a filosofia e a ética dos contos de fada de gk chesterton

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Anais do V Congresso da ANPTECRE
“Religião, Direitos Humanos e Laicidade”
ISSN:2175-9685
Licenciado sob uma Licença
Creative Commons
A FILOSOFIA E A ÉTICA DOS CONTOS DE FADA DE
G. K. CHESTERTON
Arthur Eduardo Grupillo Chagas
Doutor em filosofia
Universidade Federal de Sergipe
[email protected]
ST 13 – RELIGIÃO, MÍSTICA E POÉTICA
Resumo: Para a filosofia especulativa, o absoluto é uma ideia que a razão é impelida a colocar,
pois, do contrário, ela se enreda em problemas e antinomias em virtude de suas próprias leis. A
dificuldade, no idealismo, é que quando a razão impõe limites a si mesma, como Kant havia
feito na Crítica da Razão Pura, neste mesmo momento já os superou, porque é obrigada a
realizar a ultrapassagem e pensar o outro lado do limite. A razão se descobre, assim, absoluta.
Na filosofia dos contos de fada, segundo a interpretação do notável escritor e apologista cristão
G. K. Chesterton, ocorre precisamente o oposto. Nas fábulas, deparamos com limites não
colocados pela razão, enfrentamos uma natureza não implementada pela ideia, mas
simplesmente nos damos conta de como é o mundo, ou de como ele era quando a razão o
encontrou, meramente pelo fato de as estórias apresentarem um outro mundo possível. Esta
concepção, em primeiro lugar, implica uma recusa intransigente do gnosticismo especulativo,
no lugar do qual prevê um agnosticismo quanto à origem das leis naturais. Em segundo lugar,
ela possui importantes consequências éticas como, por exemplo, uma “lealdade primária” ao
mundo. Nisto consiste o cerne da filosofia e da ética cristãs, já presente nos contos de fada.
Palavras-chave: Literatura, Cristianismo, Chesterton, Filosofia, Ética
Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1304
Introito filosófico sobre o conceito de limite
A filosofia sempre se enreda num problema só há pouco formulado de maneira
clara. Ele diz respeito ao fato de que, nela, a realidade aparece apenas como um
correlato do pensamento humano (BRYANT et al., 2011, p.3). Para muitos, este pode
ser um beco sem saída inescapável, o qual, apesar de subjacente à maior parte da
tradição metafísica, tornou-se ainda mais forte, embora refratado, com a passagem do
paradigma ontológico para o paradigma mentalista (HABERMAS, 1990, p.37ss). Um
filósofo realista francês contemporâneo formulou-o com as seguintes palavras muito
óbvias, mas para cujo significado a maioria dos outros filósofos ficou cega durante
muito tempo:
A noção central da filosofia moderna desde Kant parece ser aquela da
correlação. Por ‘correlação’ queremos designar a ideia de acordo com a qual nós
só temos qualquer acesso à correlação entre pensamento e ser, e nunca a um
dos termos considerado separadamente do outro. Chamaremos correlacionismo
qualquer corrente de pensamento que sustenta o caráter insuperável da
correlação assim definida. Consequentemente, torna-se possível dizer que toda
filosofia que repudia o realismo ingênuo se torna uma variante do
correlacionismo. (MEILLASSOUX, 2009, p.5)
Assim definido, o correlacionismo pode ser um antibiótico filosófico de amplo
espectro, exterminando também a filosofia da linguagem, a fenomenologia, o
estruturalismo, a desconstrução e todas as demais variantes da tendência antirrealista
da filosofia continental. Mesmo a noção heideggeriana de acontecimento-apropriador
[Ereignis], por exemplo, destinada a trazer à tona a presença esquecida do Ser por trás
das concepções metafísicas representacionistas, mesmo ela pressupõe que nem o ser
nem o homem subsistem por si, mas são postos inteiramente pela relação fundada no
acontecimento. Essa noção de correlacionismo parece ser devastadora, como um
buraco negro disposto a tragar, de uma única vez, as principais correntes filosóficas
que se julgavam opostas.
Por conseguinte, é uma apologia daquele tipo de ciência capaz de fazer
enunciados ancestrais sobre uma época do mundo não habitada pelo homem, o que
naturalmente só não parece menos absurdo se ainda restou das ciências humanas – e
da autocompreensão humana – alguma dignidade.1 Mas houve também, na história,
1
Como se vê, eu não estou disposto a comprar, somente por causa daquela crítica mordaz, todas as consequências
que o realismo ou materialismo especulativo de Meillassoux e seu séquito retiram dela.
Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1304
outras tentativas de pensar o real a partir dos limites do pensar, e que parecem reagir a
uma crítica semelhante, mas com implicações bastante distintas.
A realidade, que Hegel chamou Absoluto, nasce precisamente da objeção à ideia
kantiana de que a razão humana se enreda em problemas e antinomias em virtude de
suas próprias leis, as quais, portanto, devem sofrer uma limitação. O idealismo absoluto
parte de uma espécie de crítica do correlacionismo, pois afirma que a razão que impõe
limites a si mesma, como Kant havia feito na Crítica da Razão Pura, neste mesmo
momento já os ultrapassou. Assim obrigada a realizar a ultrapassagem e pensar o outro
lado do limite, a razão se descobre absoluta, a própria realidade, como uma correlação
que tende, absolutamente, à própria destruição. Tais são os pressupostos da formação
de uma consciência cognitiva que se sabe, ao mesmo tempo, consciência mística.
Uma outra variante do que vou chamar de “correlação autodestrutiva” é a subida
pela escada, que no fim é lançada fora, do Tractatus de Wittgenstein, que pratica o
exercício da correlação lógica entre proposição e fato como fracasso reiterado da
proposição em dizer a si mesma para, por fim, calar-se, agora finalmente pronta para
adentrar os espaços silenciosos de uma outra mística, pois, como nos esclarece
Wittgenstein, “para impor ao pensamento um limite, precisaríamos poder pensar ambos
os lados desse limite (nós precisaríamos também poder pensar o que não se deixa
pensar)”. (WITTGENSTEIN, 1963, p.7)
Ora, todos esses becos sem saída estão baseados na ideia de que há um saber
lógico destruidor por trás da crítica do correlacionismo, e que este saber de nada serve
como um saber real, para um acesso efetivo à realidade. Por isso, o velho Schelling
chamou-o “filosofia negativa”, por possuir apenas um caráter lógico que não pode por a
realidade, como pensava Hegel, mas que contém apenas um saber que não sabe,
como o de Sócrates. Ao pensamento meramente racionalista Schelling contrapõe a
filosofia positiva, que entende a ciência do real como um pensamento que se debruça
sobre a intuição, e isto quer dizer, em primeiro lugar, os dados revelados, primeiro de
forma imperfeita, na mitologia, e depois de forma acabada, na revelação. (SCHELLING,
2002)
De fato, repetidas vezes os antigos filósofos que lançaram mão de temas
mitológicos, aos quais Aristóteles chama “teólogos”, ou os “poetas que unem à poesia
raciocínios filosóficos” (ARISTÓTELES, 2002, 1091a-1091b), não fizeram o mesmo que
nossos contemporâneos que pensaram nessa conjunção. Horkheimer e Adorno, por
exemplo, em sua interpretação do mito das sereias da Odisseia, entendem que o
dilema de Odisseu – forma original do indivíduo – é também historicamente um dilema
do Eu diante do perigo de sua dissolução. Ouvindo o canto, mas preso ao mastro do
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navio, protegido por seus escravos ensurdecidos, Odisseu passa pela experiência
“feliz-infeliz” de mutilação do canto em arte, que despotencializa seu significado real.
Mas sobre aquilo que parece ser a objeção racionalista de Horkheimer e Adorno contra
o poder do mito, Wolfgang Welsch faz cair um comentário tão óbvio quanto
despercebido, sobre a pretensão de verdade do mito:
Só se imagina uma alternativa para as providências de Odisseu. (...) Se alguém
seguir a promessa de felicidade das sereias, isso significa seguramente a morte.
As sereias são aves de rasga-mortalha. (...) Então dificilmente se podem
caracterizar as medidas de Odisseu como simples “mutilação”. Pelo contrário:
contra a mais ameaçadora das mutilações, a morte, elas se mostram como
medidas de salvação e alternativa. (...) Certamente se poderia desejar tudo
completamente diferente: que o deleite dos sentidos não estivesse reservado a
apenas um participante, mas a todos; que não se precisasse impor nenhuma
separação entre deleite dos sentidos e ação; que se pudesse dirigir-se às
sereias, entre elas se pudesse felizmente demorar e afinal seguir adiante.
Apenas, assim não são as condições. Assim não são as condições da situação.
Assim não é o mundo. (WELSCH, 1996, p.89-90)
Perdoem-me o palavroso introito, cujo objetivo outro não era que nos ambientar
na problemática do limite, a qual suporta, em si mesma, o problema dos limites da
filosofia ou da maneira simplesmente racional de pensar. A poesia, a mitologia e a
revelação têm sido fontes para uma razão que se empenha num saber positivo sobre a
existência, sem que isso signifique um mero irracionalismo. Entre essas fontes, e de um
modo particularmente penetrante e infenso aos becos sem saída da filosofia, está a
filosofia dos contos de fada do apologista cristão G. K. Chesterton, que abordarei a
seguir. Dela, sobretudo, importam menos as importantes questões conceituais do que
as implicações para a ação, e portanto éticas, ou ético-religiosas, em primeiro plano.
Cinderela e a filosofia do limite
As reflexões sobre os contos de fada estão espalhadas em quase toda imensa
literatura de Chesterton. Mas um determinado texto, em particular, chama atenção.
Trata-se do IV capítulo de sua obra mais conhecida, Ortodoxia, chamado “Ética da
Elfolândia” (Ethics of Elfland). Embora intitule-se explicitamente uma ética, tentarei
mostrar que ela é também uma ontologia, e precisamente no sentido de uma ontologia
ética ou uma ética ontológica. Isso também é algo que, apesar de enigmático, salta aos
olhos.
O autor está ironizando aqueles que, ao tentar fustigar o idealismo de alguém,
geralmente mais jovem, prenunciam – o que para eles já é uma constatação – que, na
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meia idade, “a gente passa a acreditar na política prática, a usar as máquinas que tem
e a conviver com o mundo como ele é” (CHESTERTON, 2008, p.77). Poderia ser o
caso, então, que a ética do “homem de negócios”, como são chamados, seja encontrar
seu lugar na engrenagem (machinery) do mundo e aceitá-lo como ele é, ajustando-se.
Uma ética avessa a todo significado do dever.
Mas o que Chesterton faz é radicalizar as premissas do argumento do homem de
negócios, encontrando, assim, uma conclusão oposta. Ora, este parte do pressuposto
falsamente realista de que o mundo é tal como deve ser, e de que não há esperanças
para idealismos ingênuos. Mas o autor mostra que, se olharmos para o mundo como
ele é, veremos uma miríade de pessoas idealistas, cheias de sonhos e senso de
milagre. Como ele dirá mais tarde, referindo-se à mitologia, “há no mundo mais poetas
do que não-poetas” (CHESTERTON, 2010, p.107). Este é mais um de seus inúmeros
paradoxos: o ponto de vista mais realista sobre o mundo nos mostrará um mundo cheio
de idealismo, pois “as coisas comuns a todos os homens são mais importantes do que
as coisas peculiares a qualquer homem. As coisas ordinárias são mais valiosas que as
extraordinárias; ou melhor, são mais extraordinárias” (CHESTERTON, 2008, p.78).
É nesse contexto, no qual interessa ridicularizar a ideia, de fato ridícula, de que
os homens perdem seus ideais em virtude de uma descoberta nova ou das
modernidades de um mundo que, feito engrenagem, nos torna política e eticamente
“realistas”, que Chesterton afirma sua “filosofia pessoal ou religião natural”, a fim de
mostrar que esta alarmante descoberta, que ele poderia julgar original, nada mais era
do que o ensinado desde sempre nas antigas verdades cristãs e, ainda mais cedo, nos
contos infantis. “Minha primeira e última filosofia, aquela na qual acredito com certeza
absoluta, eu a aprendi na creche” (p.82).
Na verdade, o autor defende os contos de fada, aquilo que em geral as pessoas
tradicionalmente contam às crianças, como o discurso mais sadio e mais verdadeiro
sobre a realidade. Recorde-se que se trata de uma barulhenta apologia do homem
comum, da normalidade e do senso comum, e nele inscreve-se o registro das primeiras
coisas que aprendemos, e também das primeiras coisas que nos devem ser ensinadas,
mais que qualquer filosofia e mesmo que qualquer religião, pois os contos de fada são
a verdade secreta da religião. “Não são fantasias: comparadas com eles, outras coisas
são fantásticas. Comparados com eles, a religião e o racionalismo são ambos
anormais, embora a religião esteja anormalmente certa e o racionalismo anormalmente
errado” (p.82). Ele fala dos contos como de um tipo de alimentação que é dado à
criança nos primeiros anos de vida: “aqui trato da ética e da filosofia que resultam de
uma dieta de contos de fada” (p.83), na qual, quem sabe, a teologia pode ser o
“alimento sólido” da primeira epístola de Paulo aos coríntios.
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A lição de “Cinderela”, por exemplo, é a mesma do Magnificat, o famoso cântico
de Maria ao receber a Anunciação, “Exaltavit Humiles”: a humildes exaltou. (Lucas
1.52). O mesmo se pode dizer de A Bela e a Fera, quanto a amar os nossos inimigos, e
sobre A Bela Adormecida, quanto aos dons da existência e a suavidade da morte. Mas
Chesterton ressalta que não pretende tratar de cada um desses contos separadamente,
mas do espírito total de sua lei, “que aprendi antes de saber escrever”, enfatiza, “e hei
de reter quando não mais puder escrever” (p.83). Que os contos incidem sobre uma
filosofia e uma ética do real demonstra-se pela circunstância de que, biograficamente, o
autor afirma ter sido “humildemente ratificado pelos simples fatos” (p.84).
O que falávamos anteriormente sobre os limites inescapáveis do mito, mesmo
contra todas as críticas dos filósofos do esclarecimento, e sobre as situações
incontornáveis da existência, Chesterton o formula de um modo tão simples e sem
complicações conceituais que não resisto em reproduzir aqui uma longa citação:
O argumento poderia ser exposto da seguinte forma: há certas sequências ou
desenvolvimentos (casos de uma coisa seguindo outra) que são, no verdadeiro
sentido da palavra, razoáveis. Eles são, no verdadeiro sentido da palavra,
necessários. Assim são as sequências matemáticas e meramente lógicas. Nós
do país das fadas (que somos as mais razoáveis de todas as criaturas)
admitimos essa razão e essa necessidade. Por exemplo, se as Irmãs Feias são
mais velhas que a Cinderela, então é (num sentido irônico e terrível) necessário
que a Cinderela seja mais jovem do que as Irmãs Feias. Não há como fugir
disso. Haeckel pode falar quanto quiser do fatalismo acerca desse fato:
realmente tem de ser. Se Jack é filho de um moleiro, um moleiro é o pai de
Jack. A razão fria o decreta de seu terrível trono: e nós do país das fadas nos
submetemos. Se todos os três irmãos andam a cavalo, há seis animais e
dezoito pernas envolvidos: isso é racionalismo verdadeiro, e o país das fadas
está cheio dele. (p.84)
Claro que aquilo que Chesterton chama de “racionalismo verdadeiro” não é um
produto da própria razão, mas sim o nome da melhor atitude diante de coisas que não
podem ser alteradas, porque são o que são. Racionalismo verdadeiro não significa
questionar, e pretender dar uma razão, para todos os fatos da existência, mas racionar
a partir dos fatos da existência, e não há como fugir disso. Mas há uma distinção
fundamental a respeito dessas verdades. Algumas passam pelo teste da imaginação,
outras não, e são estas últimas que importam. “Não podemos imaginar dois mais um
não somando três. Mas pode-se facilmente imaginar árvores que não produzem frutos;
pode-se imaginá-las produzindo candelabros ou tigres pendurados pelo rabo. (...) Se a
maçã atingiu o nariz de Newton, o nariz de Newton atingiu a maçã. Essa é uma
verdadeira necessidade: pois não podemos conceber uma coisa ocorrendo sem a
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outra. Mas podemos muito bem imaginar a maçã não caindo sobre seu nariz; podemos
imaginá-la voando fogosa pelos ares para atingir algum outro nariz, pelo qual ela sentia
uma aversão mais clara.” (p.85)
Tudo se passa, para Chesterton, nos contos de fada de modo que a ideia de “leis
naturais” perde todo o sentido. Na verdade, se pudéssemos nos colocar do ponto de
vista de uma criança, qualquer acontecimento é mágico. Nós achamos racional que
uma maçã seja verde, e encontramos explicações para isso. Mas não há, a rigor,
nenhuma razão pela qual ela deveria ser verde. Uma criança de sete anos se
impressiona com o fato de Tommy ter aberto a porta e visto um dragão, mas uma
criança de três anos se impressiona com o fato de Tommy ter aberto a porta.
Chesterton exibe, de maneira intuitiva, a reformulação de Schelling para o argumento
ontológico. Não se trata de provar a existência de Deus, mas sim a divindade da
existência. (SCHELLING, 2002, p.261)
Os contos falam de maçãs douradas para relembrar o quão mágico é o fato de
elas serem verdes ou vermelhas. Falam de rios que correm cheios de vinho para
recordar o quão mágico é o fato de correrem cheios de água. Essa linguagem dos
contos de fada é, para Chesterton, inteiramente racional, e contudo agnóstica. “Quando
nos perguntam por que os ovos se transformam em pássaros ou por que as frutas caem
no outono, devemos responder exatamente como a fada madrinha responderia se
Cinderela lhe perguntasse por que os ratos se transformaram em cavalos ou por que as
roupas dela desapareceram depois da meia-noite. Devemos responder que é MÁGICA.
Não é uma “lei”, pois não entendemos sua fórmula geral. Não é uma necessidade, pois,
embora contemos com esse tipo de acontecimento na prática, não temos o direito de
dizer que ele deve sempre acontecer.” (CHESTERTON, 2008, p.87)
Como as coisas sejam, é de fato explicável, mas que as coisas sejam, isto remete
à divindade da existência. O primeiro princípio da filosofia dos contos de fada é que a
explicação última para cada coisa só pode ser resolvida por um apelo à criação. Por
que a rã pula? Porque Deus fez a rã pular. Uma explicação que se dá a qualquer
criança, e aquele que não se fizer criança não entrará no Reino. Mas o segundo
princípio, que diz respeito à ética dos contos de fada, é que a arbitrariedade do mundo
autoriza a arbitrariedade dos vetos do mundo, dos limites da existência e suas
implicações, quando infringidos. Por isso, a ética ontológica de que falávamos pode ser
assim enunciada: “Deus fez a rã pular, mas a rã prefere pular”. (p.91) No conto de fadas
há uma felicidade incompreensível que se sustenta, da mesma maneira, numa
condição e numa obediência incompreensível.
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Concluo reconhecendo que o mais ingrato de escrever sobre um escritor como
Chesterton é não conseguir formular as suas ideias e os seus argumentos melhor que
ele mesmo, de modo que a tarefa da citação resume-se, aqui, ao que temos de melhor,
e assim não me envergonho de cometer duas gafes acadêmicas de uma só vez:
terminar com uma citação e uma citação longa:
Se realmente ler os contos de fadas, você observará que uma ideia os percorre de
uma ponta a outra – a ideia de que a paz e a felicidade só podem existir com
alguma condição. Esta ideia, que é o cerne da ética, é também o cerne dos contos
infantis. Toda a felicidade do país das fadas está por um fio, um único fio.
Cinderela pode ter um vestido tecido em teares sobrenaturais e reluzentes com
um brilho que não é deste mundo; mas deve estar de volta quando o relógio bater
as doze horas. O rei pode convidar fadas para o batizado, mas deve convidar
todas, ou haverá consequências terríveis. A esposa do Barba Azul pode abrir
todas as portas menos uma. Quebra-se uma promessa feita a um gato, e o mundo
todo desmorona. Quebra-se uma promessa a um anão amarelo, e o mundo todo
desmorona. Uma garota pode ser a esposa do Deus do Amor em pessoa se
nunca tentar vê-lo; ela o vê, e ele desaparece. Uma garota recebe uma caixa com
a condição de não a abrir; abre-a, e todos os males do mundo escapam em cima
dela. Um homem e uma mulher são colocados em um jardim com a condição de
não comerem uma fruta; comem-na, e perdem a alegria em todas as frutas da
terra. (CHESTERTON, 2013, p.221-2)
Referenciais
ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002.
BRYANT, Levi; SRNICEK, Nick; HARMAN, Graham. Speculative Turn: Continental
Materialism and Realism. Melbourne, 2011.
CHESTERTON, G. K. Considerando todas as coisas. Campinas: Ecclesiae, 2013.
__________. O Homem Eterno. São Paulo: Mundo Cristão, 2010.
__________. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1990.
MEILLASSOUX, Quentin. After finitude. London: Continuum, 2009.
SCHELLING, F.W.J. Filosofia della Rivelazione/Philosophie der Offenbarung. Secondo
l’edizione póstuma del 1858 curata da Karl F. A. Schelling. Milano: Bompiani, 2002.
Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1304
WELSCH, Wolfgang. Vernunft: Die zeitgenössische Vernunftkritik und das Konzept der
transversalen Vernunft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus-Logisch-philosophische
Abhandlung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1963.
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