Assim caminhou a humanidade

Propaganda
Assim caminhou a humanidade
Paleoantropólogos investigam origens dos seres humanos
Roberto Lent1
O poeta matogrossense Manoel de Barros escreveu uma vez esta maravilha: “As coisas
que não existem são mais bonitas.” Um exemplar elogio à fantasia e à invenção. A frase
me veio à mente ao considerar como é instigante, e ao mesmo tempo difícil, o trabalho
dos paleoantropólogos no esforço para
decifrar as origens da humanidade.
Quem se interessa muito por ciência – e
também quem se interessa pouco – deve
ter acompanhado a grande repercussão
que teve a publicação de uma série de
artigos em um dos últimos números da
revista norte-americana Science sobre os
fósseis da espécie hominínea
Ardipithecus ramidus, encontrados na
Etiópia a partir de meados da década de
1990. Foram pedaços de crânio, pelve,
braços e pés de 36 indivíduos que
viveram na África há cerca de 4,5
milhões de anos.
Os paleoantropólogos que publicaram os
artigos formaram uma grande equipe
multinacional liderada por Tim White, da
Universidade da Califórnia em Berkeley,
e G. Owen Lovejoy, da Universidade
Estadual Kent, em Ohio, ambas nos
Estados Unidos. Eles estudaram
detalhadamente esses fósseis, que foram
Os ossos fósseis de Ardipithecus ramidus,
mapeados por meio de imagens
reunidos por computação gráfica de modo
tomográficas e “reconstruídos” utilizando a “reconstruir” o crânio de um indivíduo da
computação gráfica. Além dos fósseis
espécie (imagem reproduzida de Suwa e
ósseos e dentários disponíveis, o grupo
colaboradores, Science, 2009).
analisou os fósseis vegetais encontrados
próximos a eles e os de outros animais de mesma datação, para relacionar os achados
com a geografia da região naquela época.
Resultou desse enorme trabalho o melhor exemplo de inventividade e imaginação que
muitos pensam que a ciência não tem, mas que na verdade são características que estão
na sua essência criativa.
1
Professor de Neurociência - Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
2
Os seres humanos evoluíram dos chimpanzés?
Considerados mais “pés-na-terra” que os paleoantropólogos são os biólogos
comparativos (geneticistas, anatomistas, fisiologistas, psicólogos e outros especialistas).
Nem por isso, entretanto, o trabalho destes é mais legítimo ou correto do que o dos
primeiros. São complementares. Exemplo flagrante disso é a tese de que “o homem
descenderia de um grande símio similar ao chimpanzé de hoje”, que muitos cientistas e
leigos se acostumaram a aceitar, por derivação dos dados da biologia comparativa. Pior
que isso é o conceito absolutamente errôneo de que “o homem descende do chimpanzé”,
que vigora em alguns círculos leigos.
A tese se baseia no estudo das características moleculares e anatômicas, cerebrais e
mentais dos grandes símios atuais em comparação com as dos seres humanos. As
técnicas recentes de biologia molecular revelaram que nosso genoma tem mais de 99%
de semelhança com o do chimpanzé. Os seres humanos são bípedes; os grandes símios
(ou monos), embora possam manter-se de pé, locomovem-se apoiados nos nódulos dos
dedos das mãos (nodopedalia) e suspendem-se na vertical agarrando-se aos galhos das
árvores: são bípedes ocasionais, mas não usam essa postura para se locomover.
O cérebro dos monos tem massa 3 a 4 vezes menor que a do cérebro humano (cerca de
400g, contra nossas 1.400g). Seu número estimativo de neurônios está em torno de 20
bilhões, enquanto nós temos 86 bilhões em média – quantidade determinada
experimentalmente no meu instituto pelo aluno de mestrado Frederico Azevedo. Apesar
das diferenças quantitativas, há muitas semelhanças entre o cérebro do chimpanzé e o
cérebro humano: ambos têm uma arquitetura semelhante de giros e sulcos, assimetrias
similares entre o hemisfério direito e o esquerdo, e uma proporção de cerca de 40%
ocupada pelas regiões do lobo frontal envolvidas com as funções cognitivas mais
complexas.
As diferenças ultrapassam as
semelhanças
Entretanto, as semelhanças entre os
chimpanzés e os seres humanos não
escondem as suas diferenças, que são
enormes. A linguagem é rudimentar em
nossos parentes antropoides; sua
capacidade de aprendizagem por
observação e imitação não ultrapassa a
de uma criança pequena; sua habilidade
de intuir o comportamento de terceiros
pela observação do olhar e dos gestos é
mínima, incomparável com a nossa
(embora erremos muito nesse
quesito...). Há também controvérsias
Os seres humanos se originaram dos
sobre a capacidade de os monos se
chimpanzés?
reconhecerem ao espelho, como nós
fazemos com tanta vaidade.
3
Acima de tudo, a organização social humana dominou a Terra, não se sabe se para o
bem ou para o mal. Mas o fato é que nos tornamos capazes de construir uma sociedade
complexa, cooperativa e altamente sofisticada, ao contrário dos grandes símios,
organizados em grupos sociais comparativamente rudimentares. Também superamos
muito a capacidade tosca dos nossos parentes antropoides de fabricar ferramentas e
instrumentos de uso manual. Extrapolamos essa habilidade, e dispomos hoje de
tecnologias de altíssima sofisticação, inimagináveis em qualquer outro grupo animal
conhecido.
Em suma, a distância cognitiva que nos separa dos chimpanzés é tão enorme que, se a
nossa origem estivesse neles, restaria ainda inexplicável a trajetória percorrida, isto é, o
caminho que a evolução teria imposto aos hominíneos há 6-7 milhões de anos e que os
levou à perda dos pelos do corpo, ao aumento do tamanho do cérebro, ao bipedalismo e
à construção da civilização que hoje conhecemos.
A virada dos paleoantropólogos
O trabalho inventivo da equipe de Tim White e G. Owen Lovejoy mudou o cenário.
Não, os seres humanos não se originaram de criaturas semelhantes aos chimpanzés.
Tudo teria começado há cerca de 18 milhões de anos, quando viveu o grande ancestral
comum dos grandes símios: um quadrúpede com longos braços e sem cauda, inferido ao
estilo Manoel de Barros com base nas evidências fósseis de animais mais recentes. O
primeiro ramo (clado, em linguagem técnica) a divergir desse ancestral comum foi o dos
orangotangos (Pongo). Seguiu-se a ele o dos gorilas (Gorilla) e o dos chimpanzés
(Pan). Só que cada um desses grupos continuou a evoluir ao longo dos milhões de anos
seguintes, e as características dos animais atuais dificilmente reproduzem exatamente as
de seus ancestrais.
O Ardipithecus ramidus seria um ramo posterior, surgido há quase 5 milhões de anos na
África equatorial. Esses animais tinham entre 30 e 50 kg e braços relativamente curtos,
embora mais longos que os nossos. Além disso, apresentavam postura bípede ocasional
e um cérebro equivalente ao de um chimpanzé atual. Tudo indica que já eram capazes
de empregar pedras para quebrar sementes.
4
O ramo seguinte é bem conhecido:
Australopithecus, que tem muitos fósseis
coletados e várias espécies descritas. Os
australopitecos viveram entre 4 e 1 milhões de
anos atrás. Seus braços já eram
proporcionalmente menores e a postura mais
consistentemente bípede. Seu cérebro maior
(400-500 g) foi capaz de permitir o
desenvolvimento das primeiras ferramentas de
pedra lascada.
Por fim, surgiu o ramo dos ancestrais humanos
diretos (Homo), há 2,5 milhões de anos. Esse
grupo resultou – lá pelos 200 mil anos antes da
era atual – na espécie Homo sapiens, como
egocentricamente nos designamos.
Reconstrução de um
Australopithecus africanus,
esculpido por Toni Wirts. Os
australopitecos viveram entre 4 e 1
milhões de anos atrás e surgiram
logo depois do Ardipithecus ramidus
(imagem: NPS-USGov).
O grupo de pesquisadores que publicou os
trabalhos sobre os Ardipithecus mostrou (mais
uma vez!) que cada espécie, fóssil ou atual, tem
a sua própria evolução, paralela ou divergente,
ou então simplesmente diferente. E que não se
pode ser simplista demais, achando que a nossa espécie derivou de um ancestral símio
parecido com o chimpanzé (raciocínio derivado da similaridade genética). Muito menos
– como pensam os leigos em geral – que uma espécie atual deriva de outra espécie
atual. Os dados da biologia comparada devem ser analisados com cuidado!
Não depreciemos os paleoantropólogos porque eles especulam. Na ausência de
evidências diretas além dos fósseis dos tecidos rígidos, eles criam verdades sobre o que
inexiste. Como Manoel de Barros, eu diria que isso pode ser mais bonito e verdadeiro
que o contrário.
*Meus agradecimentos a Walter Neves pelos comentários críticos à primeira versão
deste artigo.
SUGESTÕES PARA LEITURA
W.A. Neves (2006) E no princípio...era o macaco! Estudos
Avançados, vol. 20: pp.249-285.
M. Barros (2007) O Livro das Ignorãças (13ª edição). Editora
Record, 103 pp.
F.C.A. Azevedo e colaboradores (2009) Equal numbers of neuronal
and nonneuronal cells make the human brain an isometrically
scaled-up primate brain. Journal of Comparative Neurology, vol.
513: pp.532-541.
G. Suwa e colaboradores (2009) The Ardipithecus ramidus skull and
its implications for hominid origins. Science, vol. 326: pp.68e168e7.
C. Owen Lovejoy e colaboradores (2009) The great divides:
Ardipithecus ramidus reveals the postcrania of our last common
ancestors with African apes. Science, vol. 326: pp.100-106.
Download