Para Além do Humano: Pesquisas Sobre o Comportamento de

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Para Além do Humano: Pesquisas Sobre o Comportamento de Primatas
Superiores e a Produção de Novas Fronteiras Para a Alteridade
Eliane Sebeika Rapchan
Doutora em Ciências Sociais (Unicamp), Professora do DCS - UEM
End.: Av. Colombo, 5690 - Bl. G34 - Maringá - PR - Brasil 87020-900 - f: (044)261-4288 - email: [email protected]
Resumo: O texto constitui-se numa reflexão sobre as abordagens produzidas pela
antropologia e pela etologia, a partir da adoção comum da prática do trabalho de
campo, bem como das conseqüências disso sobre o produto do conhecimento, em
favor da discussão sobre as fronteiras que definem a humanidade, nossa identidade e
nossa alteridade.
Palavras-Chave: Identidade, Alteridade, Seres Humanos, Primatas NãoHumanos, Antropologia, Etologia.
Abstract: The text is a reflection about the works produced by Anthropology and
Ethology from the common point of view adopted since the field work, as well the
consequences of this over the product of knowledge, on behalf of our discussion about
the borders that define Humankind, our identity and our otherness.
Key-Words: Identity, Otherness, Human Beings, Non-Human Primates,
Anthropology, Ethology
O que é a Alteridade senão a definição de um Outro reconhecido, um Outro
que deixa de ser o que era porque, de algum modo, passou a ser incluído num sistema
de classificação e de pensamento que inclui a nós mesmos e, através disso, passou a
coexistir e compartilhar conosco algo que entendemos ser parte constituinte, mesmo
que parcialmente, de nossa própria identidade?
Antropologia e etologia: Jornadas intelectuais em direção ao Outro?
Muitos pesquisadores, cujos interesses de pesquisa estão diretamente
relacionados ao estudo comparativo do comportamento animal, disciplina cujo nome é
etologia (LORENZ 1995), ou indiretamente, por meio, por exemplo, da antropologia
biológica (HRDY 2001), apontam Charles Darwin como o primeiro cientista a sugerir
a importância de se promover o estudo comparativo do comportamento dos animais,
inclusive o dos seres humanos (Cf. BLANC 1975; GOULD 1999) . Nessa direção,
vale lembrar da emergência da sociobiologia como um campo de produção de
conhecimento, proposta em 1973 por meio de um trabalho de Edward Wilson para a
qual é a evolução, através dos mecanismos de seleção natural, o fundamento que
explicaria todas as característica animais, incluindo as dimensões não imediatamente
relacionadas ao seu corpo biológico como, por exemplo, seu comportamento (RUSE
1983, p. 13).
Esse tema - o estudo do comportamento animal, humanos incluídos -,
particularmente se tratado paralelamente à história da antropologia enquanto
1
disciplina, traz à tona certos aspectos do processo de produção de conhecimento sobre
o humano, extremamente ricos e intrigantes. Por isso, gostaria de propor aqui um
enfoque que proporcionasse comparações entre os procedimentos de pesquisa
adotados pelos estudiosos do comportamento dos primatas superiores, particularmente
os que se dedicaram aos estudos dos chimpanzés, e os procedimentos adotados pelos
antropólogos, na abordagem de culturas e sociedades humanas.
A intenção é observar o quanto o contato dos pesquisadores com seus contextos
de pesquisa influenciou os resultados obtidos, particularmente no reconhecimento de
similitudes entre os pesquisados e os pesquisadores. As reflexões a seguir são
exploratórias e, em alguns casos, especulativas, mas a intenção é delinear questões
sobre o quanto a adoção de métodos que contemplem observação prolongada,
convívio mútuo e contextualização dos sujeitos e fatores envolvidos podem produzir
resultados que aproximam, para os pesquisadores, as perspectivas em que pesquisador
e pesquisado se encontram.
Para isso, precisarei transformar a longa, intrincada e complexa história da
emergência dos campos de produção de conhecimento sobre o humano e sobre os
chimpanzés numa narrativa relativamente simplificada, que tratará com mais cuidado
alguns aspectos e alguns contextos, com o intuito de promover e avançar na
proposição inicial desse texto, ou seja, o problema da definição da Alteridade.
As primeiras investidas dos etólogos ocidentais no trabalho de campo sobre
primatas não humanosi (cf. ASQUITH 1995; OHNUKI-TIERNEY 1995) são, mais ou
menos, contemporâneas às dos antropólogos. Entre meados do século XIX e a década
de 30 do século XX, personagens que foram, predominantemente, resultados de
cruzamentos entre missionários, cientistas, exploradores e caçadores na África
produziram relatos e remeteram representantes de chimpanzés para serem observados
na América e na Europa (REYNOLDS & REYNOLDS 1965, pp.394-395). A
experiência de R. L. Garner em 1896 é considerada a primeira tentativa de estudo de
campo sobre chimpanzés e gorilas (REYNOLDS & REYNOLDS 1965, p.394) e suas
observações foram registradas em relatório para a New York Zoological Society.
Sobre os chimpanzés, Garner aponta o que identificou como instabilidade dos
grupos, uma aparente ausência de organização social, promiscuidade sexual, falta de
hierarquias como reguladoras do comportamento e uma impressionante produção de
sons. Aliás, o autor faz referências a certos comportamentos já identificados e
nomeados por populações africanas, como o kanjo, ou “carnival” como prefere o
autor: uma vocalização acompanhada por percussão que se estende por várias horas e
pode ser ouvida a grandes distâncias (REYNOLDS & REYNOLDS 1965, pp.407408; 420; 423-424)
Contudo, o primeiro relatório relativo à realização de um estudo de campo
mais prolongado e que hoje em dia, aliás, é considerado curto (49 dias) é atribuído a
H. Nissen, pesquisador do Yerkes Laboratory, por seu trabalho realizado na África
Oriental, em 1931 (REYNOLDS & REYNOLDS 1965, p.395). À mesma época,
i
Pamela Asquith (1995) comparou as visões dos cientistas japoneses e dos cientistas ocidentais sobre
os primatas. Ao fazer isso percebeu, entre outras coisas, que enquanto os ocidentais enfatizavam as
dualidades e as distinções, os japoneses, influenciados pelas concepções relacionadas a idéias
tradicionais produzidas pela cultura japonesa sobre a natureza, adotaram perspectivas mais empáticas
e intuitivas (Cf. CORBEY 1995).
2
outros pesquisadores estavam fazendo coisas semelhantes em outras regiões do
mundo, como o Panamá (DE VORE 1965).
Enquanto isso, a antropologia, seja a de ênfase cultural, seja a de ênfase social,
passava também, mais ou menos no mesmo período, por profundas transformações,
em boa monta, decorrentes da adoção do trabalho de campo e da produção etnográfica
como procedimentos de pesquisa antropológicos, por excelência.
Para muitos que se dedicaram a refletir sobre a história dessa disciplina, os
primórdios da antropologia insinuam-se com a chegada dos europeus ao continente
americano (LÉVI-STRAUSS 1986b) , e correndo o risco de parecer excessivamente
simplista mas adotando essa postura em favor da proposição desse texto, vou “saltar”
em meio aos debates aristotélicos entre Emanuel Sepúlveda e Bartolomeu de Las
Casas na Universidade de Salamanca sobre a existência, ou não, de alma entre os
nativos americanos (HANKE 1958, LAPLANTINE 1991); às discussões entre os
filósofos iluministas, como Voltaire e Rousseau, sobre a universalidade da condição
humana e a existência de uma também universal racionalidade; às reflexões e registros
dos viajantes dos séculos XVIII e XIX (LEITE 1986); aos tratados de fisiologia e
anatomia comparada produzidos pela história natural que aproximavam os não
europeus dos símios e debatiam sobre a monogenia e a poligenia na origem humana
(POLIAKOV 1974), enfim, vou correr o risco de não tratar quatro séculos de debates
como fiz, aliás, com relação à etologia, para focar atenção na emergência da
antropologia em seu formato contemporâneo, particularmente, no momento crítico
que corresponde à adoção do relativismo antropológico e na adoção do trabalho de
campo como procedimentos fundadores da prática antropológica, válidos e legítimos
até hoje.
Na segunda metade do século XIX surge um movimento no interior da
antropologia conhecido hoje como evolucionismo cultural (STOCKING Jr. 1982).
Para alguns, a influência forte desse movimento repousa sobre as idéias do
evolucionismo darwinista, outros defendem que o evolucionismo cultural inspirou-se
principalmente nas idéias iluministas tributárias do homem universal dotado de uma
razão universal (POIRIER 1981). De qualquer modo, e sem desprezar os aspectos
particulares das questões postas por cada representante dessa corrente (STOCKING
Jr. 1982), o evolucionismo cultural trazia, em seu cerne, uma grande contribuição e
um grande limite.
A contribuição do evolucionismo cultural, adotando um ponto de vista
enraizado num relativismo histórico com vistas a não julgar a produção de
conhecimento que nos antecedeu a partir dos nossos pontos de vista contemporâneos,
mas a partir de suas próprias possibilidades e condições, como propõe George
Stocking Jr (1982), poderia ser resumida como uma proposição de conhecimento
sobre o homem pautada numa noção universal de humanidade, ou seja, incluindo
todos, europeus e não europeus no rol de um conjunto identitário único, o que já era
alguma coisa e algum avanço, pensando-se nos debates e nas dúvidas levantadas sobre
a humanidade dos não-europeus, travados séculos antes, como foi indicado
superficialmente em parágrafos anteriores.
Adotando-se esse ponto de vista, o grande limite do evolucionismo cultural
assentaria-se, por sua vez, em dois aspectos relacionados aos pressupostos de
abordagem das culturas humanas e nos procedimentos de pesquisa. Os pressupostos
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correspondem a uma concepção hierárquica da tal humanidade única, segundo a qual
os europeus estariam no topo da escala evolutiva da cultura e os outros povos,
considerando aí os pressupostos de uma história única e de uma racionalidade única
para toda a humanidade, desejariam evoluir para atingir o modelo europeu de vida e,
para isso, passariam pelas mesmas etapas pelas quais os europeus teriam passado.
Para fazer valer esses pressupostos, os antropólogos evolucionistas
comparavam fragmentos, “cacos de cultura” (que poderiam ser objetos, como
vasilhas, ou instituições sociais, como religião ou parentesco), retirados de seus
contextos, com segmentos da cultura européia. Os dados e materiais de outras
culturas, por sua vez, quase nunca eram coletados pelos próprios antropólogos e,
quando eram, isso era feito por meio de rápidas incursões ao campo.
Contudo, entre o final do século XIX e início do século XX, Franz Boas (1940)
e Bronislaw Malinowski (1978) propõem outros pressupostos e outros modos de fazer
pesquisa em antropologia. Os pressupostos consistem em reconhecer a existência de
racionalidades e historicidades próprias a cada cultura e buscar compreender seu
modo de vida, sua tecnologia e suas instituições sociais a partir dos próprios contextos
em que elas são produzidas. Para isso, o trabalho de campo prolongado, pautado no
relativismo antropológico e orientado pela observação minuciosa e pela participação
do antropólogo na cultura estudada, até onde isso for possível, constituiu-se num forte
padrão para as pesquisas antropológicas. O resultado é que a antropologia
contemporânea não perdeu de vista a noção de humanidade, mas enriqueceu-a a partir
do reconhecimento da existência de identidades e alteridades múltiplas, dinâmicas e
complexas sem, no entanto, abandonar os debates relacionados aos problemas
advindos de abordagens particularistas ou universalistas .
Em resumo, os métodos e procedimentos de pesquisa adotados, somados a um
ponto de vista menos exterior aos grupos humanos, mais sensível às lógicas que
ordenam cada modo de vida de cada sociedade humana, corresponderam à construção
de um ponto de partida que viabilizou toda a produção da antropologia contemporânea
e possibilidade de crítica as bases de muito preconceito projeto sobre todos os não
europeus . Bem, mas como todo esse processo se coaduna com os estudos etológicos
sobre primatas?
Minha suposição é que, a realização de pesquisas de campo
prolongadas sobre populações primatas somada à incorporação de pontos de vista, não
só empáticos, mas também relativizados por parte dos pesquisadores frente aos
pesquisados, o que implica, inclusive, na adoção de nomes e realização de registros de
histórias de vida para os chimpanzés (FOUTS 1998;GOODALL 1991), pode estar
alterando não só o conhecimento que se tem sobre o comportamento dos primatas,
mas também pode estar transformando certas concepções sobre as definições de
humano e borrando as fronteiras relativas às representações produzidas sobre o
“humano” e o “não humano”, produzindo rearranjos em nossas concepções de
identidade e alteridade e sobre as representações relativas à natureza, ao menos em
alguns meios produtores de conhecimento. É sobre isso que pretendo refletir aqui,
muito mais com intenções de produzir perguntas do que encontrar respostas.
A etologia e alguns de seus pontos de vista
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O chamado “período moderno” relativo aos estudos do comportamento de
primatas inaugura-se na década de 50, marcado pela ênfase em longos períodos de
observação cuidadosa (DE VORE 1965). Entretanto, os estudos orientados segundo
uma perspectiva que contempla o comportamento coletivo de chimpanzés só surgiram
a partir da década de 60 (REYNOLDS & REYNOLDS 1965, p. 395). Entre eles, estão
os de Jane Goodall.
A constituição do campo de pesquisas relativo aos estudos do comportamento
animal colocou novos desafios, a ponto de etólogos como Irven De Vore (1965, p.
viii) defenderem que as pesquisas sobre o comportamento de primatas são um campo
multidisciplinar de pesquisas ao qual devem concorrer a antropologia física e a
antropologia social, a psicologia experimental e a comparativa, do mesmo modo que a
zoologia. Essa perspectiva colocou questões provocantes sobre o modo como a
produção de conhecimento sobre comportamento de chimpanzés tem sido conduzida.
Manning (1977) identifica, com relação aos procedimentos adotados para
pesquisa, duas abordagens principais na observação do comportamento animal: a
fisiológica e a psicológica. Essa última recebeu, em 1946, uma proposta relativa aos
procedimentos de pesquisa a serem adotados, apresentada por Hebb (MITCHELL &
HAMM, 1997), a qual foi desenvolvida posteriormente e que fornece, ainda hoje,
padrões para observação e descrição do comportamento de primatas não humanos
(MITCHELL & HAMM, 1997). O que há de interessante na proposta metodológica
de Hebb são seu pressuposto e seu fundamento. Esse pesquisador percebeu que os
tratadores que usavam caracterizações psicológicas humanizadas para descrever o
comportamento dos chimpanzés eram mais eficientes em predizer os comportamentos
dos animais do que os cientistas que se valiam de uma terminologia mais “objetiva”,
ou seja, mais descritiva e menos antropomórfica (MITCHELL & HAMM, 1997).
Com base nessa observação Hebb propôs aos pesquisadores do comportamento de
chimpanzés a adoção de um vocabulário descritivo antropomórfico associado ao
registro do comportamento, passo a passo, e das situações e contextos em que tais
comportamentos se deram.
Os desenvolvimentos de propostas como as de Hebb repercutiram na liberação
da subjetividade dos pesquisadores em sua observação do comportamento animal,
bem como no uso de suas capacidades interpretativas e simbólicas em favor da
observação do comportamento animal. Para o caso das pesquisas desenvolvidas sobre
chimpanzés, isso desencadeou, ainda, a possibilidade de alguns níveis de interação
entre humanos e não-humanos em alguns procedimentos de trabalho de campo
adotados: contato físico, envolvimento emocional dos pesquisadores, o
estabelecimento de paralelos entre comportamentos humanos e animais. Mais do que
isso, como a adoção de uma perspectiva antropológica na interpretação dos registros
dos pesquisadores poderá revelar, valores sociais e culturais dos próprios cientistas
puderam circular mais livremente no exercício de sua produção de conhecimento.
Nessa direção, Jane Goodall (1965), por exemplo, produziu uma lista de
registros do comportamento dos chimpanzés observados por ela nas florestas de
Gombe. Por exemplo, a pesquisadora distinguiu padrões de comportamento diário
(GOODALL 1965, pp. 429-430) e os efeitos da sazonalidade sobre o comportamento
(GOODALL 1965, pp. 434-435). Goodall registrou, também, o que identificou como
comportamento individual, comportamento grupal e as interações inter-grupais.
5
As observações relativas ao primeiro tipo estendem-se dos registros que
enfocam locomoção e chegam ao comportamento sexual, passando por condutas
relativas à alimentação, ao ato de “coçar”, “alisar” ou “fazer cafuné”, como diríamos
no Brasil (to groom) e à construção de ninhos, locais em que os chimpanzés
costumam dormir ou descansar. Em termos de comportamento grupal, a autora
distinguiu relações de dominância, liderança e tolerância e, no plano das interações
inter-grupais, abordou relações de comunicação e comportamento em grandes grupos
formados a partir da combinação de grupos menores.
Goodall (1965) também escreveu, especificamente, sobre a existência de
comportamentos singulares observados ao longo do desenvolvimento físico e social
dos filhotes; as interações sociais dos chimpanzés “adolescentes” e atitudes
relacionadas à expressão e comunicação, válidas para a população chimpanzé de um
modo geral, e que consistiriam em posturas relaxadas ou de ataque, comportamentos
submissos, de alarme ou evitação e mesmo comportamentos adotados em contextos de
incerteza.
Contudo, o processo de produção de conhecimento sobre o comportamento de
primatas, particularmente no que se refere a atribuição de nomenclaturas e
significados que estabelecem paralelos explícitos entre padrões humanos e padrões
não-humanos, não é consensual. Etólogos e primatólogos têm formado fileiras no
sentido de problematizar as interações resultantes do contato íntimo e prolongado
entre primatas e seus observadores humanos. Um exemplo desse tipo de preocupação,
que emerge, na década de 60, simultaneamente aos próprios trabalhos em etologia
pautados numa abordagem continuada e empática a partir do trabalho de observação
em campo, expressa-se nas reflexões de Desmond Morris (1967).
Morris defende a importância dos estudos sobre o comportamento primata mas,
ao mesmo tempo, indica firmemente os riscos de humanização do comportamento de
primatas não humanos, particularmente porque macacos e grandes primatas
(chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotangos) estão muito proximamente
relacionados aos humanos (MORRIS 1967, p. 1). Segundo o autor, se um pesquisador
denomina, por exemplo, uma exemplo uma expressão facial de um primata como
“feroz” ele próprio tende a convencer-se da veracidade da ferocidade de tal expressão
e dificilmente descarta-la-á. Contudo, a idéia de “ferocidade” pode comprometer uma
compreensão acurada do comportamento daquele animal.
Para Morris, os primatas possuem sim expressões faciais agressivas, para
manter o mesmo exemplo, mas elas são semelhantes, não idênticas às humanas e esse,
segundo o autor, é o perigo real desse tipo de distorção e o pesquisador do
comportamento de primatas deve estar sempre vigilante quanto a esse tipo de
problema procurando manter o equilíbrio em seus registros, quanto a semelhanças e
diferenças entre os seres humanos e os primatas não humanos, nossos parentes
(MORRIS 1967, pp. 1-2).
E esse tipo de questão continua, hoje, a ser relevante para os pesquisadores do
comportamento de primatas. Na mesma direção, a primatóloga Jeanne Altmann (apud
HRDY 2001, p. 64), por exemplo, tem procurado elaborar técnicas para conter os
problemas relativos à “predisposição do observador” de primatas em campo em
direção aos abusos da humanização dos comportamentos e, conseqüentemente,
distorção dos fenômenos observados. E, segundo a própria Sarah Hrdy (2001), esse é
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o trabalho mais citado sobre o assunto, o que indica que os pesquisadores têm lido e
utilizado esse material e as reflexões que ele contém.
Robert Mitchell e Mark Hamm (1997) procuraram, por sua vez, colocar em
foco o problema da utilização de uma terminologia psicológica produzida
originalmente para descrever comportamentos humanos aplicada na caracterização de
comportamento de mamíferos. Ora, observam os autores, existem semelhanças físicas,
familiaridade e proximidade filogenética entre seres humanos e outros mamíferos.
Aliás, há, inclusive, estereótipos culturais que usamos para caracterizá-los
psicologicamente.
Assim, apesar de a discussão sobre o quanto pode ser apropriado usar termos
comuns para descrever comportamentos humanos e animais e de existirem vozes
alertando para o perigo de estabelecer (ou reconhecer) similaridades entre humanos e
não-humanos nesse plano, entre os cientistas ocidentais, desde os tempos de Darwin
(MITCHELL & HAMM 1997, pp. 174-175), Mitchell e Hamm defendem que a
adoção de termos advindos da descrição do comportamento humano para a
classificação de comportamentos não-humanos, desde que contextualizada, pode
servir não só como um modo abreviado e compreensível para a descrição do
comportamento, mas também como uma forma de identificação ( MITCHELL &
HAMM 1997, p. 176), o que permitiria incorporar aspectos objetivos e subjetivos de
pesquisas, pautadas na interação entre humanos e não humanos.
Ora, esse tema é mesmo um filão para a discussão antropológica, dado que a
antropologia tem se perguntado, desde seus primórdios, sobre os mecanismos
subjacentes à “estranha conduta” de populações tribais, segundo a qual animais,
plantas, fenômenos naturais e outros fatores poderiam ser classificados em conjuntos
juntamente com os seres humanos gerando uma tal configuração cultural que permite,
por exemplo, que pessoas vejam-se, sintam-se e comportem-se como descendentes,
por exemplo, de um jabuti, de uma onça ou de uma serpente ou, ainda, vejam
babuínos e chimpanzés como uma espécie de parente. Esse fenômeno, denominado
originalmente como totemismo, ou animismo em alguns casos, era atribuído à suposta
incapacidade de discernimento daquelas populações, mas foi posteriormente
deslocado de sua especificidade por Lévi -Strauss (1986a), que percebeu que tal
mecanismo - o da elaboração de um tipo de pensamento que “humaniza” a natureza e
“naturaliza” os humanos, de modo a permitir-lhes partilhar características comuns - é
próprio do modo humano de pensar a natureza, apesar de manifestar-se, em seus
próprios termos, em cada cultura humana.
Dessa maneira, quando os cientistas cogitam se a pesquisa sobre
comportamento animal deve se deparar com a própria humanização da natureza pelos
cientistas, se adotarmos uma perspectiva lévistraussiana para pensar o problema,
poderemos considerar que os pesquisadores, provavelmente, estão enfrentando um
problema que se encontra nos alicerces do modo humano de pensar e, por que não
dizer, nos fundamentos comuns existentes entre o pensamento mítico e outros modos
de pensar e que sustentam, inclusive, o pensamento científico (Cf. KUPER 1996).
Trabalho de Campo: Seguir trilhas, buscar evidências, observar, interagir
É possível classificar os trabalhos que enfocam o comportamento de
7
chimpanzés em dois grandes grupos, a partir de sua localização: os laboratórios e os
habitats nativos. Em laboratório, pesquisadores observam comportamentos sob um
alto grau de controle, possuem grandes possibilidades de registros por vários meios
(câmaras de filmar, gravadores, janelas-espelho etc) isso sem contar as possibilidades
de realizarem experimentos. De qualquer modo, em que pese a maior ou menor
consciência dos pesquisadores sobre a complexidade desse tipo de situação, nesses
contextos, os chimpanzés encontram-se em cativeiro (FOUTS 1998) Em campo, as
coisas são bastante diferentes.
Jane Goodall (1991), por exemplo, conta que, em campo, precisou correr,
desviar e chegou a apanhar de jovens chimpanzés machos em seu processo de
escalada por uma posição na hierarquia social, dado que era classificada por eles como
uma fêmea e, por isso, precisava ser submetida nas performances dedicadas a essa
finalidade, juntamente com as outras fêmeas para que o macho em busca de status
social pudesse, em seguida, enfrentar os machos adultos de seu grupo. Aliás, a
aceitação da presença de Goodall entre os chimpanzés de Gombe, um processo lento,
só se concretizou devido à iniciativa e curiosidade de um macho adulto e importante
na hierarquia com relação a ela.
Goodall construiu um centro de pesquisas em Gombe, na Tanzânia. Há
quarenta anos esse centro tem formado e recebido estudantes de pós-graduação, além
de também empregar e preparar para o trabalho de observação dos chimpanzés
representantes da população local que, em alguns casos, tornaram-se pesquisadores
(GOODALL 1991; Cf. FAWCETT & MUHUMUZA 2000). A própria Goodall, hoje
em dia, passa pouco tempo entre os chimpanzés de Gombe, dado que engajou-se
numa luta em favor da preservação das áreas nativas e das populações chimpanzés ao
redor do mundo, o que inclui uma luta contra o uso desses primatas em pesquisas de
laboratório e do seu confinamento em circos ou da sua adoção por famílias humanas.
Seus esforços, e daqueles pesquisadores tocados pelas questões levantadas
pelos seus trabalhos e de outros que dirigiram-se a direções semelhantes, têm
apontado tanto para indícios da riqueza e complexidade resultantes dos estudos sobre
o comportamento de primatas não humanos, e para todos os impactos sobre as
definições que temos produzido sobre a humanidade advindos daí; quanto para as
decorrências éticas advindas daí, isso sem contar nas transformações acerca das
representações que as culturas ditas ocidentais têm produzido sobre a natureza.
Nesse ponto, se voltarmos à comparação entre a etologia e a antropologia,
chegaremos a algumas questões provocantes. Em um de seus textos, o antropólogo
Clifford Geertz (1978, p. 15) afirma que caminho mais eficaz para se entender a
antropologia é olhar para o que os seus praticantes fazem, ou seja, a etnografia. A
etnografia, expressão na forma de texto dos resultados obtidos pelos antropólogos em
seus trabalhos de campo, é o resultado de um tipo de pesquisa prolongado em que
resultados satisfatórios só são obtidos a duras penas. Ser aceito no interior de um
grupo, entender seu modo de vida, registrar minuciosamente as múltiplas informações
e saber como utilizá-las, partilhar seus símbolos, ser capaz de discernir mentiras,
brincadeiras e fingimentos das práticas culturais adotadas e entender porque elas se
manifestaram ali, são alguns dos desafios colocados para aqueles que se aventuram
nesse campo de conhecimento, segundo Geertz.
Há um largo consenso entre os antropólogos de que o trabalho de campo
8
00;
antropológico constitui-se não só num meio, mas também num desafio à produção do
conhecimento, pois se, por uma perspectiva universalista, pautados na singularidade
identificada por Marcel Mauss (1974), segundo a qual o investigador é dotado da
mesma ordem de grandeza de seu objeto e, poder-se-ia acrescentar para essa análise, o
fato de serem sujeitos da mesma espécie, o trabalho de campo praticado por
antropólogos é interação entre sujeitos humanos e toda realidade social que pode ser
captada resulta disso. Em contrapartida, de uma perspectiva localista, como a
apontada por Geertz, só é possível “interpretar” a cultura do Outro a partir do convívio
com suas singularidades.
Ora, se as pesquisas sobre comportamento de primatas não-humanos realmente
forem capazes de borrar e diluir as fronteiras entre o que temos concebido até agora
como humano, que tipo de pergunta isso nos colocaria? Por outro lado, não seriam
essas interações produtos, simultaneamente, do convívio resultante do trabalho de
campo prolongado e da integração dos primatas não-humanos aos sistemas de
classificação e de pensamento dos etólogos?
Observando as práticas de pesquisa dos etólogos por outro ângulo, uma das coisas que
salta à vista, a partir de um certo conjunto de publicações realizadas nos últimos anos
sobre chimpanzés e sustentadas por pesquisas de campo, é a constituição de uma
espécie de tipologia que poderia manifestar-se em dois grandes grupos de
pesquisadores. Um deles composto por sujeitos cujos procedimentos estão fortemente
arraigados em formas de observação e tratamento de dados orientados para a busca e
coleta de evidências, organização e comparação desse material e freqüente tratamento
estatístico do mesmo. Esse tipo de pesquisa parece desenvolver-se num nível
perfeitamente técnico e bastante impessoal de interação. Ao menos, os textos não
expressam empatia explícita entre humanos e chimpanzés e não há registros
detalhados sobre o modo como se dá a interação, ou sequer se ela ocorre (Cf.
ARCADI & WRANGHAM 19 99 ; ARNOLD
BAKER, SERES, AURELI & DE
WAAL 2000.).
O outro é marcado por evidente interação entre pesquisadores e chimpanzés,
ou mesmo outros primatas, seja em situações de cativeiro, seja em seus habitats
naturais. Seu enfoque volta-se para comportamentos específicos, observados em
detalhes, somado a registros sobre a interação entre o pesquisador e os chimpanzés
quando não à dotação de nomes aos membros não-humanos dos grupos pesquisados
(FOUTS 1998; GOODALL 1965, 1991; HRDY 2001).
O momento em que essa pesquisa se encontra não me possibilita, ainda, fazer
um balanço substantivo das implicações dessas posturas nos resultados dos trabalhos
sobre chimpanzés e nas representações produzidas pelos pesquisadores sobre os
mesmos. Contudo, ao observá-los em conjunto, é possível concordar com Raymond
Corbey (1995): os resultados das pesquisas sobre primatas não-humanos têm colocado
novas questões metodológicas e éticas para os pesquisadores pois, ou trata-se de um
problema que pode ser equacionado a partir das ferramentas comumente usadas pelas
ciências exatas e naturais, ou, por outro lado, trata-se de um problema hermenêutico e,
nesse caso, os métodos adotados pelas ciências humanas e sociais serão
imprescindíveis para o avanço no processo de conhecimento o que implica, aliás,
avançar em favor do conhecimento do próprio homem; ou, ainda, é um daqueles
9
fenômenos cujo tratamento adequado exige abordagens interdisciplinares,
multidisciplinares, fronteiriças, ou o que melhor couber...
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Notas:
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