"Combater já o aquecimento global- mas sem manipular os dados" NANCY BIRDSALL E ANDREW STEER Diretoru, lNpartamento de PeI1quisa de PolítiCCUJ Subdiretor, Departamento de Meio Ambiente e Diretor, Relatório sobre o De.envolvimento Mundial 1992 Banco Mundial novo livro de William Cline analisa a economia do aquecimento global minuciosamente e com absoluta transparência - constitui uma excelente demonstração da aplicação do instrumental do economista a um problema premente de política. Mas sua conclusão - de que há justificativa para um programa "agressivon de diminuição das emissões de gases-estufa - baseia-se em muito na redução para cerca de 2% da taxa de atualização usada na análise de custos e benefícios. Concordamos que é preciso adotar de imediato políticas enérgicas contra o aquecimento por gases-estufa, mas em nossas recomendações não tomamos por base uma taxa de atualização tão baixa. Além disso, estamos convictos de que é errado pressupor que os que defendem taxas relativamente altas estariam de alguma forma menos interessados no bem-estar das gerações futuras do que os que defendem taxas relativamente baixas. Pelo contrário, achamos que só será possível atender às necessidades das gerações futuras se os recursos destinados a investimento forem canalizados para projetos e programas que proporcionem as mais altas taxas de retorno ambiental, social e econômico. Haverá muito menos probabilidades de isso acontecer se a taxa de atualização for fixada bem abaixo do custo de oportunidade do capital. Preocupa·nos que diminua a riqueza que passaremos às gerações futuras - sob a forma de ar e água puros, solos e florestas produtivos, sem contar o estoque de conhecimentos tecnológicos, trabalhadores 6 Finanças & Desenvolvimento / Março 1993 qualificados e infra -estrutura física -, caso os planejadores continuem rotineiramente a aceitar investimentos que não oferecem o melhor retorno. Preocupa-nos também que uma taxa tão baixa - ao mudar a classificação de projetos - venha a induzir um modelo de desenvolvimento capital-intensivo e a promover investimentos de custo inicial elevado, como as represas, que poderiam ser prejudiciais ao meio anlbiente. A calamitosa e freqüente inadequação do investimento ambiental não se deve a taxas de atualização demasiado altas e sim ao fato de não se ter conseguido incluir os custos dos danos ao meio ambiente nos cálculos de custo-benefício. Por que, então, Cline e outros alegam que é preciso baixar a taxa de atualização no caso de questões como o aquecimento global? Neste artigo, trataremos primeiro das teses gerais mais em evidência: as teses de que o meio ambiente é um caso especial, e de que projetos de longa gestação demandam taxas de atualização mais baixas. Passaremos então a dois argumentos técnicos específicos de Cline - na verdade, duas premissas que servem de base a seu cálculo da taxa de atualização: a de que os recursos necessários para investir na prevenção do aquecimento global provirão do consumo, e não da poupança existente; e a de que a taxa social de preferência no tempo (TSPr) é muito baixa devido à natureza de cada um de seus elementos. A tese do "caso especial" A taxa de atualização para investimentos em proteção ambiental deve ser mais baixa do que, digamos, par~ saúde, educação ou produção alimentar? As vezes, as justificativas para esse tratamento especial são a incerteza, os impactos potencialmente grandes e irreversíveis e os va- lores "intrínsecos n associados ao meio ambiente. Acreditamos que tais fatores merecem tratamento especial, mas que são muito importantes para serem tratados indiretamente, através da manipulação da taxa de atualização. Como assinalaram economistas como Partha Dasgupta, Jo· seph Stiglitz e J. V. Krutilla, baixar a taxa de atualização é um meio imperfeito e freqüentemente equivocado de captar incertezas e lidar com impactos grandes e irreversíveis. No caso da incerteza, taxas de atualização mais baixas apenas aumentam o peso que atribuímos aos riscos no futuro distante, em comparação com os riscos no futuro inlÍnente. E é claro que a incerteza se aplica nos dois casos; avanços tecnológicos com que não contávamos podem reduzir em muito os benefícios dos investimentos feitos hoje para diminuir o aquecimento global de amanhã. Os problemas da incerteza e da irreversibilidade devem ser atacados de frente, através de técnicas de avaliação adequadas, no que concorda Cline (como mostra seu gráfico, ele incorporou a incerteza, acrescentando um cenário de "prejuízos altos"). Os planejadores devem considerar explicitamente os valores "intrÍnsecos n ou "espirituaisn associados ao meio ambiente. Cline seria o primeiro a admitir que sua análise não capta esses valores. Em seus cálculos os custos do aquecimento global são valo~es econômicos (perda de produção agrícola, maior necessidade de ar condicio· nado, queda da receita dos teleféricos nas estações de esqui etc.). Esses cálculos são valiosos, mas evidentemente parciais. Seria com certeza ingênuo da nossa parte acreditar que ao imp~tarnlOs valores mais altos a esses custos econômicos futuros (baixando a taxa de atualização), estaríamos de alguma maneira computando os custos não-econômicos futuros ignorados nos cálculos iniciais. Os economistas precisam reconhecer seus limites! Cline tem razão quando observa, que para impedir o aquecimento global, muitas pessoas parecem hoje dispostas a fazer sacrifícios que não se dispõem a fazer pela I}utrição infantil ou pela proteção do solo na Africa - aparentando demonstrar maior preocupação com as gerações futuras do que evidencia a atualização convencional. Parte dessa "disposição de pagar" desapareceria se os cidadãos tivessem realmente que pagar (o que ainda não ocorre); e as prioridades poderiam ser outras se todos os fatos disponíveis fossem conhecidos. Mas não há como negar uma grande preocupação com o aquecimento global. O problemático é aflrmar que esta advém da preocupação com a perda econômica de alguns pontos percentuais de PIB daqui a dois séculos (época em que, pelos cálculos de Cline, todos serão sete vezes mais ricos que hoje). Se o caso fosse esse, os cidadãos deveriam estar igualmente preocupados com as políticas que promovem o desenvolvimento econômico no longo prazo, que fariam desaparecer quaisquer impactos econômicos potenciais do aquecimento global. A preocupação atual do público tem raízes visivelmente mais profundas. Talvez decorra de uma relutância básica em passar às gerações futuras um mundo natural bastante alterado ou "poluído", uma relutância que transcende os impactos econômicos dessa poluição. Os planejadores podem contar com o aUXllio dos analistas econômicos na avaliação da importância desses valores; exercícios (questionários) de avaliação de contingências bem elaborados e o reconhecimento de que estas representam valores para as pessoas que estão vivas hoje (e portanto não precisam ser atualizadas) podem ser úteis para se discernir valores econômicos de não-econômicos. Uma abordagem complementar seria incorporar os valores não-econômicos, após o cálculo e a divulgação dos custos e benefícios estritamente econômicos, mediante um processo decisório participativo. Mas em nenhum desses casos é necessário ou conveniente baixar as taxas de atualização. A tese do "horizonte distante" Cline abraça outra tese comum para justrncar taxas baixas de atualização - a de que não faz sentido uma taxa de atualização alta, quando o retorno do investimento é de longuíssimo prazo, como ocorre com projetos sobre aquecimento global e outras questões ambientais. Ao usar um índice zero de preferência pura no tempo e pressupor taxas baixas de crescimento mundial a longo prazo em seus cálculos da TSPI', o que Cline na verdade aflrma é que a taxa de atualização deveria ser ajustada de modo a levar em conta a longa gestação dos projetos sobre aquecimento global. Na realidade, porém, é impossível traçar uma linha divisória entre projetos de retorno rápido e de retorno lento. Qualquer projeto bom beneficia as gerações futuras - diretamente ou através do reinvestimento. Eduque uma menina africana hoje, e o rendimento terá início imediato, mas os benefícios totais não serão sentidos nem daqui a 100 anos. Do mesmo modo, foi o investimento em tecnologia no século XVIII que permitiu a prosperidade atual da Europa, e foi o investimento dos EUA em felTovias e universidades rurais há 100 anos que propiciou a produtividade agrícola norte-americana atual. Propomos, então, que se aplique a projetos de . longa gestação a mesma taxa de atualização que se aplica a projetos de gestação mais curta. Cline ridiculariza nossa opinião, como se fosse a proposição de um "FUndo para futuras Vítimas do Efeito Estufa", querendo dizer que esta partiria de uma decisão do tipo tudo ou nada entre prevenção do aquecimento global e outros tipos de investimento. No mundo real, o leque de opções é maior - e cada opção faz jus a tratamento idêntico e cauteloso. A tese de que "o consumo importa" CHne começa observando que a taxa de atualização é uma média ponderada da "parcela deslocada do capital", que incorpora o custo de oportunidade do capital e a "parcela deslocada do consumo", e que os pesos dependem de os recursos provirem do consumo ou do investimento. (A TSPI' proposta por Cline é unl insumo para essas duas parcelas.) Depois, argumenta que a parcela do capital merece pouco peso, porque boa parte (80%) dos recursos que a sociedade alocaria à redução do aquecimento global proviria do COnsunlO, e não do investimento. O que propõe, então, é uma taxa de atualização mais baixa para o aquecimento global do que para, digamos, escolas ou rodovias. Nada temos contra a fórmulaou seja, contra o conceito de incorporar a TSPI' à parcela do consumo e à parcela do capital, que hoje é a "principal corrente" da teoria econômica, conforme observa Cline. Mas discordamos dos pesos atribuídos às duas parcelas, porque para nós é a parcela deslocada do capital que importa, quando se trata de alocar recursos escassos de investimento - e alocar recursos escassos sempre é a questão central. (A taxa de atualização calculada por essa fórmula, atribuindo-se peso integral à parcela deslocada do capital, equivale, em termos conceptuais, ao custo de oportunidade do capital.) Outro modo de ver a mesma questão: é função do economista avaliar os benefícios líquidos de um investimento, dizer aos planejadores onde os recursos para investimento produzirão o maior retorno - e não supor como a sociedade irá fmanciar opções de investimento. É por isso que, no Banco, o ponto de partida para a seleção das taxas de atualização utilizadas na análise de projetos é o custo de oportunidade do capital nos países tomadores de empréstimo, um critério que não varia em função do investimento fmanciado. Como o dólar usado para flnanciar o investimento "A" não pode flnanciar também o investimento "B", a taxa de retorno de um investinlento potencial tem que ser comparada com os usos alternativos de alto rendimento Oevando em conta fatores ambientais e sociais, além dos econômicos)para não se fazer mau uso de recursos limitados de investimento. Conseqüentemente, os investimentos em· rodovias, saneamento, educação, meio anlbiente, agricultura e energia que são financiados pelo Banco passam necessariamente por testes de custo-benefício em que se aplicam taxas de atualização da ordem de 8-10%. Reconhecemos que o custo Finanças & Desenvolvimento / Março 1993 7 de oportunidade do capital (e portanto a taxa de atualização para decisões de investimento) nos países industrializados talvez seja menor do que as taxas habituais nos países em desenvolvimento. Assim, na medida em que o consumo ou o investimento em benefício dos países ricos toma o lugar de investimentos na prevenção do aquecimento global, dever-se-ia usar uma taxa mais baixa (por exemplo, a "taxa de atualização experimental" de 5% do governo britânico). Para concluir: Cline reconhece que, quando se avalia como alocar o investimento entre os usos concorrentes, o que importa é o custo de oportunidade do capital, mas vai mais longe e afirma que, ao se calcular o fluxo de custos e benefícios de projetos sobre o efeito estufa, seria preciso computar o preço-sombra das emissões de carbono utilizando sua taxa de atualização de 201Ó. Do ponto de vista da lógica, é incoerente usar uma taxa de atualização para o cálculo do preço-sombra e outra para o valor atual do projeto. Por que atualizar o valor monetário da externalidade usada no cálculo do preço-sombra a uma taxa diferente da utilizada nos outros recursos gerados ou consumidos pelo projeto? A tese da "preferência baixa no tempo" o segundo fator subjacente à taxa de atualização de 20/0 de Cline é sua TSPl' de 1,5% - a soma de uma taxa "pura" de preferência no tempo (que ele fixa em zero) com uma atualização de 1,5%, baseada na premissa de que as rendas aumentarão com o tempo e de que nossos descendentes estarão em melhores condições do que nós. Se a única coisa que realmente importa é o custo de oportunidade de não investir em projetos de retorno mais alto, é irrelevante calcular a TSPl'. Mas, a bem do debate, passemos ao exame dessa cifra. Primeiro, a taxa "pura". O nível zero de Cline é atraente, pois reconhece a necessidade de se ter muito cuidado ao tomar decisões que irão afetar as gerações futuras, que não podem participar dessas decisões. Na verdade, vale-se diretamente da noção de "curadoria"; não queremos absolutamente "atualizar" os interesses da posteridade - nem mesmo pelo que "atualizaríamos" nosso próprio consumo futuro (por exemplo, prevendo alguma J>9Ssibilidade de nossa própria morte podar benefícios futuros de consumo). Mas a taxa zero implica que eu me interesso tanto pelos meus e pelos seus descendentes no ano 2300 - a contar de hoje, cerca de 10 gerações (segundo Cline, o horizonte de tempo a ser considerado) - quanto pelos mais de 1 bilhão de pobres que vivem hoje nos países em desenvolvimento. Em termos de proximidade "emocional", estamos seguros de que não classificaríamos como mais importante a 8 Finanças & Desenvolvimento / Março 1993 melhoria de bem-estar das crianças somalis de hoje do que o maior bem-estar de nossos possíveis descendentes no ano 2300? Mas há ainda outra forma de encarar a questão. Os consumidores dos países em desenvolvimento estão dispostos a tomar empréstimos a altas taxas reais de juros, superiores a 10%, o que reflete o fato de haver para eles um tradE-off entre o consumo corrente e o futuro. Cline afIrma que a taxa de juros sobre a poupança do consumidor, e não sobre os empréstimos, reflete melhor as preferências no tempo, porque esta primeira não é afetada por impostos e outras distorções, que elevam o custo do capital. Mas, ainda assim, muitos pobres de países em desenvolvimento atribuem mais valor ao consumo corrente - talvez por serem pobres e a utilidade marginal do consumo corrente adicional ser muito alta. Devemos ignorar essa evidência? Segundo, que dizer da atualização do crescimento da renda futura proposta por Cline? Ele pressupõe um crescimento per capita de 1% da renda futura a longo prazo. Mas nas últimas quatro décadas, tal crescimento per capita foi de 20/0 ao ano nos mundos industrializado e em desenvolvimento. Além disso, na Alemanha, no Japão e na República da Coréia, o crescimento per capita foi bem maior, ultrapassando em média os 5% ao ano, nestes dois últimos, por mais de duas décadas. É complicado prever taxas de crescimento a longo prazo; o Banco Mundial foi muito otimista em suas projeções de crescimento da renda africana. Contudo, quando opta por um dos dois proj etos que benefIciariam os africanos (por exemplo, educação X redução do aquecimento global), Cline realmente quer que admitamos que a renda só crescerá o suflciente para proporcionar a um malês médio uma renda diária de US$2 no ano 2050? Qual seria, então, a TSPl' correta? Não sabemos, mas achamos que poderia ser superior a 1,5%. Se fosse, a taxa de atualização adequada ultrapassaria os 20/0. Na verdade, se tomássemos como premissa um crescimento de renda per capita de 20/0, uma taxa pura de preferência no tempo de 1% e todos os recursos de um projeto que poderiam estar sendo usados em outros investimentos, então, pelo método de Cline, a taxa de atualização seria de 8%. (Como o leitor pode ver, não temos nada contra a fórmula em si da TSPl' - mas contra a ponderação e as premissas numéricas que Cline adota ao aplicar a fórmula ao aquecimento global.) Estratégia contra o aquecimento global Concordamos com Cline sobre a necessidade de tomar medidas imediatas e enérgicas acerca dos possíveis custos do aquecimento global. De fato, o programa "agres- sivo" de Cline para a próxima década não difere muito do formulado no Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 1992. A estratégia tripla a curto prazo recomenda: • adotar políticas racionais e de impacto benéfIco no tocante a aquecimento global: eliminar os subsídios à energia, criar impostos moderados sobre o carbono (sobretudo nos países que tributam pouco a energia), e investir em florestamento e agrossilvicultura; • empreender programas agressivos de pesquisa para reduzir a incerteza que envolve o problema e chegar a soluções. Nos países ricos, apenas 4% dos recursos públicos para pesquisa energética destinam-se à energia renovável. • apoiar os países em desenvolvimento na busca de soluções. Os países ricos deveriam contribuir para o rápido crescimento econômico dos mais pobres e para a contenção das emissões de gases-estufa (por exemplo, através do Serviço Global para o Meio Ambiente). Parece que as divergências decorrem sobretudo das propostas específicas de Cline quanto ao que fazer daqui a uma década. Cline recomenda, por exemplo, a adoção de um imposto de US$100-200 por tonelada de carbono "algum tempo após a virada do século", mas o condiciona ao afIrmar que a recomendação fIca "sujeita à comprovação cientmca posterior". Isso o coloca em posição semelhante à do Banco, que, como deixa claro o RDM 1992, também acredita que a longo prazo, à medida que as evidências forem se acumulando, far-se'á necessária uma resposta mais enérgica (por exemplo, licenças internacionais negociáveis para emissões de carbono). Consideramos, por isso, que Cline exagera o contraste entre sua posição e a posição do Banco; sua tese de uma política "agressiva", se comparada à que o Banco hoje defende, é uma "tempestade em copo d'água". Em suma, divergimos de Cline quanto a um princípio, e não quanto a medidas especmcas: embora aguardemos a comprovação cientWca, acreditamos que usar taxas de atualização baixas para justifIcar a nãorealização de investimentos de baixo retorno só prejudicará as gerações futuras. Na verdade, todo investimento será bem-vindo, se quisermos fazer progressos genuínos na luta contra os imensos desafIos do desenvolvimento sustentável. Como observou o ex-economista principal do Banco no artigo a que Cline se refere: uma vez calculados adequadamente custos e benefícios, não pode ser do interesse da posteridade que efetuemos investimentos que não produzam o melhor retorno. Não há por que manipular os dados. •