Arq Bras Cardiol 2001; 76: 231-4. Fernandes e cols Artigo Original Neoplasias primárias do coração Neoplasias Primárias do Coração. Apresentação Clínica e Histológica de 50 Casos Fábio Fernandes, Helena N. Soufen, Barbara M. Ianni, Edmundo Arteaga, Félix J. A. Ramires, Charles Mady São Paulo, SP Objetivo - Analisar os aspectos clínicos e histológicos de pacientes com neoplasias primárias do coração em centro de referência terciária. Métodos - De 1980 a 1998 foram analisados, retrospectivamente, 50 pacientes, 32 do sexo feminino, idades variando de 9 a 73 (44,16±18) anos. Resultados - A maioria dos tumores localizava-se do lado esquerdo do coração (72%), sendo o mixoma (84%) o tipo histológico mais freqüente. Os outros tipos encontrados foram: fibroma (4%), lipoma (2%), rabdomiossarcoma (2%), hemangioma (2%), sarcoma (2%), angiossarcoma (2%), linfoma (2%). O diagnóstico foi realizado pelo ecocardiograma em 94% dos casos As manifestações clínicas foram: dispnéia (36%), perda de peso (20%), palpitações (18%), dor torácica (16%), febre (8%) e artralgia (6%). Dos pacientes que apresentaram fenômenos tromboembólicos (10%) todos apresentavam mixoma de átrio esquerdo. Cerca de 20% pacientes estavam assintomáticos durante a avaliação clínica inicial. Conclusão - Os tumores cardíacos primários são entidades raras com quadros clínico e histológico diversos, requerendo, dessa forma, um alto índice de suspeita clínica. Palavras-chave: tumor cardíaco, mixoma Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP Correspondência: Fábio Fernandes – InCor - Unidade Clínica de Cardiopatias Gerais - Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44 - 05403-900 – São Paulo, SP – E-mail: [email protected] Recebido para publicação em 17/2/00 Aceito em 2/8/00 Nas últimas décadas, com a introdução de novos métodos complementares em cardiologia, particularmente o ecocardiograma, houve um aumento no diagnóstico dos tumores cardíacos, o que era possível somente em cirurgia ou necropsia. O quadro clínico é variado, podendo mimetizar tanto doenças cardíacas como sistêmicas, o que determina sua inclusão como diagnóstico diferencial nas diferentes cardiopatias. Além disso, como a terapêutica cirúrgica é curativa, na maior parte dos casos, faz-se necessário um diagnóstico precoce a fim de prevenir complicações. À semelhança de outros órgãos, as neoplasias podem acometer primária ou secundariamente o coração, não existindo um consenso quanto à sua classificação. Os tumores secundários são 20 a 40 vezes mais freqüentes que os primários e, dentre esses, os benignos são três vezes mais freqüentes que os malignos 1,2. A neoplasia de coração é uma entidade rara, com incidência de 0,0017% a 0,28%, podendo acometer o endocárdio, miocárdio e epicárdio. O objetivo deste estudo foi descrever as características clínicas e os tipos histológicos de pacientes com tumores cardíacos primários, encaminhados a um serviço de referência terciária. Métodos No Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da FMUSP, de 1980 a 1998 foram analisados, retrospectivamente, 50 pacientes, 32 do sexo feminino, com idades entre 9 e 73 (média 44,6±18) anos com diagnóstico de tumores cardíacos primários.. O diagnóstico foi realizado por ecocardiograma em 47 casos, por ressonância magnética em dois e durante ato cirúrgico em um caso (revascularização miocárdica). Resultados Neste estudo os tumores eram benignos em 92%. A localização preferencial dos tumores foi no lado esquerdo do coração (72%), sendo 66% no átrio esquerdo, 6% no Arq Bras Cardiol, volume 76 (nº 3), 231-4, 2001 231 Fernandes e cols Neoplasias primárias do coração Arq Bras Cardiol 2001; 76: 231-4. ventrículo esquerdo, 22% no átrio direito, 4% no ventrículo direito e 2% no septo interventricular. Um caso de rabdomiossarcoma apresentava topografia em átrio direito e ventrículo esquerdo, e um caso de sarcoma de baixo grau em átrio esquerdo e ventrículo esquerdo. O tipo histológico mais prevalente foi o mixoma cardíaco (figs. 1 e 2), sendo os outros tipos histológicos detalhados na tabela I. A duração dos sintomas clínicos variou de um dia a 60 meses com média de 15,48 meses. Com relação ao quadro clínico (tab. II) o sintoma mais Fig. 1 - Mixoma de átrio esquerdo – aspecto macroscópico. Observa-se tumor de aspecto gelatinoso com presença de focos de hemorragia. relatado foi dispnéia (36%), com outros sintomas de insuficiência cardíaca em 28%. Os demais sintomas cardíacos relatados foram: palpitações (18%), dor torácica (16%), embolização (10%) e pré síncope (2%). A embolização ocorreu para território cerebral com acidente vascular cerebral (6%), para coração com infarto do miocárdio (2%) e para artéria oftálmica com amaurose (2%). Os sintomas extracardíacos estiveram presentes em 36% (o mais freqüentemente relatado foi emagrecimento - 20%), seguido de febre (8%), artralgias (6%) e anemia crônica (2%). Cerca de 20% dos pacientes estavam assintomáticos durante avaliação clínica inicial. Ao exame clínico evidenciou-se, à ausculta, sopro diastólico mitral em 34%, sopro sistólico mitral em 14% e sopro sistólico tricúspide em 2%. Dos 50 casos de tumores cardíacos, 40 (80%) foram operados, ocorrendo 8 óbitos (16%) durante evolução clínica (tab. III). Esses foram secundários a edema agudo de pulmão e insuficiência cardíaca (4%), a choque cardiogênico (2%), hemorragia pulmonar (2%), sarcomatose disseminada (4%), sepse e infecção pulmonar (2%), metástase cerebral para pleura e pericárdio (2%), e em 2% secundário a embolização de fragmentos do tumor causando infarto agudo do miocárdio. Do total de óbitos, 6% faleceram antes do tratamento cirúrgico, sendo 4% por edema agudo de pulmão refratário e 2% secundários a infarto agudo do miocárdio. Os óbitos cirúrgicos foram secundários a sepse (2%), choque cardiogênico (2%) e hemorragia pulmonar (2%). Discussão Nos 50 casos de tumores cardíacos de nossa casuística, 46 (92%) eram benignos, sendo o mixoma cardíaco a entidade mais freqüente (84%). O mixoma é o tumor car- Tabela II - Quadro clínico Fig. 2 - Mixoma de átrio esquerdo – aspecto histológico (HE 10X). Observa-se grande quantidade de matriz mixóide (coloração rósea). Tabela I - Tipos histológicos Mixoma de ventrículo esquerdo Mixoma de átrio esquerdo Mixoma de átrio direito Fibroma Fibroma do Ventrículo esquerdo Fibroma do Septo Lipoma Hemangioma Angiossarcoma Sarcoma de baixo grau Linfoma 232 n % 1 33 22 2 1 1 1 1 1 1 1 2 66 16 4 2 2 2 2 2 2 2 Sintomas cardíacos Dispnéia Insuficiência cardíaca Palpitações Dor torácica Embolização Pré síncope % 36 28 18 16 10 2 Sintomas extracardíacos Emagrecimento Febre Artralgias Anemia doença crônica 20 8 6 2 Tabela III - Classificação dos óbitos Insuficiência cardíaca congestiva Sarcomatose disseminada Hemorragia pulmonar Infarto agudo do miocárdio Choque cardiogênico Septicemia Total 4% 4% 2% 2% 2% 2% 16% Arq Bras Cardiol 2001; 76: 231-4. Fernandes e cols Neoplasias primárias do coração díaco mais prevalente na população adulta, com predomínio no sexo feminino, com aspecto macroscópico gelatinoso e transparente. São geralmente únicos, com localização preferencial no átrio esquerdo e inserção próxima à fossa oval. São considerados tumores benignos, embora muitas vezes assumam papel maligno com recidiva local, invasão da parede torácica e embolização. Os sintomas decorrem do tamanho da neoplasia (geralmente 70g), ocasionando obstrução das câmaras cardíacas e anel valvar ou, mais tardiamente, quando há embolização de fragmentos do tumor 2, ocasionada pela característica gelatinosa do tumor ou à formação de trombos. Em nossa casuística, a embolização esteve presente em pacientes com mixoma de átrio esquerdo e foi o sintoma de apresentação em 10%. Relatamos três casos de acidente vascular cerebral, um de infarto do miocárdio e um caso de amaurose. Em nosso meio 3 existe relato de caso demonstrando uma possível associação de mixoma de átrio esquerdo e infarto agudo do miocárdio de parede inferior. No nosso estudo, o infarto do miocárdio foi de parede anterior e o paciente evoluiu para óbito. Ao estudo anatomopatológico constatou-se que havia fragmentos do tumor na artéria coronária acometida. Dados da literatura mostram a associação mixoma/infarto do miocárdio como sendo pouco freqüente, cerca de menos de 0,1% 3. Em outros casos, o mixoma pode simular doenças sistêmicas com sintomas de febre, caquexia, artralgia, fenômeno de Raynaud, rash e anemia, que são atribuídos à produção de determinadas citocinas, como por exemplo, a interleucina 6 4. Em nossa casuística, as manifestações sistêmicas estiveram presentes em 36%, sendo que um paciente estava recebendo corticóide por doença reumatóide e outro antibióticos por diagnóstico de endocardite bacteriana. De um modo geral, os tumores no coração podem obstruir as cavidades cardíacas mimetizando tanto doenças miocárdicas como valvares. A obstrução das câmaras direitas mimetiza pericardite constritiva, estenose tricúspide, tromboembolismo. Os sinais e sintomas dos tumores de ventrículo direito assemelham-se aos da estenose pulmonar. Já os tumores do átrio esquerdo assemelham-se clinicamente à estenose mitral. Com relação aos tumores de ventrículo esquerdo e septo, os sintomas descritos são: morte súbita, dispnéia, síncope e dor precordial 5. Uma característica semiológica que sugere a presença de neoplasia do coração é a mudança dos sintomas de acordo com determinadas posições. Ao exame clínico, os tumores de átrio esquerdo assemelham-se, clinicamente à estenose mitral. Alguns pontos propedêuticos auxiliam na diferenciação clínica: in- fluência da posição, ausência de estalido de abertura e 1ª bulha desdobrada. Em outros casos, o sopro audível pode ser de insuficiência mitral, que é secundário à tensão crônica da valva ou por impedir o fechamento completo na sístole. No caso de tumores de átrio direito, a ausculta caracteriza-se por 1ª bulha desdobrada, enquanto os componentes da 2ª bulha tendem a se fundir. A explicação propedêutica desse fenômeno decorre da elevação do aumento de pressão no átrio direito. Outro sintoma cardíaco comumente relatado em nossos pacientes foi a presença de arritmias (18%), que podem ser decorrentes do aumento das câmaras cardíacas ou secundárias à invasão do miocárdio ou do tecido de condução pelo tumor 6. A dor precordial esteve presente em 16% dos casos, sendo de característica atípica. Em alguns casos, a dor pode ter características típicas de insuficiência coronariana, a qual pode ser decorrente da invasão tumoral ou, como em um de nossos casos, por embolia coronariana. Este deve ser um diagnóstico diferencial a ser levantado em indivíduos jovens com infarto agudo do miocárdio. Os mixomas e os tumores malignos são raros na faixa etária pediátrica 7. Outros tumores do tecido conjuntivo, como lipomas e fibromas, ocorrem no coração, como em outras partes do corpo, sendo considerados bastante raros; sua sintomatologia está associada à presença de obstrução das câmaras cardíacas 8. Dentre os tumores malignos do coração, os sarcomas são os mais freqüentes, tendo em nossa casuística um caso de sarcoma de baixo grau, de rabdomiossarcoma e um angiossarcoma. O angiossarcoma apresenta prognóstico reservado, com localização preferencial no átrio direito, muitas vezes associado a derrame pericárdio sanguinolento, o que, freqüentemente, é confundido com pericardite tuberculosa. São descritas metástases nesse tipo de tumor, e na nossa casuística um paciente apresentava metástases cerebrais 9. O tratamento dos tumores primários do coração é a exerese, a fim de evitar as complicações da doença, como obstrução ou embolização. Dados da literatura mostram que 8% dos pacientes faleceram, enquanto aguardavam tratamento cirúrgico 10. No nosso estudo ocorreram três óbitos sem cirurgia, dois por edema agudo de pulmão e um por infarto do miocárdio. Concluindo, os tumores primários de coração são entidades raras que podem simular tanto doenças cardíacas como sistêmicas, o que implica num diagnóstico de alta suspeita clínica. Referências 1. 2. Shackell M, Mitko A, Williams PL, Stton GC. Angiosarcoma of the heart. Br Heart J 1979; 41: 498-503. Bjessmo S, Ivert T. Cardiac myxoma: 40 years. Experience in 63 patients. Ann Thorac Surg 1997; 63: 697-700. 3. 4. Meira EBS, Ho CL, Santos-Filho MM, Pimenta J. Mixoma de átrio esquerdo provocando infarto agudo miocárdio. Arq Bras Cardiol 1996; 67: 347-9. Lehmam KL, Prozan GB, ULLyot D. Atrial myxoma presenting as acute myocardial infarction. Am Heart J 1985; 110: 1293-5. 233 Fernandes e cols Neoplasias primárias do coração 5. 6. 7. Colucci WS, Schoen FJ, Braunwald E. Primary tumors of the heart. In: Brauwald E - Heart Disease. A Textbook of Cardiovascular Medicine. 5th Ed.. 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