Saber Humano e Saber Divino breves considerações - cchla

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SABERES HUMANO E DIVINO
BREVES CONSIDERAÇÕES
Maria José da C. Souza Vidal
Doutoranda PIDFIL/CAPES/UFRN
Professora Departamento de Filosofia/UFRN
Resumo: O presente texto tem por finalidade desenvolver uma análise filosófica, na
tentativa de tecer algumas breves considerações acerca da relação entre saber humano e
saber divino. Essas considerações estão ancoradas na obra A descoberta do espírito, de
Bruno Snell. A discussão parte do fragmento 78 de Heráclito que diz: “o ser humano
nada sabe, Deus é que sabe”; vão se debruçar sobre essa problemática vários filósofos,
de diversas gerações e a questão central se dará sobre o entendimento acerca do saber
humano x o saber divino. Nessa perspectiva qual o alcance do saber humano e como se
pode chegar a esse desvelamento do saber divino? Defenderemos a tese de que o saber
divino está relacionado ao invisível, ao inteligível, caracterizando-se como próprio aos
deuses, enquanto o saber humano remete-se ao visível, ao aparente, ao sensível, estando
no nível da opinião. No entanto, o saber humano pode chegar a participar do saber
divino, passando em proporção por graus de ascensão ao conhecimento verdadeiro,
através do uso da razão. Nesse sentido, fazemos a ponte com a obra A República Platão.
Palavras-chave: saber humano e divino, conhecimento sensível e inteligível.
“O inteligível é o ser dos objetos, dos vivos e das idéias como
nós o conhecemos, como ele se dá a ver; não é o ser em si.
Não é o ser; torna o ser acessível porque transparente.”
Abel Jeanniere
O presente texto tem por finalidade desenvolver uma análise filosófica, na
tentativa de tecermos algumas breves considerações acerca da relação entre saber
humano e saber divino. Nossa compreensão está ancorada na obra de Bruno Snell,
intitulada A descoberta do espírito. Por essa razão apresentaremos uma bibliografia não
muito extensa, pois nos remeteremos mais especificamente ao texto Saber humano e
saber divino da obra em questão, estando escrito no capítulo VIII, das páginas 179 a
194.
A questão fundamental parte do fragmento 78 de Heráclito que diz: “o ser
humano nada sabe, Deus é que sabe”. A partir dessa concepção vão se debruçar vários
filósofos de diversas gerações. A discussão central se dará sobre o entendimento acerca
do saber humano x o saber divino, nessa perspectiva qual o alcance do saber humano e
como se pode chegar a esse desvelamento do saber divino? Nesse sentido corroboramos
com Bruno Snell:
Surgiria de fato um debate vivo se cada um deles (filósofos présocráticos, Homero, Sócrates, Platão, Aristóteles, somando se a esses
1
os cristãos)1, expusesse o que entende por saber divino e saber
humano, o que lhe parece acessível ao saber humano e até que ponto
é fidedigno2.
Defenderemos a tese de que o saber divino está relacionado ao invisível, ao
inteligível, ao oculto, caracterizando-se como próprio aos deuses. Enquanto que o saber
humano remete-se ao visível, ao aparente, ao sensível, estando no nível da opinião,
nunca expressando de fato o conhecimento verdadeiro da coisa em si, da essência. No
entanto, o saber humano pode chegar a participar do saber divino, passando em
proporção por graus de ascensão ao conhecimento verdadeiro através do uso da razão.
Podemos representar esse acesso no seguinte esquema, baseado na filosofia platônica:
BEM
IDÉIAS
MUNDO
INTELIGÍVEL
EPISTEME
→ ←
DIALÉTICA
CIÊNCIA
EPISTEME
OBEJETOS
MATEMÁTICOS
OBEJETOS
SENSÍVEIS
MUNDO
SENSÍVEL
SOMBRAS
→ ←
CONHECIMENTOS
MATEMÁTICOS
DIANOIA
→ ←
CRENÇA:
PISTIS
→ ←
ILUSÃO,
IMAGINAÇÃO
OPINIÃO
DOXA
Podemos tecer semelhanças dessa forma de ascensão ao saber que é de
origem platônica, com a simbologia que representa a narração de O mito da caverna de
Platão. Esse através de Sócrates introduz o assunto que vai dar origem ao mito ainda no
capítulo anterior, Livro VI da sua obra A República. O mito aparece propriamente
descrito no Livro VII. No início Sócrates narra a Glauco o mito, na tentativa de fazer
com que o seu interlocutor entenda o que ele havia proposto no Capítulo anterior – a
Teoria das Idéias. Sócrates conta à estória dos prisioneiros, da repentina libertação de
um deles e de sua caminhada rumo a saída da caverna.
Primeiro cumpre observar, o mito é uma Alegoria, e como tal representa
uma metáfora, uma construção imaginária ou uma espécie de analogia. Desse modo é
preciso entender que Platão utiliza cada elemento que está no mito com uma
intencionalidade... é como se Platão tivesse impresso em cada um deles um significado
1
2
Parêntese por mim acrescentado.
Op. cit. p. 179.
2
específico. Os indivíduos presos na caverna representam o senso comum, aqueles que
não enxergam além daquilo que já estão acostumados ou que são levados a ver pela
vontade da maioria. A saída da caverna nada mais é do que a representação da difícil
caminhada rumo ao conhecimento da verdade. O ex-prisioneiro sofre em todas as
etapas, demora a se acostumar com a nova situação e certamente deve ter desejado
voltar a sua vida na caverna sem preocupações. Simbolizando a busca do conhecimento
como algo que necessita de um verdadeiro esforço e que provoca angústia e
responsabilidades.
O ambiente interno da caverna representa a escuridão da ignorância,
enquanto permanecem lá os indivíduos conhecem apenas as sombras ou as
representações desfocadas dos objetos e assim da própria realidade. É por isso que o exprisioneiro demora tanto para se acostumar com a visão do lado de fora da caverna, da
mesma forma que as pessoas demoram a perceber que o caminho do conhecimento leva
a verdade.
A ausência de luz no interior da caverna faz com que ele sofra ao tentar
olhar diretamente os objetos, mas aos poucos ele consegue, até perceber de onde vem
toda a luz que torna as coisas visíveis e possíveis de serem conhecidas. Quando o exprisioneiro percebe que é o Sol que emana toda a fonte de luz e de vida para tudo o que
existe ele também percebe que é o astro-rei o regulador de tudo na realidade. Desse
modo o sol configura-se na representação da idéia de Bem. Platão nos leva a
compreender que a idéia de Bem representa aquilo que todos tendem a contemplar.
Utilizando esta noção para fazer derivar todas as outras por conseqüência dessa primeira
idéia que é essencial para as demais, uma vez que todas compartilham de alguma forma
da idéia de Bem no seu próprio significado. Assim a justiça, a essência são análogas a
idéia de Bem em Platão.
Salientamos, o importante é compreender que o mito mostra as dificuldades
encontradas nesse caminho para a verdade, o quanto sofre o ex-prisioneiro tentando
resgatar os seus companheiros. A reação típica dos que condenam o uso da filosofia,
pois o chamam de louco e julgam-no perigoso, já que depois de libertado ele vê coisas
diferentes de antes. Tal exemplo assemelha-se a figura de Sócrates e sua condenação a
tomar cicuta, por não ter aberto mão de praticar a filosofia e levar as pessoas pelo uso da
reflexão e da dialética a buscar a verdade.
Noutra perspectiva o mito também mostra parte do método platônico ou o
caminho de ascese ao mundo das idéias, demonstrando a relação entre o mundo sensível
e o mundo inteligível, o lugar das meras opiniões que representam aparências, e o
mundo das idéias que representam a essência da realidade. Cumpre ressaltar o uso da
razão nessa escalada de busca do conhecimento e da verdade.
A partir do exposto, seguindo nossa exposição, faremos deste ponto à frente
uma demonstração da compreensão do que significa saber divino e saber humano para
em seguida traçarmos uma relação de ambos no intuito de apontarmos qual desses
saberes devemos mais profundamente nos ocupar, quais as implicações dessa opção e
qual a justificativa para essa defesa.
3
O SABER DIVINO
Dizei-me agora, Musas, vós que tendes a vossa morada no Olimpo e,
como deusas, presenciais e sabeis tudo, ao passo que nós apenas
ouvimos a fama e nada sabemos.3
Esse trecho da Ilíada nos mostra bem a concepção de Homero, poeta grego,
sobre a noção do saber divino e saber humano. Esse vai se situar no plano do humano,
assumindo que nada sabe. Nos seus poemas ele fala inspirado pelas musas que detém o
saber divino. Assim ele não tem conhecimento do que diz, somente expressa a vontade
da divindade. Nessa perspectiva Homero pode ser definido como o instrumento que
expressa o saber, pois apenas tem o dom de inteligir a linguagem das musas, indo
inclusive além do limite humano. Condição que só alcança por ser o poeta que expressa
a linguagem das deusas.
Nesse sentido o saber divino configura-se enquanto extensão de Deus, ou de
um Deus, ou de vários deuses. Válido se faz ressaltar a paridade do saber divino com o
conhecimento intelectivo, com as idéias platônicas que estão no nível do oculto, do
inaparente. Dessa forma o invisível só está acessível ao divino, num mundo inteligível.
Assim sendo o conhecimento que se dá através da razão propicia um
resultado bem diferente do que experimentado através dos sentidos, cujo conhecimento
só provoca, na maioria das vezes ilusões acerca do real. E só através da razão é possível
intuir o mundo das idéias, as quais são eternas e imutáveis, fazendo-se uma ruptura com
o conhecimento sensível.
Xenófanes ao abordar o saber divino fala do quanto esse é digno de
confiança, pois só ele nos mostra o claro e o evidente. No entanto essa forma de
conhecer não está aparente, encobre-se sobretudo no seu ocultamento que é primordial.
Uma vez que só a divindade conhece a verdade
Para encerrar essa parte sobre o saber divino vamos finalizar com Heráclito,
já que com ele iniciamos esse ensaio, o qual nos diz no fragmento 40: o ter aprendido
muitas coisas (polimatia) não ensina a ter inteligência (nóos); caso contrário, tê-la-ia
ensinado a Hesíodo, a Pitágoras e, alem disso, também a Xenófanes e a Hecateu. Nesse
trecho Heráclito corrobora a superioridade divina sobre o saber humano, e esse está
fadado a buscar, no muito a participar desse saber divino, o qual não é permitido a
todos, só os filósofos conseguem transcender os graus do conhecimento na perspectiva
de desvelar a verdade oculta.
O SABER HUMANO
De certa forma ao tecermos nossas considerações acerca do saber divino, já
apontamos um vislumbre de como apreendemos o saber humano. Esse é imperfeito e
está no plano do sensível, do aparente, do visível. E o seu ponto máximo é poder por
proporção através dos níveis do conhecimento desvelar, fazendo uso da razão e da
dialética, conseguir inteligir o ser, a idéia de bem. Novamente citando Homero:
Não posso contar nem designar a multidão dos guerreiros
ainda que tivesse dez línguas, dez bocas, e a minha voz fosse
3
Invocação homérica as Musas, na Ilíada segundo SNELL, p. 180.
4
infatigável e de bronze o meu coração; só as Musas me
poderiam proporcionar a memória de quantos foram a Tróia.4
Nessa citação homérica há uma clara referência do saber de forma limitada.
Só as Musas é que podem lhe permitir a totalidade do conhecimento. O saber humano
só pode dar conta do aparente e de acordo com Xenófanes em todas as coisas há apenas
aparência. De modo que a verdade para o humano é inatingível e buscá-la representa-se
numa analogia apresentada por Aristóteles no Livro IV da Metafísica: “tentar alcançar
com as mãos um pássaro em vôo e correr atrás dele por caminhos desconhecidos”.
Xenófanes está somente apresentando o saber humano como incompleto,
inacabado, imperfeito e não merecedor de crédito. Corroborando com esse filósofo no
fragmento 34: pode acontecer que o homem diga algo de inteiramente verdadeiro (a
letra: algo que se cumpriu) sem no entanto, disso ter um conhecimento exacto, em
contraste com a divindade, a qual refere sempre o que claramente foi levado a cabo5.
Aludindo a oposição entre saber humano e saber divino Parmênides de Eléia
vai contrapor ao uno e ao múltiplo. Defendendo que o saber humano assemelha-se ao
múltiplo e o divino ao uno. Na base dessa noção está a sua concepção do ser.
Parmênides não indica um caminho que nos leve diretamente ao ser, ou ao
conhecimento verdadeiro, ou ao saber divino, apenas nos aponta uma meta para seguir
um caminho que deve ser deduzida a partir do conhecimento do ser e das verdades
sobre pensar e ser, sobre ser e não ser, no intuito de que a partir desse filosofar
possamos descobrir o mundo inteligível na sua singularidade.
Salientamos que todo esse desprezo pelo saber humano, por parte dos
filósofos aqui apresentados e na grande maioria, consiste num debate ferrenho entre o
conhecimento sensível e o conhecimento racional, o qual grande parte dos filósofos vão
valorizar. Oposição essa que deságua nas primeiras discussões acerca da dedução e da
indução. Para verificar essa concepção basta darmos uma olhada na história da filosofia,
no entanto não é tarefa nossa fazer aqui esse desenvolvimento.
...
Daqui em diante faremos uma relação desses saberes que já está de alguma
maneira apresentada no desenrolar dessa nossa exposição. Mas, para tecermos nossos
apontamentos finais queremos demonstrar o quão angustiante é para o humano situar-se
nessa perspectiva de apenas conhecer o aparente, o que se dá a ver e não poder desfrutar
de um conhecimento mais elaborado que dê uma sustentação segura de como pode ser o
real. Dessa forma recorremos a SNELL o qual vai nos apontar uma confirmação dessa
noção: O homem obtém assim um lugar intermédio entre o animal e Deus 6. Nessa
perspectiva Hesíodo também demonstra sua inquietação, pois é o primeiro dos poetas
que se sente estranho entre os humanos. Não se sente pleno nem entre os aedos nem
entre os homens de sua terra. Nesse sentido Heráclito se sobressai porque acredita que é
a partir desses contrários, dessa angústia, sentimento esse que consiste em viver entre as
trevas e a luz que brotará a novidade. Corroborando:
Há assim uma conexão entre o fatco de Hesíodo se sentir como um
homem particular, e o de dizer de um modo singular a verdade; a sua
4
Verso 492, da Ilíada segundo SNELL, op. cit. p. 180.
SNELL , op. cit. p. 185.
6
Op. cit. p. 188.
5
5
subjetividade reside em ter um sentido peculiar para a objectividade.
O seu saber encontra-se entre o saber divino das Musas e o saber
humano dos loucos7.
Dessa forma o saber humano compreende-se como podendo fazer
conjecturas acerca do mundo, mas não podendo dizer sobre ele e através das percepções
sensíveis, da indução inferir o invisível. Numa maneira bem ousada de tentar participar
do saber divino. Alargando as possibilidades do que está dado e tentado descobrir o
inaparente por trás do aparente, na tentativa de poder participar da idéia de bem, mesmo
sabendo que o conhecimento humano é insuficiente para explicar a realidade.
Por outro lado os humanos que conseguem essa participação no saber divino
sentem-se felizes por alcançarem esse desvelamento do real, inaparente. Ao que
Xenófanes reúne num novo conceito de sabedoria: o nosso saber é de si nebuloso, mas
pode clarificar-se mediante a investigação.8
Heráclito no fragmento 41, nos remete ao desafio que está posto para o
humano compreender a inteligência que governa tudo e todas as coisas. Essa se
configura como a tarefa da filosofia e nessa perspectiva Heráclito assemelha-se a
Sócrates. Uma vez que este privilegia as questões, os problemas humanos a busca do
inatingível. De acordo com Heráclito: o logos fala a partir de qualquer ser singular,
pois tudo penetra – e, no entanto, está separado de todas as coisas, pois vai muito além
do singular. Há casos individuais significativos, que revelam o segredo, a tensão vital –
em tais exemplos é que o homem pode apreender o divino9.
Relacionamos a filosofia de Heráclito à de Sócrates porque esse compreende
as questões sobre ciência natural no âmbito do saber divino e aponta a ética no nível do
saber humano. Devendo ser sobre essas questões humanas, do mundo que os filósofos
devem se ocupar. Nesse contexto sugere que a filosofia desça do céu para a terra.
Encerramos assim nossas considerações na certeza de que muito ainda há por dizer a
cerca da oposição entre os saberes humanos e divinos. Finalizando recorremos as
palavras do poeta, Guimarães Rosa: “cada pessoa é apenas o portador (neste mundo) de
uma mensagem (desconhecida). Todos nós somos não mais que um símbolo para
significar algo que nós mesmos não sabemos o que seja.”
Referências:
ABBGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi, revisão Ivone
Castilho, 4a ed., Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2000.
BORNHEIM, A. G.(org). Os filósofos pré-socráticos, São Paulo, Editora CULTRIX.
COLLI, Giorgio. O nascimento da filosofia, 3ª edição, SP, Ed. UNICAMP, 1996.
JEANNIERE, Abel. Platão, trad. Lucy Magalhães, RJ, Jorge Zahaar Ed., 1995.
PLATÃO. A República. Ed. UNB, 2ª edição, 1996.
SNELL, Bruno. A descoberta do espírito, Lisboa, Edições 70, 1992.
VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego, trad. Ísis Borges da Fonseca, 3ª
edição, São Paulo, DIFEL, 1981.
7
Op. cit. p. 182.
8
Op. cit. p. 183.
Op. cit. p. 188.
9
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