Beiras A Farsa de Inês Pereira (1523) A Farsa do Juiz da Beira (1525) Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela (1527) de Gil Vicente direcção Nuno Carinhas música António Sérgio desenho de luz Rui Simão interpretação Alberto Magassela, Alexandra Gabriel, Ana Ferreira, Fernando Moreira, João Castro, Jorge Mota, Lígia Roque, Mário Santos, Marta Freitas, Nuno Veiga, Paulo Freixinho, Pedro Frias Ficha Técnica direcção técnica Carlos Miguel Chaves, Rui Simão (adjunto) direcção de cena Ricardo Silva, Pedro Manana luz João Coelho de Almeida, Abílio Vinhas, Nuno Gonçalves, Joaquim Madaíl som Joel Azevedo vídeo Fernando Costa maquinaria Filipe Silva (chefe), Joaquim Marques, Adélio Pêra, Paulo Ferreira, Jorge Silva adereços e guarda-roupa Elisabete Leão (coordenação); Guilherme Monteiro, Dora Pereira, Nuno Ferreira (aderecistas); Celeste Marinho (mestra-costureira); Nazaré Fernandes, Fátima Roriz, Virgínia Pereira (costureiras); Isabel Pereira (aderecista de guarda-roupa) apoios preparação vocal e elocução João Henriques aconselhamento linguístico João Veloso assistência de direcção João Castro Nota: alguns dos figurinos usados neste espectáculo provêm de produções anteriores do TNSJ. produção TNSJ Teatro Nacional São João 17-28 Outubro 2007 ter a sáb 21:30 dom 16:00 classificação etária M/12 anos duração aproximada [2:00] com intervalo apoios à divulgação agradecimentos Câmara Municipal do Porto Polícia de Segurança Pública edição Centro de Edições do TNSJ coordenação Pedro Sobrado design gráfico João Faria, João Guedes fotografia João Tuna impressão Aprova AG Teatro Nacional São João Praça da Batalha 4000-102 Porto T 22 340 19 00 F 22 208 83 03 Teatro Carlos Alberto Rua das Oliveiras, 43 4050-449 Porto T 22 340 19 00 F 22 339 50 69 Em memória de Carlos Assis, amigo e co-autor de tantos espectáculos e acontecimentos pessoais. Que de lá onde estiver nos mande a sua franca gargalhada! À Ana e ao João Pedro, seus filhos. Nuno Carinhas www.tnsj.pt [email protected] Não é permitido filmar, gravar ou fotografar durante o espectáculo. O uso de telemóveis, pagers ou relógios com sinal sonoro é incómodo, tanto para os actores como para os espectadores. — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — “Movimento e nova invenção” “O grãozinho de mostarda” Osório Mateus* António José Saraiva* Entre 1502 e 1536, Gil Vicente faz na corte de Portugal o melhor e o mais avançado teatro da Europa cristã do seu tempo. Para um mundo novo, transforma de raiz um modelo que o tempo produzira. O autor (talvez ourives de primeiro ofício) terá trabalhado no teatro dos 32 aos 66 anos de vida. No princípio do período manuelino, o trabalho de Gil Vicente foi instigado, apoiado e pago pela rainha Lianor, irmã de Manuel I e viúva de João II. Morto o rei Manuel em 1521, sucede-lhe o filho João III, que, como o pai e a tia, manda fazer teatro no paço. O primeiro terço do século XVI é o tempo de apogeu da corte de Portugal como centro de um movimento de expansão que abrange a África, a Índia e o Brasil. Lisboa torna-se um lugar de luxo e arte que só tem rival na corte do Papa. O teatro recorta-se como prática limitada e como mercadoria. Uns ordenam e outros representam. Num sistema novo de divisão do trabalho artístico, emergem ofícios em busca de legitimação: autores e actores. Compradores encomendam produtos com prazos e medidas, paga-se a quem faz e o teatro tenta equilibrar oferta e procura de arte. No teatro de Gil Vicente, auto é nome comum que designa cerca de cinquenta produções teatrais: moralidades, farsas, comédias. Cada auto é a apresentação de um programa para acção de corpos. Existe como monumento especioso em festas religiosas e seculares. Sabe dos autos anteriores, da corte onde se faz, do mundo. Mas não é só memória acumulada. É movimento e nova invenção. O trabalho de Gil Vicente implica imaginar um projecto de auto, escolher e montar materiais, escrever e ensinar versos novos, achar um modo para vestir os actores, escolher ou fabricar o aparato, conhecer o espaço em que se vai trabalhar, com entradas, saídas e mais formas. É preciso também fazer ou escolher as músicas. O conjunto dos autos forma uma série homogénea de acções textuais de corpos vivos: autor, actores e mais quem vê. O autor é fundador e proponente. Os actores são corpos que mexem no espaço e produzem sequências de imagens e sons. Gil Vicente é autor e actor. Desde o primeiro auto, dá-se a ver e a ouvir, expondo o próprio corpo feito texto. Não se sabe quem são os outros actores. Aliás, de todo este trabalho de teatro ficou pouca memória. Nenhum pintor, ao que parece, representou um momento a fazer-se. Quase ninguém contou por escrito como foi. Diogo do Couto, Garcia e André de Resende, o cardeal Aleandro falaram da sua realidade, mas pouco contaram. De qualquer modo, por muita memória que tivesse ficado, o que se poderia sempre dizer dos autos de Gil Vicente é que houve muitos e não há nenhum. São acções perdidas porque o trabalho de teatro não fica todo na memória digital. Quase tudo o que hoje se sabe do teatro de Gil Vicente vem da Compilaçam de todalas obras, impressa em 1562 e organizada pelos filhos Luís e Paula, e de alguns folhetos anteriores, impressos em vida e à vista do autor […]. • […] Esta teoria do progresso no teatro encontra desde logo uma dificuldade: porque é que, em comparação com Gil Vicente, todos os seus sucessores portugueses nos parecem insignificantes? Porque é que, quatrocentos anos passados, depois da experiência clássica, da experiência espanhola, da experiência italiana, da experiência arcádica, da experiência romântica, da experiência neo-romântica, da experiência simbolista, da experiência neo-realista, da experiência do teatro dito do “absurdo”, Gil Vicente continua a ser, não só relativamente à sua época, mas em absoluto, a grande personalidade do teatro português, a única pela qual merecemos figurar numa história mundial do teatro? Onde está o progresso de Gil Vicente a Júlio Dantas, que no entanto conhecia bem o ofício teatral? Que é que tinha o velho autor dos autos que o faz estar vivo, apesar de não conhecer a regra das três unidades, nem o realismo “crítico”, nem a teoria da distanciação, nem qualquer outro dos melhoramentos introduzidos no palco desde 1536, data da sua última peça? Se ele está vivo no meio das múmias que assinalam a história do teatro português, isso deve-se certamente ao facto de que ele era Gil Vicente, e não qualquer outra pessoa. Deve-se ao que ele possui de irredutivelmente pessoal, privativo, singular, inimitável, intransmissível por paternidade física ou espiritual. Uma teoria do progresso em arte, que tende inevitavelmente a estabelecer uma sucessão de esquemas impessoais, segundo coordenadas ou moldes que ignoram por natureza a singularidade individual, deixa, afinal, escapar pelo intervalo das malhas o “grãozinho de mostarda”, o segredo da presença viva de um autor. Esta evidência de senso comum é a objecção mais imediata e mais óbvia que pode opor-se a qualquer teoria do progresso em arte. […] • * Excerto de “Gil Vicente”. In De Teatro e Outras Escritas. [Lisboa]: Quimera, D.L., 2002. p. 267, 268. * Excerto de “Prólogo para a 3.ª Edição: Sobre a Teoria do Progresso em Arte”. In Gil Vicente e o Fim do Teatro Medieval. Amadora: Bertrand, imp. 1981. p. 10, 11. — — — — — — — — — — — — — — — — — — “Continuamos a paródia minimalista, agora no espaço-paisagem do palco aberto” Entrevista com Nuno Carinhas. Por Pedro Sobrado. Beiras começou por ser uma leitura encenada, realizada no passado mês de Março. Na altura, definiu esse trabalho como o esquisso para a concretização de um espectáculo. Que aspectos deste desenho mereceram agora maior definição de contorno? Ou, de outro ponto de vista, que traços foram rasurados? Nada foi rasurado. Um esquisso é um desenho rápido feito à mão levantada, um registo sintético. A leitura encenada sugeria muito para além da simples leitura. Já tinha voz e corpo e ritmos e sentidos. Os contornos conservam os mesmos valores. Uma trupe de actores “levanta” as narrativas de três peças de Gil Vicente à vista dos espectadores. O gosto pela linguagem, rica e dinâmica, continua a ser a mola desta partilha. Em todo o caso, verifica-se a afinação ou apuramento de alguns aspectos: o jogo de sonoridades e percussões, por exemplo, ou a questão da linguagem e o uso da pronúncia beirã… Houve o tempo de lapidar aquilo que já era nossa preocupação. O trabalho do professor João Veloso é o nosso amparo no que diz respeito ao uso da pronúncia. Um quebra-cabeças para os actores, mas que os mantém atentos todos os dias no exercício da linguagem. A depuração instrumental e coral é mais incisiva, podemos dizer que é uma extensão sintáctica – os pontos e vírgulas irónicos no meio da argumentação. Criado originalmente para uma estreita faixa de palco [O Saque, de Joe Orton, enc. Ricardo Pais, encontrava-se em cena], Beiras conquista agora a sua totalidade. Que consequências teve esta “expansão territorial” no conceito cénico, plástico ou cenográfico? Não saberia, em tão curto espaço de tempo, “torcer” a proposta apontada. O mapa estava traçado. Desta vez, que o espaço nos pertence por inteiro – passámos do T0 para o loft –, há a inclusão de outros elementos cénicos que servem de padrão a cada auto: lenço de namorados na Inês Pereira, cortinas vermelhas no Juiz da Beira e animais na Serra da Estrela. Continuamos a paródia minimalista, agora no espaço-paisagem do palco aberto. Outro aspecto decisivo diz respeito à participação de seis novos actores nesta remontagem. Que ângulos das personagens ou dos autos vicentinos foi possível perspectivar e experimentar com a mudança de elenco? O elenco rejuvenesceu sem que o conjunto tenha perdido peso. Cada qual se integrou sem problemas. Todos tiveram que dar de si. As personagens sofreram uma apropriação personalizada, sem cópias. Como o jogo era aberto, aberto ficou, com novidades assinaláveis. As dificuldades iniciais da primeira versão já estavam resolvidas, o que permitiu acrescentar novas propostas. Fui assistindo a muitas ultrapassagens por parte de todos. Em relação ao texto, o trabalho do João Henriques proporcionou grandes saltos de sentido. — — — — — — — — — — — — Quando encenou A Ilusão Cómica [de Pierre Corneille, TNSJ, 1999], disse que queria um guarda-roupa “heteróclito” e “misturado”. Em Beiras, o minimalismo a que se refere parece compensado não só por um registo burlesco, mas também por esse carácter “heteróclito” de adereços e elementos de guarda-roupa que se associam a um sóbrio figurino de base… Do “heteróclito” é feito o teatro quando viajamos no tempo. Em ambos os casos, a que se pode juntar O Grande Teatro do Mundo [de Calderón de la Barca, TNSJ, 1996], trata-se da minha mania ambulatória de chegar aos teatros e aproveitar-lhes os depósitos. Nestes três exemplos existe a premissa do teatro dentro do teatro. Mas cada vez mais o meu gosto de teatro assenta sobre a representação: vozes e corpos dos intérpretes. Conforme sinalizam os objectos que o João Castro traz consigo para a boca de cena quando enuncia as didascálias iniciais, começamos pela casa e pela esfera doméstica, passamos ao tribunal e ao domínio público, e terminamos na exterioridade da natureza, com a Serra da Estrela figurada em pessoa e metonimicamente ilustrada por seis bancos altos… Podemos definir Beiras como um movimento de progressiva abertura, ou extroversão? Extroversão é o termo certo. Círculos concêntricos que abrem o espaço e o jogo cénico. Quando chegamos, subindo e subindo, ao alto da Serra da Estrela, o que de lá avistamos é o mundo inteiro. Aqui no auto ficamos presos ao chão dos pastores e dos seus amores, por entre animais, como numa “cascata” rasa. Beiras parece incidir sobre uma tripla geografia: a geografia física das Beiras, com um abundante manancial de referências toponímicas; uma geografia linguística ou dialectal; e uma geografia humana – na qual está integrado o tópico dos amores e dos desejos. Pode explicitar como foi cartografando esta tríplice geografia? Venho de trabalhar num pequeno espectáculo, também um esboço, que se chama Geografias e Tratados. Todos os espectáculos andam à volta dessa tríplice geografia. O seu reconhecimento enquanto base elementar depende do grau de carnação toponímica: ser, ter, estar. O importante para quem vê é pertencer. Este é um objecto que convoca a pertença e a partilha, sem se arvorar em património: “Não tragais jogo de ver […] porqu’isso não sei que é”. [Pêro Marques, em A Farsa do Juiz da Beira] “Uma companhia ambulante toma de assalto um palco, abre as arcas e vai tirando a seu bel-prazer aquilo que melhor serve as personagens de um tríptico beirão de Gil Vicente.” Foi deste modo que Beiras foi promocionalmente apresentado. Apesar de os três autos apresentarem ligações entre si – a personagem de Pêro Marques, o tema regional, a teatralidade paródica –, revelou-se útil criar esta ficção para os agregar de um modo mais cabal? Uma poética comum que agregasse as três ficções. Neste caso, o estímulo foi a fonética, mas o retrato é meta-social. O que Portugal é hoje e como era. E poucas vezes o nosso teatro terá estado tanto ao serviço da nossa identidade, usos e costumes, como em Gil Vicente. O teatro vicentino é, de facto, valorizado como representação sociológica, reportando a um espaço e um tempo nacionais identificáveis, mas até que ponto não se revolta contra a realidade que retrata? A propósito de Gil Vicente, Cardoso Bernardes fala de “um processo contínuo de sobreposição do palco em relação ao mundo”… O Vicente é corrosivo. Quando digo “retrato” estou a pensar mais em pintura do que em fotografia. Como exemplos, aponto Júlio Pomar e Paula Rego. Quando olhamos os retratos dos últimos presidentes, Soares e Sampaio, retratos feitos para figurarem na corte, ou os retábulos das histórias postas em papel ou em tela por Paula Rego, podemos estabelecer uma “ponte forçada” com o olhar crítico de Gil Vicente. Quando a Inquisição se implantou, muitas passagens dos seus autos foram eliminadas. O seu teatro nunca foi realista e a sua riqueza vem da policromia e das distorções das formas reconhecíveis. A música funciona também como um factor de ligação entre as peças. O final do Juiz da Beira parece mesmo anunciar ou chamar os pastores-cantores da Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela. Em que medida as canções e sonoridades desenvolvidas com o António Sérgio e o elenco vos colocaram no limiar de um “musical vicentino”? Falar hoje, e nesta cidade, em musicais é jogo arriscado pelas identificações de género que suscita. Mas os autos de Gil Vicente são pequenos musicais. As canções estão lá a par do ritmo das frases e dos sons que das palavras nascem. “Quem canta seu mal espanta.” As canções servem propósitos dramatúrgicos. O jogo da duplicidade da representação e o palco como um espaço especular tornaram-se-lhe caros com experiências de encenação como O Grande Teatro do Mundo, A Ilusão Cómica e mesmo Anfitrião ou Júpiter e Alcmena [de António José da Silva, TNSJ, 2004]. Alguns estratagemas de encenação – a enunciação de didascálias e, principalmente, a presença em palco de todos os actores, mesmo quando não estão em “situação”, reagindo às reviravoltas da acção – remetem-nos de novo para o artifício do “teatro dentro do teatro”… Gostaria que falasse desta opção (obsessão?). Os actores vão “a terreiro” defender o direito e o avesso dos espectáculos. Pouco se passa em bastidores desde que começa a função. Aqui, o grupo dos “funcionários” – os que fazem funcionar a acção – está sempre presente, pronto a encarnar novas personagens, como se qualquer um pudesse tomar conta de todas elas. Isso confere aos intérpretes uma autoridade que não é ex-machina. São eles que mandam na ordem do seu mundo. Assim ficamos mais perto do exercício do seu “mister”. A “obsessão” é expor uma ordem de coisas por inteiro. A ficção substitui-se à realidade e à ordem do mundo. O palco é o lugar da representação dos mundos ficcionais e os actores, os seus agentes vivos, a carne e o osso desse tempo partilhado. O palco é uma estação de partidas e chegadas, onde se cruzam viajantes que transportam, cada um, a sua história. Ainda “no tempo em que sabíamos tudo uns dos outros”. Ao ver esses “funcionários” a acompanhar em cena o curso da acção, ora rindo e festejando, ora mostrando espanto ou desconfiança, acabei por os tomar como projecção desse público tardo-medieval de que Gil Vicente conhecia tão bem os gostos e as expectativas… Durante os ensaios não há público. No entanto, eles sustentam-se bem uns aos outros. Começo a achar que existe teatro capaz de se sustentar “por dentro”. Eles, os actores, postos em espectadores da acção, dão a resposta sustentável do trabalho dos colegas, o que acarreta esse outro elemento essencial para todos, o afecto. Cada ensaio é uma representação sem fraquezas ou amolecimentos próprios das repetições de uma sala de ensaios. E as novidades aparecem todos os dias e são imediatamente celebradas. Beiras é agora um espectáculo acabado, ou o inacabamento faz parte do seu código genético? Em vez de “inacabado”, prefiro “em evolução”, um organismo vivo capaz de auto-regeneração. Passa por aqui o desejo consciente de liberdade responsável. Se bem que o exercício do teatro como modo de vida já seja um exercício de liberdade. Mas talvez não seja mau lembrar, e tornar clara a partilha. • As Beiras, ou uma imaginação geográfica José Alberto Ferreira* Uma releitura do teatro vicentino alicerçada em dominantes espaciais – mesmo quando não exaustivas e ainda quando razoavelmente suportada noutros factores – parece relevar do modo como o “espacial”, como pretendia Frederic Jameson, hoje inequivocamente domina as nossas categorias culturais. Esta, que talvez possa chamar-se uma leitura “ecossistémica” do teatro vicentino, apresenta virtualidades consideráveis, desde logo ao permitir equacionar as relações existentes entre os vários modos da representação territorial, os registos e materiais de que se serve e as significações de que se reveste, entre uma geografia do poder e o(s) poder(es) da geografia. De umas e outras procuro dar sintética conta nas linhas que se seguem. O espaço da trilogia Vejamos, desde já, a trilogia. Reunindo as farsas Inês Pereira e Juiz da Beira e a Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela, representadas respectivamente em 1523, em Tomar; em 1526 (provavelmente não em 1525, como diz a didascália), em Almeirim; em 1527, em Coimbra. As farsas tiveram edição independente em vida do autor, atestando o êxito do díptico. Inês e Juiz parecem articularse através da figura de Pêro Marques, lavrador rústico abastado na primeira, juiz igualmente rústico na segunda. Nas duas farsas, a Beira cristaliza-se nessa figura, isto é, no modo como ela espelha a distinta mundivisão de Pêro Marques face às regras de Lisboa e da corte. É com efeito a oposição corte/campo que dá forma a esta semiótica do espaço onde se opõem os que sabem os modos amorosos e a retórica cortesã aos que, vindos de fora, se não conformam com as regras de dentro: não sabem fazer uso dos utensílios de sentar, nem das regras amorosas; nem, no que ao rústico juiz respeita, das regras formais da Justiça. Pêro Marques vem da Beira (Viseu) pôr à prova as faculdades de bom juiz, exibindo perante a corte um teatro da justiça de base paródica e sem-sentido que confirma aquela oposição primacial. Mas os sinais que chegam do campo não são unívocos: Pêro Marques é lavrador rústico abastado, quer dizer, emblema daquele Portugal produtivo e pouco dado à fantasia, que se representa em oposição à corte. E se em Inês Pereira essa oposição, mesmo submetida à perspectiva do risível pelo desfecho em figura de marido cuco, suporta a ambivalente valorização da terra e da produtividade, no Juiz da Beira ela inscreve-se no modo sincrético de produção de sentido que domina a farsa, como afirma Cardoso Bernardes: Com a oposição entre o espaço original do vilão e o espaço em que se efectuam os julgamentos, pretende-se avivar os contornos de um dissídio radical entre a moral do Paço e a moral consuetudinária do povo, geograficamente emblematizado na região da Beira. E não pode escamotear-se o significado da Beira enquanto sinédoque do Portugal agrário que resiste à degeneração do Portugal mercantilizado.¹ A radical carnavalização das sentenças em Pêro Marques, se por um lado aprofunda os mecanismos do riso, adensa por outro a responsabilidade crítica da personagem, centradas as sentenças “em aspectos bem palpáveis do real”.² O que poderia dizer-se como uma reabilitação do campo. É desse ponto de vista que deve igualmente ler-se a Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela. Votada à celebração do nascimento da princesa Maria (filha de D. João III e de D. Catarina), nascida a 15 de Outubro de 1527, esta peça áulica retoma estratégias das natividades e presépios recorrentes em Gil Vicente (desde a Visitação com que inaugura a sua actividade teatral, em 1502). Uma alegórica Serra da Estrela vem, em figura de pastora, “feita serrana da Beira”, apresentar os termos da festa: a celebração do nascimento, as circunstâncias e a ambivalência da situação (celebra-se o nascimento de uma menina, esperava-se ou desejava-se um menino). Serra da Estrela é já figura beirã que desce à corte em Coimbra. Da corte vem por seu lado Gonçalo, um pastor da serra. Deverão ir juntos depois de concluir uns amores “que nam querem concrudir”. Seis pastores trarão a cena os desencontros amorosos de que são sujeitos e vítimas. Cantam, dançam e debatem de amores, até que um Ermitão dará a todos arranjo e sentença. Sob o signo do sem-sentido, este Ermitão, que assim resolve os amores pastoris, busca para si “vida religiosa” de “prazer” e “folgar”. Resolvidos os amores, é tempo de rumar à corte, com a Serra da Estrela à cabeça. É também tempo de elogiar as oferendas da região: Seia, Gouveia, Manteigas e Covilhã, retomando a representação positiva das Beiras, oferecem queijos, bezerras e cordeiras, castanhas, leite e panos finos. Dois foliões, vindos do Sardoal, encerram com danças de terreiro e cantigas. No final, todos se saem para ir ver a rainha e se acaba a festa, a corte apenas dita e o campo tão só em oferendas enunciado. Também aqui se não trata de concretizar uma leitura unívoca. A Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela também permite inverter literalmente esta leitura, carreando nova terminologia impregnada de amplitude semântica. Rodrigo, pastor apaixonado por Felipa e não correspondido, já que a pastora almejaria desposar um cortesão, traça uma fenomenologia dos amores que repercute a semiótica do espaço: Rodrigo Se casasses com pação que grande graça será e minha consolação. Que te chame de ratinha tinhosa cada mea hora inda que a alma me chora folgarei por vida minha pois enjeitas quem t’adora. E te diga: tir-te lá que me cheiras a Cartaxo. Pois te desprezas do baixo o alto t’abaxará. [itálico meu] Ao par corte/campo cabe juntar assim o par alto/baixo, uma formulação cuja verticalidade acrescenta às coordenadas espaciais uma inequívoca dimensão avaliativa (pelo peso cultural que a verticalidade tem na cultura ocidental). Que o mesmo é dizer que a corte recobre o espaço de afirmação de valores tomados por positivos, elevados, nobres e justos, em oposição ao vil mundo do baixo e, por extensão, do campo. O que, como já vimos, não é a única direcção de leitura a considerar. Geografia do poder, poder(es) da geografia Chegados aqui, importaria ponderar ainda outros aspectos da representação do espaço beirão nos textos da trilogia (modos discursivos, caracterização de personagens, formas e materiais da representação, até mesmo a distribuição genológica a que se submete). Uns e outros não deixariam de apontar quer a força geográfica da corte como centro (não é também de e para lá que Gil Vicente pensa o seu teatro?), quer a permeabilidade ao debate quinhentista sobre as relações entre o Portugal velho e o novo, o destino atlântico e comercial e a degradação dos recursos produtivos agrícolas. Em sintonia com a criação europeia, Gil Vicente soube encontrar nos modelos literários de que dispunha, como a farsa e a sottie, a elasticidade necessária à ambivalência da questão, caldeada pelo riso, pela sátira e pela oscilação de polaridades que promove, entre o alto e o baixo, o cortesão e o rústico, a corte e o campo. Afinal, entre uma impositiva geografia do poder e o poder (podíamos dizer descentralizado) da geografia. • * Universidade de Évora 1José Augusto Cardoso Bernardes – “O Juiz da Beira e os Sentidos da Sátira Vicentina”. In Revisões de Gil Vicente. Coimbra: Angelus Novus, 2003. p. 107. 2José Augusto Cardoso Bernardes – Op. cit. p. 110.