© Grupo de Trabalho-Pedagogia para a Autonomia, Cadernos 4, 2006, pp. 6-8, Braga: Universidade do Minho (org. F. Vieira) Da gramática à matemática da (co)docência Isabel Barbosa If you obey all the rules you miss all the fun. Quando um professor ultrapassa o limiar dos trinta anos de experiência, tem alguma legitimidade para pensar que conhece a gramática e a matemática do seu "ofício". Mas também corre o risco de pensar que, conhecidas as suas regras, já nada de novo há a esperar, nada com que se surpreender ou mesmo encantar. Pois é de descoberta e encantamento que vou falar, na sequência do meu envolvimento numa experiência, para mim nova, de codocência no contexto da disciplina de Metodologia do Ensino de Inglês, do 4º ano da Licencitura em Ensino de Inglês e Alemão. Tanto eu como a minha colega Sandra lidamos bastante bem com a regras próprias da actividade docente. Conhecemos muitas delas, mas também já tivemos tempo e predisposição para aprender a "quebrar" algumas. Para não ser mal interpretada, é necessário clarificar o uso da palavra regra neste contexto. Como todos sabemos, existem regras mais ou menos universais, como as da(s) gramática(s), mas existem outras que se vão impondo pela força dos usos e costumes próprios dos diferentes contextos em que actuamos. E isto aplica-se também à educação, em geral, e à docência, em particular, no âmbito da qual esses usos e costumes ainda ditam que a cada sala de aula corresponde um professor, ao qual cabe pôr em prática as regras da gramática dos processos de ensino e aprendizagem, e fazer as contas de acordo com a sua matemática. Assim, as práticas de codocência contrariam, de certo modo, as regras instituídas, sem contudo comprometer a qualidade da gestão da gramática educativa. Com efeito, não é a este nível que se notam as diferenças mais significativas entre a modalidade de monodocência e a da codocência, pois tanto num caso como no outro podemos respeitar as suas regras, de forma criativa, de acordo com preferências ou sensibilidades pessoais. Estas preferências revelam-se não só ao nível da morfologia, como também ao da sintaxe. No âmbito da morfologia, nomeadamente no que respeita à conjugação verbal, preferimos o modo indicativo e o tempo presente, estando conscientes da necessidade de fazer uma escolha criteriosa dos verbos a conjugar com maior sistematicidade. Assim, em vez de verbos que coloquem os alunos num papel de receptores passivos, preferimos insistir na conjugação daqueles que lhes permitem uma participação mais activa no seu processo de aprendizagem, como por Isabel Barbosa – Da gramática à matemática da (co)docência © Grupo de Trabalho-Pedagogia para a Autonomia, Cadernos 4, 2006, pp. 6-8, Braga: Universidade do Minho (org. F. Vieira) exemplo negociar, reflectir, decidir, experimentar. Esta preferência de carácter morfológico tem implicações directas ao nível da sintaxe da aula, pois de acções de partilha e colaboração derivam relações de coordenação em vez de subordinação. Até aqui nada de novo, para quem tem uma visão humanista da educação e acredita que professores e alunos devem ser parceiros no processo de desenvolvimento de capacidades, conhecimentos e atitudes. Ainda que esta preferência por relações de coordenação não corresponda ao que mais frequentemente acontece em contexto educativo, em particular na universidade, ela não viola as regras gramaticais, embora, de alguma forma, contrarie as culturais. Mas são "transgressões" deste género que dão sabor à docência e que estão na base do episódio que deu origem a esta reflexão. Foi a aula da passada quinta-feira, em que, com a naturalidade de quem domina noções gramaticais como definição, tempo, lugar, modo e grau, a minha colega Sandra resolveu atribuir a um aluno o papel de professor. Também esta decisão pode parecer contrária às regras da (mais comum) definição dos papéis pedagógicos, segundo a qual, e partindo do princípio de que não existe a categoria dos indefinidos, tanto alunos como professores têm as suas expectativas relativamente às funções que uns e outros devem desempenhar na sala de aula. Por isso, a introdução da categoria dos (papéis) invertidos pode fazer crer que se começam a transgredir as próprias regras gramaticais, mas esta inversão deixa de ser um fenómeno morfológico, para passar a corresponder ao fenómeno sintáctico da inversão do sujeito. Foi realmente o que aconteceu. O aluno assumiu as funções das professoras, ao longo de uma aula de duas horas, na qual se procedeu à verificação de uma actividade previamente realizada, tomando mesmo a iniciativa de nos interpelar, colocando-nos no papel de alunas. Nada disto seria especial, se não fosse o impacto que teve no funcionamento da aula, onde vínhamos a sentir algumas dificuldades em envolver os alunos de uma forma mais activa nas actividades. Na verdade, a natureza da participação de um grande número de alunos tem sido um dos nossos principais motivos de preocupação e reflexão, pelo que temos experimentado algumas estratégias no sentido de melhorar a sua adesão às propostas de trabalho que lhes apresentamos. Nesta aula os resultados foram diferentes, e é aqui que entra a matemática. Num regime de monodocência, não se fazem contas de dividir. O professor tem a(s) sua(s) própria(s) turma(s), com tudo o que lhe está associado - carga de trabalho, preocupações, problemas e alegrias. Uns dias soma, outros subtrai e às vezes também multiplica. Pode partilhar algumas coisas com os alunos, mas dividir todos estes aspectos com um colega, em regime de codocência é uma coisa totalmente diferente. Planificar as aulas em conjunto pode significar dividir por dois o trabalho inerente a essa planificação, até porque do confronto de ideias normalmente resulta economia de tempo e esforço na procura de soluções criativas, e a divisão de tarefas de "feedback" aos alunos e de correcção Isabel Barbosa – Da gramática à matemática da (co)docência © Grupo de Trabalho-Pedagogia para a Autonomia, Cadernos 4, 2006, pp. 6-8, Braga: Universidade do Minho (org. F. Vieira) dos seus trabalhos tem um efeito semelhante. Também aqui se aplicam as elementares regras da aritmética: um a dividir por dois é igual a um meio. Mais uma vez nada de novo. Mas há um aspecto em que esta regra não se aplica, facto de que tomei consciência quando saí da aula com a Sandra. Ao fazer as contas à alegria que ambas não conseguimos conter, e que por isso partilhámos, não consegui obter os resultados da aplicação dos princípios da divisão. A alegria sentida, a dividir por dois resultou em dupla alegria. Foi como se tivéssemos multiplicado, em vez de dividir. Isto mostra que vale a pena "quebrar" as regras da tradição escolar e universitária, invertendo papéis pedagógicos, rejeitando relações de subordinação, conjugando verbos que conduzam a uma formação emancipatória de alunos e professores. E mostra também que nunca é tarde para nos deixarmos encantar por experiências que trocam as voltas à matemática. Isabel Barbosa – Da gramática à matemática da (co)docência