Um novo «bode expiatório»: a gramática

Propaganda
Um novo «bode expiatório»: a gramática
Éveline Charmeux
Tradução feita por Júlia Soares
No Conselho de Ministros de 12 de Abril, Gilles de Robien anunciou «a renovação do
ensino da gramática com o regresso às lições para aprendizagem das regras».
Éveline Charmeux responde ao Ministro.
Excelente ideia, da parte do Senhor Ministro atacar agora a gramática. É necessário
diz ele, «ensinar as regras»! Como se isso tivesse deixado de ser feito!
A razão da ira do Ministro é que a palavra gramática foi substituída nos textos
oficiais pela expressão «funcionamento da língua». Substituição imediatamente
interpretada como «supressão» por leitores medíocres (mau método de leitura,
certamente!).
Está absolutamente fora de questão suprimir o ensino da gramática. Muito pelo
contrário.
Mas vejamos de perto a nova decisão ministerial
As regras gramaticais: que regras e donde vêm?
A gramática, está escrito nos prefácios de todos os manuais, tem como objectivo
ensinar como se deve falar ou escrever, respeitando as regras gramaticais [1]. Por
essa razão, ele propõe que sejam ensinadas essas regras às crianças memorizem a
fim de as poderem aplicar quando utilizarem a língua francesa.
Donde vêm essas regras? Em geral, ninguém diz isso aos alunos – os professores
não sabem sobre este assunto mais do que eles e ao senhor Ministro nem sequer
se levantou esse problema!!
Aquela proposta poderia justificar-se se a língua fosse o resultado de regras préestabelecidas; se à semelhança do que dizem as religiões a propósito dos
mandamentos, um ser superior tivesse ditado as regras do francês a um Eleito,
para que elas fossem em seguida difundidas e cumpridas; então seria legítimo
ensiná-las.
Mas - e não é necessário ser um grande linguista para saber isso - as coisas não se
passaram assim: a língua, a francesa ou qualquer outra língua falada no mundo,
construiu-se a pouco e pouco, ao sabor dos acontecimentos históricos, económicos
e políticos vividos por quem a utiliza, e as regras que a orientam são regras de
funcionamento e não regras de prescrição. São internas ao sistema que a
constitui e, apesar de sujeitas a normas sociais (cujo estudo deve fazer parte do
ensino da gramática) nada têm a ver com ordens vindas seja de quem for.
De facto, as coisas são o inverso da imagem habitual: as regras são um resultado
do funcionamento social da língua e não a sua origem. O seu ensino não pode,
portanto, ser anterior à prática, mas sim partir da observação dessa prática.
Inverter as coisas só pode conduzir a incoerências, responsáveis pêlos resultados
negativos frequentemente constatados.
De qualquer modo, subsiste a questão como fazer: sabe-se que lições e explicações
não fazem aprender: só pesquisas, manipulações, observações comparadas
permitem pôr em acção o que se sabe ou se julga saber, e deste modo construir
novos saberes, o que explicam muito bem os programas oficiais de 2002.
Quais as propostas de um percurso clássico?
Uma boa lição de gramática divide-se habitualmente em dois tempos:
• primeiro uma lição cuja finalidade é apresentar uma das regras que figuram no
manual de gramática adoptado na turma.
• segundo, exercícios de aplicação a realizar pêlos alunos. Esses exercícios são de
dois tipos: exercícios chamados de análise «gramatical», a qual consiste em colocar
nas palavras de uma frase proposta, as etiquetas correspondentes à natureza e à
função que convêm à palavra em questão; e exercícios de análise «lógica» em que
o aluno deve fazer o mesmo trabalho de escolha de etiquetas «natureza» e
«função» mas desta vez em proposições que compõem as frases.
Os «exercícios-guião»: a análise gramatical e a análise lógica
É necessário tranquilizar o Senhor Ministro: - apesar das aparências - e tendo em
conta numerosos trabalhos de investigadores nomeadamente os de INRP - o
processo não tem sofrido modificações ao longo de cinquenta anos (ou mais);
trata-se de fazer consumir a regra que está na ementa do dia. Uma vez mais,
trata-se de «voltar» ao lugar de onde nunca se saiu!!
Certamente, pode distinguir-se um percurso antigo, que consistia em começar pela
explicação magistral do fenómeno, que se fazia em seguida aplicar em exercícios, e
um processo mais recente e mais activo (aparentemente) que consiste em fazer
praticar a regra através de alguns exercícios, para em seguida fazer descobrir
aquilo que se quer que os alunos descubram. Se o segundo parece menos passivo,
o espírito do conjunto é sempre o mesmo; nem descoberta efectiva, nem
observação real, nem formulação de hipóteses: nada de científico em tudo isto...
trata-se de engolir e vomitar. Ponto final.
A análise «gramatical»
Sem que se veja qualquer mal nisso, este exercício merece o nome de análise (de
facto, trata-se sobretudo de colar as boas etiquetas), o importante aqui é ver os
critérios utilizados para efectuar esta pretensa análise. Ora esses critérios, que são
os mesmos desde há séculos, têm origem na Gramática de Port-Royal, que serve
de modelo (nem sempre bem compreendido) [2].) À maior parte dos manuais de
gramática, apesar de alguns laivos de linguística introduzidos aqui e ali durante os
últimos vinte anos... Segundo essa gramática, o sentido está em primeiro lugar e a
frase revela-o, se bem que, para ter em conta as frases, é o sentido que é preciso
interrogar; a natureza e a função das palavras de uma frase são definidas por
aquilo que se compreende na frase: a palavra que exprime uma acção é o verbo; a
palavra (ou a expressão) que exprime aquele que executa a acção é o sujeito do
verbo; a palavra que exprime o objecto da acção é denominada complemento de
objecto directo ou indirecto desse verbo etc... Um jogo de questões sobre o sentido
dos enunciados permite encontrar o nome que convém dar à palavra ou à
expressão considerada: «o cão rói o osso.»
O que faz o cão? Rói - rói é o verbo.
Quem é que rói? é o cão. O cão é o sujeito do verbo.
O cão rói o quê? o osso. O osso é o complemento de objecto directo do
verbo.
Excelente estratégia cuja eficácia é fácil verificar.
Imaginemos que fizemos a duas pessoas diferentes a pergunta seguinte:
"A que horas parte o comboio para Lisboa?"
e que as duas pessoas interrogadas, deram cada uma as respostas seguintes:
Resposta 1: "O comboio para Lisboa parte às 16 horas"
Resposta 2: "A partida do comboio para Lisboa é às 16 horas"
Embora o efeito da comunicação seja um pouco diferente, é legítimo considerar
estas duas respostas fornecem a mesma informação que se pode decompor assim:
- uma acção, partir
- um sujeito desta acção, o comboio, ao qual se junta uma informação de
direcção: Lisboa
- uma informação horária, 16 horas;
Mas a gestão gramatical desses dados é diferente nas duas frases:
- na frase 1, é o sujeito da acção que é sujeito do verbo que traduz a acção e a
informação horária é apresentada sob a forma de um complemento da frase
precedido de uma preposição;
- na frase 2, o sujeito da acção torna-se complemento de um nome pelo qual a
acção é traduzida; este sujeito torna-se o sujeito de um verbo, neste caso simples
ligação (sem nenhum valor de acção e ainda menos de estado!) cuja função é ligar
a informação horária ao acontecimento, através de um atributo preposicional do
nome da acção.
Portanto, atendendo ao sentido das duas respostas, não há nenhuma possibilidade
se perceber as suas diferenças formais; o que se faz neste caso é leitura, e saber
ler, diga-se de passagem, é justamente ser capaz de compreender que estas duas
afirmações dizem exactamente a mesma coisa apesar das suas diferenças. Mas, do
ponto de vista gramatical são essas diferenças de funcionamento formal que é
preciso estudar, a fim de melhor compreender a razão pela qual, ao darem a
mesma informação, as duas respostas não produzem o mesmo efeito.
E a análise «lógica»?
Este segundo tipo de exercício, a análise lógica, aparece frequentemente como
mais prestigiante, porque assenta sobre conjuntos mais complexos, o que, diga-se
de passagem, constitui mais uma prova da confusão permanente entre complexo e
que se estabelece nas práticas do dia a dia. Nota-se que, ao contrário da análise
anterior, este tipo de exercício convida praticamente a ignorar o sentido dos
enunciados para propor uma estratégia totalmente formal. Tomemos como exemplo
a frase seguinte:
"O meu pai exige que o deixem tranquilo enquanto trabalha"
A técnica geralmente proposta nas aulas (pelo menos no tempo em que se sabia
ensinar gramática!) consistia em:
1. contar o número de «verbos num modo conjugável» para definir o número de
proposições: aqui três formas verbais conjugadas, logo três proposições.
2. delimitar de modo formal essas proposições, o que se traduzia por um traço
vertical que as separava. Na verdade, não se dizia claramente como fazer para
encontrar o sítio onde colocar os traços: só os «bons» alunos descobriam que o
sítio adequado era, em geral, antes de uma palavra que começasse por qu-. Isto
nem sempre é evidente, mas a pifométrie funcionava para os «bons» que
chegavam ao seguinte esquema:
O meu pai exige| que o deixem tranquilo| enquanto trabalha. "
3. Apresentar o resultado da tarefa proposta, indicando a natureza e a função das
proposições delimitadas, completando-as com informações da natureza e da função
das palavras que ligam essas proposições à que a precede:
- «O meu pai exige»: proposição principal (afirmação difícil de aceitar
porque está longe de ser a ideia principal);
- que o deixem tranquilo: proposição subordinada conjuntiva, introduzida
pela conjunção subordinativa enquanto, complemento circunstancial de
tempo do verbo deixem.
Embora esta resposta merecesse naquele tempo uma boa nota, está, de
facto, longe de ser satisfatória. O complemento de «exige» não é «que o
deixem tranquilo»: o meu pai não exige que o deixem sempre tranquilo! O
verdadeiro complemento do verbo
«exige» é todo o final da frase: «que o deixem tranquilo enquanto
trabalha». Deste modo vê-se que a frase não é uma sequência de
proposições, mas sim um encadeamento de frases transformadas:
GN
O meu pai
GV
exige
que o deixem tranquilo enquanto trabalha.
Destaca-se igualmente que o formalismo da análise vai até ao ponto de transformar
o sentido, sem ler em conta o funcionamento e sem permitir comparar as
diferenças que separam a frase que acabámos de estudar com uma formulação
como, por exemplo:
" O meu pai exige tranquilidade no seu trabalho. "
Decididamente, as contradições não faltam nas práticas habituais: compreende-se,
por isso a falta de entusiasmo dos alunos e dos professores...
Uma questão subsidiária: esta gramática permite ao menos ter em conta
todos os aspectos da língua francesa?
Certamente que não! E essa é uma das suas grandes fragilidades. Os exemplos
«que não se podem analisar» são inúmeros:[3] por exemplo, como analisar uma
frase como «há três anos» ou «dez mais cinco igual a quinze»?
Diferenças de sentido como as que distinguem as duas frases seguintes nunca são
praticamente analisadas nos manuais: «O Pedro dizia, no domingo passado, que
chegaria nessa mesma tarde»|O Pedro dizia, no domingo passado, que chegaria
nessa tarde»?
Os critérios habitualmente utilizados não permitem compreender certos tipos de
funcionamento; os professores sabem muito bem, por exemplo, que é quase
impossível fazer compreender a diferença de função dos adjectivos qualificativos
nos dois exemplos seguintes, em que o primeiro atributo é qualificativo e o
segundo é atributo do complemento do verbo:
«O Pedro encontrou o seu lugar habitual»|O Pedro encontrou o seu lugar intacto»
E por isso, declara-se que é muito difícil e que não deve fazer parte do programa.
Fácil como escapatória, não é? Algumas pretensas regras estão em contradição
com o simples bom senso: afirma-se, por exemplo, na maior parte dos manuais
que o pretérito perfeito traduz uma breve acção por oposição ao pretérito
imperfeito que traduziria continuidade na acção. Vejamos os exemplos seguintes:
"Ele caminhou durante trinta dias, ele caminhou durante trinta noites (parece-me
uma longa duração!!) O orador fazia uma brilhante citação quando a sirene apitou;
e
justamente
no
momento
em
que
a
sirene
apitava
a
porta
bateu
estrondosamente”? etc
E os exemplos podiam multiplicar-se... O balanço não é de modo nenhum positivo e
cai-se na tentação de perguntar de onde vem este ensino tão bizarro e porque é
que ele é tão bizarro?
Imaginar uma gramática que sirva para alguma coisa
Façamos
uma
comparação:
são
muitos
os
automobilistas
que
conduzem
diariamente o seu carro sem saber muito acerca do que se passa com o motor. É
certo que isso não os impede de fazer uma boa condução. Os conhecimentos de
mecânica são tão indispensáveis para a utilização de um automóvel como a
gramática para a utilização da língua. Contudo, um condutor que ignore tudo
acerca do motor do seu carro não se arrisca a grandes aventuras: pode ter grandes
aborrecimentos. Responder-me-ão que existem mecânicos cuja profissão é... Sim,
mas face a um cliente que ignora completamente a extensão do problema, é muito
grande a tentação de aumentar um pouco a factura, sobretudo em tempo de crise e
de enormes dificuldades como o nosso, pois o mecânico sabe bem que ele é
incapaz de verificar a necessidade dos trabalhos a que o carro foi sujeito. Em todo o
caso, a ignorância técnica deixa-o de mãos e pés atados, isto é, à mercê dos que
sabem. Acontece com a linguagem o mesmo que acontece com o carro: se eu não
sei como funciona a minha língua, estou à mercê dos que pretendem sabê-la e a
minha liberdade como cidadão está longe. É por tudo isto que a resposta às
questões formuladas é forçosamente:
A gramática não pode ter outra utilidade senão permitir a cada um
compreender como funciona a língua que fala a fim de dar a maior consistência
possível ao seu poder de comunicação.
Aprender
gramática é então estudar o funcionamento tecnológico do
instrumento de comunicação que é a língua, a fim de se apropriar desse
funcionamento e de afirmar a sua Uberdade de cidadão digno desse nome.
Pode concluir-se enfim que a nova expressão «funcionamento da língua» longe de
suprimir o ensino da gramática, lhe dá sentido. Reenvia-nos para dois aspectos
essenciais:
- por um lado para um conteúdo que é o estudo do funcionamento da língua e a
compreensão desse funcionamento em cada um dos seus níveis e dos seus pontos
de vista, daí o absurdo da separação entre sintaxe, ortografia, vocabulário,
conjugação;
- por outro lado, para um percurso cuja eficácia neste domínio é conhecida desde
há muito: gramática, ortografia, conjugação, vocabulário, fazem parte das ciências
de observação, como a botânica. Trata-se de descobrir o seu funcionamento
através de análises e de observações comparadas.
Pode concluir-se também que não se trata de uma disciplina como as outras.
Aprender o funcionamento da língua que se fala, não requer o mesmo tipo de
trabalho que aprender matemática ou história: nestes casos o saber é exterior ao
aluno que deve aprender coisas que ignora. Mas estudar a sua própria língua, é
estudar aquilo que já faz parte da sua prática: quando alguém fala, põe em acção,
muitas vezes de modo inconsciente, um conjunto de regras que adquiriu na prática.
Aprender gramática é de facto, tornar conscientes essas regra ao há, com efeito,
saberes verdadeiramente exteriores a adquirir; há que teorizar saberes adquiridos
de maneira inconsciente o que implica a construção de noções e de conceitos,
difíceis é certo, sem que haja, no sentido estrito do termo, nada a aprender, ainda
menos a memorizar. A gramática é o domínio da compreensão e da inteligência
consciente
e
nunca
bachotage.
Aparece
como
um
saber
indispensável
aparentemente, e contudo absolutamente necessário à autonomia do indivíduo logo
verdadeiramente subversivo: está aí talvez a explicação para as bizarras evocadas
anteriormente, muito menos inocentes do que se poderia supor… Leitura,
gramática, o mesmo combate!
[1] Ver a definição dada à expressão Vocabulário e Gramática por Robert Dagneaud
Edições SEDES, Paris 1965: “Conjunto de regras que é necessário para conhecer
falar e escrever uma língua segundo as exigências da lógica e do bom uso”!!
[2] Ver sobre este assunto a obra Michel Arrivé e Jean Chevalier (1970) La
Grammaire, Klincksieck páginas 33 e seguintes.
[3] Aborrecido, quando se sabe que uma ciência só é valida quando dá conta do
máximo de fenómenos sem deixar zonas de sombra…
Èveline Charmeux, Abril de 2006
http://www.charmeux.fr/
Download