Islam: religião, etnicidade e cultura Henry Albert Yukio Nakashima

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Revista Tempos Acadêmicos - ISSN 2178-0811
Islam: religião, etnicidade e cultura
Henry Albert Yukio Nakashima1
Resumo: O presente artigo tem como objetivo demonstrar que, apesar de o islamismo
possuir uma estrutura permanente (leis, pilares, etc), o contexto social, cultural e
histórico é fundamental para compreendê-lo e à sociedade na qual está inserido. Como
exemplo, as próximas páginas abordam o contexto no qual surgiu e como o meio diz
muito sobre a forma que o fiel expressa e recorre à religião. Também foi reservado
espaço para o islamismo no Brasil e como negros escravizados, imigrantes e
convertidos praticaram sua fé.
Palavras-chave: Religiões, Islamismo, Deslocamentos, Culturas
Abstract: This article aims to demonstrate that, although Islam has a permanent
structure (laws, pillars, etc.), the social, cultural and historical is fundamental to
understand it and to the society in which it is inserted. As an example, the following
pages address the context in which it arose and how the media says a lot about the way
that the faithful express and resorts to religion. He was also booked space for Islam in
Brazil and how enslaved blacks, immigrants and converts practiced their faith.
Keywords: Religions, Islam, Displacements, Cultures
Introdução
Quando se trata de religiões, é comum que se crie uma imagem fixa, imutável,
sobre suas práticas, de modo que, ao ouvir uma referência sobre elas, surja uma ideia
cristalizada e já estabelecida. Nada mais rotineiro, já que o ser humano cria
naturalmente imagens para associar às palavras e às ideias. No entanto, tal prática
ignora a dinâmica que as religiões vivem. Logo, incorre-se ao erro, ao equívoco da
generalização.
O meio para se esquivar desse tipo de ação é compreender que as religiões estão
em constante transformação, tal qual a sociedade que as abriga. Nenhuma manifestação
cultural está inerte no tempo e no espaço. Portanto, ao se referir a uma religião ou a uma
1
Mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pesquisador do Núcleo de
Estudos de História Social da Cidade (NEHSC). E-mail: <[email protected]>
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prática religiosa é importante compreender o contexto histórico no qual ela está
inserida. Pois, ainda que os alicerces permaneçam os mesmos desde sua origem, novas
realidades, problemas, novas situações, levam os fiéis a buscarem novos sentidos ou
mesmo uma reorganização para seus rituais e fundamentos. Isso acontece com toda e
qualquer prática religiosa, assim como com qualquer manifestação cultural. O que dirá,
então, quando a religião se espalha por culturas distintas?
No que se refere ao islamismo praticado no Brasil, há algumas peculiaridades. O
que se testemunha na atualidade (fiéis, mesquitas, instituições islâmicas, etc) é fruto de
um processo iniciado na segunda década do século XX, mas que se estruturou somente
após a Segunda Guerra Mundial. Inicialmente, era uma religião de imigrantes e isso
significa que não havia a intenção de propagar as revelações do profeta Mohammad.2
Até porque, o objetivo dessas pessoas era permanecer apenas o suficiente para juntar
algum dinheiro e retornar à sua pátria. Some a essas questões as grandes diferenças
culturais entre o Brasil e os países de origem desses imigrantes e se encontra o contexto
para as particularidades do islamismo brasileiro. Os próprios praticantes reconhecem as
distinções, pois, "querendo ou não, você sempre vai ser influenciado pelas tradições,
pelos costumes"3 locais.
Engana-se, entretanto, aquele que pensa que é algo que surgiu com as
imigrações, pois, pode-se dizer, desde seu surgimento, o Islam está em movimento, em
deslocamento, alcançando outras culturas. Não só porque disseminar uma revelação é
inerente à religião, mas porque ele surgiu no seio de uma sociedade mercante, em uma
região de frequente trânsito cultural.
Um breve histórico
A princípio, as palavras de Mohammad, não foram bem recebidas. Mesmo ele
não divulgava as revelações abertamente; somente familiares e as pessoas mais
próximas as aceitaram prontamente. No entanto, mais e mais pessoas se interessavam
2
Utilizo Mohammad, ao invés de Maomé, para me referir ao profeta, em respeito à solicitação do
Ministério de Awkaf (Bens Religiosos) da Arábia Saudita. Da mesma forma, ao invés de Meca e Medina,
utilizo Makka e Madina; e Allah no lugar de Deus.
3
Samir entrevistado em 29/08/2009.
2
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por suas palavras de modo que não tardou para que Makka soubesse que aquele
mercante disseminava o que considerava revelações divinas.
É preciso ponderar que a família de Mohammad, seu clã, era de mercantes; sua
esposa era uma eminente comerciante, para quem ele mesmo trabalhava. Assim, é
compreensível que a exposição do nome de Mohammad tenha incomodado não só os
crentes de outras religiões, mas – especialmente - os comerciantes concorrentes. O fato
é que, independentemente do motivo, o Profeta foi obrigado a se deslocar de Makka a
uma cidade ao norte chamada Yathrib, o que foi chamado de Hijra (Hégira, a
emigração). Posteriormente, essa cidade teve seu nome alterado para Madina (de
madinat al-nabi, "a cidade do Profeta") e, ao lado de Makka, figura como uma das mais
importantes cidades para o Islam.
Superados os conflitos com Makka, Mohammad se estabeleceu podendo, assim,
iniciar a expansão das revelações por toda região. Ainda em vida, praticamente toda
península arábica já havia abraçado o Islam, e não tardou para que seus emissários
alcançassem, cada vez mais, regiões mais distantes, como na região do Chifre da África.
Tendo chegado ao fim, os dias do Profeta na Terra, iniciou-se um processo de
escolha de uma nova figura para liderar os muçulmanos, ou mesmo servir como uma
referência, um califa ("Khalifah", de Khlf, "seguir"). No entanto, as expansões não
cessaram, pelo contrário, foram ampliadas. Ao final do quarto califado, em 661 d.C.,
portanto, apenas trinta anos após a morte de Mohammad, os muçulmanos já haviam
chegado ao território que consiste a atual Turquia, à Líbia, no continente africano, e à
região do atual Paquistão. Pouco tempo depois, estenderam-se por todo o Magreb, a
região norte do continente africano, até alcançar o Marrocos. Tendo ali chegado, não
tardou para que cruzassem o estreito de Gibraltar e alcançassem a península ibérica.
Não se pode ignorar que foi um grande feito, mas é preciso ressaltar que não foi
uma ação estritamente árabe,4 pois já contavam com grande contingente de berberes, um
grupo heterogêneo da região com muitos revertidos.5 Da mesma forma que a Pérsia
4
Aqui se faz necessária uma observação conceitual. Por árabe se entende algo ou alguém proveniente da
península arábica. Por islâmico se entende algo referente a essa religião (mas convencionou-se a utilizar
para instituições, países, ou cultura). Muçulmano, por sua vez, é o indivíduo que aceitou o islamismo.
Com o passar do tempo, os termos "árabe" e "islâmico" passaram a se confundir. Isso se deve ao fato de o
Islam ter surgido no seio da cultura árabe, ter o idioma árabe como o "oficial" e sagrado – inclusive é o
idioma do Alcorão – e por ter se expandido amplamente com os árabes. Mas um árabe nem sempre é
muçulmano, da mesma forma que nem todo muçulmano é árabe. O país com maior concentração de
muçulmanos não é um país árabe, fica no sudeste asiático, a Indonésia.
5
Para o islamismo, todos nascem muçulmanos. Portanto, quem aceita o Islam de coração não se converte,
mas se reverte.
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islâmica manteve seu próprio idioma – utilizando o árabe apenas nas liturgias ou em
situações isoladas, tal qual um cumprimento -, os berberes não se desconectaram de sua
cultura quando abraçaram o Islam.
Já na península ibérica, cujos territórios ocupados por muçulmanos passaram a
ser chamados de al-Andalus, passaram a conviver com judeus e cristãos. É verdade, no
entanto, que, a princípio, os cristãos deixaram suas terras, tendo sido derrotados pelas
forças islâmicas. Quanto aos judeus, sob o governo cristão, "sofreram, por certo, severas
privações legais e perseguição intermitentes, e é nítido que preferiram ficar nas suas
cidades e aceitar o domínio muçulmano a juntarem-se aos seus conterrâneos cristãos em
fuga".6 Entretanto, aos que reconheceram o novo governo e aceitaram os tributos, a
permanência foi autorizada. Pode-se dizer, portanto, que, durante a permanência dos
muçulmanos na península, as três religiões abraâmicas7 conviveram pacificamente ao
ponto de os governantes árabes terem funcionários judeus e cristãos.
Os deslocamentos islâmicos não se restringiram aos avanços a oeste.
Alcançaram a Índia, com seu grande conhecimento matemático, e a China, onde
entraram em contato com o papel e fizeram grande uso dele, não só para reproduzir o
Alcorão, mas para registrarem estudos, ensaios científicos,8 poesia, etc.9
Da mesma forma, conforme dinastias - como a dos persas e dos otomanos - se
reverteram ao Islam, as revelações do Profeta alcançaram lugares mais distantes.
Enquanto estiveram no poder, os persas Omíadas tiveram grande força no chamado
Oriente Médio e na península ibérica; havia também os Moghul, mongóis muçulmanos
que só tiveram seu último líder deposto em 1858, pelos ingleses, mas não sem que antes
o islamismo tivesse alcançado a região da Indonésia. Os Otomanos, por sua vez,
estenderam os territórios islâmicos por uma vasta região que abarcava o sudeste europeu
6
KENNEDY, Hugh. Os muçulmanos na península ibérica: História política do al-Andalus. Mem
Martins: Publicações Europa-América, 1999, p. 32.
7
Judaísmo, cristianismo e islamismo, apesar de distintos, seguem a mesma cronologia. Cada uma surgiu
considerando que complementou a anterior, mas sem ignorar ou desconsiderar sua história. São chamados
de religiões abraâmicas por reconhecerem na figura de Abraão seu patriarca. Sua importância para os
muçulmanos chega ao ponto de reservarem a ele um templo ao lado da pedra negra, a Ka'aba, em Makka,
no local de peregrinação.
8
Durante um grande período, a ciência árabe (que pode ser chamada de islâmica, nesse caso, já que
estava sob a regência de muçulmanos) se desenvolveu com afinco. Alguns nomes ecoam ainda hoje
devido sua importância, como Ibn Sina (Avicena) e Ibn Rusd (Averróis).
9
De acordo com um hadith (ditos do Profeta, exemplos a serem seguidos), Mohammad disse para que
"Buscai a ciência, (se necessário) até na China". Há ainda um outro, atribuído a al-Ghazali afirmando que
"A busca da ciência está prescrita para todo muçulmano". Cf. PEREIRA, Rosalie Helena de Souza. A
concepção de Profecia em Avicena (Ibn Sina). In: PEREIRA, Rosalie Helena de Sousa (org). O islã
clássico: itinerários de uma cultura. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.332.
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(Grécia, região dos Balcãs, etc), o Oriente Médio (com exceção do interior da península
arábica) e o norte do continente africano, o Magreb. Tamanho espaço geográfico
abrigava diversas manifestações culturais, tão distintas que, apesar de a estrutura
religiosa ser a mesma, não se pode afirmar que todos praticavam e assimilavam a
religião da mesma forma. Faziam todos parte do mesmo império, praticavam todos a
mesma religião, mas havia muitas particularidades.
Obviamente, a presença islâmica não permaneceu estática. Não só porque a
religião, como uma manifestação cultural, é dinâmica, mas porque ainda havia outros
elementos, como a presença de povos não revertidos. Exemplos há vários, como os já
citados berberes – que não foram todos revertidos -, os cristãos e judeus na península
ibérica ou mesmo no Oriente Médio, os cristãos ortodoxos europeus, além de diversas
outras culturas espalhadas por todo território islâmico. E, se "toda religião é um produto
histórico, culturalmente condicionado pelo contexto e, por sua vez, capaz de
condicionar o próprio contexto em que opera",10 pode-se dizer que, compreendendo as
particularidades, a relação da religião com a sociedade, chega-se não só a uma
compreensão da atuação religiosa no contexto, mas do contexto em si.
Não pretendo, neste artigo, aprofundar-me em todas essas particularidades. Tal
trabalho demandaria uma longa e minuciosa pesquisa. O que proponho é um olhar mais
atento a como a religião – neste caso, o Islam – é manifestada de acordo com o contexto
em que ela está inserida. Ou seja, em cada local estabelecido, cada cultura com a qual se
deparou, cada contexto sócio-econômico, fez com que tal religião se desenvolvesse de
uma forma.
Para deixar a questão mais complexa existe também uma categorização muito
antiga na qual os muçulmanos estão inseridos que, apesar de controversa, divide o
mundo em três setores: Dar al-Islam (Terra do Islam), Dar al-Harb (Terra de guerra) e
Dar al-Muahadah (Terra de tratado). O primeiro caso se refere a um território onde há
uma maioria islâmica e há harmonia com minorias de outras religiões; o segundo caso
se refere a territórios onde o muçulmano não pode praticar sua religião livremente; e, no
terceiro caso, são locais onde os muçulmanos são minoria, mas conseguem viver
10
MASSENZIO, Marcello. A história das religiões na cultura moderna. São Paulo: Hedra, 2005, p. 149.
5
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pacificamente. É relevante considerar essas distinções, pois faz toda diferença nas
relações de poder. Qualquer região pode passar de uma categoria a outra, de acordo com
a realidade vivida. Cito o caso do islamismo em terras brasileiras como exemplo.
O Islam no Brasil
Existem dois momentos muito claros de sua presença no Brasil. O primeiro é o
nefasto período da escravidão. Quando a Coroa portuguesa determinou o uso de
escravizados como força motriz da produção colonial, milhares e milhares de pessoas
foram trazidas à revelia do continente africano. No século XVI, muitas das sociedades
africanas já tinham entrado em contato com missionários muçulmanos, principalmente
as que ficavam próximas às grandes rotas comerciais.11 Dessa forma, entre aqueles que
tiveram como destino a deletéria realidade nas produções brasileiras, havia muitos
muçulmanos.
Aqui, encontraram diversas situações que destoavam em larga medida dos
preceitos aprendidos na educação islâmica. Além de estranharem o fato de seus "donos"
ignorarem completamente a arte da escrita e da leitura, era inadmissível ter que se
submeter a outro homem, pois a prostração só deve ser feita a Allah. Encontraram no
Brasil uma Dar al-Harb, pois a única religião permitida era a cristã. Não se sujeitaram.
Encontravam-se clandestinamente para orações e ensinar a leitura a outras pessoas.
Nesse período, diversas rebeliões foram realizadas, mas com poucas evidências
de que os muçulmanos estivessem envolvidos. No entanto, uma delas indicou o
contrário. A rebelião que ficou conhecida como A Revolta dos Malês, ocorrida em
1835, na Bahia, deixou vários mortos, entre os quais foram encontrados amuletos em
árabe, contendo suratas.12 Num ato que remeteu a um verdadeiro jihad,13 pois "a
11
Cf. SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: A África antes dos portugueses. 3ª Ed. Revisada e
ampliada. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2006
12
Suratas são os capítulos do Alcorão.
13
A mídia tem divulgado que jihad é a "guerra santa" do muçulmano. É preciso desmistificar tal conceito.
Por jihad, o muçulmano entende, em primeiro lugar, a luta constante que ele trava consigo mesmo para se
manter na retidão. Em segundo lugar, é o seu direito de defender sua família, casa e a si mesmo, quando
atacado.
6
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religião tinha sua parte na sublevação",14 essas pessoas lutaram contra o julgo do
homem branco, ainda que a perspectiva de vitória não fosse grande.
Não muito tempo depois, por uma das vicissitudes da vida, uma embarcação
originária do então Império Otomano se desviou de sua rota e chegou à cidade do Rio
de Janeiro, em 1865. Nela, muitos muçulmanos. Entre eles, uma curiosa pessoa
chamada Abdurrahmán bin Abdullah Al-Baghdádi, imam (guia) da embarcação. Ao
pisarem em terra firme foram cumprimentados por pessoas em roupas que mais
pareciam trapos com um tradicional "as-salámu alaykum",15 que, tomado por escárnio,
foi ignorado. Os constantes cumprimentos e uma conversa mais aprofundada com essas
pessoas instigou Al-Baghdádi. E sua breve estadia, apenas o suficiente para reparos na
embarcação, descanso, juntar provisões e voltar à rota original, transformou-se em três
anos. Durante esse período, ele se esforçou para fazer com que esses muçulmanos da
terra brasilis voltassem a praticar o islamismo como ele julgava ser o correto.
Transgredindo a dificuldade do idioma, dedicou-se a ensinamentos, reversões, e a uma
renovação da fé islâmica, no Rio de Janeiro, Recife e Salvador.16
Talvez, não por acaso, poucos anos depois, um fenômeno social foi registrado por
ninguém menos do que um diplomata francês no Brasil, Arthur de Gobineau. Leitor
dedicado, frequentava a livraria da dupla francesa Fauchon e Dupont, com os quais
desenvolveu um relacionamento suficiente para que a dupla lhe confidenciasse que,
curiosamente, havia grande procura do Alcorão por parte de negros, libertos ou não. O
suficiente para que o autor do Essai sur l'inegalité des races humaines17 registrasse tal
fato em um relatório político.
Pode-se notar, portanto que a manifestação do Islam no século XIX foi
significativa. Rebeliões, compra de Alcorão, registros por parte de um diplomata e um
muçulmano estrangeiro dão conta disso. Mas é significativo também – especialmente
para o objetivo deste artigo – como a religião serviu nesse contexto. Não se pode
ignorar a condição em que se encontravam essas pessoas. Quando cativos, estavam à
14
Apud REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: A história do levante dos malês em 1835. São
Paulo: Companhia das Letras, Edição revista e ampliada, 2003, p. 158.
15
Os muçulmanos se cumprimentam dessa forma, que significa "que a paz esteja contigo!", e respondem
dizendo "Wa'alaykum as-salám" (E que contigo esteja a paz!).
16
Para mais, cf. FARAH, Paulo Daniel. Deleite de um estrangeiro em tudo o que é espantoso e
maravilhoso: estudo de um relato de viagem bagdali. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca
Nacional/Argel (Argélia): Bibliothèque Nationale d'Algérie, 2007.
17
Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (Tradução livre), lançado em meados da década e 1850.
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mercê de um "dono", quando libertos, à mercê de uma mentalidade social que os
segregava. Assim, os ensinamentos do Islam, para além das normas de vida e dos
pilares, inerentes a qualquer religião, serviu-lhes de alicerce para lidar com uma
condição degradante. Além disso, a partir dos diálogos inter-religiosos que existiram
com os antigos saberes africanos surgiram práticas e costumes peculiares (os amuletos,
por exemplo) que, independentemente de os mais tradicionalistas rechaçarem, eram
manifestações que exaltavam o Islam e Allah.
Uma demonstração de como os contextos se transformam e alteram a
manifestação religiosa é a mudança da Constituição brasileira. A partir de 1937, a
Constituição brasileira, apesar de renovada algumas vezes, sempre defendeu a liberdade
religiosa. O Brasil, de uma Dar al-Harb (Terra de guerra) passou a uma Dar alMuahadah (Terra de tratado). No entanto, os praticantes do islamismo já não eram mais
os negros escravizados. Esses foram suprimidos, deportados ou tiveram sua fé dissipada
na memória de seus herdeiros.
Já no final do século XIX, imigrantes árabes começaram a chegar ao Brasil. O
contexto do Oriente Médio era instável, politicamente falando e o ímpeto modernizante
da América estimulava as levas migratórias. Esses deslocamentos se encarregarem de
reintroduzir o Islam no país. No entanto, os muçulmanos sempre foram uma pequena
parcela da imigração;
18
a maioria era cristã.19 Uma das explicações usadas para essa
desproporção é o desconforto cristão face o poder islâmico otomano. É preciso
considerar, no entanto, o envolvimento mais estreito que o muçulmano tinha com a
terra, além de acreditar que em terras distintas teria muita dificuldade para praticar sua
fé. Era como, portanto, que migrassem para o Egito ou outros países africanos, ao passo
que os cristãos optaram pela América.20 Pode-se notar, então, o modo determinante
como a religião atuou até mesmo na escolha do destino migratório, em mais um
exemplo da relação com seu momento histórico.
18
Estima-se que 15% da imigração árabe eram muçulmanos. Cf. PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha.
Islã: Religião e civilização: Uma abordagem antropológica. Aparecida-SP: Editora Santuário, 2010, p.
205.
19
Cristãos da Igreja Maronita, que, apesar de possuir um ritual próprio, reconhece a figura do papa; da
Igreja Melquita, de rito bizantino; e da Igreja Ortodoxa.
20
Cf. TRUZZI, Oswaldo Mário Serra. Patrícios: Sírios e libaneses em São Paulo. Editora Unesp, 2009,
p. 30
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Em São Paulo, o baixo número de muçulmanos não foi empecilho para
que, já em 1929, surgisse a primeira entidade islâmica no Brasil, a Sociedade
Beneficente Muçulmana de São Paulo. Um pequeno grupo que abarcava pessoas
provenientes da Palestina, da Síria e do Líbano, deparou-se com a necessidade de criar
uma instituição que facilitasse sua adaptação na distinta metrópole e que aproximasse os
muçulmanos. Diante da dificuldade dessas pessoas com o idioma português e prevendo
que seus herdeiros não viveriam em um ambiente árabe - distante do idioma árabe,
inclusive - concluíram que a melhor forma de minimizar essas adversidades era criando
tal instituição. Assim, deram aulas de português para imigrantes e de árabe para seus
filhos. Mas apesar desses esforços, somente após o fim da Segunda Guerra Mundial,
quando as levas migratórias reiniciaram, que a comunidade islâmica começou a criar
uma melhor estrutura para que pudessem praticar sua fé. Não só porque o número de
fieis aumentou, mas porque a cidade começou a apresentar elementos conhecidos à
comunidade. A partir de 1956, com o surgimento da Mesquita Brasil, na cidade de São
Paulo, a comunidade passou a realizar em conjunto as orações da sexta-feira e também
encontrar amigos e familiares. Pois, para além dos rituais religiosos, esse templo
religioso cumpre uma função social, serve como um local de encontro.
Se a proposta deste artigo é apontar as especificidades históricas da religião,
cabe apontar aqui alguns pormenores reveladores acerca da Sociedade Beneficente e da
mesquita. No caso da entidade, é revelador quando um imigrante atenta para o fato de
ela ser a primeira Sociedade da América do Sul.
(...) porque tinha sociedades lá em cima. Suriname tinha uma comunidade
muçulmana, mas não árabe; na Guiana Inglesa tinha uma também
comunidade islâmica, e, mesmo na Guiana Francesa também tinha
comunidade islâmica. Trinidad e Tobago tinha também uma sociedade, uma
comunidade muçulmana muito numerosa, como tem até hoje.21
A Sociedade Beneficente Muçulmana de São Paulo, portanto, de acordo com o relato,
foi a primeira comunidade islâmica estritamente árabe da América Latina. E aí está um
ponto relevante. É comum que em qualquer parte do mundo a liturgia seja realizada em
21
Samir entrevistado em 29/08/2009.
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árabe, idioma das revelações e do Alcorão, portanto língua "oficial" do Islam. No
entanto, dado que, cada vez menos pessoas falavam árabe, como a Sociedade
Beneficente anteviu, foram obrigados fazer um resumo dos sermões em português.
Certamente, um resumo não transmite a mesma eloquência e profundidade do sermão
em árabe, mas excluir o árabe sempre esteve fora de cogitação. Há o simbolismo
religioso nesse idioma, mas também um vínculo com seu passado.
A necessidade de se criar sociedades beneficentes e mesquitas, além da
concentração étnica, foi um meio de se criar locais de memória, posto que ao
se inserirem em uma nova sociedade, criaram uma ruptura com aquilo que os
conectava às suas tradições, ao seu passado. Esse conjunto composto pelo
ambiente da mesquita, do encontro de fiéis (patrícios) e do idioma, formaram,
então, elementos não só religiosos, mas identitários, que a Sociedade
Beneficente visava manter atuante. Toda essa preocupação surgiu da
necessidade de não permitir que seus costumes se diluíssem diante da nova
sociedade e que seus herdeiros não fizessem das práticas das gerações mais
velhas uma memória fadada ao desaparecimento.22
Sobre o islam no Brasil, portanto, pode-se notar que possui características
próprias, podendo ser chamado de islamismo brasileiro. Pois, por mais que a
comunidade tenha se esforçado, é inevitável que do encontro de imigrantes com a
cidade surja novos elementos culturais. Claro que a estrutura da religião permanece,
mas a forma como ela é praticada e vivida está condicionada ao contexto históricocultural no qual está inserido. No que se refere aos imigrantes árabes, além de um
vínculo com o metafísico, ela serviu de aporte étnico e identitário; um meio de
minimizar a ruptura com sua terra natal e cultura.
As novas gerações,23 entretanto, continuam transformando e reinterpretando o
Islam.
diferentemente dos mais velhos que tiveram que se adaptar, se inserir, seus
filhos brasileiros, nasceram inseridos em um sistema cultural que englobava
os costumes trazidos pelos pais e os costumes adquiridos no cotidiano. À
terceira geração essas diferenças já ficaram mais atenuadas de forma que eles
passaram a viver uma realidade mais "brasileira" do que "árabe".24
22
NAKASHIMA, Henry Albert Yukio. Ad-Din Fi Qulub: O Islam em São Paulo (1950-1980). São Paulo,
2012, p. 93.
23
Por "novas gerações", entendem-se não só os herdeiros dos primeiros imigrantes, mas também
imigrantes de levas mais recentes e até mesmo revertidos não-árabes.
24
NAKASHIMA, 2012, p. 103.
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No caso dos revertidos
Normalmente, chegam através de algum amigo, dos cursos promovidos pelas
Sociedades Beneficentes – em geral há cursos de árabe e de religião que são
divulgados em jornais; ou porque ouviram falar e querem conhecer melhor,
atraídos pelas notícias da mídia; outros, alguns negros, chegam através de
leituras ou do filme de Malcom X e dos movimentos muçulmanos e raps de
negros americanos; há ainda alguns que vêm por terem conhecido o sufismo;
outros por relacionamento matrimonial ou de outra sorte com algum
muçulmano; alguns poucos são movidos por inspiração política de crítica ao
Ocidente capitalista; e há ainda outros que chegam por terem obtido
informações pela internet.25
Uma demonstração de como o discurso generalizante é um erro é a forma como
os próprios muçulmanos entendem a prática da comunidade. Enquanto um fiel de
origem árabe pode se considerar mais próximo do Islam, devido à sua familiaridade
cultural, os revertidos "consideram seu saber religioso como superior ao da maioria dos
descendentes de árabes, uma vez que estes simplesmente reproduziriam costumes
herdados que muitas vezes não seriam fundamentados nos textos sagrados".26 No caso
da cidade de São Paulo, Há ainda uma mesquita no centro da cidade de São Paulo que
abriga um público praticamente de negros (estrangeiros e revertidos).27
Como se pode ver, não é tarefa simples abordar um islamismo universal, por
mais que tal prática se pretenda universalista. Há diversos fatores sociais, culturais e
históricos imprescindíveis à qualquer análise sobre ele, e que vale para qualquer prática
religiosa. Por mais que, independentemente do local e do período, os fiéis sigam as
mesmas leis e o mesmo livro sagrado, é preciso entender que o recorte temporal, o local,
a cultura, a condição em que a religião se encontra, enfim, o contexto, é fundamental.
Dessa forma, pode-se falar do islamismo da península arábica do século VII, do
islamismo da península ibérica do século X, do islamismo entre os negros escravizados
do Brasil do século XIX, do islamismo entre os imigrantes árabes de São Paulo do
25
OLIVEIRA, Vitória Peres. O islã no Brasil ou o islã do Brasil. Revista Religião e Sociedade. Rio de
Janeiro: v. 26, nº. 1, p. 83-114, 2006, p. 97.
26
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e civilização: Uma abordagem antropológica.
Aparecida-SP: Editora Santuário, 2010, p. 214-215.
27
Cf. o artigo da Aline dos Santos Silva.
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século XX. Portanto, qualquer discurso que ignore tais fatores incorre ao erro e, por
vezes, utiliza-se daquilo que Edward Said chamou de orientalismo.28 Ou seja, ao invés
de uma análise, uma construção ideológica acerca da alteridade. Especialmente em
tempos de propaganda e ações anti-islâmicas.
Enquanto o olhar em relação às diferentes culturas não for desprovido de uma
carga preconceituosa (ocidentalista), qualquer estudo sobre a diferença – não só em
relação ao islamismo – não estará apenas generalizando e incorrendo ao erro, mas
prestando um desserviço acadêmico. Não se trata apenas de uma abordagem
metodológica, que deve considerar as particularidades, o contexto, mas de um esforço
em prol do direito universal da existência cultural.
Referências
Entrevista realizada pelo autor com Samir El Hayek, tradutor e professor, no dia 29 de
agosto de 2009 na Mesquita de Santo Amaro, localizada à Rua Yervant Kissajikian,
106.
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