A pedagogia catequética e o movimento educativo-religioso na Primeira República do Brasil (1889-1930): Seus pressupostos e suas relações Os jogos dos passos moldam espaços... tecem lugares. (Michel de Certeau) Estamos a caminho de um novo milênio. Vivemos um tempo onde imagens contraditórias nos ocorrem alternadamente. Ocorre um cruzamento de sombras. Sombras que vêm do passado que ora pensamos já sermos, ora pensamos não termos deixado de ser, sombras que vêm do futuro, sem ainda virmos a ser. É esta a ambigüidade e a complexidade da situação do tempo presente – tempo de transição. Como em outros períodos de transição, esse quadro relembra outros tempos também confusos e culturalmente diversos. Nesse contexto situa-se o nosso tema de estudo – a história da pedagogia catequética e do movimento educativo-religioso na Primeira República do Brasil (1889-1930). O primeiro regime republicano trouxe uma série de mudanças para a Igreja Católica – o fim do Padroado e o processo de laicização das instituições e da sociedade. Muitas histórias entrecruzadas acompanharam e ancoraram esta nova situação e as conseqüências advindas com as mudanças de ordem política, econômica, cultural, educacional e religiosa. Neste novo contexto histórico, a Igreja começou a se posicionar, fazer traçados e mapas para recuperar o seu lugar na sociedade, inscrição de seu desejo, de sua história. 1. Fim de período e movimento dos sentidos O estudo da sociedade brasileira permite-nos constatar em seus vários níveis a presença do catolicismo. Historicamente sua influência foi marcante, desde sua implantação, com o regime do padroado. Com o propósito de divulgar a fé cristã, o movimento educativo-religioso era um instrumento importante, através de uma variedade de formas, associações e instituições. 2 Num primeiro momento – período colonial até à proclamação da República – a pedagogia catequética e a educação compunham-se com o quadro social. Tratava-se, na verdade, não somente do ensino teórico da doutrina cristã, mas de uma série de expressões que garantia a identidade do catolicismo em nível pessoal, familiar e social. Podemos afirmar que o catolicismo se confundia na cultura. Igreja, Estado e Sociedade formavam, assim, uma história entrecruzada. A implantação do regime republicano em 1889 extinguiu o regime do Padroado. O decreto n.º 119 determinava a separação entre Igreja e Estado. Uma das conseqüências dessa mudança foi a laicização do ensino nas escolas públicas, segundo a nova Constituição Federal. Frente a esta nova situação, a hierarquia católica reagiu com firmeza, visando preservar o quanto possível, sob sua orientação, o setor educacional. Com o objetivo de recatolicizar a sociedade brasileira, a pedagogia catequética e a educação começaram a ser proclamadas, integrando-se no projeto de reforma do catolicismo brasileiro. Nosso objetivo foi estudar a história da pedagogia catequética e da educação católica, analisando seus pressupostos básicos e os princípios cristãos que os regiam e os fundamentavam, segundo o pensamento do catolicismo nesse arco. Assim sendo, tratamos de explicitar essa relação e desvendar os motivos pelos quais a Igreja enfatizava seu direito nessa área. Nosso estudo mostra que esses dois aspectos se entrecruzavam, conjugando-se no movimento educativo-religioso, com o objetivo de difundir a doutrina cristã na sociedade brasileira e formar as novas gerações. Identificamos uma série de acontecimentos, iniciativas, reflexões e publicações que se orientavam no esforço de divulgar o conhecimento da doutrina cristã e implantar escolas católicas. Houve uma considerável produção de documentos do episcopado, em nível coletivo e pessoal, se compararmos com o período anterior. Nessa linha encontramos, também, a contribuição de elementos do clero e do laicato, enfatizando a importância da educação religiosa. Como uma instituição histórica, percebemos a mudança que se foi operando no discurso e na prática da Igreja, frente ao novo regime político. Sendo um agente educador, a Igreja foi implementando sua ação de acordo com seu objetivo – a difusão dos princípios católicos em todos os setores da sociedade. Esta era a sua missão, recebida de seu fundador e, posteriormente, afirmada e justificada pelo Magistério da Igreja Universal. E isto era 3 uma necessidade premente, conclamada no Concílio Vaticano I, prescrita pelos últimos papas, recolocada pelo Concílio Plenário da América Latina (CPAL) em 1899, em vista das idéias modernistas e secularizantes que se divulgavam na sociedade. Assim, no plano interno da Igreja era necessário implementar o ensino do catecismo e no plano da sociedade civil, uma das grandes cruzadas era a luta pela educação cristã, como um direito de toda a população católica que compunha a maioria da sociedade brasileira.. Esses dois instrumentos estão interligados nos pronunciamentos do episcopado e na sua prática, constituídos no projeto educativo-religioso. A partir dessas observações, pudemos acompanhar a evolução do projeto e o redimensionamento do catolicismo na Primeira República. Enquanto foi ocorrendo um deslocamento da educação escolar para a esfera pública, particularmente em nível de discurso, simultaneamente a pedagogia catequética deslocou-se para o foro da Igreja. O corte cronológico 1889 justifica-se por ser esse o marco de um novo regime político, seguido da separação oficial entre Igreja e Estado. Posteriormente, a Primeira Constituição, com seu caráter laicizante, ratificaria outros decretos imprimindo-lhes esse caráter, como foi o caso do ensino público. Em seguida, o episcopado brasileiro escreveu sua primeira Pastoral Coletiva (1890), repudiando a separação e a influência do pensamento liberal e positivista no poder político e na educação. O ano de 1930, segundo corte, justifica-se pelos sinais expressivos de aproximação entre Igreja e Estado e pela Revolução de 30, que caracterizou um novo contexto político com o fim da Primeira República e o Estado Novo 1. Consideramos os seguintes aspectos no presente estudo: a) Com o processo de romanização do catolicismo, o ensino da doutrina cristã tornou-se a grande cruzada da Igreja no Brasil 2. Assim, fomos verificando as proposições e a compreensão atribuída à pedagogia catequética pelos diversos atores, particularmente pelo episcopado. 1 Nesse novo período as relações entre Igreja e Estado tiveram outro encaminhamento, com uma série de negociações, concessões e vitórias, particularmente na elaboração do novo texto constitucional. Cf. O. LUSTOSA, A Igreja católica no Brasil República – cem anos de compromisso. São Paulo, Paulinas, 1991, pp. 48-59. 2 A propósito, lembramos os estudos de R. AZZI, O estado leigo e o projeto ultramontano. São Paulo, Paulinas, 1994, pp. 59-103, onde o autor estuda a romanização do catolicismo brasileiro e suas repercussões na pastoral e na formação do clero. Com relação à catequese podemos mencionar ainda: R. AZZI, A catequese no Brasil. Considerações históricas, in «Convergência» 10 (1977) 491-507; J. COMBLIN, Prolegômenos da catequese no Brasil, in «REB» 27 (1967) 846-851. 4 b) O impacto gerado pela laicização do Estado e da educação fez com que a Igreja se movimentasse, em vista de seu papel na sociedade e na área educativa. A pedagogia catequética e o movimento educativo-religioso entrecruzavam-se no projeto de recatolização da sociedade brasileira. A partir do confronto com a documentação e as diversas frentes de ação implementadas foi possível ir compreendendo os pressupostos que orientavam esse movimento. c) Neste período foi-se estabelecendo um novo tipo de relação entre a Igreja do Brasil e a Santa Sé. Sua influência motivou o movimento do episcopado pelo ensino do catecismo e pela defesa de uma educação cristã nas escolas. Aliada a isso estava a preocupação com o texto unificado do catecismo, o que era uma preocupação desde o Concílio Vaticano I. As pastorais deste período enfatizavam a fidelidade ao Magistério da Igreja Universal e aos ensinamentos dos papas. . d) O movimento pelo ensino religioso nas escolas oficiais foi uma constante em todo esse período frente à laicização do ensino. Qual o significado de toda essa cruzada? Fomos verificando que a questão do ensino religioso escolar não era um fenômeno isolado, mas se inscrevia no impacto das mudanças que atingiam a Igreja. O denominador comum de toda essa problemática estava na crise entre a Igreja o regime republicano. A reconstrução dessa história pretendeu um amplo processo de análise. Para realizar tal proposta, partimos de sua articulação com o corpo social e religioso daquele período histórico, numa visão de totalidade 3. Entendemos que esse esforço tem suas limitações, devido às dificuldades para a captação do real. No entanto, percebemos neste percurso que o movimento da Igreja pela organização da pedagogia catequética e por uma educação fundamentada 3 Em seu estudo sobre os procedimentos da pesquisa histórica, afirma M. Certeau: «O discurso ‘científico’ que não fala da sua relação com o ‘corpo’ social, não pode articular uma prática. Deixa de ser científico. Trata-se de questão central para o historiador. Esta relação com o corpo social é precisamente o objeto da história». M. CERTEAU, L’écriture de l’histoire. Paris, Gallimard, 1975, p. 70. Na perspectiva da história da catequese, afirma W. Gruen: «A História da Catequese está inseparavelmente ligada à própria História da Igreja. [...] Não basta estudar a História da Catequese em termos intra-eclesiais ou religiosos; ou mencionar também a sociedade, mas só enquanto campo de influência e atuação por parte da Igreja. Na verdade, a Igreja é afetada por constantes forças sócio-político-econômico-culturais, num permanente vaivém de influências». W. GRUEN, Preâmbulo a uma história da catequese, in «Convergência» 31 (1996) 315. 5 nos princípios cristãos estava atravessado por um permanente vaivém de influências. Sendo assim, consideramos seu movimento no período anterior, como também fizemos referências ao período posterior, numa perspectiva de «longa duração» 4. Destacamos o movimento coletivo do episcopado, a articulação das diversas congregações religiosas e os programas desenvolvidos, particularmente por Dom Leme e Pe. Júlio Maria. Resgatamos as diversas frentes de ação que contribuíram para a ação e (re)organização do catolicismo, nesse período. 2. Os contornos históricos do movimento educativo-religioso Cada uma das fases da história da pedagogia catequética é um movimento para sua maturidade histórica, seu vir-a-ser. A sua reconstrução e a compreensão do seu significado implicam uma análise articulada com o contexto histórico e com o projeto de reforma do catolicismo. Essa relação influenciou sobremaneira na sua forma de organização e nos seus postulados básicos. As idéias laicizantes que começaram a influenciar o novo regime geraram uma série de crises na Igreja Católica. A profundidade dessas crises fez com que ela procurasse os caminhos para difundir a fé cristã e restaurar os princípios católicos naquela sociedade. Assim afirmavam os bispos na Carta Pastoral de 1900: "Protestamos bem alto que não pactuamos com essa inovação ímpia; e esse protesto uniforme, solene, ecoando de norte a sul em todo o Brasil, é parte importantíssima da Homenagem que lhe preparamos nesta passagem de século. [...] Não queremos ser nação sem religião e sem Deus, não queremos ser governados por um governo ateu." 5 O panorama do contexto histórico deste período inscreve-se numa época de mudanças nos diversos setores da sociedade. No que diz respeito à educação, os objetivos visavam a formar indivíduos selecionados na elite e técnicos profissionais nas camadas populares. Isso era o reflexo da própria política vigente que não favorecia a implementação de uma política educacional, verdadeiramente democrática. Não obstante a campanha 4 A propósito, afirma F. Braudel sobre as relações entre os acontecimentos na extensão da história: «As durações que distinguimos são solidárias umas com as outras: não é a duração que é tanto assim criação de nosso espírito, mas as fragmentações dessa duração. Ora esses fragmentos se reúnem ao termo de nosso trabalho. Longa duração, conjuntura, evento se encaixam sem dificuldade, pois todos se medem por uma mesma escala. [...] O que interessa apaixonadamente um historiador, é o entrecruzamento desses movimentos, sua interação e seus pontos de ruptura». F. BRAUDEL, Escritos sobre a história..., pp. 72-73. 5 EPISCOPADO BRASILEIRO, [2a.] Pastoral coletiva do episcopado brasileiro ao clero e aos fiéis das duas províncias eclesiásticas do Brasil[1900]. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1981, pp. 65-66. 6 contra o analfabetismo, o discurso entusiasta pela educação, por um lado, não contemplavam a formação para a cidadania e, por outro, esbarrava com o aspecto lacônico do texto constitucional, que deixava sob a responsabilidade de cada Estado as iniciativas para este empenho. O movimento da sociedade civil, particularmente com a fundação da ABE em 1924, representou um passo importante para se pensar a educação no país. Em síntese pode-se dizer que a prática educacional era mais um ornamento, moldado nos princípios positivistas e sem conexão com a complexidade cultural brasileira. Em vista dos desencontros, os contornos prescritos na série de reformas do ensino não chegaram a organizá-lo, nem a propor um projeto educativo. Seu caráter seletivo e individualista continuava presente na sua forma de organização. O movimento educativo-religioso empreendido neste período, por seu turno, privilegiava também as elites, com um aceno profissionalizante para as camadas populares. Com efeito, tanto na perspectiva do Estado como na da Igreja, o significado da educação era subsidiário daquele contexto histórico-político. No entanto, a perspectiva católica incorporava uma visão de mundo, sociedade e de homem orientada para os valores da ordem sobrenatural, segundo os princípios da fé cristã. A Pastoral Coletiva de 1890 afirmava: O tipo ideal da perfeição social não consiste na multiplicidade das seitas religiosas e na tolerância universal delas, mas sim na unidade perfeita dos espíritos pela unidade da mesma fé dentro do universal rebanho de Cristo" 6. Diante desse novo modus vivendi, o documento defende os princípios católicos e mostra a necessidade de incorporá-los na sociedade e na política. A alusão ao passado, o sentimento de derrota e pessimismo e o apelo à unidade entre fé e nacionalidade unem-se na defesa de uma educação pautada pelos princípios católicos. Esse documento reforça os princípios católicos na sociedade brasileira e, assim, os bispos apelam para esse direito do povo 7. 6 EPISCOPADO BRASILEIRO, [1a.] Pastoral coletiva do episcopado brasileiro ao clero e aos fiéis das duas províncias eclesiásticas do Brasil [1890]. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1981, p. 28. 7 Na 2a. Pastoral Coletiva afiram os bispos: "Queremos que a religião que presidiu o nosso nascimento, acompanhou e abençoou o nosso progresso, e foi nosso conforto nos dias de aflição e de perigo, continue a ser nossa defesa, nossa consolação, nosso remédio. Somos católicos a quase totalidade dos brasileiros; 7 3. Recortes cruzados: os documentos e o significado da pedagogia catequética e do movimento educativo-religioso O movimento para a reforma do catolicismo foi-se acentuando. A presença de congregações religiosas européias, a rede de escolas católicas, a formação do clero e a preocupação com o ensino da doutrina cristã foram instrumentos-chaves para esta mudança. Nesta direção, outros acontecimentos e novas orientações foram, também, impulsionando a Igreja do Brasil para sua reforma, tais como, o Concílio Plenário Latinoamericano (1899), a publicação de documentos coletivos e pessoais do episcopado, a realização de diversos congressos católicos. O Concílio Plenário da América Latina possibilitou a articulação da Igreja em suas diversas regiões, sua organização e criou um maior vínculo com a Santa Sé 8. Desta forma, o processo de romanização da Igreja no Brasil foi sendo impulsionado. No tema sobre o catecismo, os decretos deste Concílio recomendavam o Catecismo Romano e o compêndio resumido pelo Cardeal Belarmino, para uso das crianças. Além disso, estabelecia um prazo de cinco anos para que cada país elaborasse um texto unificado do catecismo. Sobre a educação católica, esse Concílio prescrevia: "A Igreja não tem por natureza o direito independente de toda a vontade humana de fundar e regulamentar escolas para a formação cristã e educação da juventude católica, senão que a ampara igual direito de exigir que em todas as escolas, quer públicas quer privadas, a formação e educação da juventude católica esteja sujeita a sua jurisdição e que em nenhum ramo do ensino se ensine alguma coisa contrária à religião católica e a sua santa moral" 9. A documentação produzida pelos bispos é bem insistente sobre a formação religiosa da crianças e dos jovens. No corpus documental esse assunto foi-se acentuando. Assim, nas Pastorais Coletivas de 1890 e 1900 é enfatizada a necessidade de propagar a fé cristã, defender seus princípios e restaurar seus valores em toda a sociedade. queremos que nossa religião não seja nivelada com os inventos de Lutero e Calvino, com as torpezas de Mafoma, com os delírios de Augusto Comte". Op. cit., p. 65. 8 O Papa Leão XIII conclamava o episcopado da América Latina para essa assembléia, em sua encíclica Cum diuturnum, de 25/12/1892. Segundo ele, este concílio deveria assegurar a unidade da disciplina eclesiástica e manter os vínculos culturais do catolicismo no continente latino-americano. 9 EPISCOPADO LATINOAMERICANO, Acta et decreta concilii plenarii Americae Latinae. Roma, Tipografia Vaticana, 1906, p. 378. 8 Em 1915 é escrita uma outra Pastoral Coletiva, verdadeira constituição eclesiástica para a Igreja do Brasil. Este documento chama atenção para o ensino da doutrina cristã e a importância do catecismo paroquial. A leitura deste texto revela-nos que a grande linha de orientação do episcopado se dirige para o atendimento pastoral dos párocos, o conhecimento da religião católica, o planejamento do catecismo paroquial e a educação católica. Em torno desses elementos, há uma rede de articulações entre os termos educar, ensinar, conhecer, explicar a doutrina cristã. Essa Pastoral elabora também "O Regulamento geral para o Ensino do Catecismo" 10. No campo da instrução doutrinária, o texto faz referência ao método e aos princípios pedagógicos. Nesse sentido, aborda as questões referentes ao plano das lições, à forma de exposição dos diversos temas, à motivação. Nesse documento já aparece o termo catequese, no entanto, sem um maior alargamento do seu conceito. Mesmo assim, já era a presença de um novo componente com designações e idéias mais apropriadas para o ensino do catecismo. Tratava-se, na realidade, de um ensaio inicial. Para uma verdadeira educação, o documento indica as instituições católicas: "A razão, a fé e a experiência ensinam que só na Igreja de Jesus Cristo encontram os fiéis regras seguras para a boa educação dos filhos. Na fé e na moral católica devem, pois, os pais basear essa educação" 11. A orientação do episcopado estava direcionada para o ensino da doutrina cristã. O objetivo era ensinar as verdades da fé católica. A sua matéria era o próprio texto do catecismo, através da memorização das fórmulas doutrinárias. A educação católica, no corpo dos documentos, é compreendida como uma força integrante no processo de recristianização da sociedade. A Carta Pastoral de Dom Leme (1916) é outro documento importante. Analisava a situação do catolicismo no Brasil e constatava a ignorância religiosa como um sério problema. Em vista disso, apresentava como solução para combater esse mal entre os católicos, o conhecimento da doutrina católica. A insistência no ensino da religião, no conjunto dos documentos, significava, numa primeira instância, o meio para se conhecer as verdades da fé cristã e despertar nos fiéis a 10 Cf. EPISCOPADO BRASILEIRO, Pastoral collectiva dos senhores arcebispos e bispos das províncias eclesiásticas de S. Sebastião do Rio de Janeiro, Mariana, São Paulo, Cuyabá e Porto Alegre. Rio de Janeiro, Typografia Martins Araújo & Cia, 1915, PP. 445-448. 11 Ibid., p. 373. 9 participação nos sacramentos. Era, ainda, um forma para extirpar o fanatismo religioso e as superstições que estavam generalizadas entre os católicos. Prevalecia, assim, a importância da transmissão, da assimilação e do conhecimento doutrinário. Com base nessas observações, podemos concluir que o significado da pedagogia catequética e do movimento educativo-religioso, subjacente no corpus dos documentos, não é um elemento isolado. Insere-se numa rede de relações mais amplas, vinculada com o processo histórico-social e com o projeto de reforma do catolicismo brasileiro. Por isso, a preocupação com os aspectos doutrinários e morais. O ensino catequético invocava os recursos tradicionais - as formas elaboradas com perguntas e respostas, a memorização, o uso de uma linguagem teológica. A Igreja depositava no seu corpo doutrinário uma forma de fazer frente àquele novo regime político, leigo em matéria religiosa. Era preciso reconquistá-lo para os valores religiosos. Tal era a preocupação em impregnar a sociedade com os princípios da fé católica, que a Igreja não se abria para um maior diálogo com os diferentes aspectos culturais, religiosos e sociais. Naquele contexto, o catolicismo brasileiro teve muita influência do pensamento católico europeu. Com isso, repete em seu discurso as posições e os argumentos abordados naquela realidade. O discurso da modernização da sociedade brasileira no aspecto social, político, econômico e cultural guardava notável distância entre o proclamado e o realizado. Nesse processo, o Estado incorporava o princípio leigo da autoridade política, o que causou resistência por parte da Igreja. Posteriormente, os desencontros e descaminhos causados foram encontrando variações e evoluindo-se para um maior relacionamento. Nesse quadro, o programa de Dom Leme foi adquirindo uma configuração múltipla, consistente e militante frente a essa laicidade, com vias na recatolicização da sociedade. Daí o empenho pelo conhecimento dos princípios e da doutrina cristã. Mediante um processo em cadeia, esse programa foi-se implantando nas diversas expressões do catolicismo brasileiro. As manifestações religiosas populares começaram a ter uma nova orientação, pois necessitavam ser regeneradas pelo crivo da ordem e doutrina. Esse projeto de reforma do catolicismo, no entanto, teve dificuldade de dialogar com a heterogeneidade presente no catolicismo brasileiro. Nesse sentido, pudemos destacar a visão preconceituosa da Igreja com relação aos movimentos populares religiosos, pois seu de modo de percebê-los partia de outros pressupostos e visavam a outros fins. Podemos 10 perceber que o catolicismo, também, procurava se «modernizar». No entanto, faltou-lhe para esta empresa a leitura do significado e da tradição histórica que marcou o catolicismo brasileiro. O movimento pela volta do ensino religioso estava integrado com o processo de recatolização da sociedade, em face das idéias laicizantes na sociedade. Isso não era um fato isolado. Naquele contexto, essa cruzada tinha uma causa mais profunda que era a formação das novas gerações de acordo com os princípios católicos, em vista do seu efeito duplicador no futuro. Os documentos sobre essa questão enfatizavam o ensino da doutrina cristã e negavam o ensino neutro, considerado ateu e contra o espírito católico da nacionalidade brasileira. Como forma de compensar esta situação, a pedagogia catequética entra na trama da história como um elemento integrante do processo de regeneração dos valores cristãos. Sob o pretexto dos perigos do modernismo e do positivismo, particularmente, foi sendo amalgamada segundo o modelo romano-tridentino, para formar um católico militante nos diversos setores da sociedade. Percebe-se em todo esse movimento a liderança e o empenho do episcopado brasileiro. Temos que considerar também as primeiras iniciativas de Dom Macedo Costa, Dom Antônio Ferreira Viçoso, na segunda metade do século XIX e, posteriormente, Dom Silvério Gomes Pimenta, Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra e Dom Antônio dos Santos Cabral para congregar o episcopado brasileiro, com vistas àqueles objetivos. O movimento educativo-catequético foi-se constituindo um programa à parte, sem um envolvimento mais efetivo com o processo social. Do ponto de vista histórico faltou uma compreensão mais realista de sua forma de ser naquele período, pois sob o pretexto de se afirmar naquela sociedade laicizante, não chegou a ser compartilhado por todo o grupo católico. Os fatos elucidados na documentação pesquisada comprovam, ainda, o empenho do episcopado em nível teórico e prático. Em nível teórico, a elaboração de um texto catequético único e oficial para o ensino da doutrina cristã. Estava, desse modo, cumprida a prescrição do CPAL, a fim de que se evitassem equívocos e orientações contrárias à tradição da Igreja, tendo-se em vista o processo de laicização das instituições e a liberdade religiosa prescrita na Nova Constituição. Esse documento prescrevia a elaboração de único 11 texto para o ensino da doutrina católica e a criação de Universidades Católicas nos diversos países da América Latina: "Mandamos, portanto, que no período de cinco anos, em cada República ou pelo menos em cada província eclesiástica, em comum acordo com os bispos, se elabore um só catecismo, excluindo os demais; juntamente com um breve sumário das coisas mais necessárias que devem saber as crianças e as pessoas mais simples. [...] É de se desejar que cada república ou reino da América Latina tenha sua Universidade Católica, que seja um centro de ciências, letras e belas artes" 12. A preocupação com o texto catequético e a educação católica, no corpus dos documentos, não é um elemento isolado, sofre as conseqüências da totalidade do processo histórico-social. Em nível prático, o ponto fundamental era o ensino, a assimilação dos conteúdos doutrinários e sua difusão nos diversos níveis escolares. 4. As frentes de ação: percursos e temas Na trajetória da pedagogia catequética e do movimento educativo-religioso vários fatores contribuíram para seu movimento, neste período. A leitura do acervo dos documentos pesquisados indica-nos, particularmente, duas vertentes de contribuição que se completam. A primeira vertente está a nível de discurso e situa-se no conjunto dos pronunciamentos do episcopado pela implementação do ensino do catecismo paroquial e pela volta do ensino religioso nas escolas públicas. A segunda vertente situa-se a nível prático e refere-se ao contexto pastoral mais amplo. Essa cruzada foi impulsionada por Dom Leme, inspirada em sua Carta Pastoral de 1916 e, posteriormente, com seu programa de restauração do catolicismo brasileiro e seu projeto educativo de formar a intelectualidade brasileira, segundo os princípios cristãos. Nesta perspectiva temos a proposta de recatolicização do Pe. Júlio Maria, com ênfase na articulação Igreja e Sociedade. A sua originalidade estava na abordagem frente à realidade histórica, privilegiando um diálogo entre a fé cristã, o homem e a sociedade. Seu programa destacava o processo de educação da fé, enquanto o projeto do episcopado priorizava o conhecimento da doutrina cristã. Através de suas pregações por todo o país e 12 Op. cit., pp. 395, 403. 12 de sua obra, seu pensamento chamava a atenção, portanto, para um novo rumo do catolicismo: "Fazer da religião não só um negócio de alma, mas também uma coisa ativa prática, misturada aos interesses sociais. [...] O nosso dever é não limitá-la à piedade, à devoção, como muitos entendem; mas pelejar, combater com todas as armas de nossa época" 13. Sua proposta foi pioneira no âmbito histórico e pastoral. Sua contribuição está na amplitude de temas abordados e no significado que atribuía ao conhecimento da doutrina católica para a família, a sociedade e a cultura. No entanto, faltaram-lhe os meios necessários para abrir campos de trabalho que pudessem expandir seu projeto e concretizálo na experiência cristã. As Conferências da Assunção, que pronunciou no Rio de Janeiro (18971900), foram-se tornando um curso de religião que instruía, progressivamente, o povo nas questões doutrinárias, nas implicações sociais da fé e na formação catequética. Sua concepção de Igreja guardava semelhança com o modelo daquela época, no entanto a diferença estava na forma como ele compreendia a relação Igreja e mundo. Com seu apostolado, mostrou que a religião católica supõe uma fé adulta e, por isso, tem a ver com a vida, a razão, a cultura 14. Sua singularidade estava, portanto, em perceber que a força da Igreja estava em saber transmitir a mensagem cristã aos homens de seu tempo. Num período de maiores limitações da Igreja, Júlio Maria foi um ponto fora da curva, no aspecto religioso e histórico-cultural. Outras frentes de ação se fizeram valer, como o papel das diversas congregações religiosas, particularmente, junto à infância e à juventude, com a rede de colégios. As escolas católicas representavam um elevado percentual no incipiente conjunto do ensino público brasileiro. Eram centros de formação e instrução das futuras gerações, com um caráter educativo-religioso. Como tinham autonomia, o ensino catequético fazia parte do currículo escolar. A transmissão dos conteúdos doutrinários era mais articulada, pois dispunha de recursos pedagógicos e profissionais mais qualificados. Neste percurso, o apelo dos bispos aos párocos fez com que o catecismo paroquial fosse, também, se organizando. O empenho de Dom João Batista Nery, bispo de Campinas, 13 14 MARIA J., Conferências da Assunção. Aparecida, Santuário, 1988, p. 132. J. MARIA, A Igreja e a República. Pref. De Anna Maria M. Rodrigues. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1981. 13 merece destaque, no corpo do episcopado. Seus relatórios demonstram um cuidado especial para com o andamento e a ampliação desta obra. Iniciou em sua diocese uma experiência de catecismo em família, com um tipo de associação de pais, cuja função era promover seu ensino entre as crianças e os jovens 15. A dimensão ocasional foi outra frente de ação. Trata-se das visitas pastorais, ocasião oportuna para que os bispos orientassem os padres para o apostolado educativocatequético. Era, também, um momento para um contato entre bispo, padre e paróquia. Nesse aspecto, as anotações de Dom Silvério Gomes Pimenta, bispo de Mariana, registram a situação do catecismo e revelam suas observações pessoais a esse respeito 16. Na dimensão migratória e popular merece destaque a obra da Congregação das Irmãs Catequistas Franciscanas. Essa congregação iniciou seus trabalhos no campo educativo-catequético, em Santa Catarina. Esse apostolado, por um lado, se encontrava na globalidade do ambiente familiar e social da colônia de imigrantes italianos. A atuação deste grupo distinguiu-se pela liderança feminina, pelo enfoque popular e pela conjugação da instrução doutrinária com a instrução escolar. O apostolado educativo-catequético foi o elemento catalisador deste grupo e, ainda, deu origem a uma nova congregação religiosa 17. Como eram muito populares, faziam-se entender com mais facilidade, mesmo sem maiores elaborações pedagógicas. Segundo E. M. Valandro: "A educação era o principal serviço oferecido à comunidade. Salvo raras exceções, mesmo que os alunos fossem poucos, estes eram divididos em duas classes: a de primeira série e a de segunda e terceira séries.. Era onde chegava o ensino nas escolas do interior. Rodeio, sede de distrito desde 1919, pôde contar com a quarta série, apenas em 1940" 18. Nesse caminho, a dimensão missionária fez-se também presente em terras indígenas e em regiões já católicas. As missões paroquiais tiveram grande difusão em todo 15 Em eus relatórios, ele informa o número de centros de catecismo, de catequistas e catequizandos. J. B. NERY, Circular e relatório das atividades catequéticas. Petrópolis, Vozes, 1919. 16 Em sua Visita Pastoral à Paróquia de Jesus de Indaiá, esse prelado recomendava aos párocos as prescrições da encíclica Acerbo nimis. S. G. PIMENTA, Bloco histórico das visitas pastorais (1891-1922). Mariana, Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, Arquivo 4, 3a. Gaveta. Documentação pertinente ao governo pastoral dos bispos marianenses, 1907. 17 O estudo de E. M. VALANDRO, Em resposta ao clamor do povo: a congregação das irmãs catequistas franciscanas. Joinville, Edição Autônoma, 1990, narra a história desta congregação religiosa. 18 VALANDRO E. M., Em resposta ao clamor do povo: a congregação das irmãs catequistas franciscanas. Joinville, Edição Autônoma, 1990, p. 119. 14 o Brasil. Tratava-se da atuação de padres missionários, em um período de 10 a 12 dias. Eles insistiam na dimensão espiritual da fé, na conversão pessoal, nos aspectos morais e no conhecimento da doutrina cristã. Nesta ocasião, os temas que predominavam eram os mandamentos da lei de Deus e da Igreja, os novíssimos e o sacramento da confissão. Essas missões tinham grande aceitação dos católicos, o que contribuía para a divulgação dos conteúdos doutrinários e um fortalecimento das escolas, través das páscoas coletivas dos estudantes. 5. De ontem para hoje O conhecimento histórico foi o caminho que percorremos para recompor as linhas fundamentais e as condições concretas da pedagogia catequética e do movimento educativo-religioso na Primeira República. Invocamos o passado como referência crítica, não só pela sua anterioridade, mas pela sua alteridade. Ajuda-nos a relativizar o presente, a reencontrar o sentido da duração e, portanto, a cuidar do futuro. O tempo de hoje comporta as sombras e as luzes do ontem e aquelas do amanhã. Como contar a gesta do presente, deixando na sombra seu ponto de partida? Os contornos e matizes do vivido, com seus acertos, limites, tendências e silêncios postularam projetos, estamparam possibilidades. Como a vaga que reflui e descobre novos solos, a história do movimento educativocatequético é um convite à reflexão, à compreensão do seu significado nas coordenadas do tempo e do espaço. História composta de muitas vozes, como um coro polifônico. Seu entendimento é, por sua vez, um processo permanente e de longa duração, como lembra Braudel19. Projeto amplo que envolve diversos atores, vários fatores e, ainda, múltiplas instâncias. Na história e na vida estão sua aventura e seus limites, para adentrar o mistério da Palavra e desenhar seu ministério, na consciência de descobertas transitivas. 19 F. BRAUDEL, Escritos sobre a história. São Paulo, Perspectiva, 1992, pp. 72. Prof. Mauro Passos Rua Barão de Guaxupé 525/205 30530-160 Belo Horizonte MG Te. (xx31)3751146 [email protected]