Actas 11ECCoM 2013

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Relações de conformidade e de implicação em obras
brasileiras pós-tonais
Antenor Ferreira Corrêa
Departamento de Música - Universidade de Brasília
Pesquisador apoiado pela FAP-DF
Resumo
Apresentam-se os conceitos de ‘relação de conformidade’ e 'implicação' introduzidos por Leonard Meyer
(1973). Parte-se da indagação sobre a possibilidade de verificação das relações de conformidade e de
implicação no repertório pós-tonal. Estes conceitos são discutidos e exemplificados com base em três obras
brasileiras. Desse modo, estende-se para a esfera analítica da música não tonal o recurso usado por Meyer
restrito à música tonal. A percepção rítmica, neste domínio, ganha relevância como fator preponderante no
engendramento de relações de conformidade e de implicação verificadas nas análises realizadas.
Resumen
En este articulo se presentan los conceptos de "relaciones de conformidad e implicación" introducidos por
Leonard Meyer (1973). Se inicia preguntando sobre la posibilidad de verificación de las "relaciones de
conformidad e implicación" en el repertorio post tonal. Se discuten y se ejemplifican estos conceptos a partir
de tres obras brasileñas. De esta manera, se extiende al ámbito del análisis de la música no tonal un
pensamiento utilizado por Meyer limitado a la música tonal. La percepción rítmica, en este dominio, se
convierte en un factor relevante, dada su importancia en crear "relaciones de conformidad e implicación"
verificadas en los análisis.
Abstract
Actas de ECCoM. Vol. 1 Nº1, “Nuestro Cuerpo en Nuestra Música. 11º ECCoM”. Favio Shifres, María de la Paz Jacquier,
Daniel Gonnet, María Inés Burcet y Romina Herrera (Editores). Buenos Aires: SACCoM.
pp. 87 - 95 | 2013 | ISSN 2346-8874
www.saccom.org.ar/actas_eccom/indice.html
Undécimo Encuentro de Ciencias Cognitivas de la Música – 2013
This paper reflects on the concepts of conformant and implicative relationships as introduced by Leonard
Meyer (1973). It asks about the possibility for verifying conformant and implicative relationships in posttonal repertoire. Thus, those concepts were considered and exemplified in three Brazilian pieces. In this
sense, the use of the conformant and implicative relationships made by Meyer, limited to tonal music, is
extended to analysis of non tonal works. The rhythmic perception acquires predominance as means to
engender conformant and implicative relationships, here presented by means of the analysis accomplished.
Introdução
Relações
de
conformidade
[conformant
relationships] foi o conceito apresentado por
Leonard Meyer em seu livro Explaining Music
(1973) para designar o tipo de relação na qual
um evento musical discreto e identificável
relaciona-se a outro evento por similaridade.
Essa noção desempenhou um papel tão
importante
no
arcabouço
intelectual
desenvolvido por Meyer que o levou a afirmar
que “até onde eu tenho conhecimento, nunca
houve música sem relações de conformidade,
de modo que parece razoável assumir que
estas são condição necessária para a
compreensão musical” (1973, p.66).
A partir desse conceito, Meyer lançou um novo
olhar sobre suas ideias a respeito da
significação em música apresentadas no seu
grande êxito editorial Emotion and Meaning in
Music (1956) e substituiu o termo antes
empregado “expectativa” por “implicação
musical”, tendo justamente nas relações de
conformidade um dos principais meios para o
engendramento dessas implicações.
Nuestro Cuerpo en Nuestra Música
Ao lado desse realinhamento terminológico,
Meyer discorreu sobre os diferentes tipos de
relações de conformidade, como por exemplo,
relações de conformidade em processo
[processive] (1973, p.49), formais, funcionais,
etc. Cada uma dessas relações é exemplificada
com
análises
musicais,
cujo
repertório
restringiu-se a obras compostas no sistema
tonal.
Por conta dessa característica, ou seja, da
limitação ao repertório tonal (diversas vezes
enfatizada por Meyer, basta ver, por exemplo,
o título da segunda parte do livro: “implications
in tonal melodies” (1973, p.107)), coloca-se a
questão: as relações de conformidade e de
implicação estão restritas ao sistema tonal ou é
possível sua verificação em obras pós-tonais? A
partir desse problema, busca-se neste texto,
transferir os conceitos de conformidade (em
suas variadas relações) e implicação para
ambientes não tonais de composição musical,
levando em conta mecanismos de percepção e
compreensão musical, por sua vez, discutidos
na literatura atual própria da área de cognição
musical (vide adiante).
A partir da fundamentação nas ideias lançadas
por Meyer, bem como, de seu melhor
entendimento após análise e revisão da
literatura que discutiu sobre esses conceitos –
Ferreira Corrêa
como, por exemplo, os recentes trabalhos de
Gabrielsson e Lindström (2001) na área da
composição, analisando a influência da
percepção
das
estruturas
musicais
na
expressão emocional; Juslin e Sloboda (2001)
sobre emoção em música, coligindo em um
único livro várias áreas de pesquisa em
cognição musical; a crítica ao conceito de
‘conformidade’ lançada por Cochrane (1995) e
rebatida por London (1995) e as mais recentes
explanações do próprio Meyer (2001) – têm-se
como objetivos desse trabalho: 1) estender o
conceito de relações implicativas para o
repertório pós-tonal. 2) buscar um melhor
entendimento dos mecanismos cognitivos
responsáveis pela compreensão musical. 3)
formar hipóteses sobre os mecanismos
cognitivos que agem na formação de relações
implicativas. 4) disponibilizar material teórico
oriundo de pesquisas na área de cognição
musical, de modo a auxiliar compositores e
demais
músicos
no
entendimento
dos
mecanismos de percepção e compreensão
musical.
Lançar outra abordagem sobre os trabalhos de
Meyer, estendendo seus conceitos para além
do pensamento tonal, poderá fomentar
discussões e problematizações na área da
música, especialmente nos ramos ligados à
teoria e análise, composição, interpretação e
psicologia da música. Embasado em uma
melhor compreensão dos processos cognitivos
de compreensão musical, o desdobramento das
ideias de Meyer poderá ser utilizado como nova
ferramenta de análise musical a ser empregado
nos âmbitos musicológico e performático.
Compositores e analistas poderão valer-se dos
mecanismos de implicação como procedimento
para
investigação
e
criação
musical.
Intérpretes, por sua vez, poderão usufruir
desse entendimento como critério adjunto na
construção
da
interpretação
de
obras
modernas, as quais não contam ainda com
uma forte tradição de performance. Estudos
em psicologia poderão se beneficiar de um
novo olhar sob aspectos que confluem para o
processamento e inteligibilidade musical,
reavaliando, assim, processos gestálticos
ligados à percepção musical.
Com relação à metodologia utilizada, vale
informar que primeiramente serão descritos e
demonstrados três principais conceitos de
Meyer: relações de conformidade, relações de
implicação e configuração [patterning]. Essa
terminologia será apresentada, discutida e
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exemplificada de modo a tornar viável seu
entendimento para a segunda parte desse
trabalho, ou seja, a transferência dessas ideias
para o repertório pós-tonal. Nas Conclusões
dos estudos até aqui empreendidos, espera-se
esclarecer e enfatizar, por meio das análises, a
preponderância adquirida pelo aspecto rítmico
para
a
cofiguração
de
relações
de
conformidade e implicativas no fora do sistema
tonal.
Relação de conformidade
Embora, essa divergência pareça estéril
querela linguística, a reinterpretação do termo
por
Cochrane
ganha
interesse
pelo
direcionamento
ontológico
destinado
ao
assunto. Enquanto em Meyer conformant é
atributo da relação, para Cochrane conformacy
é o padrão que possibilita ser copiado. Desse
modo, institui-se um procedimento tipo modelo
e cópia, ausente dos escritos de Meyer. A
reinterpretação do termo por Cochrane implica
que o segundo membro da relação de
conformidade estabeleça uma semelhança do
tipo modelo e cópia, pois a viabilidade da
conformidade está no objeto musical, isto é, no
modelo. Todavia, em Meyer, o principal
aspecto da conformidade é a similaridade
surgida da interação com o objeto musical, que
deve ser perceptível auditivamente. Uma das
grandes contribuições de Meyer para a
compreensão da significação em música é,
justamente, ter deslocado o foco das
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Tomando-se como exemplo o Concerto para
Orquestra de Cordas e Percussão de Camargo
Guarnieri, cujos compassos de 1 a 6 são
mostrados na Figura 1, nota-se o uso do
polimodalismo. No primeiro compasso, o tema
é exposto em Sol lídio bemol 7 (mixolídio 4+,
ou escala nordestina, como também são
referidos). O arpejo inicial parece sugerir um
centro em Ré, todavia, resolve em Sol no
compasso 3, não deixando dúvidas a respeito
do polo modal desse tema, pois há o reforço da
nota Sol pelos baixos, cellos e violas em
pizzicato. Após a exposição do primeiro
material temático, os instrumentos graves
reforçam a nota Sol, enquanto os violinos
apresentam segundo motivo melódico (comp. 3
e 4). Note-se que esse fragmento melódico
(assinalado como b na Fig.1), que parte e
retorna à nota Ré, será finalizado no compasso
7 em conformidade com o movimento
descendente do primeiro tema (assinalado
como a’ na Fig.1). Nesse caso, a conformidade
rítmica é óbvia, havendo, entretanto, alteração
das alturas. Meyer denomina este aspecto
como congruência rítmica e divergência no
plano das alturas. Essa mesma sucessão
melódica será utilizada para espécie de
transposição modal, por meio da extensão
rítmica por mais um tempo preservando-se,
contudo, a relação de conformidade, como
mostrado no compasso 17 da Figura 2,
fragmento extraído do Violino 1. No compasso
50 ocorre um fugato envolvendo violinos 1 e 2
(ver Figura 3). Note-se que o mesmo é
realizado valendo-se de aumentação do valor
de duração do tema. Porém, como o tema
desse fugato estrutura-se no arpejo de 7m, a
conformidade intervalar é garantida, embora
haja incongruência no plano rítmico.
Outro elemento de plano intermediário é
assinalado nos exemplos como c (ver Figuras 1
e 2). Esse elemento é o intervalo de 2ª e
funciona como espécie de apoio melódico,
conferindo unidade ao trecho em questão.
Ainda, nos compassos 13 e 14 (Fig.2), a
introdução de um novo perfil melódico (Ré, Ré,
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A definição de relação de conformidade dada
por Meyer não poderia ser mais sucinta: “por
relação
de
conformidade
quero
dizer
simplesmente aquelas [relações] nas quais um
evento musical (mais ou menos) discreto e
identificável relaciona-se a outro evento por
similaridade” (1973, p.44). Todavia, mesmo
assinalando textualmente a simplicidade do
conceito, Meyer conseguiu atrair vieses
complexos para sua proposição, como por
exemplo, a releitura de seu trabalho por
Richard
Cochrane
(1995)
que,
intencionalmente,
reinterpreta
o
termo
conformant por conformancy: “Análise musical
geralmente tem repousado sobre o conceito
que Leonard Meyer chamou de “conformancy”.
A importância dessa noção dificilmente pode
ser superestimada. A ideia de similaridade e de
um padrão que governa tais relações de
similitude é crucial para ela”. (COCHRANE,
1995, p.1).
estruturas para o processo musical. Por conta
dessas razões, entende-se para fins deste
texto que ‘conforme’ é o que tem a mesma
forma, portanto, não se optou pelo uso de
‘conformância’ ou ‘conformacional’, já que
estes implicam em ato de se conformar
(adquirir ou adaptar-se a uma forma).
Conformidade,
por
sua
vez,
significará
semelhança, analogia, identidade.
Figura 1: Camargo Guarnieri, Concerto para Orquestra de Cordas e Percussão, I movimento, compassos 1-6.
Nuestro Cuerpo en Nuestra Música
Figura 2: Camargo Guarnieri, Concerto para Orquestra de Cordas e Percussão, I movimento, parte de Violino
1, compassos 7-18.
Figura 3: Camargo Guarnieri, Concerto para Orquestra de Cordas e Percussão. II movimento, partes de
Violinos 1 e 2, compassos 50-57.
Mi, Do#, Ré), à primeira vista, levaria a pensar
em um novo material; no entanto, como esse
grupo realiza um acercamento da nota Ré,
polarizando-a via suas sensíveis superior e
inferior, a conformidade é garantida, pois essa
nota vinha sendo reiterada desde o compasso
3.
Outra relação de conformidade, embora mais
sutil, pode ser observada nos materiais
temáticos iniciais. Como o primeiro material
temático é percebido como um impulso único
(que se inicia no primeiro compasso e termina
Ferreira Corrêa
na primeira nota do terceiro), este parece não
guardar significativa semelhança com o
segundo material temático (comp.3). No
entanto, imagine-se uma estrutura melódica
como mostrada na Figura 4. Nesta, é óbvia a
conformidade rítmica e melódica entre as duas
sequências. E, de fato, essas sequências
encontram-se no interior dos materiais
temáticos já expostos (compassos 1 e 2).
Acontece que, o compositor retarda a ascensão
rumo à nota Lá (comp.6, Figura 1) interpondo
um compasso antes de atingir o ponto
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culminante em Lá, para depois realizar
novamente o movimento descendente por
graus conjuntos finalizando em Ré (comp.7),
mas a existência desse tipo de conformidade,
mesmo
velada,
permite
ser
percebida
auditivamente.
Figura 4: Exemplo de conformidade rítmica e
melódica.
Figura 5: Camargo Guarnieri, Concerto para
Orquestra de Cordas e Percussão. (a) tema primeiro
movimento. (b) tema do terceiro movimento.
Algumas relações de conformidade são mais
elaboradas do ponto de vista composicional, de
modo que sua percepção auditiva não é tão
imediata.
Todavia,
são
passíveis
de
reconhecimento. Na Figura 6 mostra-se a
conformidade existente entre o tema do
segundo movimento e o segundo tema do
terceiro movimento (Figuras 6a e 6b,
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Figura 6: Camargo Guarnieri, Concerto para
Orquestra de Cordas e Percussão. Relações de
conformidade entre: (a) tema do segundo
movimento e (b) segundo tema do terceiro
movimento.
Relação de implicação
Implicação é o ato ou efeito de implicar. As
relações implicativas [implicative relationships]
referem-se à existência latente de situações
previsíveis para a decorrência de uma situação
musical, por exemplo, a continuação ou
encerramento de uma melodia, uma conclusão
cadencial, etc. A maneira como as estruturas
musicais estão relacionadas, a interação destas
no
processo
musical,
engendra
esse
mecanismo de prognósticos. As relações
implicativas, portanto, indicam justamente a
propensão de uma situação musical, ou seja,
as possíveis consequências de um evento
musical na sua relação com os demais
elementos da estrutura musical da qual este
evento é parte. A existência desse mecanismo
de implicação permitirá a geração, por parte do
ouvinte,
de
prognósticos
para
os
desdobramentos do discurso musical. Essas
decorrências antevistas, quando confirmadas
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Meyer
considerava
as
relações
de
conformidade, ao lado das relações em
processo [processive], tectônicas [tectonic] e
de caráter [ethetic] (Cf. 1973, p.66), como
responsáveis pela impressão de unidade da
obra. Contudo, as análises que realiza levam
em
consideração,
sobretudo,
aspectos
melódicos e rítmicos. Não obstante, é preciso
lembrar que caráter e sonoridade global
também funcionam como responsáveis por
essa percepção de unidade. Analisando-se os
temas do primeiro e terceiro movimentos do
Concerto, mostrados nas Figuras 5a e 5b,
respectivamente, talvez não se perceba uma
óbvia relação de conformidade. Contudo, dado
que o motivo principal desses temas estruturase por uma sucessão de terças e pela ênfase
na nota característica do modo utilizado, a
conformidade sonora fica estabelecida, gerando
assim uma unidade sonora entre primeiro e
terceiro movimentos (ver Figura 5).
respectivamente). Observa-se que ambos
possuem um âmbito de sexta menor, nota esta
enfatizada por ser a nota mais aguda desse
trecho melódico. Contudo, enquanto o primeiro
tema é descendente, dirigindo-se para a nota
base da tríade (nota Sol), o segundo tema é
ascendente, a partir da nota base da tríade que
estrutura a melodia, neste caso Si-Ré-Fa#. Há,
também, nos dois fragmentos, o apoio rítmico
marcado com os sinais ‘u’ e ‘–’ abaixo das
notas (significando tempos fraco e forte,
respectivamente. Cf: Meyer and Cooper, 1960
passim). Por esses fatores, a conformidade
sonora é afirmada, embora de modo sutil.
ou de algum modo desviadas, aumentam ou
diminuem a carga informativa transmitida pela
obra musical, o que promove, segundo Meyer,
a significação musical.
Nuestro Cuerpo en Nuestra Música
Tomando-se como exemplo a Sonata Para
Piano, também de Guarnieri, será possível
demonstrar as relações de conformidade e de
implicação em uma obra cuja maioria dos
processos construtivos afasta-se dos modelos
tonais, pois o Concerto para até aqui
considerado, embora não totalmente ortodoxo
do ponto de vista da tonalidade, possui
procedimentos estruturantes semelhantes aos
do sistema tonal. No primeiro compasso,
Guarnieri já apresenta os materiais a serem
utilizados em todo o movimento: intervalos de
2ªs (maiores e menores) e 4ªs (justa e
aumentada), bem como suas inversões: 7ªs
(maiores e menores) e 5ªs (justa e diminuta).
Não há na obra acordes em terças, todos
agregados estruturam-se em intervalos de
quartas, quintas ou segundas (nas inversões
mencionadas). O primeiro intervalo (7ªM
descendente,
Sol#-La)
funciona
como
articulador entre as transposições realizadas no
decurso da obra, recebendo destaque em
intensidade e textura, já que na maioria das
vezes
soa
desacompanhado.
Também,
permite-se pensá-lo como articulador formal
no plano composicional. Note-se que surge na
anacruse do primeiro compasso Sol#-La,
depois no quarto compasso La-Sib, implicando
na próxima entrada em Sib-Dob. Contudo, essa
ocorrência é retardada até o compasso 16.
Antes dessa entrada, Guarnieri quebra a
obviedade do projeto pelo acréscimo do Fa#Sol do compasso 11. Apesar dessa quebra, a
conformidade auditiva está preservada. A
Figura 7 apresenta os compassos de 1 a 6 da
Sonata.
Figura 7: Camargo Guarnieri, Sonata para Piano. Compassos 1-11.
Ferreira Corrêa
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Figura 8: Camargo Guarnieri, Sonata para Piano. Compassos 12-17.
É importante perceber que as estruturas
mencionadas não só asseguram a coerência
formal da obra, como também configuram um
comportamento
cognitivo
por
parte
do
receptor. Essa configuração é denominada por
Meyer patterning, e engendram o mecanismo
de expectativa na peça. É justamente a partir
da
configuração
desse
comportamento
cognitivo, que se torna possível, por exemplo,
ouvir o compasso 7 como contraste ao material
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anteriormente exposto. Imagine-se, como
ilustração a esse princípio, que no lugar das
figuras em semicolcheias do compasso 7, a
música salta-se para o compasso 11 (Fa#-Sol).
Isso não destoaria em nada do contexto até
então apresentado, não causando estranheza
ao ouvinte, pois essas estruturas formatam-se
em conformidade como os materiais utilizados
pelo compositor desde o início da obra.
Há muito mais a acrescentar de modo a
explicitar
as
relações
de
conformidade
presentes nesta obra. Não obstante, por
questão de espaço, atentaremos por fim aos
compassos 7 e 8, local de contraste com os
materiais já expostos. Após atingir um ponto
culminante em dinâmica ff (Fig. 7, comp.7),
segue-se a diminuição drástica de intensidade
e a sucessão de intervalos de 2ªs maiores (FaSol; Réb-Mib; Sib-Do), conferindo sensação de
contraste. O compasso 8 ‘recupera’ os aspectos
já
mencionados
do
primeiro
compasso
(melodia em 2ª e 7ª e agregados em 4ªs).
Porém, o contraste é ainda mais acentuado por
conta da nova estruturação rítmica. Assim,
têm-se a congruência da conformidade
intervalar, mas o aspecto rítmico a sobrepuja,
impingindo percepção de contraste (aspecto
também notado nos compassos 9, 10 e 12).
Considerações Finais
Esse texto é parte de pesquisa cujo objeto de
estudo primário é a compreensão musical. Para
Meyer, “compreender música é simplesmente
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Outro elemento de unidade, sobretudo
‘harmônica’,
da
peça
é o movimento
descendente em 5ªs seguido dos agregados
citados (4J, 4aum, 5J e 5dim). Essa descida de
três notas é ‘respondida’ na voz superior pelo
movimento ascendente 3m+2m (Sol#-Si-Lá),
também de três notas. Segue-se então o
principal motivo de conformidade dessa peça:
a sucessão de intervalos de 2ª descendentes,
elemento predominante neste movimento,
transformado rítmica e metricamente sem,
contudo, desviar ou impedir a percepção de
conformidade. Os pentagramas superiores das
Figuras 7 e 8 ressaltam esse caráter no
primeiro
nível
hierárquico.
Observa-se,
também, que o padrão rítmico de 4 colcheias
(mostrado no pentagrama superior das
Figuras7 e 8, mas presente em todo o
movimento)
age
de
modo
congruente
assegurando a conformidade. Assim, mesmo
na ausência da sucessão descendente de 2ªs,
como no compasso 6, a subida em agregados
de 4ªs é percebida como similar, pois o
agrupamento rítmico é mantido.
Nuestro Cuerpo en Nuestra Música
Figura 9: Lindemberg Cardoso, Ritual. Parte de Violino 1.
questão de perceber e entender relações
temporais e tonais, por mais sutis e complexas
que estas possam vir a ser” (Meyer, 1973,
p.109). No âmbito dessa empreitada, aspectos
advindos das ciências cognitivas revestem-se
como principal fundamentação teórica. São
muitos os estudiosos que já propuseram
trabalhos neste campo. Contudo, para os
interesses das áreas de composição análise e
teoria musical, os escritos de Meyer adquiriram
um papel primordial. Neste sentido, o
entendimento aprofundado das suas ideias e
conceitos é o primeiro estágio deste projeto.
Por conta disso, nesse texto o foco recaiu
sobre a elucidação das noções das relações de
conformidade
e
de
implicação,
aqui
demonstradas. Nesse percurso, foi possível
observar que o conceito permite ser transposto
para o orbe da análise musical e para além do
repertório construído sobre o sistema tonal.
Relações de conformidade e de implicação são
percebidas em outros modos de construção
musical, tendo, sobretudo no aspecto rítmico,
um dos elementos principais para a percepção
dessas relações. Como última ilustração a
respeito da importância da conformidade
rítmica, observe-se na Figura a parte de violino
1 extraída da obra Ritual de Lindemberg
Cardoso. Trata-se de um período de 16
compassos, divididos em 8 + 8. Os oito
primeiros compassos são ouvidos em contraste
com os 8 compassos seguintes pelo fato de o
ritmo ser modificado, já que o conjunto de
alturas usados na construção das duas partes é
igual. Note-se que em ambas as frases as
notas utilizadas são (em ordem normal): Dó#,
Ré, Ré#, Mi, Sol, La conjunto 6Z41 na tabela
de Allen Forte).
relações implicativas e configuração, com
intuito de embasar um sistema para estudo
dos mecanismos confluentes e viabilizadores
da compreensão musical.
Referências
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Theory Online. Volume 1, N. 1. Disponível em:
<http://www.mtosmt.org/issues/mto.95.1.1/mt
o.95.1.1.cochrane.art>
(consulta
realizada
março de 2013)
Cooper, G. y Meyer, L. (1960). The Rhythmic
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Chicago Press.
Gabrielsson, A. y Lindström, (2001). The Influence
of musical structure on emotional expression.
In: Juslin, Patrik And Sloboda, John. Music and
Emotion: theory and research. Oxford: Oxford
University Press, pp.223-248.
London, J. M. (1995). Misreading Meyer: a reply to
Cochrane. In: Music Theory Online. Volume 1,
N.
3.
Disponível
em:
<http://www.mtosmt.org/issues/mto.95.1.3/mt
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Fevereiro de 2013).
Meyer, L. (1956). Emotion and Meaning in Music.
Chicago: University of Chicago Press.
Meyer, L. (1973). Explaing Music: Essays and
Explorations. Berkeley: University of California
Press.
Meyer, L. (1994). Music, the arts, and ideas.
Chicago: University of Chicago Press.
Meyer, L. (2001). Music and Emotion: distinctions
and uncertainties. In: Juslin, Patrik y Sloboda,
John. Music and Emotion: theory and research.
Oxford: Oxford University Press, 2001, pp.341360.
Sloboda, J. A. (2008). A mente musical: a psicologia
cognitiva da música. Trad. Beatriz Ilari e
Rodolfo Ilari. Londrina: Eduel.
A partir desse entendimento aprofundado,
espera-se prosseguir refletindo sobre outros
conceitos expostos por Meyer, como as
Ferreira Corrêa
p. 94 | 2013 | ISSN 2346-8874
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