Duas perspectivas da questão do método na Filosofia Moderna Two perspectives on question of the method in Modern Philosophy Kailani Amim Postilhoni Ferreira1 Resumo: Considerando os debates filosóficos que integram a filosofia moderna, é indispensável considerar sua relação com o desenvolvimento das ciências naturais. Até haver uma noção de método científico, houve na filosofia intensos debates acerca de qual o método aplicar aos estudos da natureza. Entre muitos filósofos que se ocuparam da questão do método, destacamos dois: Francis Bacon e René Descartes. Contemplando esse debate e sua importância histórica, este trabalho é produto de nossas primeiras considerações a respeito desta problemática. Palavras-chave: Método. Filosofia Moderna. Francis Bacon. René Descartes. Abstract: Considering the philosophical debates that compose the Modern Philosophy, it is indispensable to consider it relation with the development of natural sciences. Until have a notion of scientific method, there was in philosophy intense debates concerning of what is the method to apply in nature studies. Among many philosophers what occupied of question of method, we highlight two: Francis Bacon and René Descartes. Contemplating this debate and this historical importance, this work is produce of our first considerations in respect of this subject. Keywords: Method. Modern Philosophy. Francis Bacon. René Descartes. *** 1. Introdução Quando estudamos a história da Filosofia, encontramos a Filosofia Moderna como o divisor entre o pensamento clássico e o pensamento contemporâneo. Quando estudada de modo a contemplar suas peculiaridades, notamos na Modernidade uma discussão acerca do método que deve guiar o conhecimento, o método sobre qual a verdade deve ser alcançada. Tal discussão possuía, na época, repertórios voltados para os estudos da natureza, resididos em fundamentar um método para a filosofia natural. Sobre a questão do método, voltada especificamente ao estudo do mundo natural, será o escopo temático qual discorreremos neste artigo. Antes, vale considerar que o embate do método não era apenas para os estudos de filosofia da natureza, mas para o Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, Campus de Marília. Orientador: Kleber Cecon. E-mail: [email protected] 1 Duas perspectivas da questão do método na Filosofia Moderna conhecimento em geral; seja ele em filosofia, matemática, nas ciências ou nas técnicas. Concernente a esta questão, exporemos os métodos segundo as filosofias dos dois mais proeminentes filósofos modernos que contribuíram para esta discussão: o inglês Francis Bacon (1561-1621) e o francês René Descartes (1596-1650). Ambos os filósofos seiscentistas introduzem um pensamento indagador, que seja crítico às amarras especulativas da filosofia natural que havia em sua época. Para entender o debate sobre o método na modernidade, cabe entender antes a presença que Aristóteles possuía nos círculos filosóficos, sobretudo escolásticos. Os escolásticos formavam a maioria das cátedras universitárias no início da Modernidade, e o currículo que compunha o ensino e o repertório de seus mestres consistia em ditar o pensamento aristotélico, tomando-o como verdadeiro. Por isso, o filósofo estagirita era suma autoridade intelectual para a filosofia natural nos tempos de Bacon e Descartes. As bases da física aristotélica são subsidiadas pela sua lógica. A lógica, naquela época entendida como uma disciplina estritamente formal, tendo como principal referencial a obra Organon e seus comentários. O clivo da filosofia natural de Aristóteles reside na articulação de suas provas por meio da silogística, e suas obras relacionadas ao assunto – como a Física e o De Caelo – eram fontes para o paradigma dos estudos naturais até então. Este mesmo método silogístico divide os modernos em duas tendências, em especial no século XVII. Como observa Gaukroger (2006, p. 41), haviam os defensores de Aristóteles (que procuravam entender como o silogismo poderia ser conciliado com uma metodologia de descoberta) e os críticos do Filósofo (que consideravam o silogismo e a descoberta coisas inconciliáveis no método de estudo da filosofia natural). Os críticos adotam posturas de insatisfação, como Descartes (1973, p. 45) faz ao citar, no seu Discurso do Método, sua observação ao respeito dessa disciplina ao alegar que “quanto à Lógica, os seus silogismos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para explicar a outrem as coisas que já se sabem”. Francis Bacon, por sua vez, ataca o âmago do silogismo no seu Novum Organum, quando diz que ele “não é empregado para o descobrimento dos princípios das ciências; é baldada a sua aplicação a axiomas intermediários, pois se encontra muito distante das dificuldades da natureza. Assim é que envolve o nosso assentimento, não as coisas” (BACON, 1979, p. 15, I, XIII). Havia, então, necessidade de estabelecer um novo método sobre o qual a filosofia natural deveria seguir seus estudos. O desenvolvimento do debate moderno em torno da filosofia da natureza, que frutificou na ciência moderna, surgiu em grande parte quando as filosofias embasadas Vol. 8, 2015. www.marilia.unesp.br/filogenese 134 Duas perspectivas da questão do método na Filosofia Moderna pela escolástica começavam a declinar, algo que nas palavras de Whitehead (2006, p. 32) foi uma “escolha feliz” dos filósofos naturais modernos em questionar as bases dos conhecimentos físicos que se tinham até então, todos enraizados direta ou indiretamente em Aristóteles. Insatisfeitos com a física aristotélica, havia entre os filósofos naturais a necessidade de instituir um novo olhar sobre a natureza. Para que isso fosse possível, um novo trato sobre o mundo natural deveria ser estabelecido; em outras palavras, o método aristotélico-escolástico precisava ser superado. Instigados em fundar uma metodologia de descoberta em filosofia natural, os críticos de Aristóteles (ou apenas de seus defensores) buscavam uma pedra angular para desenvolverem novos métodos e novas filosofias naturais. E, buscando tal pedra angular, duas eram as principais candidatas que dividiam os modernos: a matemática e a experiência. Os modernos trabalhavam, tal como seus antecessores, com o pressuposto da existência de uma ordem, e buscavam quais instrumentos serviam melhor tanto para descobrir os fenômenos físicos quanto para descrevê-los. A este respeito, é certo que os filósofos naturais no tempo de Bacon e Descartes dividiam-se entre os adeptos da experiência e os admirados pela matemática. Havia, porém, quem buscasse uma conciliação entre ambos, como fez Galileu Galilei e Isaac Newton, mas na prática, uma das duas costumava ser sobrepostas à outra pelos métodos que se desenvolviam. Na época que os dois autores aqui tratados, principais expoentes dentre os filósofos e demais pensadores do século XVII que ocupavam-se com o problema do método da ciência (BUTTERFIELD, 1959), desenvolvia-se um tratamento da natureza na qual suas causas eram determinadas. De qualquer forma, o sistema metodológico de origem aristotélica em voga desde os anos 1200 não se sustentava mais pelas demandas da ciência no início dos anos seiscentos. Tanto Descartes quanto Bacon devem suas ideias a esse contexto intelectual (KUHN, 1977). Portanto, este artigo se propõe a explanar as contribuições desses dois autores ao problema do método na Modernidade, especificamente no século XVII. 2. O método em Francis Bacon Francis Bacon é considerado pioneiro do chamado empirismo britânico, vertente memorada na história da filosofia pela primazia do conhecimento pela empiria e a recusa de ideias inatas. O Lorde Bacon teve uma vida profissional intensa devido ao cargo político que exerceu por anos e a cátedra de Direito em Cambridge, mas sem Vol. 8, 2015. www.marilia.unesp.br/filogenese 135 Duas perspectivas da questão do método na Filosofia Moderna nunca perder sua dedicação à ciência e pela pesquisa de teor experimental. O papel da experiência para seu método é crucial, uma vez que, segundo o filósofo londrino: “em geral, dificilmente se fará avanço importante no desvelamento da natureza se não se designam fundos para gastos de experimentação” (BACON, 2007, p. 107, II. X). Aliada à indução, o elemento experimental se torna a principal característica do método que desenvolvera. As primeiras notações de seu método encontram-se no Advancement of Learning2, publicado em 1605. Nesta obra de juventude, Bacon já expõe muitas ideias que aparecem no Novum Organum, publicado quinze anos depois. No texto de juventude referido, já havia apresentado a sobreposição de um método indutivo e experimental, que fosse investigativo, colocando o contato do observador com a natureza em importância maior e anterior à predição e elaboração de axiomas. Contudo, no Novum Organum, obra parte de sua Grande Instauração3, ele articula melhor os conceitos de sua teoria do conhecimento e o esforço de superar a lógica aristotélica. Segundo Bacon, a filosofia natural possui vital importância para o progresso das atividades humanas. Por isso, seu método atende a preocupação de bem desnivelar a natureza, para que todos os saberes possam ser bem aplicados uma vez que relacionadas com a filosofia da natureza. Toda ciência ou técnica dependem, então, da filosofia natural como matéria-prima. O problema era, na época de Bacon, a insatisfação com os feitos da filosofia natural de autores passados, que eram preservados devido o apreço às autoridades intelectuais que havia na época. O autor reconhecia que os pensadores do passado haviam contribuído proveitosamente ao conhecimento, contudo, reprovava a atitude em reproduzir plenamente seus ensinamentos mesmo quando errados. Muitas descobertas em sua época falseavam os paradigmas dos antigos em filosofia natural, contudo, os seus contemporâneos, tal como os medievais, prezavam pela devoção aos textos antigos. Quanto a isso, Bacon (1979. p. 46, I. LXXVIII) considerou apenas alguns momentos como profícuos à ciência; seriam eles: De fato, só podem ser levados em conta três períodos ou retornos na evolução do saber: um, o dos gregos; outro, o dos romanos e, por 2 A tradução indicada em português por Raul Fiker (2007). A Grande Instauração é como Bacon chama seu projeto de reformar a ciência em seu tempo. Esse projeto foi apresentado por Bacon numa obra homônima, de utilidade sumária aos textos que pretendia que a seguissem. Sua Instauração consiste em seis partes, qual ele ocupou-se em estabelecer um inventário à ciência emergente, um novo método para a filosofia natural e preocupações com seu caráter prático. Embora vasto, não conseguiu levar a cabo seu intento. Apenas uma das partes fora concluída, que reside no método exposto no Novum Organum. 3 Vol. 8, 2015. www.marilia.unesp.br/filogenese 136 Duas perspectivas da questão do método na Filosofia Moderna último, o nosso, dos povos ocidentais da Europa; a cada um dos quais se pode atribuir no máximo duas centúrias de anos. A Idade Média, em relação à riqueza e fecundidade das ciências, foi uma época infeliz. Não há, com efeito, motivos para se fazer menção nem dos árabes, nem dos escolásticos. Instruído a não refutar seus predecessores, Bacon se posiciona criticamente em relação aos estudos escolásticos da natureza, focando principalmente a noção de método em sua análise. O método em questão é o silogismo de Aristóteles, criticando em dois pontos centrais no Novum Organum: (i) O primeiro ponto tange ao caráter dedutivo do silogismo. Por conta dele, afirma o filósofo inglês, haveria o estagirita corrompido sua física ao embasar-se na lógica4. Bacon cunha o método silogístico como uma antecipação da natureza; isto é, Aristóteles visa a elaboração de enunciados universais fundamentados em poucos casos da experiência. O londrino considera a indução o expurgo para livrar a filosofia natural das amarras silogísticas. Para isso, diferencia a indução “vulgar” da “indução verdadeira”. A indução considerada vulgar pelo Barão de Verulâmio é aquela que, uma vez com seus axiomas estabelecidos, procura salvá-lo quando algum caso particular da experiência não consente com seu enunciado; enquanto que o certo seria corrigir o axioma, e não mantê-lo; (ii) O outro ponto refere-se ineficiência do silogismo em oferecer demonstrações. Suas clarificações discursivas a respeito dos fatos se deve em assentir o pensamento humano com as palavras e o modo com que são articuladas, e o pensamento, por sua vez, submete à natureza. Bacon procura extinguir essa postura da filosofia natural, e para isso, seu método deve submeter o investigador ao trato direto com a realidade. Para que seu método possa ser efetuado com o desejado sucesso, Bacon adverte que há tipos de engano, aos quais a mente humana pode conduzir desapercebidamente no estudo da natureza. Esses enganos são chamados ídolos, e Bacon define-os no aforisma XXXVIII do primeiro livro de sua obra. Como o próprio autor adverte, seu Nesta passagem, Bacon (1979, p. 32, I. LXIII) alega que Aristóteles “[...] corrompeu com sua dialética a filosofia natural”. Embora na filosofia aristotélica a palavra “dialética” tenha um significado próprio e distinto da palavra “lógica”, tanto uma quanto a outra eram empregadas muitas vezes como sinônimas pelos medievais, hábito que manteve-se na época de Bacon. 4 Vol. 8, 2015. www.marilia.unesp.br/filogenese 137 Duas perspectivas da questão do método na Filosofia Moderna método não é uma solução definitiva para expurgar a mente dos ídolos, mas serve de instrução para evitá-los continuamente. Uma vez entendendo-os como obstáculos que obstruem o alcance humano da verdade, houve uma divisão quadripartida feita dos ídolos pelo autor: “Ídolos da tribo, ídolos da caverna, ídolos do foro e ídolos do teatro” (BACON, 1979, p. 21, I. XXXIX). Cada um deles trata, respectivamente: Das limitações sensoriais e cognitivas inerentes do ser humano, das amarras relacionadas com a educação e opiniões subjetivas, ao mau uso da linguagem e dissenso quanto ao significado dos termos, e, por fim, às doutrinas (sejam elas filosóficas ou religiosas) que deturpam a compreensão do mundo. Atribui aos ídolos o desvio dos filósofos naturais em desvelar os princípios da natureza tal como deveriam. Bacon não poupou-se em dar exemplos; citando os antigos, como Aristóteles, ou seus contemporâneos, como William Gilbert5. Na concepção baconiana, os ídolos são fontes de erro de ordem intelectiva, cujo método proposto pelo filósofo se apresenta como uma ferramenta para expurgá-los. Segundo Bacon (1979, p. 21, I. XL), a “verdadeira indução” é “sem dúvida, o remédio apropriado para afastar e repelir os ídolos”. Embora o método seja de fato apresentado apenas no segundo livro do Novum Organum, alguns aforismas ainda no primeiro livro são importantes para compreendermos a epistemologia do filósofo. Um deles é o aforisma XCV, no qual notamos o empirismo moderado em sua filosofia. Bacon não credita aos sentidos que eles sozinhos ofereçam dados sobre os objetos. Eles são enganosos. A mente também possui falhas, passível de erro. Bacon (1979, p. 63) estaria no meio termo, e para explicar como ele se situa, é famosa a analogia contida nesse aforisma entre os empiristas e os racionalistas: os primeiros seriam como formigas, por apenas colherem o que está disposto para eles, e os segundos seriam como aranhas, que utilizam apenas do que já possuem para elaborar suas teias. Bacon compara sua posição com a de uma abelha, que recolhe e produz algo novo em cima do que colhe. Assim como os sentidos precisam de instrumentos para ampliar suas capacidades, como faz o telescópio com a visão, o intelecto também precisa de ferramentas que deixem-no aguçado. Essa ferramenta é o método; e sua via, a indução. Na segunda parte da obra, Bacon lança as bases de sua indução, que valoriza os casos particulares da experiência, que tornam os enunciados passíveis de reformulação. 5 William Gilbert (1540-1603) foi um médico e físico inglês. Seu nome está diretamente relacionado com descobertas no campo do eletromagnetismo, como em admitir haver um campo magnético próprio da Terra. Francis Bacon (1979, p. 27, I. LIV; p. 38-39, I. LXX) criticava a importância que Gilbert dava ao magnetismo em sua física, que seria, para ele, equivocada. Vol. 8, 2015. www.marilia.unesp.br/filogenese 138 Duas perspectivas da questão do método na Filosofia Moderna Continuando na descrição do método indutivo proposto por Francis Bacon, é interessante referenciar a segunda parte de sua obra, na qual é apresentado o método indutivo que propõe para substituir a silogística aristotélica. Para tanto, apresenta como central a necessidade de se redefinir o objeto de estudo da ciência, uma vez aplicado seu método: a forma6. Entende que: “Engendrar e introduzir nova natureza ou novas naturezas em um corpo dado, tal é a obra e o fito do poder humano. E a obra e o fito da ciência humana é descobrir a forma” (BACON, 1979, p. 93, II. I). No aforisma seguinte, Bacon explica de forma sucinta que a forma é a lei, a essência e estrutura que determina os corpos, caracterizando-os enquanto eles mesmos. Acreditava Bacon ser possível alterar as formas dos objetos, ou introduzir uma forma em algum corpo de interesse. Esse é o âmago do teor prático da ciência segundo o filósofo: melhorar a qualidade da vida humana. Seu método inicia com a preparação de uma história natural7. Esse primeiro passo é feito pelas tábuas da descoberta. A preparação das tábuas consiste em compilar a incidência da forma estudada nos objetos dispostos – diversos, das mais variadas espécies – pelo observador, e para indicar como devem ser feitas, Bacon explica como e quais são as tábuas: a primeira é a tábua da essência, que descreve corpos que possuem a forma estudada; a segunda é a tábua do desvio, que registra os objetos desprovidos da forma em questão. Por fim, deve ser feita a tábua dos graus, que compara corpos onde a forma estudada se manifesta com maior ou menor intensidade. As tábuas são importantes para compreender a “indução verdadeira” de Bacon (1979, p. 127. II, XIX), que induz não só com casos afirmativos, mas também, os que não ocorrem o objeto de investigação. As duas últimas tábuas servem para confrontar a tábua da essência, que por exclusão encaminham as particularidades do objeto e de como está relacionado com alguma de suas formas. Para que o esforço investigativo consiga contemplar a individualidade dos seus objetos, o método baconiano recorre às instâncias prerrogativas. Estas instâncias são modalidades de incidências que servem para identificar a forma de um corpo dado, bem como ela se manifesta. Não apenas, as instâncias prerrogativas também podem 6 A definição do conceito de forma é complexa na filosofia baconiana, resultando em interpretações díspares por parte de seus comentadores. Para não dispersarmo-nos demais do tema, passaremos por esse conceito sem contemplar sua profundidade. Ela surge, contudo, como uma recepção das quatro causas aristotélicas: Bacon considerava apenas a causa formal útil para a ciência. As causas material e eficiente não seriam confiáveis, e a causa final é, segundo ele, inexistente na natureza. 7 História natural é uma ciência obsoleta, que hoje compreende partes da biologia e da geologia. Ela consistia em descrever espécimes animais, vegetais, tipos de rochas e formas da crosta. O primeiro a empregar este termo foi naturalista romano Plínio, o Velho (23-79). Vol. 8, 2015. www.marilia.unesp.br/filogenese 139 Duas perspectivas da questão do método na Filosofia Moderna prescrever ocorrências onde uma forma seja um caso isolado da natureza, como também admitir incidências em que ela fuja de seu comportamento padrão. Muitas são as instâncias, tanto que Bacon enumera vinte e sete instâncias prerrogativas; que não serão explicadas para evitarmos digressão neste artigo8. Após a submissão das tábuas da primeira vindima e de alguma das instâncias prerrogativas, a indução está feita. Os axiomas, ou leis gerais, podem enfim serem elaborados. Contudo, Bacon acredita ser conveniente experimentar os casos, tornando possível que outros possam reproduzir a descoberta mediante experimentos. O próprio filósofo natural que o descreveu pode fazê-lo, como ao reproduzir experimento de outros autores ou deixar passível que outros filósofos possam repetir a experiência que conduziu sua descoberta. A concordância da lei geral com o experimento, para o inglês, é o marco que aponta se o mesmo axioma está correto ou não. Caso não esteja, toda a investigação acerca da forma deverá ser refeita, de modo a reconsiderar as conjecturas anteriores. Em suma, esta parte do trabalho procurou apresentar a filosofia de Bacon como um dos expoentes modernos da fundamentação filosófica do método para o conhecimento. Bacon é percussor da tradição empirista, que embora considere importante papel da razão, reconhece que ela por si só não oferece conhecimento e nem por si só guia até a verdade. No próximo tópico, trataremos do principal expoente da tradição racionalista moderna, o filósofo francês René Descartes, que por sua vez também preocupou-se com o problema do método. 3. O método em René Descartes Embora os debates da época de Bacon já estivessem maturados, René Descartes desenvolveu, através de sua obra, ideias indispensáveis no debate moderno acerca do método, bem como para a história da filosofia posterior à ele. Descartes também recebe o epíteto de “pai da filosofia moderna” por conta da repercussão que suas teses tiveram ao serem recepcionadas pelos seus contemporâneos e os filósofos posteriores. 8 Maior parte do Livro II do Novum Organum concerne a descrição de Bacon (1979, II, XXII-LI) a cada uma das vinte e sete instâncias prerrogativas, bem como dos grupos em que elas se encontram divididas.. Vol. 8, 2015. www.marilia.unesp.br/filogenese 140 Duas perspectivas da questão do método na Filosofia Moderna A pretensão de elaborar um método que alcance a verdade é uma preocupação para Descartes desde a juventude. Em 1628, publica as Regulae ad directionem ingenii9, obra em que prescreveu vinte e uma regras que servissem de instruções ao seu método. As regras redigidas nesta obra não foram concluídas, até porque consta-se que o racionalista tinha em mente trinta e seis regras. Como principais características, o método cartesiano é intuitivo e dedutivo, sendo as únicas faculdades que considera necessárias ao raciocínio. Sua preocupação em estabelecer um método preciso se deve igualmente com sua pretensão em fornecer verdades, com ele, tal como diz a máxima de uma das regras, qual declara que: “O método é necessário para a busca da verdade” (DESCARTES, 2007, p. 19, IV). Visava um método que fosse claro e simples de ser executado, e que assegurasse o papel central da razão na elucidação da ciência. Por excelência, segundo o filósofo (2007, p. 13, III), a intuição e a dedução são as únicas faculdades necessárias ao raciocínio operante em seu método. A confiança depositada pelo filósofo francês na razão se deve ao ponto de, consequentemente, resultar num individualismo. Desde que seguindo o método diligentemente, atendo-se aos princípios evidentes à própria razão, Descartes acredita que as verdades sobre o mundo e sua ordem podem ser deduzidos por qualquer indivíduo. Nove anos depois, quando publica o Discurso do Método, obra na qual visa bem conduzir a razão e procurar a verdade na ciência, como sugere seu subtítulo10. Descartes prescreve as regras que constituem o seu método. As quatro regras seguem inspiração do modelo matemático, disciplina pela qual o filósofo era profundo admirador. Desde muito cedo, os estudos de Descartes (1973, p. 40) inclinavam-se fortemente para a matemática: o motivo de seu deslumbre, segundo ele, advém “da certeza e da evidência de suas razões”. Havia certo fascínio também pela lógica, mas Descartes a considerava útil apenas para elucidar o que já é conhecido. Além do mais, a lógica segundo ele (1973, p. 45) possui muitos preceitos verdadeiros, “há todavia tantos outros misturados de permeio que são ou noviços, ou supérfluos”, algo que tanto a geometria quanto a 9 Em português, o título é cabalmente traduzido como Regras para a Direção do Espírito. A versão utilizada, traduzida pela editora Martins Fontes, o título foi traduzido por Regras para a Orientação do Espírito. 10 O título completo em francês é Discours de la méthode pour bien conduire sa raison, et chercher la vérité dans les sciences. A tradução em português é Discurso do método para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências. Esta obra fora publicada pelo próprio Descartes juntamente de outras três que compunham parte de seus estudos científicos: A Dioptrica, os Meteoros e a Geometria. Estas três obras que seguem o Discurso do Método estão estreitamente relacionadas com ele, uma vez que sirvam de demonstração do que se pode deduzir a partir do método. Vol. 8, 2015. www.marilia.unesp.br/filogenese 141 Duas perspectivas da questão do método na Filosofia Moderna álgebra lhe pareciam mais impunes. Todavia, ele reconhecia as limitações de ambas (1973, p. 45): Depois, com respeito à Análise dos antigos e à Álgebra dos modernos, além de se estenderem apenas a matérias muito abstratas, e de não parecerem de nenhum uso, a primeira permanece sempre tão adstrita à consideração das figuras, que não pode exercitar o entendimento sem fatigar muito a imaginação; e esteve-se de tal forma sujeito, na segunda, a certas regras e certas cifras, que se fez dela uma arte confusa e obscura que embaraça o espírito, em lugar de uma ciência que o cultiva. As considerações de Descartes sobre sua inspiração matemática, apesar de perceptíveis, também indicam o intento do autor em superar as dificuldades dos matemáticos com seu método, desenvolvendo uma matemática ainda mais pura11, que aproveite as vantagens da geometria e da álgebra e que ao mesmo tempo não possua seus defeitos, a fim de tornar o seu método claro e simples. Entendidas de maneira breve as influências e o propósito de sua obra, Descartes (1973, p. 45-46) prescreve de forma sucinta as regras pelas quais seu método opera. Elas devem ser seguidas esquematicamente, uma em seguida da outra, e quatro é o número dessas regras: (i) A começar, a regra de evidência deve, necessariamente, considerar nada de verdadeiro salvo quando a intuição reconhece algo de evidente (ii) A segunda é a regra de análise, que divide – figurativamente – o objeto em partes, em processos, etapas, repartindo-o para que cada parte possa ser individualmente estudada. (iii) A terceira é a regra de síntese, vinculada com a anterior, uma vez que dela as partes examinadas são reintegradas e agora estudadas como um todo, reconstituindo a integridade entre elas ao compreender o objeto. (iv) Por fim, é descrita a regra de enumeração, que revisa todos os resultados das etapas anteriores, a fim de encontrar possíveis equívocos ou omissões para que possam por ela corrigir. Através de verdades primeiras na razão, as quais seriam inatas à razão, o filósofo acreditava que outras verdades seriam delas deduzíveis, sobretudo aquelas que tangem sobre o mundo exterior. Para que isso seja possível, Descartes precisa de uma metafísica fundante dos princípios inatos ao conhecimento, quais são apropriados na resolução de seu método. 11 Descartes (2007, p. 24-28, V) já se mostrava preocupado em desenvolver uma matemática que, genuína, chamada por ele de matemática universal (mathesis universalis). Ela subordinaria outras ciências. Não só a geometria e a álgebra, mas também, e.g., a ótica, a música e a mecânica, e outras mais cujos objetos possuam ordem e medida. Vol. 8, 2015. www.marilia.unesp.br/filogenese 142 Duas perspectivas da questão do método na Filosofia Moderna O filósofo (1973, p. 54)12 inicia seu projeto metafísico com a preocupação em fundamentar a existência do mundo, devendo, segundo ele, abster-se de qualquer juízo até então tomado como verdadeiro e “rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida” no intuito de encontrar alguma verdade que resista à sua dúvida. Em suas próprias palavras, “os nossos sentidos nos enganam às vezes” (Ibidem), e por isso, os princípios pelos quais devemos partir o nosso conhecimento devem partir de nós mesmos, não do mundo. Descartes se submete, aqui, numa reflexão de teor cético, uma vez que sua desconstrução de verdades antes aprendidas deve ser feita para buscar uma que não possa ser refutada. Sem no estendermos demais na metafísica cartesiana, mas também considerando sua importância, o resultado de sua reflexão cética é a afirmação de um eu pensante, uma vez que admite que a própria existência não pode ser negada durante sua dúvida hiperbólica. Ele (1973, p. 55) julga a afirmação deste eu pensante – o cogito – como o princípio primeiro de sua filosofia, uma vez que considere incontestável a própria existência uma vez que seu ato de pensar confirma-a. Embora admita que o cogito seja o preceito basilar de sua filosofia, a fundamentação da metafísica de Descartes está, até aqui, insuficiente. Precisando encontrar um meio de ligar o sujeito ao mundo e a apreensão deste, o filósofo (1973, p. 55), quanto o que obteve até então de sua dúvida hiperbólica, considera “claramente que o conhecer é perfeição maior do que o duvidar”. A certeza do cogito, bem como das outras verdades que podem-se aferir a partir dele, não podem ser geradas em si mesmo, uma vez que o seu conhecimento é algo superior a existência do sujeito pensante. Descartes, então, reconhece que as verdades inerentes em seu pensamento devem ter sido postas por algo maior e mais perfeito do que sua existência: Esse ser superior, autor de todas as verdades elevadas do cogito – tal como a ideia de perfeição – é Deus. Na metafísica cartesiana, Deus possui o papel de autor das ideias que temos a respeito de todas as coisas, o que permite-nos termos conhecimento desde verdades puramente abstratas como nas matemáticas ou a respeito do mundo físico, uma vez que todas elas são providas dele, e também porque “Deus estabeleceu [certas leis] de tal modo na natureza, e das quais imprimiu tais noções em nossas almas que, depois de refletir 12 Descartes o faz na Quarta Parte de seu Discurso, apresentando reflexões de teor metafísico que muito se assemelham com aquelas contidas numa obra posterior: As Meditações, de 1641. Vol. 8, 2015. www.marilia.unesp.br/filogenese 143 Duas perspectivas da questão do método na Filosofia Moderna bastante sobre elas, não poderíamos duvidar que não fossem exatamente observadas em tudo o que existe ou se faz no mundo”13 (DESCARTES, 1973, p. 59). Quanto ao mundo em sua filosofia, Descartes é apontado por Kearney (1970, p. 41) como um dos divulgadores da visão mecanicista, cujos trabalhos contribuíram para tal junto aos textos de Marin Mersenne e Thomas Hobbes. O mecanicismo é uma concepção filosófica a respeito da natureza que a concebe com leis estáticas, sem que haja desvio no curso de seus eventos. O trato matemático de Descartes não apenas com o conhecimento, mas também aplicado ao mundo físico, permite garantir a repetição dos fenômenos, como também, a homogeneidade da natureza. O mundo físico, então, seria como uma máquina, que funciona segundo os impulsos de um agente eficiente. Tal ideia é melhor explicada nos Princípios da Filosofia, obra na qual o filósofo (2005, p. 35) rejeita as causas finais como objeto de investigação nos fenômenos, uma vez que não convêm ao homem entender os propósitos divinos para a sua criação. Considera este mesmo deus como causa de tudo no mundo, e também, autor dos substratos da razão humana, qual devemos recorrer para entender o mundo segundo suas causas eficientes, considerando Deus como seu agente eficiente. A partir de suas descobertas, considera possível aplica-las para fins úteis ao ser humano. Descartes, como seus contemporâneos, acreditava no poder de ação humana sobre a natureza mediante a ciência. Através dos conhecimentos sobre o mundo físico, Descartes (1973, p. 71) notou que “poderíamos empregá-los da mesma maneira em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores e possuidores da natureza”. Desse modo, também apresentamos o método segundo o esforço de René Descartes. Este filósofo, guiado por um viés racionalista, também inspirara a modernidade, tendo forte impacto sobretudo no continente, enquanto que a influência de Bacon ficou mais reclusa aos autores de sua pátria. Tal como Francis Bacon, Descartes era insatisfeito com a escolástica, o que direta ou indiretamente fazia com que certos pontos da filosofia aristotélica fossem contrários com suas propostas filosóficas. Embora considerasse a lógica do estagirita aceitável, reconhece ao mesmo tempo alguns problemas inerentes à epistemologia aristotélica, por isso, pretendendo superar os problemas relacionados ao conhecimento próprio da modernidade. 13 As palavras entre colchetes são uma adição minha, reintegrando a passagem citada no seu contexto original. Vol. 8, 2015. www.marilia.unesp.br/filogenese 144 Duas perspectivas da questão do método na Filosofia Moderna 4. Considerações finais A modernidade teve um dilema epistemológico intenso concernente ao método. Descartes e Bacon contribuíram principalmente para a filosofia e as ciências naturais. Buscando fundamentar não apenas a ciência natural, mas todo o conhecimento, no qual se inclui a filosofia, Descartes e Bacon foram os autores pioneiros das discussões em epistemologia na Modernidade. Bacon insere-se na tradição insular, participando do repertório de filósofos como John Locke e David Hume. Descartes, por sua vez, teve seu legado maior no continente, cujos preceitos inspiraram a plataforma dos sistemas de Baruch Espinosa e Gottfried W. Leibniz. Graças aos autores aqui trabalhados, a filosofia (e, concomitantemente, a ciência) reconheceu a importância de ser guiada por um método. Espinosa, por exemplo, reconhece a importância de pensar segundo um método no seu Tratado da correção do intelecto, como também fez Locke no seu Ensaio acerca do entendimento humano. Os modernos trabalhavam – algo que talvez possam ter em comum com os seus antecessores – a admissão de uma ordem da natureza. Whitehead (2006, p. 16-17) diz que não pode haver uma ciência sem considerar que essa ordem exista no mundo e que seja missão dos cientistas descobri-la em cada fenômeno particular. Até aí, Bacon e Descartes, por exemplo, parecem caminhar na mesma direção que os seus contemporâneos: propor uma filosofia natural na qual o ser humano não seja mais a medida das coisas, e sim que o faça apto a reconstituir a ordem vigente na natureza (ROSSI, 1992). Ambos os autores depositavam suas esperanças em desvelar a natureza – e na busca por um caminho seguro à verdade – no sucesso que creditavam em seus métodos. Referências BACON, F. Novum organum. São Paulo: Abril Cultura, 1979. (Coleção Os Pensadores) ______. O progresso do conhecimento. São Paulo: Unesp, 2007. BUTTERFIELD, H. The Origins of Modern Science: 1300-1800. New York: Macmillan Company, 1959. Disponível em: < https://archive.org/details/originsofmoderns007291mbp> Acessado em: 2 ago. 2015. DESCARTES, R. Discurso do método. 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