Cinetose

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Revista Equilíbrio Corporal e Saúde, 2012;4(1):51-58
Ricardo Schaffeln Dorigueto1
Cristiane Akemi Kasse1
Cinetose
Motion sickness
Rodrigo Cesar Silva2
Resumo
1
Doutor em Ciências pela
Universidade Federal de São
Paulo (UNIFESP) e Professor do
Programa de Mestrado em
Reabilitação do Equilíbrio
Corporal e Inclusão Social da
Universidade Bandeirante
Anhanguera (UNIBAN).
2
Fellowship do serviço de
Otoneurologia da Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP).
A cinetose é caracterizada pela intolerância ao movimento resultante de
um conflito sensorial entre os sistemas vestibular, visual e
proprioceptivo. Resulta de uma resposta fisiológica relacionada a
estímulos de movimentos não familiares. Os autores descrevem um
caso típico de cinetose e abordam questões relacionadas ao seu
diagnóstico e tratamento.
Palavras-chave: Tontura. Enjoo devido ao movimento. Movimento.
Transportes.
Introdução
A cinetose ou enjoo do movimento é caracterizada pela intolerância ao
movimento, real ou aparente, resultante de um conflito sensorial entre
os sistemas vestibular, visual e proprioceptivo1. Na maioria das vezes
resulta de uma resposta fisiológica relacionada a estímulos de
movimentos não familiares2, sendo também desencadeada ou agravada
por distúrbios vestibulares periféricos ou centrais. Surge frequentemente
durante a locomoção passiva em veículos, tais como automóveis,
navios, trens, elevadores e aviões, mas também podem acontecer em
simuladores de voo, ambientes de realidade virtual, parques de
diversões, esteira ou bicicleta ergométrica3.
O objetivo deste artigo foi descrever o caso clínico de um paciente com
cinetose típica e abordar os principais aspectos relacionados ao seu
diagnóstico e tratamento.
Relato de Caso
Autor para correspondência:
Cristiane Akemi Kasse
Rua Maria Cândida, 1813
São Paulo, CEP: 02.071-022
E-mail: [email protected]
Identificação: G.C.G., sexo feminino, 25 anos, natural de Vila Velha
(ES). Queixa e duração: Tonturas, náuseas e vômitos há 16 anos,
desencadeados em veículos em movimento. História da Moléstia
Atual: A paciente descreve episódios de tontura, tipo flutuação, e enjoo
desde a infância, com duração e intensidade variável, desencadeadas em
viagens de navios, ônibus e automóveis. Em percursos de curta duração
refere apenas sonolência, cansaço e desconforto gástrico, no entanto
seus sintomas se intensificam em viagens prolongadas, podendo
desencadear mal-estar intenso, sudorese, palidez, cefaléia, sialorréia,
náuseas e vômitos. O episódio geralmente inicia nos primeiros minutos
do embarque, e dependendo da intensidade alcançada, pode persistir por
alguns minutos ou até mesmo dias após o estímulo ter cessado. Além
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disso, apresenta episódios de enxaqueca, que se intensificam nos períodos
de enjoo. Não apresenta queixas auditivas ou neurológicas.
Por este motivo evita viagens prolongadas e dirige o próprio automóvel
quando possível, procurando não viajar como passageira. Fora das crises
não apresenta sintomas residuais relacionados com a tontura e tem uma vida
social adequada.
Há nove meses refere intensificação e persistência dos sintomas,
desencadeados por necessidade de viagens de ônibus diárias, que não
melhoravam com o uso de dimenidrinato. Há dois meses, procurou serviço
de emergência em duas oportunidades, queixando-se que os episódios
frequentes de mal-estar estão prejudicando seu rendimento no trabalho e em
sua qualidade de vida.
Antecedentes Pessoais: Nega antecedentes mórbidos, cirurgias, etilismo,
tabagismo e alergia medicamentosa. Sedentária. Enxaqueca com aura
esporádica não necessitando de profilaxia medicamentosa. Antecedentes
Familiares: Mãe, irmãos e tia materna com histórico de enxaqueca. Irmão
com cinetose.
Exame Físico: Oroscopia, laringoscopia indireta, rinoscopia e otoscopia:
sem alterações. Ausência de nistagmo espontâneo, semiespontâneo e de
posicionamento à manobra de Dix Hallpike. Na pesquisa do Head-Impulse e
Head-Shaking não apresentou nistagmo, tontura ou sacadas corretivas.
Coordenação motora preservada. Provas de Romberg, Unterberger-Fukuda e
avaliação da marcha sem anormalidades.
Exames complementares: Audiometria e vectoeletronistgmografia não
apresentaram anormalidades (figura 1 e 2). Exames metabólicos normais.
Legenda: OD – orelha direita; OE – orelha esquerda.
IRFF:
Figura 1 - Audiometria tonal liminar dentro dos padrões de normalidade.
OD: 100%
OE: 100%
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Prova calórica
AR
50°C
24°C
DIREÇÃO
VACL (°)
VERTIGEM
←
→
←
→
18,0
17,0
19,0
21,0
++
++
++
++
OD
OE
OE
OD
F.
OCULAR
S
S
S
S
Legenda: OD – orelha direita; OE – orelha esquerda; VACL – velocidade angular da
componente lenta; F. Ocular – Fixação ocular; + - intensidade da vertigem; S – sim; ← nistagmo horizontal para a direita; → - nistagmo horizontal para a esquerda.
Figura 1 - Nistagmo pós-calórico dentro dos padrões de normalidade
(vectoeletronistagmografia computadorizada).
Hipótese Diagnóstica: Cinetose.
Conduta: Iniciou-se o tratamento com meclizina 25 mg, entre uma e duas
horas antes do embarque, durante dez dias. A paciente foi orientada a
assumir medidas preventivas, como por exemplo: evitar ou diminuir o
tempo de exposição aos estímulos provocativos, sentar em uma posição
confortável com o corpo voltado para o sentido do movimento do veiculo,
minimizar movimentos com a cabeça ou com o corpo, evitar a leitura
durante o período da viagem, fixar a visão no horizonte, reduzir a
temperatura e aumentar a ventilação do ambiente, evitar privação do sono
ou consumo de alimentos com alto teor de cafeína, açúcares de rápida
absorção e glutamato monossódico.
A paciente referiu melhora inicial dos sintomas proporcionada pela
utilização da medicação e foram prescritos exercícios de reabilitação
vestibular (RV) diários, por um período de 40 dias. O protocolo empregado
adotou estímulos visual e vestibular e a paciente apresentou melhora
significativa dos sintomas. Após a alta da RV a paciente foi orientada a
utilizar a meclizina para a profilaxia da tontura apenas em viagens
prolongadas.
Discussão
A cinetose é uma síndrome que apresenta uma alta prevalência na população
e é resultante de um conflito sensorial entre os sistemas vestibular, visual e
proprioceptivo. Os seus sintomas são decorrentes do conflito entre estes
sistemas e a estímulos de movimentos não habituais, como na locomoção
passiva em veículos, tais como automóveis, navios, trens, entre outros3. Ela
também pode ser agravada ou desencadeada por doenças do sistema
vestibular periférico ou central, como a enxaqueca e doença de Menière.
Características clínicas
Além da tontura, náuseas e vômitos desencadeados pela cinetose, os
pacientes podem queixar-se de palidez, sudorese, falhas na memória, perda
da concentração, visão borrada, dores de cabeça, aumento da frequência
cardíaca e fadiga4. Estes sintomas dependem não só da constituição ou
predisposição individuais, como também do tipo, duração e intensidade do
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estimulo. A estimulação menos provocativa tende a evocar sinais e sintomas
como sonolência, cansaço e desconforto gástrico. Em contraste, uma
estimulação altamente provocativa tende a associar-se a outros elementos da
síndrome, como náuseas, vômitos e desidratação. Outras vezes os pacientes
queixam-se dos sintomas após terem cessados os estímulos provocativos
quando estavam embarcados, tal condição é denominada mal do
desembarque5. Em geral não apresentam sintomas quando realizam
movimentos autoinduzidos como, por exemplo, correr ou dirigir um
automóvel. Em contraste, estes mesmos movimentos quando realizados de
forma passiva desencadeiam conflito sensorial e sintomas de desorientação
e náuseas.
Epidemiologia
A cinetose acomete pacientes de todas as idades, sendo as crianças com
idades entre 2 e 12 anos as mais propensas a desenvolverem seus sintomas.
Há predomínio do gênero feminino em todas as faixas etárias (1,7:1) e sua
incidência aumenta durante a gestação e o período menstrual6-8. Dentre os
pacientes com enxaqueca, aproximadamente 50 a 70% apresentam histórico
de cinetose severa, comparados com 8 a 24% da população normal4,7,9.
Parece haver predisposição genética2.
Diagnóstico
O diagnóstico da cinetose é fundamentalmente clínico, e atualmente, não
existe nenhum teste laboratorial com sensibilidade e especificidade
suficiente para a detecção da susceptibilidade individual. A investigação por
meio de exames complementares é realizada para afastar outras entidades
nosológicas que possam comprometer os sistemas relacionados ao equilíbrio
corporal ou detectar possíveis fatores agravantes.
Tratamento
A cinetose é um síndrome comum e na maioria das vezes os seus sintomas
são de curta duração e autolimitados. A exposição repetida ao estímulo
provocativo pode atenuar ou mesmo eliminar seus sintomas na maioria das
pessoas, decorrente do fenômeno da habituação. Os casos em que os
sintomas são persistentes ou intensos requerem auxilio médico.
Uma série de contramedidas farmacológicas e não farmacológicas são
utilizadas para a prevenção e tratamento da doença de movimento. As
opções não farmacológicas incluem procedimentos que reduzem a entrada
sensorial conflitante, técnicas de reabilitação que objetivam acelerar o
processo de adaptação multissensorial e orientação quanto aos fatores
psicológicos que permitem o sujeito a lidar com a sua condição.
Medidas não farmacológicas
Dentre as medidas não farmacológicas são utilizadas orientações e técnicas
comportamentais. A cinetose pode ser prevenida minimizando a exposição
a situações estimulantes, como andar de navio, em carrosséis e montanhasrussas e viajar de carro. Quando o embarque é inevitável o passageiro deve
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ser orientado a sentar no banco da frente do transporte de preferência em
local ventilado, nunca se posicionar de costas para o sentido em que o
veículo se locomove, evitar movimentos desnecessários da cabeça ou corpo,
evitar odores como o do motor da embarcação, do escapamento do carro e
de cigarro, controlar a ansiedade e a frequência respiratória, manter os olhos
fixos em um ponto no horizonte, não olhar objetos ou situações em
movimento, evitar a leitura, não ficar muito tempo em jejum e evitar uso de
café, as bebidas alcoólicas, doces e os alimentos muito gordurosos2. Na
maioria dos casos, os sintomas podem não surgir quando o próprio paciente
assume a direção do veículo. Uma das hipóteses seria que o controle
consciente do veículo diminuiria o conflito sensorial detectado pelo sistema
nervoso central.
A reabilitação vestibular do paciente com cinetose visa a adaptação do
indivíduo aos movimentos que cursam com conflitos sensoriais e a
diminuição do desconforto apresentados durante as crises. A
neuroplasticidade central envolve fenômenos fisiológicos de adaptação,
habituação e substituição que promovem a melhora sintomatológica
independente do fator causal. Os exercícios devem ser iniciados de forma
leve e progressiva, de forma individualizada, mesclando protocolos com
estímulos de perseguição ocular lenta, optocinéticos, interação
visuovestibular e sacádicos, aplicados progressivamente de acordo com a
tolerância do paciente.
Medidas farmacológicas
O tratamento medicamentoso da cinetose pode ser realizado com a
administração de fármacos que têm se mostrado eficientes na atenuação ou
na abolição dos seus sintomas. Para a prevenção e tratamento da cinetose
em passageiros, recomenda-se principalmente o uso de medicamentos
antimuscarínicos, antihistamínicos e depressores vestibulares, como
monoterapia ou associados a substancias procinéticas ou antieméticas.
Algumas questões importantes devem ser consideradas antes da escolha do
tratamento medicamentoso para os pacientes com cinetose e nem sempre o
substancia mais potente é considerada a mais adequada. Um assunto a ser
avaliado no manejo terapêutico é a necessidade do paciente em manter-se
alerta durante a viagem, já que a sedação é um efeito comum da maioria dos
medicamentos utilizados para o enjoo do movimento.
A escopolamina transdérmica, considerada a droga mais eficaz para a
prevenção da cinetose por muitos autores10-12, deve ser utilizada entre 4 e 6
horas antes da exposição ao movimento e possui ação por até 72 horas. É
contraindicada em pacientes portadores de glaucoma, arritmias cardíacas,
edema pulmonar e na gestação. Seus efeitos colaterais mais comuns são a
sonolência, sensação de boca seca, visão embaçada e retenção urinária12.
Este medicamento não é disponível no Brasil.
A meclizina é um fármaco antagonista histaminérgico H1 de primeira
geração, com propriedades anticolinérgicas, antieméticas, antiespasmódicas,
utilizado na prevenção e no tratamento da tontura, náuseas e/ou vômitos.
Tem sido amplamente utilizada na prevenção e no tratamento da cinetose13.
Sua ação farmacológica é atribuída à capacidade em bloquear os receptores
H1 da histamina do centro do vômito no tronco encefálico e pela diminuição
da excitabilidade do sistema vestibular14. A meclizina difere dos outros antihistamínicos pela sua duração prolongada, pela menor incidência de
sonolência15,16 e ausência de efeitos extrapiramidais17. Quando comparada a
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ondansetrona apresenta melhor perfil de segurança cardiovascular18,19. É
considerada uma droga categoria B pelo FDA, sendo uma opção terapêutica
na gestação.
O dimenidrinato é também indicado para os casos de cinetose, apresenta
início de ação rápida, porém associada a maior percepção dos efeitos de
sonolência, redução dos reflexos e da atenção, e com menor duração do
efeito farmacológico. Uma outra opção terapêutica é a associar os
depressores vestibulares aos medicamentos procinéticos, como a
domperidona, bromoprida ou metoclopramida, potencializando assim seus
efeitos antieméticos.
Comentário Final
No caso em questão, a paciente apresentou crises recorrentes de tontura, de
intensidade e duração variáveis, relacionadas por viagens em veículos. A
característica recorrente da tontura, o fato de ser desencadeada pelos
estímulos de movimento, e a ausência de sintomas auditivos ou
neurológicos associados sugerem a cinetose.
Não é incomum que o resultado dos exames complementares, como
audiometria e testes vestibulares, sejam normais em pacientes com cinetose.
Mas a sua realização é imprescindível para diferencia-la de outras causas de
tonturas de origem vestibular, contribuindo para a investigação etiológica.
A cinetose apresenta múltiplas apresentações clínicas decorrentes da
interação entre a intensidade do estímulo causal e a deficiência de adaptação
do sistema vestibular. Portanto, a indicação terapêutica deve ser
individualizada frente à necessidade do paciente em estar exposto ao
estimulo provocador, variando de medidas comportamentais, uso eventual e
profilático de uma medicação à realização da reabilitação vestibular quando
os sintomas são mais frequentes.
Abstract
The motion sickness is characterized by intolerance to movement resulting
from a sensory conflict among vestibular, visual and proprioceptive
systems. It results of a physiological response to stimuli related to
unfamiliar movements. The authors describe a typical case of motion
sickness and discuss issues related to diagnosis and treatment.
Key-Words: Dizziness. Motion sickness. Movement. Transportation.
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