As políticas públicas

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L E O N E L FA D I G A S
LEONEL FADIGAS, Arquiteto paisagista e urbanista, é doutorado em Planeamento Urbanístico (Universidade Técnica de Lisboa, 1995), agregado em Administração Pública e Políticas
Territoriais (Universidade Técnica de Lisboa, 2011) e Professor de Urbanismo da Faculdade
de Arquitetura da Universidade de Lisboa. Deputado à Assembleia da República (1981-1987), presidiu à Comissão Parlamentar de Equipamento Social e Ambiente (1983-1985),
tendo sido um dos responsáveis pela elaboração da Lei de Bases do Ambiente. É autor dos
livros Fundamentos Ambientais do Ordenamento do Território e da Paisagem (Edições Sílabo,
Lisboa, 2007) e Urbanismo e Natureza – Os Desafios (Edições Sílabo, Lisboa, 2010). Em 2001
foi agraciado pelo rei de Espanha com a Comenda da Ordem de Isabel La Católica.
Urbanismo e Território
As políticas públicas territoriais, na sua definição e aplicação, representam um
sistema ideológico de apropriação e controlo do território como recurso essencial
ao desenvolvimento económico e social e à afirmação do Estado como regulador
da vida em sociedade. Direta ou indiretamente, estabelecem as regras quanto à
utilização e gestão de recursos, localização e instalação de pessoas, infraestruturas,
atividades e equipamentos e ao modo como é exercido o controlo social da sua
definição, aplicação e avaliação. O território e as paisagens onde a nossa vida
decorre são, por isso, tanto o resultado das políticas públicas territoriais como da
sua ausência, do seu sucesso ou do seu fracasso, razão para que estas constituam
uma área de investigação importante para a compreensão das questões e dos
fatores que, em democracia, condicionam ou favorecem as formas de uso do território, o urbanismo e a sua qualificação.
Este livro destina-se tanto aos que, por razões profissionais ou académicas, na
administração pública, no urbanismo e na ação política intervêm no planeamento
e na administração do território e àqueles que sentem cada vez mais a necessidade
de compreender como se transforma o território num mundo em mudança.
9 789726 187974
497
ISBN 978-972-618-797-4
As políticas públicas
Urbanismo
e Território
As políticas públicas
As políticas públicas
A publicação desta obra teve o apoio:
Urbanismo
e Território
L E O N E L FA D I G A S
Edições Sílabo
Urbanismo
e território
As políticas públicas
LEONEL FADIGAS
EDIÇÕES SÍLABO
É expressamente proibido reproduzir, no todo ou em parte, sob qualquer forma
ou meio, NOMEADAMENTE FOTOCÓPIA, esta obra. As transgressões
serão passíveis das penalizações previstas na legislação em vigor.
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Editor: Manuel Robalo
FICHA TÉCNICA
Título: Urbanismo e território – As políticas públicas
Autor: Leonel Fadigas
© Edições Sílabo, Lda.
Capa: Pedro Mota – composição baseada em modelo urbano da expansão oeste
das Caldas da Rainha, Leonel Fadigas e Luís Carvalho, FAUTL, 2005-2007
1ª Edição – Lisboa, abril de 2015
Impressão e acabamentos: Europress, Lda.
Depósito Legal: 390260/15
ISBN: 978-972-618-797-4
EDIÇÕES SÍLABO, LDA.
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1170-100 Lisboa
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Índice
Nota prévia
7
Capítulo 1 – As políticas públicas
9
As políticas públicas e o Estado social
14
As políticas públicas e a organização do Estado
28
Política e organização da administração pública
35
Capítulo 2 – Poder e território
45
Território e sociedade
45
As políticas públicas territoriais
52
Capítulo 3 – As primeiras políticas territoriais e urbanísticas
O problema da habitação
Capítulo 4 – Duarte Pacheco e a sua herança
59
72
77
O período Duarte Pacheco
78
A nova agricultura e o território
93
O após Duarte Pacheco e a evolução urbanística
96
A reanimação económica
Capítulo 5 – O urbanismo na decadência do Estado Novo
103
107
Duas décadas de mudança
107
O contexto social e as ruturas políticas
111
O retorno ao urbanismo
113
O urbanismo e o ordenamento do território
117
A redescoberta das regiões
122
Capítulo 6 – Urbanismo e democracia
127
Da Revolução à Constituição
127
A Lei de Solos e os planos diretores municipais
133
Os planos regionais de ordenamento do território
141
O Decreto-Lei n.º 69/90 e a política de cidades
144
Capítulo 7 – Os novos paradigmas
151
A Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo
155
O Programa Polis
160
Bibliografia
165
Nota prévia
A importância das políticas públicas de ordenamento do território e urbanismo
na formatação do território que habitamos não é, infelizmente, refletida na investigação e no ensino do urbanismo. Tal facto tem conduzido a conceções teóricas e
práticas onde o formalismo se autonomiza tanto do suporte físico e territorial como
do contexto social onde ocorre. As paisagens e os tecidos urbanos que assim se
foram criando refletem, pelos desequilíbrios e pelos problemas que arrastam, esta
realidade, pela inconsequência das atuações e pelo desordenamento territorial que
as acompanham.
A evolução histórica e social do País mostra-nos como, ao longo dos tempos, a
apropriação e o uso do território se foi fazendo em resultado de políticas e de atos
administrativos, solidificando as manchas de ocupação humana e conferindo-lhes a
coerência de que resultaram os padrões regionais que hoje espelham a pluralidade
do todo nacional. As transformações do território, independentemente do sentido
que tomem, são sempre a consequência e a expressão das condições económicas e
sociais de um dado momento histórico. No caso português o território esteve sempre
presente como condição de vida, de organização social e de razão de ser da sua
matriz identitária.
No entanto, só a partir de meados do século XIX, com a progressiva consolidação
do papel e ação do Estado na gestão dos bens públicos, a organização e o uso do território passaram a ser objeto de regulamentação fundada em princípios de política
administrativa. Com uma matriz ideológica muito forte que se reclamava da aplicação dos avanços da ciência e da técnica.
A estruturação territorial de Portugal não pode, por isso, deixar de refletir os
movimentos sociais, económicos e políticos que, desde então, passaram a configurar
o modelo de organização de Estado e de sociedade que estão na génese do Portugal
que somos.
O Estado, tal como se veio a organizar na sua fase contemporânea, a partir de
1820, teve a centralização, como modelo administrativo dominante, com a justificação, expressa ou implícita, da necessidade de reforço do seu papel como condição de
independência e, até, como fator de superação das consequências e dos traumas
sociais e políticos resultantes de décadas de guerras civis.
A superação das divisões regionais, sociais e políticas e a necessidade de fundar
sobre uma base nova um País até então fragmentado, na economia, na vida social e
na relação espacial entre as suas diferentes regiões, manteve e reforçou o modelo de
administração pública de matriz napoleónica e jacobina. Os deveres e as funções do
Estado, cobrindo um vasto leque das atividades económicas e sociais, não deixavam
margem a outro modelo de administração que não fosse um modelo centralizado no
qual as regiões pouco participavam.
Apesar das muitas alterações do sistema política ocorridas nos últimos dois séculos, sentimos ainda hoje, o peso e a influência desta cultura administrativa que tanto
tem dificultado a modernização e a real democratização do País.
A coerência territorial que o País adquiriu a partir da aplicação das políticas
públicas da Regeneração foi o ponto de partida para a criação do Portugal
contemporâneo como realidade territorial articulada. A modernização e o desenvolvimento da economia, que o Marquês de Pombal também procurou e para a qual
criou as bases, e a criação da primeira rede de infraestruturas viárias com sentido
abriram caminho para uma nova realidade territorial e urbana ajustada às necessidades sociais e económicas que o progresso exigia. Com o que também se renovou a
paisagem rural e urbana e se deu ao território um sentido de recurso organizável e
disponível.
A formatação territorial do País, iniciada a partir de meados do século XIX, e
reforçada a partir da década de 1930, não deixou de, continuadamente, se refazer e
transformar. A partir, é certo, de uma matriz que, pela procura de uma permanente
otimização, foi acentuando a litoralização da distribuição espacial das populações,
das infraestruturas, das atividades económicas e dos centros de poder.
As políticas públicas, pela sua natureza, refletem os momentos e as circunstâncias
da sua definição e execução e o enquadramento social, económico e político em que
isso ocorreu. As políticas públicas de incidência territorial, centradas nas questões
relativas ao ordenamento do território e ao urbanismo, integram, para além das
questões diretamente ligadas às cidades e aos espaços de habitar e de trabalho, as
matérias relativas à implementação das redes viárias que constituem o sistema arterial básico de criação e reforço da coesão territorial. O que confere às obras públicas
o papel historicamente reconhecido de principal fator de transformação dos territórios.
O estudo da génese e aplicação das políticas públicas territoriais, de forma alargada no tempo, permite compreender como, em cada momento, o território conserva os elementos que mais marcaram a sua evolução e estrutura e o modo como
cada um deles contribui para a sua transformação. Com matrizes ideológicas nalguns casos antagónicas, e nem sempre com a mesma disponibilidade de recursos
financeiros.
A análise deste longo processo histórico e social não pode, por isso, deixar de considerar a importância das políticas públicas e do contexto em que as mesmas foram
definidas e executadas; incluindo a compreensão das incoerências e contradições, ao
longo do tempo e dos sucessivos processos políticos.
O trabalho que agora se publica é, deste modo, um contributo para o conhecimento desta realidade e uma reflexão sobre a realidade territorial e espacial do País
que somos e o uso e a gestão sustentável dos recursos que disponibiliza. Ao mesmo
tempo que procura ser uma ferramenta de ajuda para compreensão dos fenómenos
complexos que explicam o modo como os territórios se organizam e evoluem.
Capítulo 1
As políticas públicas
As políticas públicas correspondem ao conjunto das iniciativas e decisões do
Estado, nas suas diferentes escalas de intervenção, com a finalidade de prover ao
bem-estar da população e à gestão dos recursos disponíveis. Abrangem todas as
áreas da vida social e, nos regimes democráticos, são o resultado da conjugação de
vontades, interesses e prioridades de cujo equilíbrio se compõe o bem comum que
ao Estado compete preservar e desenvolver. Nos Estados democráticos constituem
um contrato social livremente assumido, condição de equilíbrio e de coesão social
estruturante da vida em sociedade.
Na sua essência corporizam, na organização do Estado e das sociedades, conceções ideológicas com expressão política e económica.
A razão de ser das políticas públicas é a resolução de problemas de organização e
funcionamento da sociedade. Na sua diversidade conferem expressão concreta à
ideia de Estado como entidade tutelar e, de certa forma, como entidade soberana e
de representação de interesses sociais. As políticas públicas constituem, na sua
essência, tanto um conjunto coordenado de programas de ação aplicáveis a determinados setores da sociedade ou a espaços territoriais específicos, como a expressão de
uma ideologia dominante traduzida em «ações do Estado em ordem a responder a
pretensões dos cidadãos, agrupados ou não» (Rocha, 2010: 39). Como tal, as políticas públicas são a consequência do modelo de organização social dominante e da
organização política e administrativa dos Estados, para a qual, no entanto, também
concorrem. Na diversidade dos modos que podem apresentar – de iniciativas legislativas a ações meramente administrativas e operacionais, com maior ou menor
integração de processos negociais – constituem «um conjunto de atividades organizacionais destinadas a modificar comportamentos no quadro de um contexto
orientador estabelecido por uma autoridade pública para tal mandatada» (Mény;
Thoening, 1989: 391). Isto, no entanto, não de desliga da questão central da sua
existência e importância: a garantia da continuidade do provimento das necessidades materiais da sociedade, sua razão de ser principal.
10
URBANISMO E TERRITÓRIO
Os interesses sociais e políticos que moldam os Estados determinam, conforme a
sua natureza, os modos de organização da sociedade e os sistemas de relações entre
os decisores políticos e os cidadãos; isto é, entre o poder soberano e os sujeitos.
Condicionam e influenciam, assim, o exercício do poder e contribuem para a consolidação das diferentes formas do seu exercício. O sucesso ou insucesso das políticas
públicas que lhes estão associadas, por seu lado, determina a maior ou menor possibilidade de continuidade temporal do modelo de Estado em questão.
As políticas públicas transpõem para a esfera da organização da sociedade os
princípios orientadores que dão forma ao modelo de Estado, de acordo com a conceção dominante de sociedade que o suporta. Estão associadas à afirmação de poder
de que são expressão e à natureza dos sistemas sociais, económicos e políticos que as
produzem e reproduzem. Representam a vontade coletiva dos grupos sociais que
influenciam as formas de poder e o seu exercício e a relação instável de forças,
sociais e políticas, que, a todo tempo, pode ser modificada pelas circunstâncias que
determinam a evolução social e económica das sociedades. De forma tranquila, em
regime democrático; de forma convulsiva, em processos violentos de transição de
poder.
Na sua diversidade as políticas públicas organizam o sistema de respostas aos
problemas que ao Estado incumbe resolver. A sua importância, continuidade e validade estão, por isso, associadas à obtenção ou não dos resultados pretendidos. Para
estes concorrem tanto a adequação das políticas à natureza, dimensão e importância
dos problemas a resolver e das necessidades a prover como a sua capacidade de
ajustamento e flexibilidade às condições objetivas de aplicação.
As políticas públicas são instrumento de modelação social e de organização do
Estado e do seu aparelho administrativo pelo que a sua análise é essencial para o
conhecimento da realidade social, a organização e o funcionamento da economia e,
também, para a compreensão da espacialização das atividades humanas. A sua definição e as tomadas de decisão necessárias para a sua concretização resultam da ação
conjugada de uma larga série de intervenientes públicos e privados, de forma direta
e indireta, em níveis diferenciados de envolvimento e responsabilidade. Nas sociedades contemporâneas as políticas públicas são instrumentos privilegiados de organização social e de modelação do quadro de vida das populações, com consequências
espaciais cuja dimensão nem sempre é imediatamente percetível.
Neste quadro, a importância das políticas públicas não se limita aos aspetos políticos e sociais ou às questões diretamente ligadas ao exercício do poder e à organização do Estado. O facto de todas as políticas sociais terem uma dimensão territorial
determinada pelo modo de apropriação, uso e transformação dos territórios habitados reforça a importância do seu estudo no que à territorialidade diz respeito.
O território é o suporte físico das atividades humanas e, como tal, determina e
condiciona a forma como se realizam, e ganham expressão e dimensão espacial, as
atividades humanas reguladas ou determinadas pelas políticas públicas. É nele que
se registam e permanecem os efeitos daquelas políticas, com caráter mais ou menos
permanente, e, muitas, como fatores de condicionamento das ações futuras. A ter-
AS POLÍTICAS PÚBLICAS
11
ritorialização é, neste sentido, o resultado e a expressão das ações humanas sobre o
território e, naturalmente, das políticas que as organizam, disciplinam e conduzem.
A continuada transformação dos territórios, operada em tempos e circunstâncias
diversas, em contextos políticos sociais e económicos variados e com recurso a
tecnologias progressivamente mais complexas e potentes, constitui o resultado mais
imediatamente visível das políticas públicas. Esta visibilidade dá dimensão e força à
sua espacialização e explica a importância, oportunidade e interesse da análise, no
âmbito das políticas públicas.
A procura do bem-estar social faz parte e constitui um fator determinante do progresso social e tecnológico, sem o qual teria sido muito provavelmente mais lento do
processo histórico da evolução humana. As sociedades contemporâneas são o resultado disso, acumulando, no seu percurso civilizacional, ao lado de um registo de
contínuos sucessos, uma série considerável de expectativas por atingir. A gestão
destas expectativas representa, para os Estados, uma pressão constante que os vai
moldando e lhes determina tanto o modo de organização como as políticas e a sua
execução.
Os Estados modernos, que são fruto dessa pressão social e da permanente insatisfação que o progresso arrasta consigo, formaram-se neste quadro. A sua matriz
social resulta disso. Podemos mesmo dizer que é a permanente insatisfação social
que garante e torna possível a evolução humana no sentido de mais liberdade e de
melhores condições de vida. Ignorar isto significará sempre um enfraquecimento do
Estado enquanto entidade tutelar e reguladora e garantia do progresso social com
que se constroem as sociedades democráticas. E um fator de retrocesso civilizacional.
O processo genético dos Estados modernos significou também uma crescente
pressão de uso sobre o território e os seus recursos, obrigando a uma maior disciplina de uso e uma atenção constante aos riscos que o uso excessivo acarreta. Cabe,
por isso, ao Estado velar por esta disciplina de utilização, definindo as políticas mais
ajustadas a esta finalidade e regulando a sua aplicação, mesmo quando tal ocorra no
âmbito e por ação da iniciativa privada.
O território é objeto de competição, sujeito a disputas pela apropriação e uso, e
razão de ser de conflitos cujas consequências influenciam a organização social e a
organização dos Estados. A exiguidade dos recursos disponíveis exige às sociedades
e aos Estados comportamentos e respostas adequadas para que se não comprometam no presente e no futuro nem a aspiração a melhores condições de vida e de
segurança nem uma equilibrada relação entre as liberdades públicas e individuais e
a autoridade e a ação do Estado. Isto em ordem a garantir o domínio social, político
e económico do seu uso em benefício das sociedades cujos interesses organiza e
representa.
A importância das políticas públicas como instrumentos da ação do Estado e
como conjunto de normas de regulação e organização social resulta disto mesmo.
As disputas sobre o território tornam evidentes a importância da regulação social
e o modo como se estabelecem e estruturam as relações entre a sociedade e o
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URBANISMO E TERRITÓRIO
Estado, com maior ou menor intervenção deste naquela regulação. Em alternativa a
um papel ativo e principal da sociedade e dos indivíduos na apropriação e uso do
território e no estabelecimento da regulação social correspondente.
A regulação social é condição de uso equilibrado do território e da sua disponibilidade permanente para as atuais e futuras gerações, mas também de identidade e
soberania. As disputas sobre o território não se restringem apenas uma questão de
posse e controlo do espaço disponível, de afirmação de poder e de garantia de segurança; são também algo que tem a ver com a apropriação e uso dos recursos naturais
como reserva substantiva de riqueza indispensável às atividades humanas e ao progresso social.
A apropriação, controlo e uso do território necessita de regulação para que a
organização social respeite a dignidade individual e os valores comuns que dão sentido à vida em comunidade, na esfera local e nacional. Até porque, sem território, as
sociedades dificilmente conseguem manter-se estruturadas, coesas e livres. As políticas públicas, como instrumentos para tal desenhados, devem ter isso em conta; o
seu compromisso com o território é tanto uma necessidade como um imperativo
moral para o presente e para o futuro.
A situação dos povos sem território, e sem políticas adequadas à sua realidade,
conduz sempre à sua desestruturação social e à indignidade.1 A ligação entre uso do
território e liberdades públicas e individuais é uma questão central para a conceção
das políticas públicas e para a sua execução. Da mesma forma que o uso equilibrado
e racional dos recursos naturais, como património comum, conduz a um maior
equilíbrio na organização social, sem o qual não é possível nem a coesão territorial
nem a coesão social de que dependem as sociedades democráticas.
A natureza do Estado e as liberdades individuais e públicas são realidades
indissociáveis no estudo e análise das políticas públicas territoriais porque delas
resultam o modo de organização das sociedades e o modo como são definidas e aplicadas as políticas públicas. As políticas territoriais não se dissociam das circunstâncias sociais e políticas e a crise económica e financeira que hoje assola os países mais
desenvolvidos e socialmente mais organizados mostram-no bem. As consequências
territoriais, sociais, económicas e políticas que dela decorrem são evidentes, os riscos de desagregação social e territorial anunciam-se e as relações do Estado com os
cidadãos ameaçam conflitos que não podem ser ignoradas. O desenvolvimento desigual que daqui resulta modifica tanto as relações sociais como o modo como os territórios se organizam e articulam entre si. A ponto de a coesão territorial estar em
risco nos países mais intensamente atingidos pela crise económica de raiz financeira. Uma questão que não tem sido abordada nos estudos e análises das consequências da crise económica e financeira nas sociedades por ela atingidas mas que é
perfeitamente visível na degradação urbana e das infraestruturas e no enfraquecimento da administração urbanística.
(1)
Como o mostra a situação dos judeus até à formação do Estado de Israel e a dos palestinianos, atualmente.
AS POLÍTICAS PÚBLICAS
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As crises económicas, como a que agora corrói as economias dos países mais
desenvolvidos e, por arrastamento, também as outras, pelo impacte social que têm,
tornam necessária uma reflexão alargada sobre a importância e o papel do Estado na
organização e funcionamento das sociedades afetadas. A sua existência, tal como no
passado, cria condições para atualizar o debate sobre o papel e a importância do
Estado na definição das políticas, na sua extensão e aplicação, e o nível, a qualidade
e a dimensão das atividades públicas concorrentes para a prossecução do bem
comum e para o bem-estar dos cidadãos. Uma questão sempre presente quando a
análise das realidades económicas e sociais necessita de contextualização cultural e
política para a sua compreensão.
Na sua diversidade, as políticas públicas são uma expressão da autoridade do
Estado e determinam tanto as formas de representação da organização social como
da sua organização política e administrativa. Sem Estado não existem políticas
públicas por ausência de instituições que organizem e interpretem as necessidades
da sociedade e estabeleçam e executem as ações correspondentes à obtenção dos
resultados pretendidos.
A autoridade do Estado, e a sua expressão prática em termos de organização e
funcionamento da administração pública, tem sentidos e significados diferentes
consoante as condições e o contexto em que se exerce. Não é indiferente, para a
compreensão desta realidade, o fundamento daquela autoridade nem a origem e as
razões da sua legitimidade. Como consequência e resultado de compromissos sociais
e políticos livremente expressos e aceites, a autoridade o Estado é um fator de coesão social e de coesão territorial sempre e quando as políticas públicas têm direta ou
indiretamente uma dimensão espacial.
Situação diferente ocorre quando a autoridade do Estado decorre da imposição de
políticas que não mereceram nem a contratualização social livremente expressa nem
a possibilidade do seu escrutínio por aqueles a quem se destinam ou que sofrem os
efeitos da sua aplicação.
Em democracia a autoridade do Estado resulta da vontade coletiva livremente
expressa e assumida, permanentemente ajustada às necessidades e realidades
sociais. As políticas públicas, em democracia, representam, por isso, o resultado do
exercício do poder por uma autoridade investida de poder público e de legitimidade.
Em regimes não democráticos a autoridade do Estado não decorre de um contrato social livremente aceite, sendo unilateralmente imposta de acordo com o
padrão ideológico estabelecido por uma elite que se apropria do poder e o controla,
de acordo com os seus interesses, sem discussão ou escrutínio. As políticas públicas
dos Estados não democráticos não são passíveis de discussão pública nem os seus
resultados podem ser escrutinados de forma livre pelos seus destinatários finais. A
ausência de participação, direta ou indireta, da sociedade na definição das políticas e
no acompanhamento e escrutínio da sua aplicação e na avaliação dos resultados
representa uma clara violação de direitos e um flagrante desequilíbrio no sistema de
relações entre o Estado e os cidadãos, organizados ou não. Nestes casos as políticas
públicas, mesmo quando baseadas na lei e terem até enquadramento constitucional,
não representam um contrato social; pelo que, mesmo quando «são vistas como
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URBANISMO E TERRITÓRIO
legítimas, podendo ser impostas coativamente» (Rocha, 2010: 39), não deixam de
ser ilegítimas.
A aplicação das políticas públicas, nestas condições, tem como resultado, para
além da sua territorialização, modelos de organização das relações sociais e económicas e à definição do respetivo quadro institucional não suscetíveis de controlo
pela sociedade no seu todo. As políticas e as propostas de ação que as concretizam
são, assim, apenas as que as elites dominantes consideram, de acordo com os seus
objetivos e interesses.
As relações entre o Estado e a sociedade, e muito especialmente os cidadãos individualmente considerados, são, nestes termos, relações impositivas de poder que
não deixam qualquer margem de negociação para a definição das políticas nem para
a sua aplicação. As políticas públicas, no sentido de pertença a uma comunidade,
são, nestas circunstâncias mais políticas de Estado do que políticas públicas.
O que não pode deixar de ser considerado na análise das políticas públicas sempre e quando estas correspondem a períodos políticos onde a lógica da imposição
prevaleceu sobre o diálogo, onde a ditadura se sobrepôs à democracia.
As políticas públicas e o Estado social
As políticas públicas sociais são parte do conjunto de políticas destinadas a assegurar uma justa distribuição da riqueza e dos serviços e equipamentos sociais.
Fazem parte da definição dos modelos de Estado e, como tal, condicionam e influenciam a definição das políticas e a organização da administração pública, como instrumento executor das políticas.
Do mesmo modo que a consagração das liberdades individuais como direitos inalienáveis está intimamente ligada às revoluções americana e francesa, também as
questões, mais tarde erigidas em direitos, foram fazendo parte, de forma crescente,
do património coletivo de que se formaram os Estados modernos. Como tal, as
questões sociais tornaram-se questões de primeiro plano que não podiam deixar de
ser tidas em conta nas formas de intervenção do Estado, no modo e na intensidade
da regulação da vida em comunidade e na prestação dos serviços que, de forma solidária, garantem a igualdade de oportunidades. As políticas sociais são, de certa
forma, referenciais importantes para a modelação dos Estados para os quais as
liberdades se restringem a aspetos formais que o iluminismo moldou; os direitos
sociais que as dinâmicas sociais e políticas lhes acrescentaram passaram a fazer
parte do acervo de liberdades que aos Estados compete garantir e promover.
A democracia é, assim, tanto uma condição de progresso económico e social como
uma sua resultante e as políticas públicas são uma forma da sua afirmação pelo
modo como estão associadas à intervenção social do Estado.
De facto, a função do Estado não é apenas o de regular relações, estipular direitos
e obrigações, numa suposta neutralidade perante os interesses que contribuem para
AS POLÍTICAS PÚBLICAS
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a organização social e a consequente repartição de funções, de riqueza, de benesses,
de obrigações e de privilégios. A organização social é, sempre, o resultado da natureza, da intensidade e da fluidez das relações de dependência ou de complementaridade e dos conflitos de interesses que traduzem a permanente tensão das dinâmicas
sociais e económicas que os animam. Mesmo se, como o afirmam algumas correntes
de pensamento próximas do marxismo, as políticas sociais se destinam muitas das
vezes apenas a manter sob controlo «parcelas da produção não inseridas no processo produtivo» (Höfling, 2001: 33). Crítica que, aliás, o neoliberalismo assume, de
forma idêntica, mas por razões opostas.
A existência de políticas públicas sociais está associada à criação do Estado social,
corporizando o que se tem convencionado chamar as funções sociais do Estado; funções que, a partir de finais do século XIX, começaram a ganhar expressão na ação
política, no suporte e enquadramento da organização social, na consolidação do
Estado moderno resultante da revolução industrial e do liberalismo político e parlamentar que emergiu na Europa na sequência da Revolução Francesa e da revolução industrial.
Ao Estado que cobrava impostos, fazia a guerra, administrava a justiça e o território, sucedeu um Estado onde as preocupações sociais passaram a ter um papel crescentemente importante como garante da paz social indispensável ao desenvolvimento económico. As preocupações sociais de matriz assistencialista e caritativa
passaram, deste modo, para a esfera das preocupações económicas associadas ao
bem-estar que propicia e estimula a criação de riqueza. A administração pública
ganhou, com isso, estatuto e importância e, ao mesmo tempo, passou a ser, também,
um fator de produção. Passou a ser-lhe conferido um papel essencial na concretização das políticas, exigindo-se-lhe, com isso, organização interna e dinâmica adequada; nem sempre, no entanto, ajustadas ao tempo e às necessidades. Como ainda
agora acontece.
O desenvolvimento económico e social do século XIX trouxe consigo uma profunda transformação das sociedades, tanto do ponto de vista da sua organização
interna como da sua organização política. A revolução industrial representou uma
mudança dos paradigmas urbanos e dos rurais. As mudanças ocorridas no mundo
rural revelaram-se nas dinâmicas demográficas resultantes da migração de pessoas
das áreas rurais para as urbanas e pela disseminação de redes de infraestruturas
rodo e ferroviárias. As ligações entre as diferentes áreas regionais tornaram-se mais
fáceis, o que estimulou o desenvolvimento das atividades económicas e as trocas
culturais e sociais que impulsionaram a evolução e o progresso social.
A transformação territorial associada a este movimento migratório decorreu em
paralelo com a desagregação do modelo social dominante antes da revolução industrial e, muito especialmente, da Revolução Francesa. Ainda que de forma diversa,
tiveram ambas um papel decisivo na modelação do tecido social e político que se foi
consolidando ao longo do século XIX, no sentido de uma crescente atenção e preocupação com as questões sociais.
Os Estados modernos são fruto e consequência deste processo social e político e,
como tal, a vertente social que hoje apresentam é o resultado das condições em que
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URBANISMO E TERRITÓRIO
se forjaram. Mesmo quando esta vertente social se dilui, hoje, em formas de regulação que substituem, numa perspetiva liberal, a ação direta do Estado neste domínio.
Com o que se têm vindo a enfraquecer a coesão social e a coesão territorial que
garante a coesão interna dos Estados.
As realidades sociais e económicas do século XIX deram origem a modos
diversificados de organização social, com consequências nas relações humanas e na
emergência de interesses diferentes, divergentes e conflituais, os quais, naturalmente, se vieram a expressar nos modelos de organização política e administrativa
dos territórios e na definição das políticas públicas. A complexidade dos tecidos
sociais que emergiram da revolução industrial e do pensamento liberal que formataram os Estados modernos é, por si, razão e consequência de tensões e conflitos. O
que é próprio dos processos de criação de novas realidades, sejam elas sociais ou
políticas, ainda que seja difícil distinguir umas das outras.
A realidade social, em cada caso e de acordo com as condições locais, fez com que
os conflitos sociais e políticos que contribuíram para a formação e consolidação dos
Estados modernos tenham ocorrido de modo variado e nem sempre no mesmo sentido. As necessidades e aspirações das sociedades não são idênticas em todos os
momentos e circunstâncias, como o não são os fatores que influenciam e estimulam
as mudanças sociais e políticas; mesmo quando pareça que em condições idênticas
ocorrem sempre fenómenos idênticos.
Os sistemas de relações entre os cidadãos e entre estes e os Estados, representam,
na sua diversidade, a história da sua origem e evolução. Mostram como as sociedades se organizam e evoluem e como contribuem para a sua coesão quando o equilíbrio é a norma orientadora. Este sistema equilibrado de relações, contribuindo para
a definição das políticas e para o controlo e escrutínio da sua aplicação, constitui o
fundamento das democracias contemporâneas.
A revolução industrial trouxe consigo formas de exploração de recursos e de
organização económica que contribuíram para moldar a organização social, em diálogo mas também em conflito, adequando-a aos novos tempos e às novas formas de
relação entre os cidadãos e o Estado. Os padrões de organização produtiva que
foram ganhando forma e expressão impuseram ajustamentos na ordem social e na
sua espacialização. Não apenas no que se refere às relações entre pessoas e grupos
mas também quanto à emergência de novos estatutos sociais. Dos conflitos entre os
interesses económicos imediatos e as novas ideias que, desde o iluminismo procuravam nas liberdades cívicas o fundamento de uma nova sociedade, resultou uma
crescente integração dos valores sociais nas políticas públicas como condição do
progresso social promotor do progresso económico. O que não aconteceu sem conflitos.
A diferenciação social que fez da burguesia o grupo social dominante representou,
também, o surgimento do proletariado como classe apenas dependente da sua força
de trabalho. As formas de interdependência e de conflito social que daqui resultaram trouxeram para o primeiro plano das realidades públicas desafios aos quais as
sociedades não estavam em condições de responder eficazmente. Como também o
não estavam as instituições públicas e a organização política dos Estados.
L E O N E L FA D I G A S
LEONEL FADIGAS, Arquiteto paisagista e urbanista, é doutorado em Planeamento Urbanístico (Universidade Técnica de Lisboa, 1995), agregado em Administração Pública e Políticas
Territoriais (Universidade Técnica de Lisboa, 2011) e Professor de Urbanismo da Faculdade
de Arquitetura da Universidade de Lisboa. Deputado à Assembleia da República (1981-1987), presidiu à Comissão Parlamentar de Equipamento Social e Ambiente (1983-1985),
tendo sido um dos responsáveis pela elaboração da Lei de Bases do Ambiente. É autor dos
livros Fundamentos Ambientais do Ordenamento do Território e da Paisagem (Edições Sílabo,
Lisboa, 2007) e Urbanismo e Natureza – Os Desafios (Edições Sílabo, Lisboa, 2010). Em 2001
foi agraciado pelo rei de Espanha com a Comenda da Ordem de Isabel La Católica.
Urbanismo e Território
As políticas públicas territoriais, na sua definição e aplicação, representam um
sistema ideológico de apropriação e controlo do território como recurso essencial
ao desenvolvimento económico e social e à afirmação do Estado como regulador
da vida em sociedade. Direta ou indiretamente, estabelecem as regras quanto à
utilização e gestão de recursos, localização e instalação de pessoas, infraestruturas,
atividades e equipamentos e ao modo como é exercido o controlo social da sua
definição, aplicação e avaliação. O território e as paisagens onde a nossa vida
decorre são, por isso, tanto o resultado das políticas públicas territoriais como da
sua ausência, do seu sucesso ou do seu fracasso, razão para que estas constituam
uma área de investigação importante para a compreensão das questões e dos
fatores que, em democracia, condicionam ou favorecem as formas de uso do território, o urbanismo e a sua qualificação.
Este livro destina-se tanto aos que, por razões profissionais ou académicas, na
administração pública, no urbanismo e na ação política intervêm no planeamento
e na administração do território e àqueles que sentem cada vez mais a necessidade
de compreender como se transforma o território num mundo em mudança.
9 789726 187974
497
ISBN 978-972-618-797-4
As políticas públicas
Urbanismo
e Território
As políticas públicas
As políticas públicas
A publicação desta obra teve o apoio:
Urbanismo
e Território
L E O N E L FA D I G A S
Edições Sílabo
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