Uma abordagem semiótica do humor no desenho animado Antonio Vicente Seraphim Pietroforte Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) [email protected] Resumo. Neste artigo, propõe-se uma análise semiótica da geração do humor em desenhos animados, baseada na teoria dos regimes de interação social. Interessados na sistematização dos processos sociossemióticos envolvidos nas relações entre sujeitos, semioticistas como Floch e Landowski teorizam sobre os grandes processos de construção de identidades de acordo com regimes de identificação, singularização, diferenciação e assimilação. Nosso trabalho vem ao encontro desse modelo e de sua aplicação em nosso objeto de estudos. Palavras-chaves. Semiótica; regimes de interação; humor; desenho animado. Abstract. This article is a semiotic analysis of the generation of humor in cartoons, based in the theory of regimes of social interaction. Interested in a theoretical understanding of sociosemiotic processes by which discursive regimes of identity come into being, semioticians such as Floch and Landowski develop a theory on the great processes of construction of identities in accordance with the regimes of identification, singularization, differentiation and assimilation. This work seeks to further the application of this method to our object of study. Word-keys. Semiotics; regimes of interaction; humor; cartoons. A semiótica das paixões e a relação entre sujeitos narrativos Ao discorrer sobre os princípios e os métodos da semiótica dita greimasiana, D. Bertrand, em seu Caminhos da semiótica literária (Bertrand, 2003), cita o termo bricolagem, utilizado por Geninasca para definir o modo de construção dessa disciplina (Bertrand, 2003: 52). Entende-se por bricolagem o mesmo que Lévi-Strauss ao tratar do pensamento mítico (Lévi-Strauss, 1989), ou seja, o processo pelo qual, a partir de um repertório fechado de signos, novas significações são elaboradas, de modo que sempre ficam vestígios do uso anterior no novo uso. Afirmar que o semioticista bricola corresponde a mostrar que, sob a homogeneidade do modelo trabalhado pela semiótica para descrever a significação, há uma heterogeneidade a constitui-lo, fruto das diversas disciplinas convocadas em sua construção. O esquema narrativo proposto pela semiótica é inspirado na Morfologia do conto maravilhoso (Propp, 1984), de Propp; e a relação entre temas e figuras, da Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 1367-1372, 2005. [ 1367 / 1372 ] semântica discursiva do percurso gerativo do sentido, nos estudos de Lévi-Strauss sobre a estrutura dos mitos (Lévi-Strauss, 1985: 237-265). Essas referências são apenas dois dos vários exemplos desse procedimento que, diga-se de passagem, é próprio de todas as ciências, e não apenas da semiótica. Como o novo uso sempre carrega vestígios do anterior, é comum que esses vestígios interfiram na nova utilização. Em um primeiro momento, foi o que aconteceu com o esquema narrativo da semiótica e as relações entre sujeito e objeto narrativos nele estabelecidas. O esquema narrativo - articulado em percursos narrativos de manipulação, ação e julgamento - foi determinado a partir do modelo das 31 funções das personagens, de Propp (Propp, 1984: 31-76). O modelo do teórico russo, formulado basicamente em torno de relações juntivas entre sujeito e objeto narrativos, ou seja, na perda e recuperação do objeto pelo sujeito, resultou em um esquema narrativo centrado na relação entre eles. Assim, a existência semiótica do sujeito fica determinada por suas relações juntivas com o objeto, construindo, desse modo, os chamados estados de coisas. Com o texto “De la colère étude de sémantique lexicale” (Greimas, 1983: 225-246), Greimas inicia a semiótica das paixões, mostrando que, além de estados de coisas, há estados de alma a orientar a narratividade. Entre outros avanços, a semiótica das paixões, por meio da teoria do contrato fiduciário, estabelecido entre dois sujeitos e o objeto, recupera, na semiótica, a relação entre sujeitos que, devido aos vestígios do modelo de Propp, faltava nessa disciplina. A relação entre sujeitos e o discurso Determinada no nível narrativo do percurso gerativo do sentido, a relação entre sujeitos no contrato fiduciário, apesar de dar conta de descrever como dois sujeitos determinam a narratividade por meio de estados de coisas e de alma, descreve apenas os dispositivos modais que orientam a formação das paixões. É somente no nível do discurso, quando o dispositivo modal é lexicalizado, que é possível nomear uma paixão. Em nível discursivo, o querer-ser do nível narrativo, por exemplo, especifica-se em gula, lascívia, anseio, etc. Além dessa especificação de papéis temáticos, que converte paixões em apaixonados, há no nível discursivo a especificação de conotações sociais, investidas no sujeitos discursivos, que certamente interferem nos contratos narrativos. Uma conotação social, na semiótica, é determinada por meio dos objetos de valor que, em conjunção com o sujeito narrativo, garantem sua existência semiótica. Desse modo, um papel temático, socialmente conotado, pode ser determinado por meio de estados de coisas. Assim, tribos sociais são demarcadas nesse processo, gerando acadêmicos, boêmios, conservadores, iconoclastas, etc. Portanto, já que relações juntivas, em nível narrativo, determinam papéis sociais, em nível discursivo; e esses papéis interferem nas relações entre sujeitos do discurso; há regimes de interação, em nível discursivo, que podem determinar os contratos entre sujeitos narrativos, em nível narrativo. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 1367-1372, 2005. [ 1368 / 1372 ] Os regimes de interação Ao que tudo indica, não basta uma teoria dos contratos entre sujeitos narrativos para dar conta das relações entre sujeito discursivos, há de se considerar, também, os regimes de interação, sociossemioticamente determinados. Um conservador, por exemplo, não estabelece o mesmo contrato fiduciário entre ele e seus pares e entre ele e um iconoclasta. Em sua obra Presenças do outro (Landowsky, 2002), Landowsky propõe um modelo para descrever os grandes regimes de interação (Landowsky, 2002: 31-66). Em linhas gerais, o autor estabelece que, em relação a um sistema de valores, sociossemioticamente definido, um sujeito narrativo pode estabelecer quatro modos de relações juntivas. Esse sistema define uma rede de relações, que se constitui como um objeto de valor capaz de estabelecer estados de coisas, portanto, um sujeito narrativo pode afirmar sua conjunção com ele, negá-la, afirmar sua disjunção ou negá-la. Uma vez que esse sistema de valores, em nível narrativo, é convertido em temas e figuras, em nível discursivo, um sujeito discursivo é estabelecido, enquanto um papel social, por meio das relações juntivas com esses temas e figuras. Os modos de junção a esse sistema definem regimes de interação entre ele e os sujeitos do discurso. Em sua proposta, Landowsky nomeia cada um deles: o sujeito que afirma a conjunção é o esnobe; o que nega a conjunção, o urso; o que afirma a disjunção, o dândi; e o que nega a disjunção, o camaleão (Landowsky, 2002: 38-39). Assim, por meio de quatro trajetórias, com diferentes orientações em torno de um sistema de valores, há na semiótica um espaço teórico para o estudo das relações intersubjetivas capaz de fazer avançar os resultados da semiótica das paixões, não apenas em termos de contratos fiduciários, mas também em torno de regimes de interação sociossemióticos. O humor como regime de interação O humor, enquanto resultado daquilo que é tomado como engraçado, antes de se definir em relação a um fato, pode ser tratado como produto de um determinado regime de interação, de modo que o efeito de graça é produto antes da pertinência a esse regime que da relação ao fato. Para propor uma sistematização desses regimes de humor, convém retomar as observações de Floch, em seu texto “Diário de um bebedor de cerveja” (Landowsky e Fiorin, 1997: 203-218), a respeito das propostas de Landowsky. Ao analisar o modo como os passageiros do metro relacionam-se com suas trajetórias, em seu estudo “Etesvous arpenteur ou somnambule” (Floch, 1995: 19-47), Floch determina quatro regimes de interação de acordo com a afirmação ou a negação da continuidade e da descontinuidade com a qual cada um constrói seu percurso: a afirmação da continuidade gera o sonâmbulo; sua negação, o flanador; a afirmação da descontinuidade, o geômetra; e sua negação, o executivo. Por meio da concepção de identidade correspondente, Floch homologa sua terminologia com a de Landowsky, mostrando que a afirmação da identificação corresponde às trajetórias do esnobe e do sonâmbulo; a sua negação, definida como singularização, corresponde às trajetórias do urso e do flanador; a afirmação da Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 1367-1372, 2005. [ 1369 / 1372 ] diferenciação corresponde às trajetórias do dândi e do geômetra; e a sua negação, definida como assimilação, corresponde às trajetórias do camaleão e do executivo (Landowsky e Fiorin, 1997: 210). Articuladas em um quadrado semiótico, essas relações podem ser homologadas assim: continuidade/sonâmbulo identificação/esnobe não-descontinuidade/executivo assimilação/camaleão descontinuidade/geômetra diferenciação/dândi não-continuidade/flanador singularização/urso Uma vez feitas as relações termo a termo, tanto das propostas de Floch quanto das de Landowsky, é possível estabelecer um denominador comum, baseado na categoria formal identidade vs. alteridade, a promover essas homologações, que, ao que tudo indica, está na base da determinação desses regimes de interação. Desse modo, a singularização é determinada pela afirmação da identidade; a singularização, por sua negação; a diferenciação, pela afirmação da alteridade; e a assimilação, por sua negação. Uma vez determinada a categoria formal que gera esses regimes, é possível, por seu meio, determinar regimes de humor. Os regimes do humor Tratar o humor como regime de interação não se limita a apontar o que é ou não engraçado, mas a determinar, em cada regime, como a graça se faz. Tomando como corpus textos de desenhos animados, foi possível estabelecer quatro regimes, de acordo com a categoria formal identidade vs. alteridade. Quando as personagens do corpus interagem mediante a afirmação de comportamentos sempre idênticos, sem mudar mediante as situações colocadas, há o regime que propomos chamar autista. Esse regime é próprio de desenhos animados em que a personagem principal é um ingênuo que sempre se repete. É o caso, por exemplo, de Bob Esponja Calça Quadrada, e dos clássicos Zé Colméia e Dom Pixote. Contrário à afirmação da identidade, há a afirmação da alteridade, em que há conflitos entre, pelo menos, duas personagens. Propomos chamar esse regime paranóico, em que o comportamento das personagens se dá em relação à polêmica instaurada entre elas. É o caso de Invasor Zin, em que o conflito entre o alienígena Zin e o terráqueo Dib gera as situações discursivas, e dos clássicos Tom e Jerry ou Plic, Ploc e Chuvisco. A negação da identidade gera o regime em que a singularização das personagens estabelece os vínculos do enredo. Negando um comportamento sempre igual, tais discursos constroem histórias cujo tom está na especificação de comportamentos diferentes, como é o caso em que o foco da narrativa recai sobre o conjunto das personagens, e não sobre apenas uma delas. É o caso dos Simpsons, em que toda Springfield funciona como um sujeito coletivo heterogêneo. Entre os clássicos, lembramos Os Flintstones e, entre os modernos, Ei Arnold!, Os Anjinhos e Ginger. Propomos chamar esse regime excêntrico. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 1367-1372, 2005. [ 1370 / 1372 ] A negação da alteridade, por sua vez, dá forma ao regime em que, apesar das diferenças entre as personagens, há algo que as nivela. No caso do corpus estudado, esse nivelamento é sempre feito “por baixo”, negando-se, portanto, a alteridade de cada ator do discurso. Dentre as ocorrências verificadas, encontrou-se apenas uma: é o caso do desenho animado South Park, em que, apesar das diferenças entre os habitantes da pequena cidade canadense, todos são, por fim, nivelados em suas falhas de caráter. Fora do gênero dos desenhos animados, há ocorrências desse regime em seriados cômicos, como Seinfield ou Married with Children. Propomos chamá-lo regime sociopata. Articulados em um quadrado semiótico, a rede de relações é esta: identidade/regime autista não-alteridade/regime sociopata alteridade/regime paranóico não-identidade/regime excêntrico A graça de cada regime e seus dispositivos retóricos A graça, portanto, o que faz rir, é o resultado do modo de ser de cada regime na rede de relações em que se definem uns em relação aos outros. Entretanto, para que a graça se faça, é necessário que, devido às propriedades de cada regime, cada um deles derive para um modo de coesão que lhe garante a possibilidade de manifestação, ao mesmo tempo em que, por meio dessa coesão, define-se a forma de cada um deles. Em outras palavras, cada regime utiliza-se de dispositivos retóricos apropriados para seu modo de funcionamento. No regime autista há uma personagem principal que, sozinho (Dom Pixote, Leão da Montanha) ou com seu fiel companheiro (Pepe Legal e Babalu, Zé Colméia e Catatau, Bob Esponja e Patrick, Beavis e Buth Head), repete sempre um comportamento, no mínimo, ingênuo. O humor, nesse caso, é gerado por essa repetição, por isso o autismo, que gira em torno da resolução de uma questão, quase sempre, pueril. Em uma de suas aventuras, Bob Esponja, à procura de um crachá perdido, repete as atividades do dia para lembrar de quando se deu o suposto desastre. Bob repete, pelo menos, cinco vezes o percurso, isso porque seu amigo Patrick, envolvido na representação dos fatos, nunca acerta sua parte nas cenas. Baseado na repetição, o dispositivo retórico recorrente é a anáfora, como no caso do exemplo da busca ao crachá. No regime paranóico, baseado em um eterno conflito, há, pelo menos, duas personagens inimigas (Tom e Jerry, Piu-Piu e Frajola, Invasor Zin e Dib), ou mais (Corrida Maluca), cuja graça é construída entre as inúmeras batalhas dessas guerras. Como inimigos, um sempre espera o pior do outro, por isso a paranóia. Nos desenhos animados do corpus, há sempre dois percursos figurativos, cada um relacionado a um percurso temático, cujos termos são contrários. Em Invasor Zin, o alienígena Zin figurativiza os valores de morte, já que sua missão é destruir e conquistar a Terra, enquanto Dib, seu inimigo, figurativiza os valores de vida ao tentar salvar nosso planeta. O dispositivo retórico desse regime, portanto, é a antítese. No regime excêntrico há uma negação do comportamento repetitivo do regime autista. Suas personagens, em geral famílias (Os Flintstones, Os Simpsons) ou grupos de amigos (Ei Arnold!, Ginger, Futurama), ou até mesmo ambos (Os Anjinhos, O Rei Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 1367-1372, 2005. [ 1371 / 1372 ] do Pedaço), geram situações cômicas em meio aos conflitos de pontos de vista próprios de cada indivíduo do grupo, por isso a negação da identidade na excentricidade. O dispositivo retórico, portanto, nega anáfora em um mecanismo que se pode chamar diafórico. Na diáfora, uma anáfora é negada quando, em uma polêmica, uma palavra é usada com sentidos diferente pelos debatedores. Em um dos episódios d’Os Simpsons, Bart mata, sob a “má influência” de Nelson, um passarinho. Culpado, o menino passa a cuidar dos ovos, que descobre no ninho da mãe vitimada. Entretanto, não são ovos de pássaros, mas de lagartos, que, uma vez chocados, geram desequilíbrio ecológico na cidade. A figura do discurso é a mesma, os ovos, mas assume sentidos contrários, ora figurativizando valores de vida, ora de morte. No regime sociopata há uma negação das diferenças afirmadas no regime paranóico. Suas personagens também são famílias (fora do corpus, o seriado Married with Children) ou grupos de amigos (South Park), no entanto, apesar dos temperamentos diferentes de cada membro do grupo, há sempre um nivelamento por meio de falhas de caráter comuns, que os abriga à conivência, ainda que penosa. Como sempre os ataques nivelam o ser humano por seus defeitos, daí o humor, eles sempre resvalam para desvalorização do homem, daí a sociopatia. O dispositivo retórico preferido é a elipse, ou seja, o calar-se sobre o implícito, sempre desvalorizado disforicamente. No filme South Park os meninos vêem pela internet um site de coprofagia em que a mãe de Cartman faz esse tipo de sexo. Um deles comenta que a mulher se parece com a mãe do amigo, mas a confirmação de que se trata realmente dela se dá no silêncio, que paira no ar depois do reconhecimento da mesma. Para concluir, resta observar que nossas propostas não dizem respeito ao que é posto como engraçado, mas ao modo como esse posto é enunciado. As anáforas, diáforas, antíteses e elipses próprias de cada regime são mecanismos retóricos, e, no caso, antes sintáticos que semânticos, já que são de ordem relacional. Repetir, questionar, polemizar e ocultar são processos; aquilo que se repete, questiona, polemiza e oculta são próprios de cada cultura e de cada época; o regime apenas estabelece a sintaxe por meio da qual os conteúdos do humor são colocados em discurso. Bibliografia BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. 1.ed. Bauru: EDUSC, 2003. FLOCH, Jean-Marie. Sémiotique, marketing e communication. 2.ed. Paris: PUF, 1995. GREIMAS, Algirdas Julien. Du sens II. 1.ed. Paris: Seuil, 1983. LANDOWSKI, Eric. Presenças do outro. 1.ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. LANDOWSKI, Eric e FIORIN, José Luiz. O gosto da gente, o gosto das coisas. 1.ed. São Paulo: EDUC, 1997. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. 1.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. 1. ed. Campinas: Papirus, 1989. PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 1367-1372, 2005. [ 1372 / 1372 ]