93 TEXTO No. 5 Polícia, Controle Social e Democracia Arthur T. M. Costa47 A atividade policial pode ser verificada em quase todas as organizações políticas que conhecemos, desde as Cidades-Estado gregas até os Estados atuais. Entretanto, seu sentido e a forma como é realizada têm variado ao longo do tempo. A idéia de polícia que temos hoje é produto de fatores estruturais e organizacionais que moldaram seu processo histórico de transformação48. A palavra polícia deriva do termo grego Polis, usado para descrever a constituição e organização da autoridade coletiva. Tem a mesma origem etimológica da palavra política, relativa ao exercício dessa autoridade coletiva. Assim, podemos perceber que a idéia de polícia está intimamente ligada à noção de política. Não há como dissociá-las. A atividade de polícia é, portanto, política, uma vez que diz respeito à forma como a autoridade coletiva exerce seu poder. Partindo da suposição de que a atual forma das organizações destinadas a exercer a atividade policial é resultado de uma tentativa de tornar o controle social mais racional, alguns autores preocuparam-se com a natureza da função policial. Passaram a entender as instituições policiais como aquelas que têm por função regular as relações interpessoais por meio da aplicação de sanções coercitivas49. Entretanto, existem inúmeras outras funções desempenhadas pelas organizações policiais, tais como socorro, assistência às populações carentes e apoio às atividades comunitárias. Nenhuma destas está ligada à função reguladora. A definição funcionalista também falha ao atribuir às polícias a função de regulação social, desconsiderando que nos Estados modernos tal função é desempenhada por diversas outras instituições e, em grande medida, pelo sistema legal. Nesse ponto, parece que a definição dada por David Bayley tem maior utilidade para o debate atual. O autor define as instituições policiais como “aquelas organizações 47 Doutor em Sociologia e Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. Este texto recupera o cap. 1 de sua tese. 48 Peter Manning, Police Work: The Organization of Policing (Cambrigde: The MIT Press, 1977). 49 A. Nierderhoffer e A. Blumberg (eds), The Ambivalente Force (Boston: Ginn/Blaisdell, 1972). 94 destinadas ao controle social com autorização para utilizar a força, caso necessário50. O que caracteriza a atividade policial é a possibilidade do uso da força. Esses dois aspectos, controle social e possibilidade de uso da força, serão importantes para a discussão que procuraremos fazer mais adiante. Entretanto, uma ressalva deve ser feita: tal definição não marca a diferença entre as instituições policiais e as forças armadas. Reconhecendo esta lacuna, Bayley acrescenta que esta diferença recai sobre o tipo de situação na qual normalmente as polícias são empregadas. Enquanto as forças armadas são empregadas no controle social em situações excepcionais, e nos casos dos regimes democráticos dentro de determinados limites, as polícias realizam essa tarefa quotidianamente. De qualquer forma, tal definição não retira da atividade policial o seu caráter eminentemente político. Algumas autoridades políticas e policiais, jornalistas e mesmo a população em geral têm aceitado a idéia de que há uma tensão entre a manutenção da ordem e o exercício democrático do poder por parte das polícias. O aumento das taxas de violência urbana acabaria por forçar, de algum modo, um “endurecimento” das polícias na “luta contra o crime”, o que acarretaria o uso mais freqüente da força para realizar o controle social. Em outras palavras, atribuem a variação na intensidade e no uso da força na atividade policial à necessidade de controle social. Em 1962, um dos mais conceituados estudiosos do assunto, Jerome Skolnick, num dos trabalhos pioneiros sobre as instituições policiais, destacou o caráter conflitivo da atividade de controle social por parte das instituições policiais num regime democrático. Ao mesmo tempo que as polícias são parte do aparato estatal de controle social, o exercício do seu poder coercitivo está limitado por um conjunto de leis e códigos de conduta. É o que o autor chama de dilema entre a lei e a ordem. “Se as polícias pudessem manter a ordem sem se preocupar com os aspectos da legalidade, suas dificuldades diminuiriam consideravelmente. Entretanto, elas estão inevitavelmente preocupadas em interpretar a legalidade, uma vez que usam a lei como instrumento de ordem”51. Aqui me parece que há um equívoco. Em primeiro lugar, a capacidade das polícias de realizar o controle social tem se demonstrado reduzida. Ou seja, não são 50 David Bayley, The Police and Political Development in Europe, in Charles Tilly (ed), The Formation of National States in Western Europe (Princeton: Princeton University Press, 1975), p. 328. 51 Jerome Skolnick, Justice Without a Trial (New York: Macmillian, 1994), p. 6. 95 necessariamente os limites democráticos impostos às polícias as causas da sua pouca eficiência, mas sim a forma como a questão do controle social é colocada. As polícias não são as únicas agências estatais encarregadas de realizar o controle social, e por mais estranho que possa parecer, tampouco desempenham um papel central. Entre várias atividades, cabe também às polícias fazer com que as leis e regulamentos estatais sejam observados. Ao reconhecer que a polícia desempenha papel central no controle social, também se reconhece que esse controle social é realizado pela simples existência de leis, e que tais leis serão acatadas pelo medo de alguma sanção estatal. O acatamento da autoridade almejado pelo Estado e seus agentes diz respeito ao grau de legitimidade de que esta autoridade política desfruta junto à sociedade. Nesse ponto, a relação entre lei e ordem não se mostra contraditória. Quanto mais legítima for percebida a forma como as polícias realizam suas tarefas, mais fácil será a aceitação da sua autoridade e, portanto, menor a necessidade de recurso à violência. O papel das polícias na realização do controle social varia de Estado para Estado. Quanto mais central for esse papel, maior a possibilidade de conflito em a lei e a ordem. Isso se deve ao fato de que o instrumento de atuação tradicional das polícias, e seu traço diferenciador, é o uso da força. Por outro lado, se o papel das polícias no controle social não for central, ou se o instrumento de atuação das polícias não for fundamentalmente o uso da força, esse conflito perde intensidade. Nesse capítulo, argumentaremos que, dado o caráter político tanto da forma de controle social quanto dos limites da atividade policial, a tensão entre ordem e lei vai variar em função das características de cada Estado e do tipo de regime político implantado. A forma de controle social e o papel das polícias dependem de fatores políticos, sociais e econômicos. Da mesma forma, os limites da atividade policial vão depender dos mecanismos institucionais de controle da atividade policial existentes num dado regime democrático. Estado e Controle Social Duas tradições encontradas nas ciências sociais acabaram por influenciar fortemente os estudos sobre violência: a noção de controle social e a idéia de conflito social52. Controle social refere-se à capacidade de uma sociedade se auto-regular de acordo com princípios e valores desejados. Entretanto, é preciso considerar os aspectos conflituosos das relações sociais. Nesse sentido, controle social não implica a realização 52 Para uma visão abrangente do campo, ver Yves Michaud, A Violência (São Paulo: Editora Ática, 1989). 96 da ordem social, e tampouco a estabilidade das relações sociais53. Obviamente, existe uma variedade de tipos e mecanismos de controle social, cada um resultante de uma configuração social específica. Outro problema a considerar é a capacidade desses mecanismos de controle durante processos de transformação social. Tal noção de controle social parte das noções de consciência coletiva, crime e anomia. Aqui é dada primazia à sociedade sobre o indivíduo. Durkheim considera um ato criminoso quando este é condenado pela sociedade, uma vez que fere os elementos da consciência coletiva. A idéia de controle social nos remete à sociedade em seu conjunto e ao Estado como órgão central de controle. O monopólio estatal da violência legítima é elemento fundamental para a noção de controle social. Neste caso, a violência privada é vista como uma forma de rompimento desse controle social. Este rompimento é atribuído à fragilidade e à ineficiência dos instrumentos e mecanismos de controle social. Entre vários autores que pensaram a violência a partir da noção de controle social, dois nos interessam mais de perto por tratarem aspectos complementares do controle social. Thomas Hobbes, um dos primeiros pensadores a colocar a questão da violência em termos de controle social, chama a nossa atenção para a necessidade de um controle externo às ações dos indivíduos. No seu pensamento, a violência faz parte do estado de natureza do homem, caracterizado pela ausência da autoridade política. Ela faz parte do estado de guerra, uma vez que, "durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens"54. O "homem é o lobo do homem", e para evitar a "guerra de todos contra todos" é necessário impor mecanismos de controle externos à ação humana. Somente por meio de um Estado-Leviatã seria possível a realização deste controle externo, que também pode ser chamado de coercitivo. Ainda de acordo com a noção de controle social, Norbert Elias aponta a necessidade da realização de um controle interno (autocontrole), caracterizado pelas mudanças psicológicas ocorridas ao longo do processo civilizador. Este autocontrole "passou a ser cada vez mais instilado no indivíduo desde seus primeiros anos, como 53 Para uma visão mais ampla do debate sociológico sobre o tema, ver Morris Janowitz, “Social Control and Sociological Theory”, in American Journal of Sociology, 81 (July 1975), pp. 82-108. 54 Thomas Hobbes. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil (São Paulo: Nova Cultural, 1997), p 109. 97 uma espécie de automatismo, uma autocompulsão à qual ele não poderia resistir, mesmo que desejasse. Esse mecanismo visava a prevenir transgressões do comportamento socialmente aceitável mediante uma muralha de medos profundamente arraigados, mas, precisamente porque operava cegamente e pelo hábito, ele com freqüência, indiretamente produzia colisões com a realidade social"55. O surgimento de um tipo específico de autocontrole, chamado "civilizado", não pode ser dissociado do processo de construção do Estado. Como Elias coloca, "a estabilidade peculiar do aparato de autocontrole mental que emerge como traço decisivo, embutido nos hábitos de todo ser humano 'civilizado', mantém a relação mais estreita possível com a monopolização da força física e a crescente estabilidade dos órgãos centrais da sociedade"56. A violência privada foi dando lugar à violência estatal e aos outros mecanismos de controle social. O modelo de autocontrole imposto aos indivíduos, ainda segundo Elias, varia de acordo com a função e a posição deste indivíduo na sociedade. Nas sociedades modernas, dada sua extrema diferenciação, existem simultaneamente inúmeros modelos de autocontrole social. Certos medos e vergonhas impostos a determinados segmentos sociais não são encontrados em outros segmentos. Quanto maior a diferenciação social – e, portanto, maior a interdependência entre os indivíduos – maior será a necessidade de controle, tanto interno quanto externo. Existem importantes variações na forma e no alcance desse processo descrito por Elias. No que concerne às Américas, nas sociedades que tiveram um sistema escravocrata, a violência física e a punição brutal contra determinados segmentos sociais nunca foi completamente abandonada como forma de controle social. Do mesmo modo, as sociedades de passado colonial (e às vezes escravocrata) acabaram desenvolvendo formas diferentes de controle social, muitas das quais passavam pela delegação de poderes estatais a determinados segmentos sociais para exercer uma espécie de controle social privado. Esse processo, pode-se dizer, acompanhou e reforçou a estrutura de poder implantada. Além disso, em regiões de economia periférica, como a América Latina, estas formas de controle social têm sido reforçadas pelo seu passado de dependência e de crise fiscal. 55 Norbert Elias, O Processo Civilizador: Formação do Estado e Civilização ,Vol II (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994) , p. 196. 56 Norbert Elias, op. cit., p. 197. 98 O controle externo (coercitivo) e o interno (ideológico) são duas faces da mesma estrutura de dominação política. São, portanto, complementares, uma vez que não há dominação baseada exclusivamente na força, e tampouco existe uma ordem política fundada unicamente no consenso. Entretanto, é preciso levar em conta as variações na relação entre o controle coercitivo e o ideológico no seio da estrutura de dominação estatal. Um dos autores mais influentes na análise das formas como se dá a dominação política foi Antonio Gramsci57. Partindo da tradição marxista, o autor reconhece que o sistema de dominação (bloco histórico) é formado pela estrutura econômica e pela superestrutura política58. Embora reconheça a supremacia da estrutura econômica, Gramsci concentra sua análise na superestrutura responsável pela dominação política. Dentro da superestrutura distinguem-se duas esferas essenciais: o aparelho repressivo do Estado (sociedade política) e a sociedade civil. À sociedade política corresponde a função de dominação direta, exercida pelo aparato coercitivo estatal. Entretanto, é ao estudar a sociedade civil que Gramsci inova a teoria marxista. Diferentemente dos principais analistas marxistas do início do século XX, especialmente Lenin, o pensador italiano não via a sociedade civil com parte da estrutura de produção. A sociedade civil, para Gramsci, é o conjunto de organismos ditos privados que desempenham a função de hegemonia que o grupo dominante exerce sobre toda a sociedade59. Sua função é difundir a ideologia da classe dominante para que alcance todas as demais classes sociais, tornando-se hegemônica. Esta ideologia é veiculada por meio da arte, do direito, da atividade econômica, em todas as manifestações da vida intelectual e coletiva. Numa estrutura capitalista, a difusão da ideologia requer uma articulação extremamente complexa entre diferentes organizações, como a igreja, a mídia e a escola. O aparelho repressivo estatal e a sociedade civil relacionam-se de inúmeras formas. Há as situações em que a sociedade civil e o aparelho repressivo operaram articuladamente. É o que Gramsci chama de bloco orgânico. Pode ocorrer que exista uma separação formal entre Estado e sociedade civil, como nas democracias liberais. 57 Sobre dominação política, ver especialmente Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000) vol. 3. 58 Sobre as relações no interior do bloco histórico, ver Hugues Portelli, Gramsci e o Bloco Histórico (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977). 59 Ver Norberto Bobbio, O Conceito de Sociedade Civil (Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982). 99 Apesar dessa separação formal, a superestrutura de dominação política opera harmoniosamente. A sociedade civil está sob controle privado, e o Estado limita-se basicamente à sua função coercitiva. Pode ocorrer também a “estatização” de alguns instrumentos de dominação ideológica. Ou seja, há uma absorção gradual da função de difusão cultural e educacional por parte do Estado. Esta situação corresponde à de muitos países socialistas. Em ambos os casos, países liberais e socialistas, Estado e sociedade desempenham funções complementares no controle social. Há outras situações em que a relação entre Estado e sociedade civil é conflituosa. Podem ocorrer casos em que a classe dominante perde o controle sobre a sociedade civil e passa a apoiar-se principalmente na sociedade política para manter sua dominação. Pode também ocorrer o enfraquecimento do Estado, tornando-o incapaz de realizar a função repressiva. Nesse caso, a sociedade civil cria mecanismos privados para desempenhar a função coercitiva. A propósito desta última variação de controle social, Rosenbaum e Sederberg dedicaram-se ao estudo do vigilantismo, que definiram como “uma violência destinada a criar, manter ou recriar uma ordem sociopolítica”60. O vigilantismo refere-se aos movimentos extralegais, organizados para manter a ordem ou a lei pelos seus próprios meios. Esta definição serve como linha condutora de estudos sobre linchamentos, grupos de extermínio e justiceiros. Mas quais as motivações do vigilantismo? Basicamente, esses grupos tomam os mecanismos formais de controle social e a administração da justiça como fracos, inadequados ou insuficientes. Tais deficiências justificariam “fazer a justiça com as próprias mãos”. O vigilantismo tem sido empregado para conter o crime, controlar determinados grupos sociais e até mesmo para controlar a autoridade estatal. É importante notar que o vigilantismo é uma forma de controle social exercido por determinados grupos da sociedade. O Estado não tem participação direta nas ações. Indiretamente, relaciona-se com o fenômeno ao consentir tacitamente sua ocorrência ou ao mostrar-se débil ou incapaz de exercer tipo controle social desejado por estes grupos. Especificamente com relação à violência policial latino americana, alguns autores têm 60 H. Jon Rosenbaum e Peter Sederberg, Vigilante Politics (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1976), p. 6. 100 sugerido que esta seria uma forma de vigilantismo delegado61. Entretanto, a violência policial não é espontânea e tampouco opera à margem do Estado, portanto não pode ser tomada como vigilantismo. Ao contrário, ocorre como uma forma de controle social estabelecido pelo Estado, como sugere Paul Chevigny62. Além dessas variações na relação entre aparelho repressivo estatal e sociedade civil, alguns autores têm destacado as descontinuidades e mesmos as rupturas nos mecanismos de controle social63. Hindess e Hirst sugerem uma relação entre o modo de produção e o tipo de controle social. A cada tipo específico de modo de produção (escravocrata, feudal e capitalista) corresponderiam formas e mecanismos específicos de controle social64. Em qualquer dessas estruturas sociais, o grupo dominante procura impor seus princípios e valores aos outros grupos sociais. Entretanto os mecanismos empregados podem variar consideravelmente. Na estrutura escravocrata, por exemplo, em que a força de trabalho é mantida separada dos instrumentos de subsistência, caberia principalmente ao senhor de escravos a manutenção da força de trabalho, bem como o controle dessa força. Dadas as características estruturais da economia escravocrata, o custo da manutenção dessa força de trabalho, bem como o seu controle, deveria ser mantido num nível mínimo. A subalimentação, a privação das condições sanitárias e o emprego da violência contra a mão-de-obra escrava são traços marcantes dessa estrutura social. No modo de produção feudal, a relação entre o senhor e o servo baseava-se na ausência de direitos legais e políticos por parte destes últimos. A posse da terra pelo servo sem o corresponde direito de propriedade e o seu status político de subordinação geraram um sistema de dominação e controle social dos servos pelos proprietários de terras. Reinhard Bendix destacou os aspectos cognitivos desse sistema. A noção orgânica de sociedade gerou mecanismos de controle social muito específicos. A noção 61 Martha Huggins (ed), Viligantism and The State in Modern Latin America: Essays on Extralegal Violence (New York: Praeger, 1991), Introduction. 62 Paul Chevigny, Police Deadly Force as Social Control: Jamaica, Brazil and Argentina, in Martha Huggins, op. cit., pp. 189-218. 63 Lewis Coser, “The Bridling of Affect and Refinement of Manners”, in Contemporary Sociology (July 1978), 563-66, e Anthony Giddens, The Constitution of Society: Outline of Theory of Structuration (Cambridge: Polity Press, 1984). 64 Barry Hindess e Paul Hirst, The Pre-Capitalist Modes of Production (London: Routledge, 1975). 101 de pertencimento a um mesmo sistema, mas em posição subordinada, possibilitou a assimilação dos valores e comportamentos dominantes por parte dos servos65. O modo de produção capitalista caracteriza-se pela venda da força de trabalho para a subsistência da classe dominada, ou seja, pelo trabalho assalariado. No que concerne ao controle social, diferentemente das outras estruturas sociais, em que os proprietários particulares tinham papel fundamental, no capitalismo o controle social passou a ser exercido fundamentalmente pela superestrutura política. Esta superestrutura inclui o sistema de crenças e valores e as instituições sociais e políticas que moldam e são moldadas pelo processo produtivo. Um ponto crítico nesse tipo de análise é entender a relação entre as mudanças na estrutura produtiva e a transformação da superestrutura política responsável pelo controle social. Os estudos sobre transformação social não podem desconsiderar os variados efeitos que a relação entre a estrutura e a superestrutura política pode gerar. É necessário um exame mais acurado dos efeitos da primeira sobre a segunda, bem como da persistência de formas de controle social supostamente feudais e escravocratas numa economia capitalista, não só do ponto de vista de como tais mudanças desafiam o antigo sistema de controle social, mas também de como esse sistema de controle social obstrui tais mudanças sociais. Os autores também não exploram as variações no tipo de controle social exercido pelos diversos Estados capitalistas. Com relação às sociedades de capitalismo avançado, Morris Janowitz preocupou-se com o impacto das instituições do Welfare State sobre o comportamento político e social dos cidadãos. Para Janowitz, o Welfare State significa muito mais do que gastos com saúde, educação, habitação, etc. Ele tem também sua dimensão moral e política, uma vez que gera profundas implicações no comportamento social e nas formas de legitimação da autoridade política66. Servindo-se dos estudos quantitativos sobre comportamento social e político, Janowitz argumenta que as instituições do Welfare State têm inibido, em certa medida, o impacto negativo das mudanças estruturais que ocorreram nas sociedades industrializadas. Seu argumento central repousa na idéia de que o Welfare State tem produzido respostas psicológicas à frustração gerada pelo processo de acumulação material e cultural das sociedades industriais. Isso importa na idéia de que, nessas 65 Reinhard Bendix, Construção Nacional e Cidadania: Estudos de Nossa Ordem Social em Mudança (São Paulo: Edusp, 1996). 66 Morris Janowitz, Social Control of The Welfare State (Chicago: University of Chicago Press, 1976), cap. 1 e 7. 102 sociedades, é constante a necessidade institucional de elaborar e redefinir normas de comportamento social. Uma outra tradição das ciências sociais nos estudos sobre violência parte da idéia de conflito social. Para Georg Simmel, o conflito é uma forma de sociação e "é destinado a resolver dualismos divergentes; é uma forma de conseguir algum tipo de unidade, ainda que através da aniquilação de uma das partes conflitantes"67. O conflito surge em função de elementos de dissociação da sociedade, tais como ódio, inveja, necessidade. Simmel aponta que a configuração social não é dada apenas pelos elementos convergentes desta sociedade, mas também por seus elementos dissociativos. É exatamente esta tensão que vai moldar as estruturas sociais. Tais estruturas não são resultado da simples soma ou subtração destes elementos, como se pudéssemos atribuirlhes sinal positivo ou negativo. Nas palavras de Simmel, "os elementos negativos e duais jogam um papel inteiramente positivo nesse quadro mais abrangente, apesar da destruição que podem causar em relações particulares"68. Neste sentido, o conflito não é patológico e tampouco é a negação da sociedade, mas condição de sua estruturação. Na mesma linha, Lewis Coser afirma que o conflito sustenta a coesão e a unidade do grupo; é, portanto, um elemento estabilizador da estrutura social69. Tal noção parte de uma concepção funcionalista em que o conflito possui funcionalidade para a manutenção da estrutura social. O problema aqui não é o conflito, mas sim os mecanismos sociais disponíveis para dirimi-lo. Podemos distinguir aqui duas linhas de discussão no que concerne à violência. Em uma, o conflito desempenha papel fundamental na estrutura social. É importante notar que nem a sociedade nem o Estado podem acabar com o conflito. O que pode variar é a forma como este conflito se manifesta e é dirimido. Já na outra tradição, a sociedade e o Estado são responsáveis pelo controle da violência. De acordo com esta tradição, são os mecanismos internos e externos de controle, ou as falhas destes mecanismos, as causas determinantes da violência. Aqui é fundamental distinguir conflito social, controle social e violência. Georg Simmel chama a atenção para a competição nas relações sociais. Segundo o autor, "a principal característica sociológica da competição é o fato de o conflito ser, aí, 67 Georg Simmel, "A Natureza Sociológica do Conflito" in, Evaristo de Moares Filho(org), Simmel (São Paulo: Ática, 1983) p. 11. 68 Georg Simmel, op. cit., p. 126. 69 Lewis Coser, Las Funciones del Conflicto Social (Ciudad del México: Fondo de Cultura Económica, 1961). 103 indireto. Na medida em que alguém se livra de um adversário ou o prejudica diretamente, não está competindo com ele"70. Portanto, entre as diversas formas de manifestação do conflito, a violência é apenas uma delas, da mesma forma que a violência é apenas uma entre diversas outras formas de controle social. No que diz respeito às polícias, é importante entender sua relação com o Estado e a sociedade. Uma das abordagens dominantes sobre o tema sugere que a polícia deve ser tomada como um objeto histórico. Considera-se que as polícias não são atores políticos em si, mas produto de condições históricas determinadas. Desse modo, associam-se inseparavelmente Estado e polícia, sendo a última instrumento para o exercício do controle social. Ainda segundo esta abordagem, o Estado é um produto dessas mesmas condições históricas. Nesse sentido, é a estrutura material existente que determina a estrutura e o papel da polícia no controle social. No que diz respeito ao controle social, as polícias desempenham diferentes papéis. Podem, por exemplo, assumir o papel central em detrimento dos outros mecanismos de controle social existentes no Estado e na sociedade. Podem também tomar o uso da força como seu principal instrumento de atuação. Ou, ao contrário, podem desempenhar papel complementar ao controle social promovido pela sociedade civil. As polícias podem reconhecer ou não a existência dos conflitos sociais para desempenhar atividades relacionadas à administração deles. Não há dúvida de que as polícias são parte do aparato estatal de controle social e de proteção de determinados grupos, idéias e valores politicamente favorecidos. Entretanto, a persistência de determinadas práticas sociais, mesmo depois de diversas transformações sociais e políticas leva-nos a questionar o quanto as polícias são mero resultado das condições históricas existentes e não constituem um ator político em si. O problema aqui é considerar como se dá o processo de transformação social e política. Ao considerar a polícia como mero instrumento do Estado, desconsideramos a possibilidade de um descompasso entre as transformações na estrutura socioeconômica e as mudanças no aparato policial. Não necessariamente as mudanças sociais e econômicas fazem-se sentir em todo o aparelho estatal. É possível, por exemplo, que parte do aparato estatal continue comportando-se a partir de valores e dentro de uma estrutura, preexistentes a tais mudanças. É, por exemplo, o caso de algumas polícias latino-americanas que, mesmo após diversas mudanças políticas e sociais (transições 70 Georg Simmel, op. cit., p. 129. 104 democráticas, industrialização, migrações urbanas, etc.) continuam apresentando um comportamento violento e, muitas vezes, ilegal. As Instituições Policiais A discussão sobre a qualidade e adequabilidade das instituições policiais tem aumentando consideravelmente. Em boa parte, isso é resultado do aumento das taxas de criminalidade e da sensação de insegurança em diversas cidades, bem como da reação violenta e, às vezes, descontrolada das polícias. Dois temas têm recebido bastante destaque na presente discussão: a necessidade de políticas mais efetivas de segurança pública, que permitam uma redução nos índices de criminalidade, e a necessidade de reformas nas instituições policiais, que permitam uma maior adequação ao contexto sociopolítico dos regimes democráticos. O debate sobre polícia e criminalidade tem enfatizado a idéia de que as polícias precisam fazer alguma coisa para conter as crescentes taxas de criminalidade. Nesse sentido, cobram-se maiores investimentos em segurança pública, seja na contratação de novos contingentes policiais, seja ainda na aquisição de novos equipamentos. Por outro lado, cobra-se das polícias maior eficiência, e às vezes inovações, na realização das suas tarefas cotidianas. O debate sobre reforma nas polícias tem enfatizado a necessidade de mudanças nas estruturas policiais. Onde a estrutura policial se apresenta centralizada, propõe-se a separação das atividades de patrulhamento, investigação, controle de trânsito e administração do sistema penitenciário. Onde a estrutura policial se apresenta diferenciada, argumenta-se o contrário, ou seja, que a existência de duas ou mais instituições policiais encarregadas das tarefas de patrulhamento e investigação prejudicaria o controle e a eficiência do aparato policial. Outros atribuem a violência das polícias à sua estrutura militarizada e propõem a reforma e, às vezes, a extinção dessas instituições. Outros sustentam a inadequabilidade do controle das polícias por parte de governos estaduais e propõem, ora a federalização das polícias, ora a municipalização dessas instituições. Entretanto, tais afirmações têm sido contestadas por recentes estudos sobre as instituições policiais. Com relação à criminalidade, os estudos têm mostrado, por exemplo, que a ocorrência de crimes não guarda uma forte relação com o número de policiais e tampouco com o orçamento destinado às polícias. Isso não quer dizer que não faça diferença a existência das polícias, mas há um ponto a partir do qual essa relação entre polícia e crime se torna menos nítida. Comparando diferentes polícias em 105 contextos sociais semelhantes, alguns estudiosos norte-americanos verificaram que os índices de criminalidade não têm sido muito afetados pelo aumento nos gastos com pessoal e equipamento policial71. Analisando o caso de São Paulo, José Vicente da Silva e Norman Gail mostram que as taxas de criminalidade continuaram aumentando, mesmo depois de importantes investimentos na contratação de policiais e na compra de equipamentos72. Com relação às estratégias de policiamento, estudos mostram que o patrulhamento motorizado, não importando se realizado em duplas ou por um só policial, tem se revelado ineficaz para reduzir a criminalidade e mesmo para a detenção de suspeitos. Tampouco tem servido para diminuir o sentimento de insegurança presente em determinadas comunidades. Nesse ponto, o patrulhamento a pé tem-se mostrado mais útil, pois a presença física de policiais ajuda a reduzir a sensação de insegurança, muito embora também não seja eficaz na redução da criminalidade. Tampouco a presença maciça de policiais em determinadas áreas tem afetado os índices de criminalidade, embora transfira, temporariamente, o problema para outras áreas73. Com relação à estratégia que ficou conhecida nas principais cidades norte-americanas como resposta rápida, mais uma vez os estudos demonstram que, ao contrário do que se supunha, a rapidez no atendimento das emergências policiais não tem um forte efeito sobre a criminalidade. Tampouco tem aumentado a satisfação da população com os serviços prestados pela polícia. Os cidadãos parecem mais interessados na prevenção dos problemas do que numa rápida reação policial74. Finalmente, com relação à investigação criminal, os estudos também têm demostrado que seu efeito sobre a taxa de criminalidade é bastante reduzido75. Crimes são raramente resolvidos pela investigação policial. Equipes de investigadores têm sido pouco eficientes na resolução de crimes e na detenção dos criminosos. Ao contrário do 71 Daniel Koenig, Do Police Cause Crime? Police Activity, Police Strenth and Crime Rates (Ottawa: Canadian Police College, 1991); Collin Loftin e David Mcdowall, “The Police, Crime and Economic Theory”, in American Sociological Review (nr 47, 1982). 72 José Vicente da Silva e Norman Gail, Incentivos Perversos à Segurança Pública (São Paulo: Biblioteca Virtual de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo, 2000). 73 Geoge Kelling, “Order Maintanance, The Quality of Urban Life, and Police: A Line of Argument”, in Willian Geller (ed), Police Leadership in America (New York: Praeger Publishers, 1985). 74 Willian Spelman e Dale Brown, Calling the Police: Citizen Reportering of Serious Crimes (Washington: Police Executive Research Forum, 1981). 75 David Bayley, Police for the Future (New York: Oxford University Press, 1994). 106 que a televisão e o cinema costumam divulgar, a solução de crimes depende muito menos da capacidade e da perspicácia dos investigadores do que da colaboração de terceiros, sejam eles testemunhas ou informantes76. As razões apontadas para esses fracassos são que, em grande parte, estas estratégias não visam à prevenção da criminalidade, mas simplesmente à sua repressão, e há uma relação entre repressão policial e criminalidade que até hoje não foi satisfatoriamente demonstrada. Com relação ao patrulhamento de rua, o problema está na sua finalidade, o controle da criminalidade. Aqui se supõe que a polícia, por si só, poderia dar conta dessa tarefa. Com relação ao debate sobre reforma policial, os estudos apontam que não há um modelo único de estrutura policial. Analisando os processos de criação das atuais instituições policiais francesas, inglesas, alemãs e italianas, David Bayley constata que estas instituições surgiram junto com o processo de estabelecimento dos Estados modernos. Constata também que as mudanças sociais e econômicas constituíram um importante vetor para a criação dos novos sistemas policiais. Entretanto, as profundas diferenças entre as estruturas policiais estudadas foram conseqüências da forma como se deu a distribuição de poder nesses Estados. Ou seja, a variedade nessas estruturas policiais é muito mais função da estrutura política existente do que da necessidade de controle da criminalidade77. Comparando as instituições policiais em diferentes países, podemos constatar que sua estrutura e organização variam bastante. Em alguns países a atividade policial é desempenhada por uma única instituição. É o caso do Israel, Suécia, Noruega, Grécia, Peru, Bolívia e Irlanda. Em outros países, essa mesma atividade é desempenhada por duas (França, Espanha, Itália e Portugal) ou mais instituições (Brasil, Argentina, México e Alemanha). Há ainda os casos de países onde a atividade policial fica a cargo de centenas (Canadá), e até mesmo de milhares (EUA) de instituições. O controle dessas instituições também varia bastante. Em alguns casos o controle das polícias é centralizado sob uma única unidade política. Na França, Itália, Portugal e Espanha, cabe aos governos nacionais organizar, manter e dirigir as diferentes organizações policiais. Em outros países, o controle das instituições policiais é 76 Sobre o trabalho de investigação das polícias brasileiras, ver Guaracy Mingardi, Tiras, Gansos e Trutas; Cotidiano e Reforma na Polícia Civil (São Paulo: Editora Página Aberta, 1992). 77 David Bayley, “The Police and Political Development in Europe”, in Charles Tilly (ed), The Formation of National States in Western Europe (Princeton: University of Princeton Press, 1975). 107 compartilhado por diferentes unidades políticas (união, estados e municípios). É o caso do Brasil, Argentina, México, Alemanha, EUA e Canadá. No caso de países com mais de uma instituição policial, a jurisdição dessas instituições pode ser limitada territorialmente ou de acordo com certos temas. Na França, por exemplo, a atuação da Gendarmerie e da Police Nationale é limitada territorialmente. Cabe à primeira o policiamento das áreas rurais e à última o policiamento das áreas urbanas. Em outros casos, como Brasil, Argentina e EUA, o policiamento normal é realizado pelas polícias controladas pelos estados ou províncias (Brasil e Argentina) e municípios (EUA), cabendo às polícias federais jurisdição sobre certos crimes considerados de competência federal. Uma outra variação encontrada diz respeito à estrutura dessas instituições. Algumas estão organizadas nos moldes das organizações militares. É o caso das Polícias Militares brasileiras, do Corpo de Carabineiros espanhol, italiano e chileno, e da Gendarmerie francesa. Outras instituições apresentam organizações diferentes do padrão militar, que a literatura consagrou como civil. É o caso das polícias americanas, inglesas, bem como da Police Nationale francesa, das polícias civis brasileiras e das polícias provinciais argentinas. Uma outra variação nesse tema diz respeito à relação entre as polícias e as forças armadas. Em alguns casos, as polícias estão sobre controle das forças armadas, como no caso das polícias militares brasileiras durante o regime militar (1964-1985); em outros, são totalmente autônomas e diferenciadas das forças armadas, como no caso das polícias inglesas. Como podemos notar, a organização, a estrutura e as formas de controle das polícias variam bastante de país para país. Essa variação depende da estrutura política de cada país e da forma que cada Estado escolheu para exercer seu controle político e social. É interessante notar que essa variação tem se mantido, de modo geral, independente de guerras, transformações políticas e sociais, como destaca David Bayley78. Além disso, dada a enorme variedade de organizações policiais, é de pouca utilidade atribuir o tipo de relacionamento entre polícia e sociedade simplesmente à estrutura das instituições policiais. Essa relação depende muito mais da forma como cada Estado estabelece seu controle social e dos tipos de mecanismos de controle da atividade policial. 78 David Bayley, op. cit. 108 Polícia e Democracia Como mencionamos anteriormente, o traço definidor das instituições policiais é a possibilidade do uso da força. Entretanto, essa possibilidade não confere às polícias total liberdade para decidirem quando cabe o recurso à violência e quando não cabe. A questão dos limites ao uso da violência por parte dos agentes estatais é um dos temas mais relevantes da teoria democrática, por tratar-se exatamente dos limites ao exercício do poder. Uma questão relevante é a distinção entre o uso da força legitima e violência policial. Até que ponto e sob quais circunstâncias é legitimo, ou admissível, o uso da força? Qual a linha demarcatória entre força legitima e violência policial? Esta questão tem sido largamente debatida por aqueles que se dedicaram a estudar a atividade policial nas modernas democracias. Em primeiro lugar, é importante destacar que essa linha demarcatória não é fixa. O limite entre força legitima e violência vária em função da forma como cada sociedade interpreta a noção de violência. Em segundo lugar, dada a complexidade do tema e suas graves conseqüências políticas, não há um consenso sobre qual seria este limite. Paulo de Mesquita Neto mostra que há pelo menos três interpretações dominantes sobre o tema: uma interpretação jurídica, outra sociológica e finalmente uma interpretação profissional79. Do ponto de vista jurídico, há uma tendência a diferenciar força e violência com base na legalidade. São considerados atos de violência policial, o uso da força sem a devida autorização legal. Os exemplos mais típicos de violência policial, de acordo com esse tipo de interpretação, seriam os atos de violência cometidos por policiais fora de serviço, ou a violência utilizada para ações proibidas pela lei, como extorsão e tortura. Entretanto, ao enfatizar os aspectos legais da questão, deixa-se de considerar as situações em que, embora legal, a força é utilizada de forma desnecessária ou excessiva. Muito embora a legislação de vários países reconheça as variações situacionais de necessidade e intensidade, sua aplicação nos casos concretos é de grande dificuldade. Dentro da interpretação sociológica sobre o tema, há uma tendência a distinguir força e violência a partir da noção de legitimidade, ou seja, com base na percepção de determinados grupos sociais acerca da constituição e do exercício da autoridade. Nesse 79 Paulo de Mesquita Neto, “Violência Policial no Brasil: Abordagens Teóricas e Práticas de Controle”, in Dulce Chaves Pandolfi et al., Cidadania, Justiça e Violência (Rio de Janeiro: FGV Editora, 1999), pp. 129-148. O autor sugere ainda uma quarta interpretação, jornalística, que por motivos de relevância teórica não iremos discutir aqui. 109 caso, embora legal, o uso da força em alguns casos pode ser considerado ilegítimo – como ocorre, por exemplo, quando a polícia utiliza a força para controlar uma greve ou uma manifestação popular. A legitimidade com relação ao exercício da autoridade estatal não é dada, mas sim construída a partir de um conjunto de valores e crenças, bem como é função de uma estrutura social e política. Isso possibilita que a violência policial contra grupos socialmente desprivilegiados seja admitida e até justificada. Por último, podemos verificar a interpretação profissional. Ao contrário das outras interpretações, esta busca definir o uso da força policial a partir de critérios profissionais. Gari Klockars entende que está caracterizada a violência policial quando um agente usa mais força do que um policial bem treinado acharia necessário empregar80. A ênfase dessa interpretação recai sobre a necessidade que uma profissão tem de estabelecer seus padrões de conduta a fim de diferenciar-se social e economicamente. Nesse sentido, caberia fundamentalmente às polícias a regulação da sua atuação profissional. Embora necessária, a auto-regulação profissional deve ser tomada com algumas ressalvas. Existe sempre a possibilidade de esse grupo social se isolar do restante da sociedade, criando e reproduzindo valores e crenças distintos. Isto é particularmente válido para a profissão policial, dada a natureza da sua atividade, como destaca Skolnick81. Como cada uma dessas interpretações define de forma diferente o que vem a ser violência policial, os mecanismos propostos para controlar a atividade policial também vão variar. De um lado, aqueles que enfatizam os aspectos legais da questão vão destacar os papéis dos poderes executivo, legislativo e judiciário no controle legal da atividade policial. Aqui, especial ênfase é dada ao papel dos tribunais e do ministério público para punir os atos ilegais dos agentes policiais. De acordo com a interpretação sociológica, a ênfase do controle da atividade policial deveria recair sobre o estabelecimento de órgãos de controle externo. A idéia é que, por meio desses órgãos, a sociedade possa estabelecer os limites legítimos do uso da força 80 Gari Klockars, “A Theory of Excessive Use of Force and Its Control”, in Geller e Toch (eds), Police Violence: Understanding and Controlling Police Abuse of Force (New Haven: Yale University Press, 1996), p 8. 81 Jerome Skolnick, op. cit., cap 11. 110 policial. Nesse sentido, a preocupação recairia sobre as características dos órgãos de controle externo e sua capacidade de supervisionar a atividade policial. Finalmente, a interpretação profissional destaca a necessidade de estabelecimento de padrões de conduta profissionais. A ênfase recai no treinamento e organização das forças policiais. A principal preocupação aqui está em transformar as polícias em instituições mais autônomas do poder político, altamente treinadas e equipadas para exercer suas funções. Entretanto, essas três interpretações não são conflitantes. Tampouco as definições de violência policial e os mecanismos de controle são mutuamente excludentes – muito embora se deva reconhecer que a discussão não está na correção dessa ou daquela definição, mas sim na prioridade para o estabelecimento de mecanismos de controle. Nesse sentido, a profissionalização da atividade policial parece ser fundamental, bem como o estabelecimento de mecanismos que possibilitem maior accountability dessas instituições. Uma tarefa que se impõe é entender como o conceito de accountability se aplica no caso das polícias. Para tal, proponho seis diferentes dimensões nas quais podemos pensar o problema do exercício da atividade policial, a saber: 1) legislação; 2) códigos de conduta, treinamento e supervisão; 3) estratégias de policiamento; 4) controle interno e controle externo; 5) justiça; 6) relações intergovernamentais. Legislação A idéia de democracia, mesmo na sua versão procedimental de poliarquia, reconhece que a existência de certos direitos individuais e o respeito a eles é uma das condições para a realização da democracia. Entretanto, em alguns países latino-americanos, cujos regimes políticos se aproximam do ideal democrático de poliarquia, persistem graves deficiências no que diz respeito ao Estado de Direito. Apesar dos progressos no campo do direito constitucional, que incorporou uma série de direitos individuais, ainda existem leis e regulamentos que discriminam mulheres, minorias indígenas e homossexuais, ferindo a idéia de igualdade formal82. No que diz respeito às forças policiais, o estabelecimento e o respeito de certas garantias individuais é peça fundamental para o controle democrático dessas instituições. O reconhecimento da liberdade de expressão que implica a liberdade de manifestação, 82 Ver Juan Mendez, Guillermo O’Donnell e Paulo Sérgio Pinheiro (eds), The (Un)Rule of Law & the Underprivileged in Latin America (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2000), parte II. 111 bem como o respeito ao devido processo legal, são princípios fundamentais que devem nortear a atuação de qualquer instituição policial num regime democrático. Outra peça fundamental para controlar a atuação das forças policiais é a regulação do procedimento penal, seja na forma de leis e códigos, como dita a tradição do direito europeu continental, seja na forma de jurisprudência, conforme a tradição do direito anglo-saxão. Isso se deve ao fato de que boa parte das ações policiais está ligada ao controle da criminalidade, sendo as polícias parte direta ou indireta do processo penal. Nesse campo, o poder conferido às polícias varia bastante. Em alguns países a polícia só pode deter cidadãos com ordem da justiça ou em casos de flagrante, como no caso do Brasil e dos EUA. Em outros países, a legislação permite que as polícias atuem mais autonomamente. Na Argentina, por exemplo, a polícia federal pode prender uma pessoa por até 30 dias sob acusação de vadiagem sem necessidade de um mandado judicial. Na Venezuela, a polícia pode deter qualquer suspeito por até 5 dias. Códigos de Conduta, Treinamento e Supervisão Se, por um lado, a legislação impõe uma série de limitações à atividade policial, por outro confere a estas instituições um alto grau de discricionariedade. A própria natureza da atividade policial exige um grau de liberdade funcional, dificilmente encontrado em outra instituição burocrática. No que diz respeito ao uso da força, esta questão torna-se mais sensível ainda. Em quais circunstâncias é admitido o uso da força e qual a intensidade a ser empregada? Essas questões só podem ser respondidas a partir da própria experiência das polícias. O exercício continuado da atividade policial possibilita a acumulação de conhecimentos que permitem a análise das situações na quais a força deve ser empregada e a melhor forma de fazê-lo, para a melhor proteção dos policiais e dos cidadãos. Um número excessivo de policiais e civis mortos ou feridos indica que estes conhecimentos não estão sendo corretamente empregados. Esses conhecimentos devem ser incorporados ao trabalho cotidiano dos policiais. Para tal, devem ser transformados em técnicas policiais, manuais de treinamento e códigos de conduta. Isso permite que as condutas individuais sejam avaliadas não só com relação à sua legalidade, mas também do ponto de vista profissional. Condutas que contrariem as técnicas, os manuais e os códigos podem e devem ser punidas administrativamente; para tanto, devem ser avaliadas e supervisionadas a partir desses critérios. Além disso, essas técnicas, manuais e códigos devem estar sujeitos, de alguma forma, à avaliação da sociedade. 112 Estratégias de Policiamento Usualmente a atividade policial é descrita como uma guerra contra o crime. Mais recentemente esta guerra vem ganhando outras dimensões: guerra contra as drogas, guerra contra a delinqüência juvenil e mesmo guerra contra a corrupção. A analogia entre polícia e exército é inadequada. Diferentemente dos soldados num campo de batalha, os policiais não têm a clara definição de quais são seus inimigos; afinal, todos são cidadãos, mesmo os que infringem a lei. Tampouco os policiais estão autorizados a usar o máximo de força para aniquilá-los. Essa analogia permite que as polícias elejam seus inimigos normalmente entre os segmentos política e economicamente desprivilegiados, e também incentiva o uso da violência. Outro problema gerado por essa analogia é que ela impõe às polícias uma guerra perdida, que jamais se esgota. Isso acaba por gerar um sentimento de frustração e até mesmo de desmoralização entre os quadros da polícia. Como mencionamos anteriormente, o controle social é função do Estado como um todo, e não uma tarefa exclusiva das polícias. Cabe, portanto, ao Estado como um todo impor as normas, as crenças e os padrões de conduta desejados pelos grupos dominantes. Não é possível realizar esse controle social exclusivamente por meio da repressão policial. Portanto o crime não é algo que pode ser combatido ou eliminado. Por outro lado, os mecanismos de controle social podem ser aperfeiçoados e estendidos a uma porção maior da sociedade. Conforme Patrick Murphy, ex-diretor das polícias de Syracuse, Washington (DC), Detroit e Nova Iorque, a caracterização das polícias como soldados tem servido não só para desviar a atenção de estratégias mais efetivas de controle social, mas também tem sido causa de violência policial e violações dos direitos civis83. Outro problema sério com relação às estratégias de policiamento diz respeito à sua avaliação. As polícias tendem a ser avaliadas em termos quantitativos: quantos crimes aconteceram, quantas pessoas foram presas, quantas chamadas foram atendidos, quantas ocorrências foram registradas, quantos crimes foram solucionados. Entretanto, esses números não respondem a uma importante questão para um regime democrático: qual o grau de confiança que os cidadãos depositam nas polícias? Em boa medida, a avaliação incorreta do desempenho das polícias repousa na idéia incorreta de atribuir às polícias a 83 Patrick Murphy e Thomas Plate, Comissioner: A New View From The Top of American Law Enforcement (New York: Simon and Schuster, 1977), p 270. 113 exclusividade do controle social. Outra forma de avaliar o trabalho das polícias é verificar a qualidade da sua relação com a sociedade, bem como a efetividade dos seus gastos. Recentemente, tem-se verificado uma tendência para a substituição das estratégias de conflito por políticas preventivas, voltadas para o policiamento comunitário ou concentradas sobre grupos e problemas específicos, tais como violência juvenil, violência contra mulheres, crianças, homossexuais, minorias étnicas, etc.84 Dois aspectos devem ser considerados com relação a essas novas estratégias. Elas buscam atuar nas causas dos problemas e para isso requerem estudos e informações específicas; além disso, sua implantação envolve um grande número de agências estatais, além das polícias. Controle Interno e Externo As demandas pela implantação de órgãos de controle externo da atividade policial são relativamente recentes, datam do início dos anos 70. A partir daí, várias polícias passaram a conviver com mecanismos de controle externo. Entretanto, a estrutura e a capacidade desses órgãos têm variado bastante85. Alguns órgãos de controle externo apresentam uma ligação bastante próxima com as instituições policiais. Às vezes, pertencem à própria estrutura do sistema policial, como no caso das ouvidorias de algumas polícias brasileiras, que pertencem às secretárias de Segurança Pública. Em outros casos, esses órgãos são totalmente desvinculados do sistema policial, possuindo autonomia financeira, administrativa e equipe própria de investigadores, como no caso das províncias canadenses do Quebec e Ontário. Quanto ao controle político, alguns órgãos de controle externo têm seus diretores eleitos diretamente ou nomeados pelos parlamentos, como no caso do Police Complaints Authority inglês. Outros têm seus diretores indicados pelo chefe do poder executivo. Há ainda os casos de órgãos de controle externo que têm composição mista, policiais e 84 Ver Willard M. Oliver (ed), Community Policing: Classical Readings (New Jersey: Prentice Hall, 2000). 85 Sobre controle externo, ver Andrew Goldsmith e Colleen Lewis (eds), Civilian Oversight of Police: Governance, Democracy and Human Rights (Portland e Oxford: Hart Publishing, 2000); Errol Mendes (ed), Democratic Policing and Accountability: Global Perspectives (Aldershot: Ashgate, 1999); Margaret Simey, Democracy Rediscovered: A Study in Police Accountability (London: Pluto, 1988) e Jerome Skolnick e James Fyfe, Above the Law: Police and Excessive Use of Force (New York: The Free Press, 1993). 114 civis, como no caso do Civilian Complain Review Board (CCRB) de Nova Iorque86. Com relação às capacidades políticas de cada órgão, alguns podem punir policiais e decidir por mudanças institucionais no que diz respeito a treinamento e códigos de conduta, como no caso da polícia de Toronto. Outros podem apenas fazer recomendações ao chefe de polícia, como na Polícia de Los Angeles (LAPD). Apesar dessa variação, uma questão mostra-se presente em todos os casos: pode o controle externo ser mais eficaz que o controle interno? Sobre essa questão, David Bayley afirma: “Em princípio, o controle interno é preferível por pelo menos três razões: primeiro, uma inspeção interna pode estar mais bem informada do que a externa. Uma determinada polícia pode esconder quase tudo que quiser de uma inspeção externa, e é certamente capaz de inviabilizá-la. Segundo, o controle interno pode ser mais profundo e extenso. Ele pode enfocar toda a gama de atividades policiais e não apenas as aberrações mais visíveis e dramáticas. Terceiro, o controle interno pode ser mais variado, sutil e discreto. Ele pode usar tanto mecanismos informais quanto formais que são onipresentes na vida profissional dos policiais”87. O controle interno repousa na idéia de que cada profissão deve impor seus próprios padrões de conduta. Entretanto, inúmeras críticas têm surgido com relação à eficácia do controle interno das polícias. A percepção dos policiais supervisores sobre a necessidade e intensidade do uso da força não é muito diferente da dos seus pares. Se, por um lado, o controle interno é muito importante na investigação de casos de desvio profissional, por outro, com relação à limitação do uso da força, o controle interno tem se mostrado pouco útil. Nesse caso, o controle externo pode ser bastante útil. Uma vez que sua capacidade investigativa em comparação com o controle interno é reduzida, sua atuação principal deveria ser a avaliação da atividade policial junto à população. Nesse ponto, dada sua autonomia, o controle externo é indispensável. Com relação aos problemas relacionados ao controle interno, David Bayley reconsiderou sua posição. “O controle civil (externo) desvia as críticas infundadas (com relação à polícia), isola os policiais persistentemente duros, reforça o trabalho dos 86 A partir de 1993 o CCRB passou a ser composto apenas por civis. David Bayley, Patterns of Policing (News Brunwick: Rutgers University Press, 1985), pp177-78. 87 115 administradores e atesta a boa-fé das polícias. O controle civil é importante ferramenta para a administração da atividade policial”88. A existência tanto de um órgão de controle interno quando de outro encarregado do controle externo é fundamental para o controle da atividade policial. Suas funções, ao contrário do que se supõe, não são concorrentes, mas sim complementares. Justiça O processo penal é uma ferramenta fundamental para a accountability dos agentes estatais, muito embora sua eficácia como instrumento de reformulação de políticas e instituições estatais seja reduzida. Para sua eficiência, é necessário que este sistema seja independente dos outros poderes políticos e que disponha de instrumentos legais e condições materiais que tornem possível a investigação das denúncias e a punição daqueles agentes que se conduziram de forma imprópria. No caso das polícias, outras dificuldades têm surgido. Os padrões requeridos pelo processo penal tornam difícil avaliar se o uso da força, em determinada situação, foi ou não necessário. Além disso, os meios de provas requeridos são mais difíceis de obter, uma vez que mesmo os maus policiais são especialistas em coletar provas e, portanto, também em ocultá-las. Assim, é fundamental o papel do ministério público ou outra instituição autônoma na investigação de denúncias de violência policial. No que diz respeito à coleta de provas, é fundamental que as instituições encarregadas da perícia criminal sejam autônomas também. Dada a dificuldade de coleta de provas materiais nos casos de violência policial, as provas técnicas, como os exames balísticos e médicos, ganham importância. Sem uma investigação autônoma, a eficiência da justiça penal torna-se mais reduzida ainda. Um aspecto relacionado ao sistema judiciário importante no controle da atividade policial é o processo civil. Nesse caso, a responsabilidade sobre atos de violência policial pode recair tanto sobre o agente infrator quanto sobre a instituição policial. Os meios de prova, nesse caso, podem ser mais fáceis de obter. Entretanto, mesmo em países com uma larga tradição no que se refere à responsabilização civil do Estado, 88 David Bayley, Prefácio de Andrew Goldsmith (ed), Complains Against The Police: The Trend to External Review (New York: Oxford University Press, 1991), p x. 116 como os EUA, esse recurso tem sido pouco utilizado com relação à violência policial, como atesta Paul Chevigny89. Relações Intergovernamentais Em alguns Estados federativos, como EUA, Brasil e Argentina, questões relativas à criminalidade e à atividade policial têm sido tratadas como essencialmente locais (estaduais ou municipais). Entretanto, o tema não é tão local quanto parece, uma vez que o exercício da atividade policial é limitado pelas constituições federais, que incorporam uma série de direitos individuais. Além disso, a atividade policial também é condicionada por códigos de processo penal, que são de competência exclusiva da união, como no caso brasileiro, ou são de competência compartilhada entre a união e as províncias, como na Argentina. No caso norte-americano, a reinterpretação da aplicação dos direitos individuais, por parte da Suprema Corte Federal, tem afetado a atividade policial. Entretanto, apesar disso, os governos federais têm se mantido relutantes em ampliar seu papel no controle da atividade policial. Há uma grande reserva com relação à limitação da autonomia política dos outros membros da federação. Assim, mesmo as tarefas mais simples, como a centralização de dados e informações relacionadas à atividade policial, têm se mostrado insatisfatórias. Entretanto, a organização de informações confiáveis sobre o tema é de importância fundamental para a avaliação do desempenho das instituições policiais, assim como a divulgação de experiências bem-sucedidas no que diz respeito às estratégias de policiamento. Outra área em que o papel da união deve ser ampliado é a do sistema judiciário. Dada a relação próxima entre as justiças estaduais e as polícias, às vezes a investigação e o julgamento das ações policiais perdem a eficácia. Nesse ponto, a jurisdição dos tribunais federais deve ser ampliada, a fim de oferecer aos cidadãos uma outra possibilidade de recurso contra condutas impróprias de agentes polícias. Finalmente, os governos federais podem ter um papel mais ativo no que diz respeito às reformas das instituições policiais. Recentemente, os governos federais do Brasil, da Argentina e dos EUA começaram a oferecer financiamentos destinados à reformulação e ao aperfeiçoamento das instituições policiais. Esses financiamentos devem incentivar 89 Paul Chevigny, The Edge of Knife: Police Violence in The Americas (New York: The New Press, 1995). 117 algumas reformas específicas no que diz respeito ao controle da atividade policial, como a criação ou ampliação das capacidades dos órgãos de controle interno e externo, além da adoção de determinadas estratégias de policiamento e de treinamento que visem à redução do uso da força policial. Neste capítulo argumentamos que tanto o controle social quanto a forma como a atividade policial é exercida dependem das características do Estado e do regime político. Aqui é fundamental fazer uma distinção analítica entre esses dois conceitos. O Estado moderno, como destacou Max Weber, é uma estrutura de dominação do homem sobre o homem. O que o distingue das outras estruturas de dominação é sua pretensão de exercer o monopólio do uso legitimo da violência física90. Isso não quer dizer que esta dominação será mantida exclusivamente por meio do uso da violência. A forma de dominação estatal é produto também da sua capacidade de estender os valores e comportamentos pretendidos sobre todos os segmentos da sociedade. Depende, portanto, das características do aparelho repressivo estatal e da sociedade civil. Já o regime político é caracterizado por um conjunto de práticas e instituições políticas que definem a disputa e o exercício do poder. Assim poderemos tomar um regime democrático como aquele que permite uma extensa e significativa competição entre indivíduos e grupos organizados pelas principais posições numa arena decisória, um alto grau de participação na seleção dos líderes e das políticas a serem adotadas. Isso significa dizer que nenhum grupo social pode ser excluído tanto das eleições quanto do debate político, e onde o exercício do poder por parte de servidores eleitos deve seguir os limites e os critérios impostos pela sociedade na forma de lei. O restabelecimento das eleições democráticas e, com elas, a ampliação da participação política, por si só, não preenchem os requisitos de um regime democrático. É necessário também que o poder seja exercido dentro dos limites da lei. Para a realização desse ideal democrático, portanto, torna-se fundamental a existência e a efetividade de mecanismos de controle da atividade estatal. A forma de realizar o controle social varia de acordo com o tipo de estrutura política adotada. Enquanto, por exemplo, na estrutura política feudal e escravocrata, o controle social era prerrogativa dos senhores das terras, na estrutura capitalista cabe fundamentalmente ao Estado realizar essa tarefa. Além dessa diferenças com relação ao papel do Estado, os instrumentos utilizados para realizar esse controle também vão 90 Max Weber, Ciência e Política: Duas Vocações (São Paulo: Cultrix, 1996). 118 variar. Na estrutura feudal, a posse da terra, o regime de servidão e a administração da justiça por parte dos senhores feudais eram instrumentos fundamentais para a manutenção daquela ordem hierárquica. Da mesma forma que no regime escravocrata, a negação dos direitos civis e políticos a uma substantiva parcela da população permitia o estabelecimento de determinada ordem social. Isso não significa dizer que não ocorreram movimentos de contestação dessa ordem social, ou que essas formas eram mais eficazes ou eficientes, mas simplesmente que existem outras formas de controle social91. É somente na estrutura capitalista que o Estado vai exercer papel relevante no controle social cotidiano. Não há dúvida de que o Estado exerceu papel político relevante para a manutenção dos sistemas feudal e escravocrata, mas não necessariamente ocupava-se da tarefa diária de controle da ordem social. Com as mudanças sociais e políticas advindas das transformações da estrutura produtiva, o Estado passou a ocupar-se também do controle social diário. Para isso, passou a valer-se de uma série de instrumentos de dominação política, entre eles a polícia. Entretanto, o papel das polícias nessa estrutura de controle social moderna varia muito. Em alguns casos, a polícia é o principal instrumento de controle social; em outros, é apenas uma das diversas agências encarregadas da produção e manutenção da ordem. Nesse caso, as polícias completam o papel do sistema de justiça, de educação e produtivo nas tarefas de controle social. As polícias podem tanto dedicar-se principalmente à manutenção da ordem política, como podem tratar exclusivamente das questões ligadas à criminalidade. O que nos interessa nessa discussão é mostrar que o papel da polícia depende da forma como o Estado pretende exercer o controle social. A realização do trabalho policial não é condicionada apenas pelo modelo de controle social. De fato, a atividade policial é moldada pelos mecanismos de controle institucional que apontam o papel das polícias na estrutura de controle social. Tais mecanismos incluem códigos penais e de processo penal, leis orgânicas, cadeias de comando, regulamentos internos, órgãos de supervisão externa e interna e sistema de justiça. Esses mecanismos conferem discricionariedade aos policiais em determinados assuntos, limitam seu poder em outros, bem como determinam sua organização, seu treinamento, sua avaliação e supervisão. 91 Sobre os movimentos de contestação à ordem feudal, ver Reinhard Bendix, Construção Nacional e Cidadania: Estudos de nossa Ordem Social em Mudança (São Paulo: Edusp 1996) e Eric Hobsbawn, Bandits (New York: Pantheon Books, 1981). 119 Portanto, podemos encontrar uma variedade nas formas de controle social e nos mecanismos de controle estatal existentes. No que diz respeito às polícias, duas questões devem ser respondidas. Qual o seu papel na estrutura de controle social pretendida e quais os mecanismos de controle da atividade policial? O dilema “entre a lei e a ordem” é válido para aquelas situações em que o controle social se baseia principalmente no aparato repressivo estatal, especialmente nas polícias. Nas situações em que o controle social se estabelece principalmente por meio dos mecanismos ideológicos da sociedade civil, esse dilema perde a força. Uma vez que Estado e sociedade civil operam de forma complementar, é necessário que a atividade policial esteja em acordo com os limites impostos pela sociedade. Nesse caso, o dilema “entre a lei e a ordem” deixa de existir e dá lugar ao imperativo de controle da atividade policial, necessário para legitimar aquela estrutura de controle social. A introdução de mecanismos institucionais que efetivamente controlem a atividade policial vai depender, portanto, do tipo de controle social pretendido numa sociedade. Em alguns casos, a introdução desses mecanismos implica a redefinição do papel das polícias numa estrutura de controle social.