada impede que
a arte seja um veículo de mostração da fantasia. Lacan demonstrou isso no Seminário
13, “O objeto da psicanálise” com o quadro
“As meninas” de Velásquez. É indecidível se
“A mulher sem pecado” é ou não a fantasia
fundamental de Nelson Rodrigues; no entanto, pode-se tratar de uma fantasia de
Nelson Rodrigues, e ele a mostra em cena.
Minha hipótese é de que existe uma correspondência estrutural entre “A mulher sem
artigos > p. 31-36
This article discusses the appearance of the fundamental fantasy, as conceived by
Freud, based on the three moments of the grammar of the fantasy envisaged in
Nelson Rodrigues’s stage play entitled “The woman without sin.”
> Key words: Psychoanalysis, fundamental fantasy, Nelson Rodrigues
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artigos
paninho”. Umberto, chofer da casa, é encarregado de vigiar Lídia em todos os lugares
aonde vá. Olegário consente que Umberto
se faça de seu olhar sobre Lídia, pois
Umberto diz ter sido castrado quando criança. Olegário exerce com Lídia um jogo duplo:
ao mesmo tempo em que indica seu ideal de
mulher sem pecado, apresenta-lhe um kit
completo de como ser infiel. Por fim, quando Olegário convence-se da fidelidade de
Lídia, esta, exausta pela obsessão do marido, foge com o chofer Umberto que na realidade não era castrado. Na cena final,
Olegário aproxima-se de D. Aninha e apontando o revólver para sua cabeça as cortinas se fecham.
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Os três tempos da fantasia
“Uma criança é espancada”
Sabemos que Freud defrontou-se com um
impasse no sintoma; este desembocava em
algo resistente à interpretação e cujo acesso só era possível pela reconstrução. Esse
rochedo à interpretação Freud denominou
fantasia, e a partir de algumas experiências clínicas pôde construir uma gramática da
fantasia desenvolvida em três tempos, dos
quais dois são verbalizados pelo sujeito e um
nunca enunciado.
O primeiro enunciado do sujeito consiste no
terceiro tempo da fantasia e apresenta-se
com a frase: “Uma criança é espancada”.
Freud constantemente obtinha, após esta
frase, uma declaração do sujeito: “E eu olho”.
O autor da fantasia é o sujeito, o agente na
fantasia é invariavelmente o pai.
O segundo enunciado do sujeito, “Meu pai
espanca uma criança”, refere-se ao primeiro tempo da fantasia. Freud constata uma
enunciação implícita nesse enunciado: “Sou
amado pelo pai”. O amor do pai é o axioma
da fantasia para o qual convergem todas as
cenas fantasísticas. A criança aparece como
o outro odiado cujo espancamento é lido
como a prova incontestável da exclusividade do amor do pai. Exceto na segunda fase,
o sujeito nunca aparece confesso na fantasia, ele está protegido pelo outro especular,
preservando assim o amor do pai.
Entre a terceira fase e a primeira fase da
fantasia Freud observa a existência de uma
lacuna que nunca é lembrada nem enunciada, mas que no entanto todos os elementos estão presentes para uma reconstrução.
A esta fase sem existência real Freud reconstrói um enunciado: “Eu sou espancado
pelo pai”. Nesta frase não enunciada subentende-se a perda do amor do pai, entretanto, como a frase não é enunciada, guarda-se
aí uma enunciação: O amor do pai é sempre
preservado. Dizer a frase significa reconhecer a perda do amor do pai, o que equivaleria ao desamparo, ou, ainda, à castração
paterna, um pai impotente.
Função da fantasia fundamental
Consiste num duplo jogo: paliativo da falta
no Outro, como encobridor, e revelador da
falta na medida em que a reconstrução gramatical do segundo tempo da fantasia é um
paradoxo em relação aos outros dois tempos. A fantasia fundamental como uma ficção reconstruída em análise vem responder
à lacuna estrutural, responde ao Real da estrutura do sujeito. O Real estrutural se constitui a partir do trauma causado no sujeito
pelo significante, o trauma significante consiste na primeira experiência de sexualidade do sujeito como falante. Portanto, a
O pai na fantasia fundamental não é o pai
real, mas o pai simbólico, isto é, o pai morto do mito da horda primitiva de Freud, pai
exceção fundador do clã do falo. Portanto,
o pai simbólico está presente no discurso, e
pode ser veiculado por todo falante que se
inscreve num discurso. O sujeito recorre a
esse pai simbólico para dar conta do Real da
castração que consiste no trauma de não
saber quem é nem de onde veio. Entre dizer
que é nada e que veio do nada, e dizer que
veio do pai, o sujeito neurótico opta pelo pai.
artigos
Quem é o pai agente na
fantasia fundamental?
É por isso que a ficção da fantasia recorre ao
pai simbólico como uma tentativa de constituir o ser do sujeito diante do nada de
onde ele adveio, como efeito do trauma significante. Seja na cena de sedução ou na do
coito dos pais, o pai é o operador lógico
necessário na construção dessa ficção. É nisso que a construção da fantasia fundamental é no sentido do pai.
Primeiro o sujeito consente a uma posição
masoquista primordial em relação ao significante. Segundo, o efeito traumático dessa
subordinação consiste no real da castração
e na subordinação ao pai na fantasia fundamental. A fantasia vai funcionar como uma
espécie de objeto fetiche do neurótico; com
ela o sujeito ao mesmo tempo reconhece e
encobre a castração. A fantasia é um índice da própria divisão do sujeito, de estar
sempre entre dois. Reconstruir a ficção da
fantasia fundamental significa reconhecer a
subordinação ao amor do pai, tempos três e
um, e abrir mão do amor do pai, tempo dois,
correndo o risco do encontro com a castração, o Real da lacuna, que pode ser chamado desejo.
O pai protege o sujeito tanto de ser devorado pela mãe, como de ser devorado pelo abismo angustiante da castração. Se por um lado
o recurso ao pai é bem-vindo, realiza uma
separação com a mãe, e o faz neurótico ou
perverso, por outro ele fixa o sujeito na fantasia que marca a posição repetitiva de gozo
do sujeito contra o desejo. A frase construída por Freud no segundo tempo da fantasia,
“Eu sou espancado pelo pai”, impossível de
ser dita pelo sujeito, visto que isto significaria a perda do amor do pai, e portanto, a
perda da função da fantasia de encobrir a
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fantasia fundamental está estreitamente
ligada ao trauma significante, é como se
ela fosse o trauma, na medida em que ela
vem junto para paliar à angústia da lacuna estrutural.
O significante da falta no Outro é o nome
que Lacan deu a essa lacuna estrutural do
sujeito causada pelo trauma do significante.
Sabemos que esse significante que falta no
Outro da linguagem é o significante “A mulher”, significante específico para o feminino que faria par no simbólico ao significante
falo. Daí Lacan afirmar que “A mulher não
existe” e que “não há relação, no sentido de
proporção, sexual”.
Além disso, a própria estrutura do significante é traumática, na medida em que um significante é diferente dele mesmo, ele está
impossibilitado de se nomear e de nomear o
sujeito. O sujeito fica maluco, traumatizado
pelo significante, pois ele não consegue responder às questões fundamentais do seu
ser e de sua existência: “Quem eu sou?” e
“De onde vim”.
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artigos
castração simbólica. Pode-se entender que
o segundo tempo da fantasia é um paradoxo em relação à função encobridora da fantasia, é por isso que ele é indizível, não
permeado pelo simbólico.
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“A mulher sem pecado”:
uma fantasia em três tempos
Proponho que a peça “A mulher sem pecado”
de Nelson Rodrigues é a mostração da fantasia na medida em que ela se fundamenta
nos três tempos da fantasia segundo o que
Freud obteve a partir de sua clínica. Os três
tempos da fantasia constituem-se de três
frases gramaticais, das quais extrairei os
elementos fundamentais que nos servirão
de referência para a construção da fantasia
rodrigueana: a) O agente é sempre o pai;
b) No terceiro tempo o objeto a olhar obtura a falta;
c) No primeiro tempo o amor do pai obtura
a falta;
d) O segundo tempo como o impossível de
enunciar, como o impossível de se ver, como
o Real da castração;
e) A frase gramatical que enuncia o segundo tempo da fantasia deve constituir-se
como um paradoxo da própria fantasia, isto
é, desvelar a castração simbólica.
Considero que a peça de Nelson Rodrigues
possui quatro personagens fundamentais,
pois são estruturais: Olegário o marido, Lídia
a esposa, Umberto o chofer, e Dona Aninha
a mãe “doida pacífica” de Olegário, imutável até o final da peça, como uma espécie
de pano de fundo sobre o qual tudo se sobrepõe.
O nome da peça, “A mulher sem pecado”, é
o que vem em primeiro, é dito, é enunciado,
portanto, considero-o a frase gramatical que
corresponde ao terceiro tempo da fantasia.
Onde se encontra o pai simbólico nessa
frase? Só há pecado, desejo, se há lei, o pai
como lei. Entendo que “A mulher sem
pecado”, tal qual Nelson encena, consiste
numa mulher sem desejo, portanto uma
mulher que não passe pela lei, mas que seja
fundadora da lei, exceção à castração.
Sabemos que se não há desejo há puro gozo,
o que coloca a mulher sem pecado como
equivalente do pai da horda primitiva, pai
puro gozo, morto pelos filhos, e de cuja morte
constitui-se como lei simbólica que regula o
desejo e o gozo. “A mulher sem pecado” seria
o equivalente feminino do existe ao menos
um que não foi submetido à função fálica, à
castração, que apenas como morta terá
função de pai fundador da lei.
Mais que ter o mesmo valor de pai, ela faz
par com a exceção do lado masculino, com
o falo, ela é o “Fala”. “A mulher sem pecado”
possibilita a proporção sexual, a relação sexual, e funda o conjunto das mulheres por se
excluir como exceção, promovendo um conjunto em série de mulheres, tal como o conjunto dos homens. Isto quer dizer que a
mulher não precisaria recorrer ao falo, ela
terá seu próprio falo, o seu “Fala”. Teríamos,
portanto, duas exceções que fundam dois
conjuntos distintos; teríamos, então, proporção sexual.
Assim, A Mulher inteira seria um outro
nome do pai simbólico. Para que se constitua a mulher sem pecado, Olegário colocou
seu chofer Umberto para vigiá-la constantemente. Umberto é o olhar de Olegário, este
olha “A mulher sem pecado” do lugar de
onde ele está estruturalmente impossibilita-
artigos
tração simbólica significa tirar do pai simbólico a solução dada pelo sujeito através da
castração imaginária, isto terá como conseqüência a perda do amor do pai simbólico.
Ora, é incontestável o jogo ambivalente de
Olegário, ambivalência própria da fantasia,
onde ao mesmo tempo em que reclama a fidelidade de sua mulher, ele lhe transmite
toda uma lista de como pecar. Olegário é
portador do manual do pecado. Olegário fura
a fantasia “A mulher sem pecado” tanto ao
nível de sua mulher, terceiro tempo, como
ao nível de sua mãe, primeiro tempo.
Olegário como filho da mãe “doida pacífica”,
paga com sua própria existência o fato de ser
produto do desejo de um homem por uma
mulher, isto significa que por mais que ele
tente anular a mulher que existe na mãe,
ele é o próprio furo dessa anulação. Nessa
mãe existiu algo que desejava para além do
filho. A partir dessas observações tiradas do
texto, proponho que a segunda frase gramatical que podemos construir seja algo do tipo:
“Eu sou o pecado”. Este enunciado é impossível de ser dito por Olegário, trata-se de
uma construção minha, mas é uma construção fundamentada nos dois tempos anteriores da fantasia. Esta construçã o
permitiria que o sujeito abrisse mão do gozo
da fantasia em nome do desejo, em nome
do pecado.
Aliás é o que ele faz na sua ambivalência, na
não realização da fantasia. “Eu sou o pecado” pode ser lido como “Eu sou o desejo”, reconhecimento do seu desejo como desejo do
Outro, reconhecimento e aceitação da castração simbólica, renunciando à castração
imaginária. Esta renuncia e reconhecimento coloca o sujeito diante do Real, diante do
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do de ver. Dessa maneira, o terceiro tempo
da fantasia acompanha-se de um “eu olho”,
do olhar. “A mulher sem pecado” responde à
lacuna Real do sujeito, perda do olhar, recorrendo ao pai.
O primeiro tempo da fantasia eu o situaria
na mãe “doida pacífica” de Olegário, figura
feminina onde o feminino, o desejo, está
totalmente obturado, calado. A mulher está
morta para esta mãe, o enigma da feminilidade da mulher não existe. Olegário é filho
de uma mãe sem mulher. No meu entender
Nelson consegue situar nessa personagem
uma frase gramatical do tipo “A mãe sem
pecado”, no sentido de uma mãe santa, tal
como a virgem que concebeu. Onde se situa,
nesta frase, o axioma fundamental da fantasia, “Eu sou amado pelo pai”? Extrair a
mulher da mãe é uma forma de encobrir a
castração simbólica com a castração imaginária, isto é, se manter como o objeto falo
imaginário que completa a mãe. “A mãe sem
pecado” é também uma maneira de subtrair
o enigma da mulher do pai. Nesta manobra
o sujeito é um servo do Outro, servo do pai
simbólico visto que ele resolve imaginariamente a falta no Outro, a feminilidade, a
mulher como enigma não existe, só há mãe,
o que é uma forma de ser amado pelo pai
simbólico.
Resta-me demonstrar o segundo tempo da
gramática da fantasia rodrigueana constituído pelo Real, isto é, uma frase gramatical
impossível de ser dita, enunciada, mas apenas reconstruída. Vimos que as frases gramaticais do terceiro e primeiro tempo da
fantasia têm a função principal de encobrir
a falta, enquanto a do segundo tempo paradoxalmente desvela a falta. Desvelar a cas-
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desejo como falta, que não há objeto do desejo, mas apenas causa do desejo.
O encontro com o Real significa abrir mão do
objeto a olhar como mais de gozar em benefício do objeto a como causa do desejo.
Nelson Rodrigues faz com que caia o objeto
a olhar posto no chofer Umberto, e dessa
queda o sujeito desaparece, Olegário se suicida. Diante da angústia como efeito do fracasso da sua ficção fantasística “A mulher
sem pecado”, Olegário não suporta o Real da
castração simbólica, não suporta abrir mão
da castração imaginária como obturador da
falta no Outro.
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Artigo recebido em novembro de 2005
Aprovado para publicação em março de 2006
SOMOS
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ano XIX, n. 186, junho/2006
artigos
AGORA
Referências
FREUD, S. Uma criança é espancada. Uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais. In: F REUD, S. Uma neurose infantil e
outros trabalhos. Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de S. Freud.
Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XVII, p. 223-53.
RODRIGUES, Nelson. Teatro completo. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 2003.
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