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IMAGEM E HISTÓRIA
NO CEMITÉRIO
SAMUEL CAMPOS VAZ**
Resumo: este trabalho apresenta algumas reflexões referentes às histórias reproduzidas dentro do cemitério da Cidade de Goiás. Alguns aspectos formais são percebíveis nas diversificações das imagens que foram produzidas ao longo do tempo, a partir daí, analiso alguns
conceitos que ajudam na relevância das imagens e de seus significados que ficam entre a
história e o imaginário. A história da “menina da xícara” é apresentada para mostrar como
imagem e imaginário transforma a história local trazendo novos sentidos.
Palavras-chave: Imagem. Representações. Cemitérios. Imaginário
REPRESENTAÇÕES DA VIDA
O
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Cemitério São Miguel da cidade de Goiás surge em 1859 a partir de uma lei datada de
20 de junho de 1846, que proibia o sepultamento nas Igrejas. O Cemitério São Miguel estava diretamente ligado ao Hospital de Caridade São Pedro de Alcântara, que o
administrava. Em um dos artigos de lei relacionado à proibição de sepultamentos em
igrejas, lemos que: “Logo que o cemitério receber a benção, fica proibido os enterros nas
igrejas e no recanto delas, sob a pena de multa de dez mil réis aos infratores” (FREITAS, 1999, p. 146).
Com a implantação do Cemitério São Miguel, vários tipos de túmulos
são construídos representando monumentalidade, beleza artística ou simplicidade.
Na produção das imagens foram empregadas, especialmente, o mármore e a pedra
sabão.
* Recebido em: 10.06.2012.
Aprovado em: 22.06.2012.
** Historiador, fotógrafo, com especialização em Gestão do Patrimônio Cultural – UEG e mestrando
em Ciências da Religião na PUC Goiás, membro da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais.
Goiânia, v. 10, n.2, p. 319-325, jul./dez. 2012.
DA CIDADE
DE GOIÁS*
ARTIGO
SÃO MIGUEL
Goiânia, v. 10, n.2, p. 319-325, jul./dez. 2012.
Figura 1: Estátua de pedra sabão
Figura 2: Estátua de mármore
Túmulos cemiteriais são geralmente construídos por famílias ricas ou de classe média (BELLOMO, 2000). No entanto, uma análise atenta sobre as sepulturas do
século XIX mostra que outro aspecto pode ser observado na Cidade de Goiás. Escravos
eram enterrados na sepultura do seu senhor. Essa prática dava ao morto, aquilo que
ele não teve em vida, uma compensação, que amenizava o sentimento de dívida. Essa
atitude não diminuía o status do senhor, ao contrário, o escravo passa a acompanhar o
senhor, pois dessa forma seu status e poder estavam representados ali.
A terceira sessão do Cemitério São Miguel era ocupada por sepulturas perpétuas: “Na sepultura nº 35 da 3ª sessão do cemitério desta capital foi hoje sepultado Justiniano, escravo do Sr. Pedro Loudovico, brasileiro, falecido ontem 11 horas de hepatite
chrônica” (FREITAS, 1999, p. 149).
No Cemitério São Miguel existe muito mais imagens para representar a vida
do que para a morte. Ao visitá-lo podem ser feitas perguntas sobre a ideia representada
imageticamente no cemitério da cidade de Goiás. O que o morto foi? O que ele tinha?
Qual a sua posição social? Fica claro que, esses túmulos repletos de imagens e mensagens representam a vida e não a morte.
Figura 3: Lápide com inscrições que cotam a posição social do morto “...idolatrada esposa do Coronel...”.
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ARTE E REPRESENTAÇÃO
A cultura material determina os espaços, categorizando e classificando o que
é menos e mais relevante. Bezerra de Menezes (2005) destaca que a cultura material
faz parte das relações sócias e tem que ser vista dentro de cada contexto. Compreender
imagens, estátuas, escritos, fotografias, entre outros, será possível se houver uma análise
consciente do contexto histórico. “As imagens não são puros conteúdos em levitação,
ou meras abstrações, mas antes de tudo, constituem coisas materiais, objetos físicos,
artefatos” (BEZERRA DE MENEZES, 2005, p.50-1).
A cultura material do cemitério deixa visíveis as mudanças da cidade em seus
movimentos. A exemplo disso, arqueóloga Lima (1994) fez uma análise em cemitérios
cariocas do séc. XIX onde buscou constatar “mudanças na representação da morte na
transição do império escravista para a república progressivamente capitalista” (LIMA,
1994, p. 95). A metodologia empregada nesse estudo classifica os jazigos enquanto
cultura material. Reúne uma série de atributos que ela define como sendo signos antropomorfos, zoomorfos, fitomorfos, ligados ao fogo, ligados à nobreza e distinção. Essa
catalogação observa ainda tamanho, significados e outras expressões. Um trabalho minucioso, voltado a compreender as diferenças entre os túmulos.
As imagens de cemitérios, estátuas, túmulos, epitáfios são objetos possíveis de
serem analisados como cultura material nas artes, na história, especialmente na arqueologia. No campo artístico, as análises giram em torno de estilos, influências, classificações
da produção e descrições formais. Trabalhar o conceito de arte dentro da arte funerária
ou arte cemiterial é pensá-la dentro do seu contexto estético de representação da morte.
Nesse mesmo processo encontram-se algumas questões. Willians (1992, p.
121) utiliza do exemplo da arte rupestre para levantar questões que ele mesmo tem
dificuldades de responder:
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As pinturas rupestres, por exemplo, são, de modo geral e compreensivelmente, encaradas
hoje como arte e, na verdade, como arte maior, em muitos de seus exemplos. Contudo, elas
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Abordar a visualidade expressa nos túmulos dentro do cemitério pode fornecer
rico conteúdo do imaginário sobre a morte. Os monumentos e as estátuas ali colocados
não são simplesmente algo decorativo, alegórico. Estão associados às imagens mentais
que se têm da morte, corporificam ideias e qualidades significativas para a coletividade.
Para refletir sobre o imaginário social devem-se considerar implicações temporais, visuais e históricas. Tais implicações provocam mudanças contínuas nas narrativas; processos de apropriação, hibridação, influências que dão direção para o entendimento e para a reprodução no meio social. Assim, a memória, como visão discreta da
cultura, é o resultado dessa dinâmica.
De modo que é necessária a investigação em documentos de registros, diários
e cartas, entre outros, para que as representações existentes em cemitérios sejam elucidadas pela história em seus múltiplos aspectos.
A cultura material pode ativar a memória ou uma lembrança. “Imagem – lembrança. Consciência de um momento único” (BOSI, 1994, p. 49). Muitas vezes as imagens despertam as lembranças. Mas todas as vezes que lembramos o mesmo aspecto,
lembramo-nos de maneira diferente. Pois os momentos e as circunstâncias são outros,
levando em consideração que a lembrança é individual.
se localizam habitualmente em lugares escuros e inacessíveis, e realmente não sabemos com
que frequência eram geralmente vistas, se é que o eram, no período e na cultura em que
foram executadas.
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Por essa linha de raciocínio pode-se questionar, se as imagens e monumentos
cemiteriais corresponderiam à arte. Ou seja, para quem ela é arte? Para quem faz? Para
quem vê? E ainda, seria arte ou artesanato? Estas questões, no entanto, podem ser definidas em visões particulares, pois seus significados e referências culturais dependem
de uma gama de fatores que vai do tipo de produção ao contexto e à temporalidade.
Segundo Borges (2002) há uma dificuldade em trabalhar a arte funerária
brasileira. O que ela representa socialmente para o europeu é diferente do que representa para o brasileiro, que não vê estes objetos enquanto arte, mas pertencentes a um
modismo ou a um status quo. A representação dessa arte funerária no Brasil está voltada
para a representação do morto:
Os cemitérios convencionais adotaram maneiras próprias para que os valores burgueses
ficassem registrados no seu partido urbanístico e arquitetônico. Por meio de normas peculiares, as construções eram dotadas de funcionalidade, de valor artístico e simbólico, pretendendo sempre cultuar a memória do morto como ser social – pertencente a uma família, a
uma determinada classe – como indivíduo – portador da necessidade de ser perenizado, sair
do anonimato, adquirir propriedade perpétua (BORGES, 2002, p. 282).
Neste processo de representar os valores sociais, as imagens colocadas em cemitérios são acrescidas da noção de valor artístico. “A arte funerária contribuiu para
desenvolver um certo gosto estético na população da época” (BORGES, 2002, p. 282).
É fundamental aplicar os conceitos de arte dentro da arte cemiterial de modo contextualizado ao seu tempo e espaço.
Geertz (1997) sobre a arte diz que esta parece existir em seu mundo particular; é composta por uma combinação de signos produzidos no meio social, compondo
novos sentidos, que utilizam das representações culturais, em uma conexão interpretativa do cotidiano. Portanto, é reconhecida e aceita em seu tempo e espaço, como uma
das formas de dar sentido à vida.
IMAGEM E IMAGINÁRIO
Formas, dimensões, técnicas fazem parte do processo que podemos chamar
de produção da cultura material. São, portanto, visualidades. A imagem cemiterial,
desde sua confecção até o momento em que é colocada sobre o túmulo, vai construindo
sua história ou estória. A posição em que é colocada no jazigo e a relação deste com a
distribuição espacial do cemitério tornam-se importante para a construção de significados. À imagem são atribuídos alguns sentidos que estão relacionados ao lugar, ao mesmo tempo em que é conferida uma identidade para o lugar. A cultura material ganha
possibilidade de relacionar-se dentro do universo do imaginário social.
Em relação ao espaço interno, observa-se que a própria distribuição dos objetos favorece interesses, num primeiro contato, aos valores estéticos. O imaginário social
surge do contato com as imagens e as informações nelas contidas. Temporalizar é buscar compreender a complexidade do que representam as formas e imagens do cemitério.
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Figura 4: Anjo com feição de criança
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Figura 5: Anjo com feição de criança
associada à cruz
Espacialmente, as esculturas, estátuas, túmulos estão distribuídos em várias
partes do cemitério. Simbolicamente, uma escultura que repete aspectos formais pode
ter sentidos diferentes, ou seja, cria identidade porque está relacionada ao túmulo, ao
morto, às coisas que lhe dão novo sentido.
Um desses anjos é conhecido como a “menina da xícara”. Segundo informam
os moradores da cidade¹ é a representação de uma criança que no século XIX quebrou
uma xícara e por isso apanhou até a morte.
Devido à falta de documentação, não se sabe ao certo quem era a menina da
xícara e quando ela morreu. Paralelamente, esta história é divulgada, também, no conto O Prato Azul-Pombinho de Cora Coralina (1988), poetisa da Cidade de Goiás. No
conto, ela descreve a morte de uma menina que quebra a louça e como castigo usa um
colar dos cacos, que a leva a morte.
O imaginário social às vezes transforma estórias em histórias e histórias em
estórias. Diante das representações percebemos que muitas das tradições são inventadas
(HOBSBAWM e RANGER, 1984). Um fato curioso, contado por alguns moradores
da cidade, diz que a estatua da “menina da xícara” foi roubada em décadas passadas, e
resgatada no aeroporto do Rio de Janeiro. Nesse episódio a estatua foi quebrada. Para
devolvê-la ao cemitério a imagem foi reconstituída e posta em outro túmulo que não
era o lugar de origem, com uma grade de proteção colocada sobre a estátua, para evitar
novas tentativas.
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Por essa dinâmica, obtêm-se informações sobre a reprodução coletiva das histórias.
No Cemitério São Miguel na Cidade de Goiás existem estátuas que representam anjinhos, que fazem parte do mesmo estilo. Considerando o modelo utilizado por
Borges (2002) que classifica as imagens em um inventário tipológico e detalhado dos
aspectos formais, artísticos e representativos, é possível verificar semelhanças entre as
estátuas. A série de anjos é caracterizada pela figura com feições de criança que esfrega
um dos olhos chorando.
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Existe na narrativa uma cultura autêntica, mas que também, não passa de
uma invenção. No caso da “menina da xícara”, uma pequena estátua de anjinho, reproduz, simbolicamente, o sentimento de uma prática do passado. Reforça a memória
revitalizada através da história, produzida pelo imaginário social. Esse processo diminui a distância entre o real e o imaginário, dando sentidos a uma pequena estatueta, e
poder de representar as histórias do cemitério na Cidade de Goiás.
A reprodução expressa semelhanças, tanto de imagens quanto da produção
de sentidos. Por essas semelhanças consegue-se entender o que podemos chamar de
mimese, uma representação do real onde uma pequena coisa constitui o diferente. Ou
seja, semelhante é diferente de igual.
As referências, as formulas, as receitas ditam como fazer. Mas cada um coloca
sua impressão, portanto o resultado nunca será o mesmo. Há uma importância no diálogo entre imagens e imaginário. O resultado fica a cargo do discurso e do mimético.
Vemos em Benjamim (1994) uma preocupação não com a semelhança e nem
com a mimese, mas com a questão temporal que define as diferenças exemplificadas
pelo olhar transitório e efêmero.
“Certamente a teoria mimética é uma teoria ilusória, pois por definição a
imagem não é o real” (DINIZ, 2001, p. 117). Dentro dessa perspectiva Diniz analisa a
imagem enquanto reflexo ou enquanto sujeito. Impossibilitando o acesso ao real, estabelecendo novos processos de compreensão do imaginário social.
O imaginário social constrói, por sua vez, passagens que conduzem ao sujeito,
às mentalidades, a cada tempo. No percurso do processo de mudança é fundamental o
conceito que se fixa no diálogo entre a história e o imaginário. No caso da “menina da
xícara” alteram-se os sentimentos em relação ao “castigo exemplar”. Esse movimento
nos ajuda a compreender as apropriações para as imagens.
Contar e recontar histórias de cemitérios, relatar sentimentos em relação aos
mortos, identificar as representações dos mortos e da morte no cemitério da Cidade de
Goiás dá à coletividade a noção de pertencimento, o sentido de estar onde se quer estar.
BETWEEN HISTORY AND IMAGINARY: VISUAL REPRESENTATIONS
IN THE CEMETERY SÃO MIGUEL IN CITY GOIÁS
Abstract: this research presents some considerations to the reproduced histories about the
cemetery of the Goiás City. These formal aspects are perceptible on the diversifications of the
images that were produced along the time, with that I analysis some concepts that helps in
the relevance of the images and meanings between the history and imaginary. The story of
“menina da xícara” is presented to show how image and imaginary transform local history
bringing new meanings.
Keywords: Image. Representations. Cemeteries. Imaginary.
Nota
1 Para essa pesquisa foram entrevistados os seguintes moradores da Cidade de Goiás: Circe de Camargo Ferreira e Silva, Adriano Alcântara de Almeida, João Chaves da Costa e Maria de Fátima Silva
Cançado.
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Referências
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Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
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GEERTZ, C. O Saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis:
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HOBSBAWM, E. e RANGER, T. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e
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contribuição para a história da medicina em Goiás. Goiânia: Ed. da UFG, 1999.
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