1 DE CHICO REI À MISSA CONGA: ANTROPOLOGIA DA PERFORMANCE EM REGISTRO BENJAMINIANO1 John C. Dawsey2 Introdução Este é um livro singular. Trata-se de uma das primeiras teses de doutorado produzidas no campo da “antropologia da performance” no Brasil, em uma vertente “dramatúrgica”. Como um ponto luminoso num universo descentrado e em expansão o texto de Rubens Alves da Silva vem contribuir para uma constelação de estudos que se forma a partir das pesquisas originárias de autores como Victor Turner, Richard Schechner e Erving Goffman. Um detalhe: nele se detecta o esboço de uma antropologia da performance em registro benjaminiano. Uma questão de fundo se apresenta: “a história do Congado foi marcada, fundamentalmente, pelo silêncio, pelo não-dito.” Daí a importância da antropologia da performance neste estudo. Em contraste com análises gramaticalizantes das manifestações culturais, estudos de performance demonstram um interesse marcante por fenômenos estruturalmente arredios: resíduos, rasuras, ruídos, interrupções e elementos liminares. Tais fenômenos frequentemente se afundam no silêncio e no esquecimento. Creio que a antropologia desenvolvida por Rubens – como um risco calculado, de abertura para os remoinhos da vida social – permite captar instantes quando, de estratos ou fundos não-resolvidos, emergem elementos insólitos, surpreendentes. Como mostra esta pesquisa, a antropologia da performance ilumina as manifestações congadeiras e os processos de atualização das tradições “afro-brasileiras” em Minas Gerais. Mas, tais manifestações e processos também nos levam a repensar, num registro benjaminiano, algumas das questões da antropologia da performance. A seguir, algumas delas. Duplo desvio: transformações de Chico Rei Os momentos mais eletrizantes de uma performance podem ser aqueles em que o corpo lampeja por detrás (ou por baixo, acima, et cetera) da máscara, ou persona. Corpo e 1 Prefácio para o livro A atualização de tradições: performances e narrativas afro-brasileiras, de Rubens Alves da Silva. São Paulo: LCTE Editora, 2011. 2 Professor Titular do Departamento de Antropologia e coordenador do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (Napedra) da Universidade de São Paulo. 2 máscara se friccionam – ou diríamos f(r)iccionam, com R entre parênteses? – mobilizando as dimensões de ficção do real, e despertando, num modo subjuntivo (“como se”), as múltiplas possibilidades do ser. Trata-se, de acordo com Richard Schechner (1985a), de uma experiência liminar, de quem se descobre como “não-eu” e “não não-eu” ao mesmo tempo. No texto de Rubens, “Chico Rei” surge como persona mítica capaz de despertar sonhos e projetos de diferentes atores de um corpo social. Ao mesmo tempo chama atenção as transformações da persona. Na fricção com um corpo social são revelados os seus aspectos não-resolvidos. A máscara também se transforma e adquire especificidade. Ela ganha um poder de revelação. Ressalta-se o duplo desvio. De um corpo social à persona (“não-eu”). E, ao mesmo tempo, de volta ao corpo (“não não-eu”). Assim se produz um duplo efeito de estranhamento, em relação ao cotidiano e ao extraordinário também. Daí a importância da composição teórica de Rubens, que reúne duas abordagens distintas. Ao passo que Goffman (1959) se interessa pelo teatro da vida cotidiana, Turner e Schechner procuram focar o teatro desse teatro, ou meta-teatro da vida social. No movimento de volta, de Schechner e Turner a Goffman, é produzido um estranhamento (como quem olha dos bastidores) em relação ao extraordinário. Creio que este estranhamento tem afinidades com as “iluminações profanas” discutidas por Walter Benjamin (1985a). “Descrição tensa”: as cores de São Benedito De acordo com Richard Schechner (1985b), a característica principal da performance é o “comportamento restaurado”. A performance é comparada à atividade de um cineasta que reune tiras ou faixas de filme para produzir o seu trabalho. Imagens do passado se articulam ao presente. A partir dessa ideia, Victor Turner (1982) viu a performance como realização ou expressão de uma experiência (palavra cuja etimologia evoca a noção de perigo). No trabalho de Rubens, quando imagens do passado, num instante de perigo, articulamse ao presente, elas vêm carregadas de tensões. As próprias imagens correm risco. Em um dos fragmentos etnográficos, Rubens capta a reação de um devoto vendo as cores em cortejo: “Azul e branco é de Nossa Senhora do Rosário! São Benedito, a estátua, é o marrom – eles botam rosa! – .... Agora o Divino é que é o vermelho. Ele virou o trem tudo.” Se, como Franz Boas dizia, “o olho que vê é o órgão da tradição”, a imagem de São Benedito revela-se como uma tradição carregada de tensões. E, assim como uma imagem pode ser vista em diferentes cores, uma mesma cor pode reunir diferentes imagens numa montagem tensa. A cor vermelha que designa o pálio da corte imperial do Divino Espírito Santo e que sinaliza o sangue do Cristo que morreu na cruz, também evoca o diabo, o exu e o mouro inimigo. Imagens suprimidas ou demonizadas quando viram resíduos de histórias às vezes ressurgem invertidas (ou, melhor, invertendo inversões), nas cores do redentor. Para captar esses instantes, talvez seja realmente preciso realizar a tarefa benjaminiana de “escovar a história a contrapelo” (Benjamin 3 1985b: 225). Num registro benjaminiano, “descrição densa” (cf. Geertz 1978a) também vira uma “descrição tensa” – carregada de tensões – capaz de produzir nos leitores um fechar e abrir dos olhos, uma espécie de assombro. Ao falar do processo da experiência, Turner (1982a: 17) evoca uma expressão de Dilthey dizendo que imagens do passado se articulam ao presente em “uma relação musical”. O que dizer, porém, quando as imagens irrompem dos fundos da memória involuntária?3 Ou quando ressoam ruídos do inconsciente sonoro, subvertendo processos de organização do som? Ou quando lampejam cores das retinas do inconsciente ótico, em meio aos riscos de diluição ou exclusão suscitados por aquarelas harmonizantes? Montagem e porões dos símbolos: marujos e navios O estudo de Rubens produz deslocamentos surpreendentes. Nas festas de agosto de Montes Claros, onde desfiles de marujos, caboclinhos e catopês configuram-se numa espécie de “fábula das três raças” que a sociedade conta sobre si para ela mesma, tendo marujos em papeis de brancos portugueses, caboclinhos em de índios, e catopês em de negros, a etnografia de Rubens volta-se principalmente para a discussão do desfile dos marujos. Isto, numa tese que procura focar a experiência do negro. Chama atenção o deslocamento em relação aos símbolos. Em vez dos catopês, os marujos. Um segundo deslocamento é ainda mais revelador. Em vez dos símbolos, os seus porões ou lugares submersos. No deslocamento do lugar olhado das coisas para os marujos, as atenções voltam-se para os corpos que lampejam por detrás ou por baixo de suas máscaras e fantasias. Dessa forma é possível fazer emergir dos fundos da imagem de uma nau portuguesa, a própria imagem de um navio negreiro. Num artigo sobre Hidalgo e a revolução mexicana, Victor Turner (1974: 105) ressalta que Nossa Senhora de Guadalupe, um dos símbolos poderosos de uma nacionalidade emergente, é a sucessora de Tonantzin, a mãe dos deuses na cosmologia asteca, cujo culto, anteriormente celebrado no mesmo lugar agora dedicado ao culto de Nossa Senhora de Guadalupe, havia sido eliminado pelos espanhóis. O desfile dos marujos em Montes Claros chama atenção menos pelos símbolos do que pelas imagens e montagens ali produzidas, ao estilo de Eisenstein (1990: 41), carregadas de tensões. Nesses palcos revelam-se os elementos submersos das paisagens sociais. Símbolos decompõem-se em fragmentos num campo energizado, trazendo à luz os aspectos não resolvidos da vida social, tais como se encontram numa possível “história noturna” (Ginzburg 1991) de Nossa Senhora de Guadalupe. Limites da hermenêutica: o gesto do menino 3 Benjamin (1995:106) desenvolve algumas de suas principais análises a partir da distinção que Sigmund Freud fez entre memória inconsciente e o ato consciente de recordar. O segundo, para Freud (1961: 4950), era um modo de destruir ou erradicar o que o primeiro se propusera a preservar. 4 Há uma “afinidade eletiva” entre as “leituras” de Clifford Geertz e Walter Benjamin da cultura. Trata-se para o primeiro de ler “um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado” (Geertz 1978a: 20). A não ser por um detalhe, talvez seja essa também a tarefa que Benjamin se propõe. O detalhe, porém, abre uma verdadeira fenda. Em Benjamin o que se busca não são os “exemplos transitórios de comportamento modelado”. Não se busca os gestos e detalhes de comportamento para revelar o modelo. Seu olhar dirige-se justamente ao que escapa do modelo. “Arrumar seria aniquilar” (Benjamin 1993: 39). Não se procura no manuscrito nem mesmo um modelo e uma coerência fugidia. Procura-se justamente aquilo que um modelo tende a ocultar: sua “estranheza”, seu “desbotamento”, e suas “elipses”, “incoerências”, “emendas suspeitas” e “comentários tendenciosos”. Trata-se, para Benjamin, de revelar aquilo que interrompe a leitura do manuscrito. Na etnografia de Rubens, encontramos o antropólogo atento não apenas às diferentes leituras de um texto cultural, mas, particularmente, aos seus momentos de interrupção. Em um dos registros etnográficos, um repórter pergunta sobre o significado do ato da “Morte do Patrão”, considerado por muitas pessoas como o momento culminante da marujada. Sem atender às expectativas do repórter – que espera ouvir um relato sobre as grandes navegações das naus portuguesas – o entrevistado (um menino ator da marujada), incorporando a personagem do “piloto”, faz o gesto do mouro, segurando o imaginário patrão (cristão) pelo pescoço, derrubando-o e tirando-lhe a vida com uma espada igualmente imaginária. Quando a reportagem foi ao ar, o menino e seu gesto não apareceram. Em seu lugar, telespectadores ouviram a voz de uma professora falando sobre as grandes navegações. Rubens escreve: “E por não saber contar a história oficial, o menino ficou de fora da reportagem na televisão. Na montagem levada ao ar, é a professora de letras quem aparece lendo trechos de Camões”. Como interpretar uma performance congadeira? O gesto do menino nos coloca possivelmente nos limites da hermenêutica. Não se trata simplesmente da interpretação do mundo, mas, também, da inervação dos corpos e das formas capazes de interromper o seu curso. Aqui não encontramos apenas “uma história sobre eles que eles contam a si mesmos” (Geertz 1978b: 316). Antes de tudo, somos desconcertados por um gesto. Experiência liminoide e memória: Missa Conga De acordo com Victor Turner (1982b), sociedades industrializadas produzem o que poderíamos chamar de um descentramento e fragmentação da atividade de recriação de universos simbólicos. Esferas do trabalho ganham autonomia. Como instância complementar ao trabalho, surge a esfera do lazer – que não deixa de se constituir como um setor do mercado. Processos liminares de produção simbólica perdem poder na medida em que, simultaneamente, geram e cedem espaço a múltiplos gêneros de entretenimento. As formas de expressão simbólica se dispersam, num movimento de diáspora, acompanhando a fragmentação das relações sociais. O espelho mágico dos rituais se parte. Em lugar de um espelhão mágico, poderíamos dizer, surge uma 5 multiplicidade de fragmentos e estilhaços de espelhos, com efeitos caleidoscópicos, produzindo uma imensa variedade de cambiantes, irrequietas e luminosas imagens4. A etnografia de Rubens a respeito da missa conga sugere uma questão. Tendo em vista o modo como um grupo de Congado, associado ao folclore e turismo mineiro, entra em relação com uma missa do Movimento da Renovação Carismática da Igreja Católica, haveria momentos em que um evento liminoide (tal como o aparecimento do grupo de Congado), de forma insólita e inesperada, pode fazer irromper a memória involuntária de uma experiência liminar? Observa-se, em dois planos, o efeito de interrupção produzido pelo grupo de Congado. Num plano de superfície, o modelo de Missa Conga sugere uma estética de drama social: uma “ruptura” e “crise” provocadas pela abertura da porta da igreja para o grupo de Congado, seguidas por “ações reparadoras” que levam ao silenciamento dos tambores e congadeiros, e sua incorporação numa missa liderada por um padre católico. Num segundo plano, possivelmente mais fundo e menos óbvio, encontramos outra estética. No interior do drama encenado pela Missa Conga somos surpreendidos por uma estética que evoca o movimento jo-ha-kyu do teatro nô japonês (cf. Schechner 1985a). No primeiro momento, a “retenção de forças” (jo): congadeiros defrontam-se com o padre e devotos da Renovação Carismática, na entrada da igreja. No segundo, a “ruptura” (ha): congadeiros entram na igreja, num ato de liberação de energias. E, no terceiro, “velocidade” (kyu): congadeiros “entram em cantoria, tocando forte os seus instrumentos e dançando com altivez, desfilando pelo interior da igreja e seguindo pelo corredor central”. Haveria na batida dos tambores algo que irrompe de um inconsciente sonoro, ou da memória involuntária de devotos católicos numa missa de Renovação Carismática liderada por um padre afro-descendente? Considerações finais De forma marcante o livro de Rubens Alves da Silva contribui para a constituição de uma campo de estudos de antropologia e performance no Brasil. Nele é possível ver como estudos de performance associados a pesquisadores como Victor Turner, Richard Schechner e Erving Goffman podem iluminar aspectos importantes das manifestações congadeiras e dos processos de atualização das tradições afro-brasileiras em Minas Gerais. Mas, este trabalho também mostra como as performances congadeiras podem suscitar algumas questões nas fronteiras ou margens interiores de um campo de discussões. Se, por um lado, somos levados por uma antropologia da performance a repensar aspectos das manifestações congadeiras, por outro, também somos por elas instigados a repensar, num registro benjaminiano, algumas formulações da antropologia da performance. A riqueza da formação intelectual de Rubens Alves da Silva (orientando de Pierre Sanchis durante o período de seu mestrado), que aflora em sua experiência de campo e suas discussões teóricas no doutorado, merece atenção. O livro leva as marcas de muitos 4 A metáfora do “espelho mágico” aparece em vários escritos de Victor Turner (cf. 1987: 22). A metáfora do estilhaçamento de um “espelhão mágico” e as ideias de descentramento da atividade de recriação de universos simbólicos e seus efeitos caleidoscópicos são inferências ou reinterpretações criativas que estou fazendo de suas discussões. 6 diálogos realizados por Rubens ao longo de seu percurso. Entre eles, os que vêm se realizando entre colegas do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (Napedra), um grupo de pesquisadores que se formou na Universidade de São Paulo em 2001. Rubens e sua companheira, Vanilza Rodrigues, participaram de modo expressivo da formação desse grupo. E marcaram a experiência e os trabalhos de colegas e amigos. Tenho o privilégio de me contar entre eles. BIBLIOGRAFIA BENJAMIN, Walter. (1985a) “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência européia”. In: W. Benjamin. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, pp. 21-35. BENJAMIN, Walter. (1985b) “Sobre o conceito da história”. In: W. Benjamin. 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