Magazine da SPM 2014 (3) 08.31b Gripe aviária: uma zoonose emergente Ana Margarida Henriques Laboratório de Virologia, Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, Rua General Morais Sarmento, 1500311 Lisboa *correspondência: [email protected] A gripe aviária é uma doença viral altamente contagiosa, responsável por elevados níveis de mortalidade em todo o mundo. O vírus da gripe aviária encontra-se em circulação em aves aquáticas selvagens em Portugal, o que representa uma séria ameaça para o país. Devido à capacidade do vírus atravessar a barreira da espécie e infetar humanos, a gripe aviária constitui uma zoonose emergente, que deve ser considerada. Introdução A gripe aviária é uma doença altamente contagiosa causada por vírus pertencentes ao género Influenzavirus A da família Orthomyxoviridae. As aves aquáticas selvagens e as aves marinhas constituem o principal reservatório do vírus da gripe aviária, uma vez que a infeção é geralmente assintomática nestas aves (Jadhao et al., 2009). Contudo, quando transmitido a aves domésticas estas podem desenvolver a doença. O vírus adquiriu a capacidade de atravessar a barreira da espécie e infetar mamíferos, incluindo humanos, pelo que a gripe aviária é considerada uma zoonose (Simulundu et al., 2014). Devido a esta possibilidade, estes vírus são agentes patogénicos perigosos tanto para a saúde humana como para a saúde animal, sendo responsáveis por elevados níveis de morbilidade e mortalidade em todo o mundo (Nayak et al., 2010). Em Portugal circulam nas aves aquáticas selvagens vírus de vários subtipos, incluindo os subtipos H5 e H7, o que representa uma séria ameaça para a indústria avícola do país (Henriques et al., 2011). Morfologia, estrutura e genoma Relativamente à morfologia, o vírus da gripe aviária é um vírus pleomórfico, uma vez que apresenta formas esféricas (80-120 nm de diâmetro) e formas filamentosas (120-300 nm de comprimento). Possui um invólucro lipídico e apresenta espículas à superfície. O seu genoma segmentado é de RNA em cadeia simples de polaridade negativa, sendo constituído por 8 segmentos que codificam 11 proteínas (Louisirirotchanakula et al., 2013). Na Figura 1 encontra-se uma representação esquemática do vírus da gripe aviária. Os três segmentos de peso molecular superior, PB2, PB1 e PA codificam as duas polimerases básicas (PB1 e PB2) e a polimerase ácida (PA) do vírus, bem como uma proteína pequena com atividade proapoptótica (Bouvier & Palese, 2008). As três polimerases formam um complexo, que se encontra associado a cada um dos segmentos de RNA. O segmento HA codifica a hemaglutinina, a mais abundante das proteínas do virião. Esta proteína é bastante variável, tendo sido descritos até ao momento 18 subtipos diferentes de hemaglutinina (H1-H18) (Tong et al., 2013). O quinto segmento com peso molecular superior é o NP, que codifica a nucleoproteína, uma proteína que se encontra a revestir cada segmento de RNA. Segue-se a neuraminidase, a outra das proteínas da superfície viral, que se encontra numa proporção de cerca de 1:4 relativamente à hemaglutinina. Esta proteína é também bastante variável, havendo 11 subtipos diferentes descritos até à data (Tong et al., 2013). O segmento M codifica duas proteínas, a proteína da matriz (M1) e o canal de protões (M2), uma proteína transmembranar que permite a entrada de protões, o que por sua vez leva à desintegração do virião no endossoma durante a sua entrada na célula no início do www.spmicrobiologia.pt 1 Magazine da SPM 2014 (3) 08.31b ciclo replicativo. O segmento mais pequeno (NS) codifica também duas proteínas, a proteína não estrutural NS1, envolvida na regulação da expressão de genes do hospedeiro, e a proteína NEP, inicialmente associada apenas à exportação do RNA do núcleo, mas que hoje se acredita desempenhar múltiplas funções biologicamente importantes durante o ciclo de vida do vírus (Paterson & Fodor, 2012). obrigatoriamente efetuada pela tripsina, uma proteína que apenas se encontra nas vias respiratórias e no intestino, pelo que apenas há desenvolvimento de sintomatologia respiratória e digestiva ligeiras e o vírus é de baixa patogenicidade (Stech et al., 2009). No caso de estarem presentes mais de quatro aminoácidos básicos, a clivagem pode ser efetuada por proteínas ubiquitárias, havendo desenvolvimento de infeções sistémicas que podem resultar na morte do hospedeiro, e neste caso o vírus é de alta patogenicidade (Stech et al., 2009). Como já foi referido, os vírus da gripe aviária podem ser biologicamente classificados com base em diferenças nos epitopos da hemaglutinina (HA) e neuraminidase (NA), as principais glicoproteínas do virião. Nas aves domésticas os únicos vírus de alta patogenicidade conhecidos pertencem aos subtipos H5 e H7, mas a maior parte dos isolados destes subtipos são de baixa virulência (Moreno et al., 2009). No entanto, os vírus H5 e H7 de baixa patogenicidade podem por mutação reverter para alta patogenicidade, pelo que as medidas adotadas em caso de deteção de um vírus Fig. 1: Representação esquemática da estrutura do dos subtipos H5 ou H7 devem ser as mesmas caso o vírus seja de alta ou de baixa vírus da gripe aviária. patogenicidade (Alexander, 1993). Patogenicidade Variabilidade genética Os vírus da gripe aviária podem ser Durante a síntese dos ácidos nucleicos são clinicamente classificados em dois patotipos cometidos erros, que no caso do DNA são principais relativamente à doença que minimizados através da atividade provocam: os vírus altamente patogénicos, exonuclease das polimerases de DNA. No que induzem uma doença sistémica de entanto, as polimerases de RNA não têm elevada mortalidade (HPAI para Highly essa atividade, sendo por isso muito elevada Pathogenic Avian Influenza), e os vírus de a frequência de mutações nos vírus de RNA, baixa patogenicidade, responsáveis por uma como é o caso do vírus da gripe aviária. doença muito mais suave (LPAI para Low Estas mutações podem influenciar a Pathogenic Avian Influenza)(Capua & virulência e evolução do vírus, Alexander, 2004). particularmente quando originam substituição de aminoácidos (mutações não sinónimas). Para que uma partícula viral se torne Estas alterações levam a uma mudança infecciosa, é necessário que após a ligação antigénica gradual, fenómeno conhecido da subunidade HA1 da hemaglutinina aos como drift antigénico (Earn et al., 2002) que recetores da célula, esta proteína seja está na origem das epidemias (Figura 2-A). clivada de modo a expor a subunidade HA2, As estirpes resultantes de drift são menos que será responsável pela fusão do vírus à sensíveis aos anticorpos entretanto gerados membrana plasmática da célula. Esta na população contra as estirpes que lhes clivagem pode ser efetuada por várias deram origem, possibilitando a infeção de proteínas, dependendo da sequência de novos hospedeiros. Este fenómeno é mais aminoácidos presentes na zona de clivagem. comum em mamíferos, principalmente em Se o número de aminoácidos básicos for humanos. baixo, a clivagem tem que ser www.spmicrobiologia.pt 2 Magazine da SPM 2014 (3) 08.31b Quando duas estirpes geneticamente distintas infetam simultaneamente a mesma célula, é possível que ocorra troca de segmentos entre elas, devido à natureza segmentada do vírus da gripe aviária. Este fenómeno é denominado por shift antigénico (Figura 2-B) e está na origem de alterações genéticas que se traduzem no aparecimento de estirpes com características antigénicas novas, podendo originar uma pandemia (Rabadan & Robins, 2007). Fig. 2. Variabilidade genética no vírus da gripe aviária. A: Drift antigénico - mutações pontuais não sinónimas sequenciais que induzem alterações no antigénio, deixando este de ser reconhecido pelos anticorpos dirigidos contra o antigénio inicial. Está na base das epidemias. B: Shift antigénico - permuta de segmentos ocorrida quando duas estirpes diferentes infetam a mesma célula simultaneamente, originando novas estirpes de vírus. Responsável pelas pandemias. . Controlo da doença A deteção precoce do vírus da gripe aviária é da maior importância para o controlo efetivo da doença. Por essa razão são instituídos em muito países “Programas de Vigilância para a Gripe Aviária em Aves de Capoeira e Aves Selvagens”, que visam a deteção precoce de casos de gripe aviária de alta patogenicidade através de vigilância passiva, bem como a deteção de infeções subclínicas provocadas pelos subtipos H5 e H7, de modo a prevenir a sua disseminação em aves de capoeira e a eventual mutação para alta patogenicidade. A vacinação constitui um outro meio importante de controlo da gripe aviária, como demonstrado em estudos nos quais a vacina H5 inativada induziu a proteção de galinhas após desafio com o vírus homólogo (Qiu et al., 2006). Contudo, a imunização com vacinas inativadas homólogas interfere com a monitorização serológica, uma vez que os animais vacinados não podem ser serologicamente diferenciados de animais naturalmente infetados (Kwon et al., 2009). Como tal, é necessária a aplicação de estratégias DIVA (Differentiating Infected from Vaccinated Animals), que permitam a diferenciação entre animais infetados e animais vacinados. Diversas estratégias têm sido utilizadas, tais como o uso de sentinelas www.spmicrobiologia.pt 3 Magazine da SPM 2014 (3) 08.31b (Suarez, 2005), a estratégia NS1 (Tumpey et al., 2005), vacinas de subunidades (Robinson et al., 1993) e a estratégia da neuraminidase heteróloga (Capua et al., 2003; Jadhao et al., 2009). Há ainda medicamentos que podem ser utilizados no controlo do vírus da gripe aviária, mas apenas em humanos. Um dos tipos de medicamentos utilizados atua ao nível da inibição do canal M2, impedindo a entrada de protões e consequentemente a desintegração do virião. Outros medicamentos atuam ao nível da inibição da neuraminidase, impedindo a libertação do vírus da célula e logo que este seja transmitido a células vizinhas, o que impede a progressão da doença (Mittal & Medhi, 2007). Nos últimos anos tem vindo a ser realizada investigação de qualidade na área do vírus da gripe aviária no Laboratório de Virologia do INIAV, com o objetivo de contribuir para o controlo do vírus. Desenvolveram-se testes DIVA baseados na estratégia da neuraminidase heteróloga que permitem a diferenciação entre animais vacinados e animais infetados. Está em curso a produção de vacinas de DNA experimentais para futura utilização no controlo da doença, passíveis de serem utilizadas num contexto DIVA. Com esse objetivo estão a ser construídas vacinas dirigidas para as proteínas N3, H5 e H7 e uma vacina bivalente H5/H7. Num futuro próximo será desenvolvida uma vacina universal aplicável a todos os subtipos. . References Alexander, D. J. 1993. Orthomyxovirus Infection. 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