PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito Cristian Kiefer da Silva O DIREITO COMO GARANTIA DE PACIFICAÇÃO E CONCILIAÇÃO DOS CONFLITOS ENTRE RIVAIS NA ITÁLIA RENASCENTISTA: uma análise da prática jurídica na tragédia “Romeo and Juliet” de William Shakespeare Belo Horizonte 2012 Cristian Kiefer da Silva O DIREITO COMO GARANTIA DE PACIFICAÇÃO E CONCILIAÇÃO DOS CONFLITOS ENTRE RIVAIS NA ITÁLIA RENASCENTISTA: uma análise da prática jurídica na tragédia “Romeo and Juliet” de William Shakespeare Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Estado de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teoria do Direito. Orientadora: Profª. Drª. Rita De Cássia Fazzi Belo Horizonte 2012 FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais S586d Silva, Cristian Kiefer da O direito como garantia de pacificação e conciliação dos conflitos entre rivais na Itália renascentista: uma análise da prática jurídica na tragédia “Romeo and Juliet” de William Shakespeare /Cristian Kiefer da Silva. Belo Horizonte, 2012. 142f. : il. Orientadora: Rita de Cássia Fazzi Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. 1. Administração de conflitos. 2. Conciliação (Processo civil). 3. Shakespeare, William, 1564-1616. Romeu e Julieta. 4. Direito e literatura. I. Fazzi, Rita de Cássia. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título. CDU: 347.9 Cristian Kiefer da Silva O DIREITO COMO GARANTIA DE PACIFICAÇÃO E CONCILIAÇÃO DOS CONFLITOS ENTRE RIVAIS NA ITÁLIA RENASCENTISTA: uma análise da prática jurídica na tragédia “Romeo and Juliet” de William Shakespeare Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Estado de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teoria do Direito. _________________________________________________________ Profª Drª Rita de Cássia Fazzi (Orientadora) - PUC MINAS _________________________________________________________ Prof. Dr. Lucas de Alvarenga Gontijo - PUC MINAS _________________________________________________________ Profª Drª Maria Tereza Fonseca Dias - UFOP _________________________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno - PUC MINAS Belo Horizonte, 08 de fevereiro de 2012 “O mundo inteiro é um palco. E todos os homens e mulheres não passam de meros atores. Eles entram e saem de cena. E cada um no seu tempo representa diversos papéis” (William Shakespeare). “Lutar pelo amor é bom, mas alcançá-lo sem luta é melhor” (William Shakespeare). “É mais fácil obter o que se deseja com um sorriso do que à ponta da espada” (William Shakespeare). “A vida vai fazendo cada vez mais sentido. O tempo vai sendo cada vez mais marcante. Olhar para trás passa a ser um conforto, e olhar adiante passa a ser a espera por um novo amanhã. Com a serenidade estampada no rosto, o sorriso volta a ser sincero. O corpo se cansa, e às vezes padece, mas a capacidade de sonhar, buscar, lutar e vencer ainda me permite seguir, quase sem cessar” (Cristian Kiefer). Dedico este trabalho à minha família, em especial aos meus pais, pessoas nas quais tenho enorme carinho e admiração, sobretudo por serem exemplo de vida, de humanidade, de humildade, de integridade e de honestidade. AGRADECIMENTOS A Deus pela força e apoio incondicional nos momentos difíceis de realização deste trabalho. À minha orientadora, Professora Doutora Rita de Cássia Fazzi, pelo acolhimento e cuidado na orientação, que além de exemplo e inspiração, sempre me dedicou especial atenção. Meu eterno agradecimento! Aos Professores Alexandre Travessoni Gomes, Júlio Aguiar de Oliveira, Lucas de Alvarenga Gontijo, Fernando José Armando Ribeiro, Lusia Ribeiro Pereira, Antônio Cota Marçal, Marcelo Campos Galuppo, André Karam Trindade, Lawrence Flores Pereira e Lênio Luiz Streck pelos ensinamentos e provocações intelectuais, além da disponibilidade em sempre ajudar. Aos amigos da turma do Mestrado e Doutorado, especialmente, Juraciara Vieira Cardoso, Adriano Olinto Meirelles, Ipojucan Ayala, Iara Alves Etti Fróes e Hugo Schayer Sabino. Foi uma grande alegria, satisfação e honra conviver com todos vocês. À minha família, em especial meu Pai e minha Mãe, pela confiança depositada e por todo o apoio que prestaram quando necessário. Ao meu irmão Alex Kiefer, cuja generosidade é do tamanho do mundo. Aos meus outros irmãos Patrick Kiefer e Kelly Kiefer, pessoas nas quais tenho extrema admiração e respeito. Às minhas avós Izabel Kiefer Parreiras (tão presente, mesmo tão longe) e Amélia Florêncio da Silva, pelo encantamento da vida e orações, me fazendo sempre acreditar que ser diferente é apenas uma possibilidade de ser. Às minhas tias Tereza Kiefer (tão presente, mesmo tão longe), Fátima Kiefer e Maria da Conceição, por existirem em minha vida. Devo muito a vocês! Aos amigos e funcionários da Graduação e Pós-Graduação da PUC Minas (Unidade Coração Eucarístico), por muitas vezes estarem onde eu devia estar. Aos demais amigos e colegas, por toda a cumplicidade, carinho e respeito, demonstrados cotidianamente, através de harmoniosa convivência. A todos, que de alguma forma, contribuíram para a realização deste trabalho. LISTA DE SIGLAS CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito PUC MINAS - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais STF - Supremo Tribunal Federal LISTA DE FIGURAS Figura 1 - William Shakespeare “The tragedy of Romeo and Juliet”.......................28 Figura 2 - "Casa de Julieta" em Verona na Itália .......................................................29 Figura 3 - Frontispício de “A trágica história de Romeu e Julieta”, 1562 ...............31 Figura 4 - Representação da famosa “cena da sacada” no quadro Romeo and Juliet, por Frank Bernard Dicksee, 1884 .................................................35 Figura 5 - Primeiro Fólio publicado em 1623 .............................................................39 Figura 6 - Rainha Elizabeth I (Inglaterra) ....................................................................42 Figura 7 - Casa de Shakespeare em Stratford-upon-Avon (Inglaterra) ...................45 Figura 8 - William Shakespeare e a “Grande Cadeia do Ser”...................................54 Figura 9 - Representação de como eram os Teatros Isabelinos..............................58 Figura 10 - Um retrato da genialidade de William Shakespeare...............................60 Figura 11 - Law and Literature Movement (EUA), 1970 .............................................78 Figura 12 - Por que estudar Direito e Literatura? ......................................................80 Figura 13 - Uma visão abrangente do Direito e Literatura ........................................89 Figura 14 - O Teatro Elisabetano na Inglaterra ........................................................110 Figura 15 - Prince Escalus (Príncipe Escalo)...........................................................114 Figura 16 - Um retrato das batalhas sangrentas e violentas entre os Montague (Montéquios) e os Capulet (Capuletos).................................................117 Figura 17 - Um retrato das batalhas sangrentas e violentas entre os Montague (Montéquios) e os Capulet (Capuletos).................................................119 Figura 18 - Friar Lawrence (Frei Lourenço)..............................................................121 Figura 19 - Um retrato de Romeo (Romeu), Juliet (Juliet) e Friar Lawrence (Frei Lourenço) por Henry Bunbury, 1792-1796............................................123 Figura 20 - A Reconciliação dos Montague (Montéquios) e dos Capulet (Capuletos) diante da morte de Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta), por Frederic Leighton, 1855..........................................................................130 RESUMO O presente trabalho tem por objetivo analisar o direito como garantia de pacificação e conciliação dos conflitos entre rivais na Itália Renascentista com enfoque na obra “Romeo and Juliet” de William Shakespeare. Pretende-se abordar os antecedentes históricos da obra; o conto italiano e sua popularização na Europa; a narrativa dos personagens em um cenário criativo e universalizante; o teatro elisabetano e sua incrível mistura de tradições líricas, poéticas e retóricas; a relação existente entre o Estado e a Igreja no contexto global da época; a aproximação entre o Direito e a Literatura com o escopo de apreender o mundo simbólico e suscitar o levantamento de questões de cunho ético-jurídico; e por fim, analisar os mecanismos de controle e regulação social recepcionados pelo direito como fórmulas efetivas de solução de conflitos na sociedade. Tal proposta premia a narrativa shakespeariana, estimulando o resgate da dimensão transformadora e crítica do estudo jurídico. Nesta ótica, pode a Literatura interpelar os aspectos do mundo jurídico trazendo uma reflexão acerca dos pretensos saberes positivos sobre os quais o direito busca sustentar sua fundamentação. Porém, a apresentação do encontro entre o Direito e a Literatura demonstra uma relação dialogal entre dois conhecimentos que em um primeiro momento podem parecer distanciados, mas sob um exame mais apurado revelam pontos de contato e contribuição. Sendo assim, através da pesquisa busca-se visualizar na obra shakespeariana os meios alternativos de solução de conflitos, com enfoque principal na pacificação e conciliação, trazendo conceitos básicos, analisando no que consistem, e quais as suas possibilidades de aplicação e efetivação. Todavia, tais métodos são tidos pelo direito como ferramentas garantidoras de ordem social e pacificação de litígios, facilitando o acesso à justiça. Com maestria, é elementar se valer a pesquisa de uma interpretação jurídica e literária que comporte na tragédia épica “Romeo and Juliet” pontos de apoio, de forma a absorver ao máximo todos os conceitos e intenções originais do autor. Palavras-Chave: Romeu e Julieta (William Shakespeare). Pacificação e conciliação de conflitos. Direito e Literatura. ABSTRACT This paper aims to examine the law as a guarantee of peace and conciliation of disputes between rivals in the Italian Renaissance with a focus on work "Romeo and Juliet" by William Shakespeare. It is intended to address the historical background of the work, the Italian tale and its popularization in Europe, the narrative of the characters in a creative and universalizing scenario, the Elizabethan theater and its incredible mix of traditions lyrical, poetic and rhetorical, the relationship between Church and State in the global context of the time, the approach between law and literature with the aim of understanding the symbolic world and raise issues of raising ethical and legal nature, and finally, analyze the mechanisms of social control and regulation approved by right and effective formulas for resolving conflicts in society. This proposal rewards the Shakespearean narrative, encouraging the recovery of manufacturing and critical dimension of the legal review. In this perspective, the literature can challenge the legal aspects of bringing a reflection about the alleged positive knowledge upon which the law seeks to buttress its reasoning. However, the presentation of the encounter between law and literature demonstrates a dialogue relationship between two knowledge that at first may seem distant, but on a closer examination reveals points of contact and contribution. Thus, through the research seeks to view the work Shakespearean alternative means of conflict resolution, with main focus on peace and reconciliation, bringing basic concepts, which consist in analyzing, and what their possibilities of application and effectiveness. However, these methods are seen as tools for the right guarantors of social order and pacification of disputes, facilitating access to justice. With mastery, is elementary if it be a legal interpretation of research and literature which presents the epic tragedy "Romeo and Juliet" points of support in order to absorb the maximum all the concepts and intentions of the author. Keywords: Romeo and Juliet (William Shakespeare). Pacification and conciliation of conflict. Law and Literature. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................25 2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA TRAGÉDIA ÉPICA “ROMEO AND JULIET” .......................................................................................................................................28 2.1 Antecedentes históricos de “Romeo and Juliet” na Literatura ............................ 29 2.2 A versão de William Shakespeare................................................................................. 32 2.2.1. A narrativa de “Romeo and Juliet”........................................................................... 33 2.2.2. A publicação de “Romeo and Juliet” ....................................................................... 37 2.3 A obra de William Shakespeare no contexto da época ........................................... 40 2.3.1 O Renascimento e o Maneirismo na Europa........................................................... 40 2.3.2. A Inglaterra de Elizabeth I e a obra de William Shakespeare ............................ 41 2.4 A realidade social, política e cultural retratada em “Romeo and Juliet” de William Shakespeare: relações entre Estado, Direito e Literatura na Renascença ...................................................................................................................... 46 2.4.1 O conto italiano e sua popularização na Europa................................................... 47 2.4.2. A Itália no universo shakespeariano e a proposta de discussão de Direito e Literatura ........................................................................................................................ 48 3 UMA RELEITURA DO POTENCIAL HUMANO EM WILLIAM SHAKESPEARE: A CAPACIDADE DE COMPREENSÃO DO SER NO CONTEXTO JURÍDICO-LITERÁRIO .......................................................................................................................................52 3.1 Uma questão de autoria: o ser humano no imaginário shakespeariano............ 53 3.2 As referências incontestáveis de um período marcado pela ascensão intelectual: a importância do teatro como tempero da vida (o mundo é um palco) .................................................................................................................................. 56 3.3 A análise reflexiva a respeito do comportamento humano: independência, dramaturgia e lirismo em “Romeo and Juliet”........................................................ 59 3.4 Pontos de apoio norteadores para a compreensão do ser no contexto jurídicoliterário ............................................................................................................................... 62 3.5 O universalismo shakespeariano: uma tragédia autêntica na visão do Direito 65 3.5.1 Homem ou personagem: produto das circunstâncias? ...................................... 68 3.5.2 Proposições fundamentais para uma observação de primeiro grau a partir do diferencial shakespeariano ....................................................................................... 69 3.6 Os aspectos partilháveis do ser humano na história: por que Shakespeare?. 70 4 DIREITO E LITERATURA: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA O DISCURSO JURÍDICO EM SHAKESPEARE......................................................................................................73 4.1 Reflexões sobre o “Law and Literature Movement” ................................................ 76 4.2 Uma abordagem a respeito do estudo do Direito a partir da Literatura ............. 79 4.2.1 O Direito na Literatura: uma reflexão acerca dos pretensos saberes positivos sobre os quais o direito busca sustentar sua fundamentação ....................... 82 4.2.2 O Direito como Literatura: caminhos possíveis a partir da analogia dos fenômenos jurídico e literário................................................................................... 84 4.2.3 O Direito da Literatura: uma observação que se limita a cuidar das leis e das normas jurídicas que protegem a atividade literária.......................................... 85 4.3 Um sentido claro para o Discurso Jurídico de William Shakespeare ................. 87 4.4 A possibilidade do estudo do Direito em William Shakespeare: indicativos sob a ótica de um texto literário.......................................................................................... 92 5 DO TEATRO ELISABETANO AO DIREITO COMO GARANTIA DE PACIFICAÇÃO E CONCILIAÇÃO DOS CONFLITOS ENTRE RIVAIS NA ITÁLIA RENASCENTISTA: UMA ANÁLISE DA PRÁTICA JURÍDICA NA TRAGÉDIA “ROMEO AND JULIET”....95 5.1 Shakespeare e a Lei: uma viagem através do tempo .............................................. 96 5.2 O Direito, a justiça e os métodos de solução de conflitos na obra “Romeo and Juliet” de William Shakespeare................................................................................... 99 5.2.1 Mecanismos de controle e regulação: os conflitos sociais na esfera do Direito ............................................................................................................................ 101 5.2.2 Pacificação: a busca pelo equilíbrio das relações sociais ............................... 103 5.2.3 Conciliação: uma forma efetiva de solução de conflitos .................................. 105 5.3 O Teatro Elisabetano no contexto geopolítico da Renascença .......................... 108 5.4 O Príncipe Escalo e o papel do Estado na solução de conflitos ........................ 112 5.5 Frei Lourenço e o papel da Igreja na solução de conflitos .................................. 120 5.6 Análise direta dos efeitos da intervenção jurídica no contexto da pacificação e conciliação dos pares rivais na obra “Romeo and Juliet” ................................ 127 6 CONCLUSÃO ...........................................................................................................131 REFERÊNCIAS............................................................................................................134 25 1 INTRODUÇÃO Nos últimos tempos os estudos na área de Direito e Literatura têm alcançado uma grande importância na pesquisa jurídica, pelo fato de sua abrangência universal permitir a compreensão da prática do Direito em épocas distintas da história, dadas as informações contidas nos relatos literários que evidenciam sua influência no contexto da organização cultural, política e econômica das sociedades. Talvez o aspecto que melhor explique a importância de se relacionar Direito e Literatura seja o fato de que os grandes clássicos da literatura universal guardam testemunhos da forma como se dava a prática jurídica no contexto sócio-cultural de uma determinada época, o que é um aspecto importante na compreensão das expressões legítimas do Direito no passado histórico. Dentro dos modernos estudos de Direito e Literatura ressaltam aqueles que se atém sobre a obra de William Shakespeare (1564-1616), dramaturgo inglês e mais renomado expoente do chamado “teatro elisabetano”, a maior expressão cultural da renascença inglesa e uma das mais aclamadas. Suas peças, que englobam tragédias e comédias, são extremamente representativas da realidade histórica da época, retratando por vezes situações onde se percebe uma crítica aos valores culturais vigentes ou sátiras de situações e personalidades, não só da Inglaterra elisabetana, mas de toda a Europa renascentista no auge do século XVI. Na área de Direito e Literatura, porém, talvez a maior contribuição de Shakespeare foi demarcar no âmbito da sociedade inglesa da época a força que o aparelho jurídico possuía dentro de uma sociedade hierarquicamente estabilizada e a possibilidade de analisar os seus efeitos reguladores. Representativa de uma realidade social, a obra “Romeo and Juliet” de William Shakespeare, retrata com fidelidade muitos aspectos da prática jurídica. Contudo, tal produção literária apresenta-se como um elemento importante por trás das tragédias e comédias, demonstrando os interesses de classes e hierarquias no jogo do poder e sua manifestação em nível social, econômico, político e cultural. Daí a ideia inicial de se analisar o Direito da época e a sua capacidade de atuar diretamente e de forma eficaz na contenção de conflitos e disputas sociais a partir do universo shakespeariano. A intenção seria mesmo a de analisar o 26 Direito como garantia de pacificação e conciliação de pares em conflito na sociedade, à época do Renascimento, momento em que os padrões sócio-econômicos e culturais estavam em plena efervescência e a política mercantilista dava lugar ao já superado feudalismo medieval. A escolha da obra “Romeo and Juliet” para esta análise se deu pelo fato de que a tragédia possui todos os elementos necessários à compreensão da atuação jurídica do Estado e sua capacidade de pacificar situações de conflito dentro da sociedade, como se pode observar na trágica história de amor dos dois jovens amantes, separados pelo clima de rivalidade e inimizade de suas famílias, mergulhadas em conflitos sangrentos causados por vinganças e disputas de ambas as partes. A presença do Estado, na figura do Prince Escalus (Príncipe Escalo), autoridade máxima da cidade de Verona e representante da Lei é bem visível na obra. Paralelo à figura centralizadora do poder estatal do Prince Escalus (Príncipe Escalo), também é evidenciado o papel conciliador da Igreja Católica, representado pela figura de Friar Lawrence (Frei Lourenço). Ambos os personagens se entrelaçam aos destinos de Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta) e são coparticipantes dos eventos que culminaram com a trágica morte dos dois jovens, mas em planos distintos: o Príncipe de Verona representando a ordem legal e Friar Lawrence (Frei Lourenço) representando a ordem moral. São os dois lados da mesma moeda, cujos interesses são os mesmos: preservar a paz e a ordem social em tempos conturbados. Mais do que tentar explicar aqui as atitudes tomadas pelo Estado para se pôr um fim no conflito, a pesquisa tenta ir mais fundo, buscando entender e explicar as razões que motivaram os atos jurídicos narrados na obra e o alcance de seus efeitos. Nesse contexto, a história da rivalidade entre os Montague (Montéquios) e os Capulet (Capuletos) na cidade italiana de Verona, torna-se o pano de fundo para uma realidade ainda maior, extensiva a toda sociedade da época. A sociedade de Verona de Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta) pode retratar tanto a sociedade inglesa quanto a italiana, país onde tradicionalmente as fontes que serviram de inspiração a Shakespeare situam o desenrolar da trama, bem como qualquer outra sociedade européia na época do Renascimento. 27 Em sua sequência capitular, o estudo vai trabalhar três aspectos distintos, porém relacionados entre si. Em primeiro lugar, o embasamento histórico da obra “Romeo and Juliet” e do período renascentista de Shakespeare, relacionando para fins de comparação a Inglaterra onde viveu o dramaturgo e a Itália onde se passou a tragédia. Tal contraste é importante para oferecer uma visão abrangente das intenções do autor a respeito dos limites e valores que ambas as culturas representaram para o enredo da obra. Em segundo lugar, o estudo vai se ater sobre a legitimidade do poder e o papel do Estado e outras instituições, como a Igreja, por exemplo, no tocante à execução das leis e sistemas de punição e recompensa em situações de conflitos entre inimigos rivais, valendo-se nesse aspecto de estudos históricos complementados por bases filosóficas entrelaçadas com noções de direito e justiça. Em terceiro lugar, analisar-se-á o papel do direito na pacificação e conciliação dos conflitos entre pares rivais com base nos próprios relatos literários contidos na obra “Romeo and Juliet”, segundo a visão metodológica que permite relacionar e compreender o Direito através da Literatura. O objetivo aqui é entender quais foram os métodos de solução de conflitos adotados para pôr fim às contendas existentes e instaurar a paz entre as duas famílias rivais. Entretanto, deverá ser avaliado até que ponto a legislação e o aparelho jurídico representados por Escalus (Escalo), Príncipe de Verona, foram eficazes nessa empreitada. Assim, interessante também é conhecer o papel da Igreja na obra, cuja representação é evidenciada por Friar Lawrence (Frei Lourenço), outro personagem importante no enredo trágico. Não se propõe, no entanto, liquidar o assunto acerca da temática proposta com a apresentação dos resultados, mas principalmente fomentar mais dados que possam embasar e servir como referencial para discussões futuras, delineadas pela proposta de analisar a expressão do Direito na Literatura. 28 2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA TRAGÉDIA ÉPICA “ROMEO AND JULIET” Ainda nos tempos modernos, a exemplo do que ocorre com outras famosas e importantes obras da literatura mundial, ainda muito se tem escrito acerca da tragédia épica de “Romeu e Julieta” (no original em inglês “Romeo and Juliet”) do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564/1616). O alcance universal da tragédia encontrou eco na literatura, nas artes plásticas, na música, no teatro, no direito e em toda uma gama de estudos acadêmicos que se inspiraram na fascinante história de amor dos dois jovens veronenses. No que tange à análise da obra no âmbito dos estudos acadêmicos, a história está alicerçada em pressupostos que entrelaçam lendas e figurações com realidades históricas verídicas do período renascentista. Pretende-se aqui apresentar os pressupostos históricos e fictícios que basearam a composição da tragédia, situando-os no contexto do Renascimento inglês, época em que foi escrita por William Shakespeare, bem como fundamentar o papel do Estado e da prática do Direito na época e que, de forma tão latente, apresenta-se como aspecto definidor dos destinos dos personagens no bojo de uma sociedade em conflito. Figura 1 - William Shakespeare “The tragedy of Romeo and Juliet” Fonte: Zeffirelli, 2011 29 2.1 Antecedentes históricos de “Romeo and Juliet” na Literatura A história na obra “Romeo and Juliet”, ao contrário do que se pensa, não foi uma criação exclusiva de William Shakespeare. Na verdade, o autor inglês se inspirou numa série de lendas e histórias anteriores para compor a tragédia. Conforme assinala Rainer Souza (2009), ainda se discute muito se Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta) de fato existiram e o que existe de verdadeiro na história. A discussão, bastante antiga, encontra respaldo no relato de Giralomo della Corte, um italiano contemporâneo a Shakespeare, que afirma que os dois amantes de fato haviam existido e vivido um relacionamento em 1303. Embora a existência real de Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta) não possa ser comprovada, o mesmo não se pode dizer dos Capulet (Capuletos) e dos Montague (Montéquios) que Shakespeare cita na tragédia. Dante Alighieri, em “A Divina Comédia”, cita duas famílias rivais na política e no comércio, os “Cappelletti” e os “Montecchio”, e existem documentos que comprovam a autenticidade dos nomes, sem contudo esclarecer se viviam na Península Itálica ou se eram mesmo rivais como aponta Dante Alighieri. O fato é que a cidade de Verona na Itália incorporou de tal modo em sua história a fama do trágico romance, que lá existe uma construção do século XIII, imortalizada como a famosa “Casa de Julieta”, ponto turístico muito visitado por turistas do mundo inteiro. Figura 2 - "Casa de Julieta" em Verona na Itália Fonte: Scaligero, 2008 30 De todo modo, o tema remonta à antiguidade, compondo uma série de romances trágicos que evidenciam o poeta Ovídio, que narrou a tragédia do casal Píramo e Tisbe na sua obra denominada “Metamorfoses” e também Xenofonte de Efésios, que escreveu uma história diferente nos seus “Contos Efésios”, citando muitos elementos semelhantes aos que fizeram parte da tragédia de “Romeo and Juliet”, como a separação dramática do casal de protagonistas e o elemento da poção miraculosa que induzia ao estado de morte aparente (SOUZA, 2009). As histórias narradas por Ovídio e Xenofonte são muito diferentes da forma popular como hoje se apresenta a tragédia dos dois amantes, mas sem dúvida alicerçaram toda uma literatura subsequente, explorando o tema da tragédia amorosa e da qual “Romeo and Juliet” se tornaria uma das mais populares e famosas do mundo. Nos tempos modernos, com certeza, a versão mais antiga da tragédia de dois amantes separados por suas famílias e que também pode ter inspirado Shakespeare foi o conto 33 de Masuccio Salernitano intitulado “Il Novellino”, publicado em 1476 e que conta a história de Mariotto e Gianozza, dois amantes com uma história muito parecida a de Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta). Os mesmos eventos que Shakespeare utilizaria muitos anos mais tarde na sua versão foram descritos por Masuccio, com exceção da localidade, que ele situa em Siena, outra importante cidade italiana e do final, no qual Mariotto é decapitado e Gianozza morre de profunda tristeza. O conto tornou-se muito popular na Itália e baseou todas as versões que surgiram após ele. Os nomes “Romeu” e “Julieta” (no original em inglês “Romeo” e “Juliet”) só se tornaram conhecidos do público por volta de 1530, quando Luigi da Porto faz a sua adaptação da história no conto intitulado “Giulietta e Romeo”, inserido na sua obra “Historia novellamente ritrovata di due Nobili Amanti”, publicada no mesmo ano. Para Alcebíades Martins Arêas e Délia Cambeiro (2009), foi Luigi da Porto que contribuiu para a fixação da concepção moderna da tragédia, adaptando o conto de Masuccio e transplantando-o para a cidade de Verona, contextualizando o drama dos dois amantes na dinâmica de conflitos existentes entre os “Montecchio” e os “Cappelletti”, duas famílias rivais e historicamente existentes na época, segundo a menção de uma dissidência ocorrida entre ambas feita por Dante Alighieri no seu 31 “Purgatório”. De modo interessante, Luigi da Porto criou também três personagens que vieram a inspirar “Mercutio”, “Tybald” e “Paris” na versão de Shakespeare. Matteo Bandello, ao publicar o segundo volume de seu “Novelle”, em 1554, incluiu nele também sua versão de “Giulietta” e “Romeo”, com algumas poucas modificações da história de Luigi da Porto. Foi ele quem incluiu os personagens “Ama” e “Benvoglio” (Benvólio). Esta obra de Matteo Bandello foi importante para popularizar a história dos dois amantes, uma vez que foi traduzida para o francês por Pierre Boaistuau e publicado em 1559 no primeiro volume de sua obra “Histories Tragiques” (ARÊAS; CAMBEIRO, 2009). Figura 3 - Frontispício de “A trágica história de Romeu e Julieta”, 1562 Fonte: Brooke, 1562 32 A história trágica de Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta) foi primeiramente conhecida em língua inglesa por volta de 1562 com a publicação da obra “The tragic story of Romeo and Juliet” (A trágica história de Romeu e Julieta) do poeta Arthur Brooke, que a escreveu em forma de poema narrativo. Possivelmente o poema de Arthur Brooke tenha inspirado também William Painter a escrever sua versão em prosa da tragédia intitulada “The goodly history of the true and constant love of Rhomeo and Julietta” (A formosa história do verdadeiro e constante amor de Romeu e Julieta) e que acrescentou intencionalmente à sua coleção de contos intitulada “The Palace of Pleasure” (O Palácio do Prazer), publicada em 1567 (GIBBONS, 1980, p. 36-37). De acordo com Brian Gibbons (1980), acredita-se que foi a obra de Arthur Brooke quem inspirou William Shakespeare a escrever sua versão de “Romeo and Juliet”. O famoso dramaturgo certamente teve acesso à história e se inspirou nela para escrever a peça, mantendo-se fiel à história, que dramatizou para os palcos. Convém ressaltar o prestígio e popularidade que o teatro alcançou na Era Elisabetana, época em que as apresentações teatrais atraíam grande público na Inglaterra, agradando igualmente a nobreza e o povo. Tanto William Shakespeare quanto seu conterrâneo Christopher Marlowe e outros se tornaram famosos por suas peças, que atraíam multidões quando apresentadas por trupes de atores contratados. 2.2 A versão de William Shakespeare É sabido que William Shakespeare se inspirou em uma série de contos publicados anteriormente à sua época para compor a sua versão da tragédia intitulada em inglês “Romeo and Juliet”. No entanto, a dimensão épica da versão de Shakespeare, seu sucesso rapidamente alcançado e suas especificidades culturais e filosóficas só podem ser evidentemente compreendidas no contexto da época e da cultura renascentista que marcou a Europa, e mais precisamente a Inglaterra no período. É muito importante situar e contextualizar “Romeo and Juliet” no cerne da cultura renascentista da Europa e também no ambiente cultural da Era Elisabetana, para num 33 segundo momento compreender melhor os aspectos concernentes ao debate sobre Direito e Literatura com base no relato da tragédia, que é o objeto de estudo proposto. O primeiro aspecto da análise deve buscar situar o universo shakespeariano no contexto histórico e cultural do Renascimento europeu, que na Inglaterra coincidiu com o governo da Rainha Elizabeth I, tido como o apogeu da nação e os fatores que explicam a incorporação e plena aceitação de um conto italiano pela literatura inglesa. Um segundo aspecto a se considerar é de que forma a versão de Shakespeare para a história se difere das versões anteriores e que motivos a tornaram tão popular em tão curto espaço de tempo. Nesse sentido, cabe analisar a trajetória da concepção e da publicação da obra e as características que a tornaram tão apreciada pelo público. Escrita na forma de roteiro teatral em cinco atos, “Romeo and Juliet” apresenta uma história que mescla elementos de comédia e drama e que culmina numa tragédia que envolve o casal de protagonistas. Para contar de forma resumida a versão shakespeariana da tragédia, optou-se aqui pela citação dos nomes dos personagens conforme a grafia de Shakespeare na obra original e em parênteses a citação dos nomes como estes foram traduzidos para a língua portuguesa. Trata-se de uma opção metodológica mais apropriada para narrar a história com base no texto original. 2.2.1. A narrativa de “Romeo and Juliet” A história épica da tragédia de Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta) intitulada em inglês “Romeo and Juliet” foi escrita pelo dramaturgo inglês William Shakespeare provavelmente no período compreendido entre 1591 e 1595, primórdios de sua carreira literária e foi publicada originalmente em 1597, na forma de um quarto épico. Nesse contexto, tornou-se uma das obras mais famosas da literatura mundial, imortalizada no teatro, nas artes plásticas, na literatura, na música e mais recentemente, também no cinema. A história se passa na cidade de Verona, norte da Itália, numa época que remonta ao Renascimento Italiano, como se pode deduzir da leitura da tragédia. A cidade é palco de constantes rivalidades políticas entre pares rivais, principalmente o conflito declarado entre duas das mais tradicionais famílias da nobreza local: os Capulet 34 (Capuletos) e os Montague (Montéquios). É neste ambiente de constante rivalidade e violência que se desenvolve o drama de Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta), dois adolescentes que se apaixonam, mas são impedidos de consumarem seu feliz romance dadas as circunstâncias de ódio e vingança que existem entre suas famílias. Isso porque Romeo (Romeu) é filho único dos Montague (Montéquios), enquanto Juliet (Julieta) é a filha única dos Capulet (Capuletos). A narrativa se inicia com um desentendimento entre Capulet (Capuleto) e Montague (Montéquio) nas ruas de Verona, o que leva o Príncipe Regente a intervir instituindo um decreto de proibição dos conflitos e passível de punição a todos que infringissem a ordem. Na sequência, após o conflito, o jovem Romeo Montague (Romeu Montéquio), em companhia de seu primo Benvolio (Benvólio) e do amigo Mercutio (Mercúcio) vão ocultamente a um baile no palácio dos Capulet (Capuletos). Romeo (Romeu) estava à procura da jovem Rosaline (Rosalina), por quem nutria uma paixão não correspondida. Mas uma vez no baile, o rapaz se depara com a bela Juliet (Julieta), filha única do casal Capulet (Capuleto) e por ela se apaixona. Juliet (Julieta) corresponde ao amor de Romeo (Romeu), desconhecendo o desejo de seu pai que havia firmado o compromisso de casá-la com o Count Paris (Conde Páris), um parente rico do Príncipe de Verona (Escalo). A própria mãe de Juliet (Julieta) insiste com a filha para que ela aceite de bom grado a união, mas Juliet (Julieta) está apaixonada por Romeo (Romeu). Romeo (Romeu) descobre pela Ama da jovem que se tratava da filha única da família rival, mas resolve lutar por ela. Naquela mesma noite, Romeo (Romeu) vê Juliet (Julieta) na sacada do palácio e pula o muro para encontrar sua amada. Na famosa “cena da sacada”, à luz do luar os dois jovens enamorados trocam juras de amor e resolvem se casar, mesmo contra o ódio que separa suas famílias. No dia seguinte, com a ajuda de Friar Lawrence (Frei Lourenço), que via na união do casal a possibilidade de paz entre as famílias, os dois jovens se casam secretamente. Romeo (Romeu) decide se retirar das batalhas entre as duas famílias, mas é desafiado na rua por Tybalt (Tebaldo), primo de Juliet (Julieta), que o havia reconhecido na festa. Romeo (Romeu) se recusa a duelar com ele, mas Mercutio (Mercúcio) toma seu lugar e é mortalmente ferido por Tybalt (Tebaldo). Romeo (Romeu), irritado com a 35 morte do amigo, duela com Tybalt (Tebaldo) e o mata. Para completar a gravidade da situação, o Príncipe de Verona (Escalo) decreta o exílio de Romeo (Romeu). Figura 4 - Representação da famosa “cena da sacada” no quadro Romeo and Juliet, por Frank Bernard Dicksee, 1884 Fonte: Dicksee, 1884 Juliet (Julieta) sofre muito ao saber do banimento do marido. Seu pai, julgando que a filha está triste por causa da morte de seu primo Tybalt (Tebaldo), resolve antecipar seu casamento com Count Paris (Conde Páris). Juliet (Julieta) recusa tal 36 destino e seu pai ameaça deserdá-la. Romeo (Romeu) a visita pela última vez antes de partir e naquela noite os dois jovens consumam o casamento. Com grande dor se separam prometendo lutar para ficarem juntos novamente. Juliet (Julieta) procura mais uma vez Friar Lawrence (Frei Lourenço) e lhe expõe seu drama pessoal. O religioso então arma um plano e a aconselha a aceitar o casamento com o Count Paris (Conde Páris); no entanto, entrega-lhe um pequeno frasco contendo uma poção que tinha a propriedade de provocar um sono semelhante à morte. O frade explica-lhe que, no estado cataléptico, a família a julgaria morta e a sepultaria, tempo suficiente que ele precisava para avisar o jovem Romeo (Romeu) que estava no exílio. Quando o efeito da droga passasse Romeo (Romeu) a resgataria para fugirem juntos. Juliet (Julieta) concorda com o ousado plano. Ao retornar ao lar, a moça finge estar alegre com o casamento e aceita a imposição dos pais, que se alegram com a súbita decisão da filha. Na noite anterior ao casamento, Juliet (Julieta) bebe a poção e em poucos minutos cai ao chão, aparentemente morta. A alegria então dá lugar à dor na casa dos Capulet (Capuleto), que providenciam os funerais da jovem, desconhecendo que ela apenas dormia. Enquanto isso, o mensageiro enviado por Friar Lawrence (Frei Lourenço) para avisar Romeo (Romeu) não consegue alcançá-lo a tempo e a mensagem se extravia. Desconhecendo o plano, Romeo (Romeu) é avisado pelo criado Balthazar (Baltazar) da “pretensa morte” de Juliet (Julieta) e ele, desesperado, parte para Verona. No caminho, porém, compra um frasco contendo veneno mortal para poder se unir à esposa no leito de morte. Romeo (Romeu) chega às catacumbas de Verona e encontra o corpo de Juliet (Julieta), que repousa no mausoléu da família. Mas lá também se encontra com Count Paris (Conde Páris), que havia ido se despedir da noiva. Julgando o rapaz um vândalo, Count Paris (Conde Páris) duela com ele, mas é mortalmente ferido por Romeo (Romeu). Com grande dor, Romeo (Romeu) se acerca da esposa e bebe o veneno, morrendo ali mesmo, ao seu lado. Nesse momento, Juliet (Julieta) desperta e se depara com Romeo (Romeu) morto ao seu lado. Friar Lawrence (Frei Lourenço), que havia acorrido ali para impedir uma tragédia, tenta levar a moça para longe, subtraindo-a ao 37 castigo paterno. Mas Juliet (Julieta) se recusa. Tomando o punhal de Romeo (Romeu), apunhala o próprio peito, unindo-se ao marido no leito de morte. As duas famílias correm até a tumba e lá se deparam com os três mortos. Friar Lawrence (Frei Lourenço) então conta toda a trágica história dos dois amantes e ali mesmo Montague (Montéquio) e Capulet (Capuleto) prometem selar a paz, reconciliando-se em nome da tragédia. A história termina com a elegia do Príncipe de Verona (Escalo) imortalizando o exemplo dos amantes, unidos para sempre de forma trágica na morte, como não o puderam fazer em vida. 2.2.2. A publicação de “Romeo and Juliet” Não se sabe ao certo quando Shakespeare escreveu “Romeo and Juliet”, mas acredita-se que entre 1591 e 1595. Foram feitos vários estudos tentando responder esta questão, embora a teoria talvez mais aceita afirme que a peça foi um projeto pessoal iniciado em 1591 e concluído em 1595 (GIBBONS, 1980, p. 26-27). De acordo com Jay Halio (1998) o que se tem certeza é que “Romeo and Juliet” foi publicado gradativamente na forma de quarto, numa primeira edição em 1597, chamada Q1 e realizada por John Danter e numa segunda edição, chamada Q2, impressa por Thomas Creede e publicada por Cuthbert Burby, em 1599, virtualmente maior e melhor que a primeira. Esta segunda edição traz inclusive alguns apontamentos do próprio Shakespeare, o que a torna fiel ao seu projeto original. A obra foi reimpressa ainda em 1609 (Q3), 1622 (Q4) e 1637 (Q5). O interessante é que cada uma das reimpressões acrescentava ou retirava detalhes da outra (na verdade, todas se complementavam). A obra também foi editada nas coleções de obras de Shakespeare, os chamados Fólios1, o primeiro deles publicado em 1623, que se baseou no Q3 e nos anos posteriores, em 1632 (F2), 1664 (F3) e 1685 (F4). Somente em 1709, com Nicholas Rowe e em 1723, com Alexander Pope é que se delineia a peça como é conhecida hoje. Alexander Pope, principalmente, editou a peça na forma de roteiro teatral, inserindo as entradas e saídas de palco e cena. Desde 1 Folha de um livro ou de um registro numerado no rosto e no verso; número de cada página de um livro, de cada folha de um manuscrito. Generalizou-se, contudo, o termo fólio para designar as unidades de qualquer dimensão de um caderno manuscrito. (GRANDE, 1971, p. 2816). 38 então, iniciando no Romantismo da Era Vitoriana e prosseguindo até os dias atuais, a obra continua a ser editada com acréscimos de notas textuais ao longo da narrativa, muitas das vezes com a intenção de explicar aspectos da cultura e das origens da peça (HALIO, 1998, p. 1-2). De todo modo, “Romeo and Juliet”, assim como aconteceu com outras peças de Shakespeare, destacando-se “Macbeth”, “Othelo” e “Hamlet”, caiu no gosto do público e foi encenada centenas de vezes. Seus maiores críticos divergiam sobre a qualidade da obra e não chegavam a um acordo sobre o tema central da obra, embora a aclamação popular fosse o mais importante e até nos dias de hoje ainda não se define um tema específico, que tem no amor trágico apenas um fio condutor. Talvez tal dificuldade encontrasse uma explicação na razão de ser do Maneirismo2, que mostrava a dualidade no ser humano, por vezes bom, por vezes ruim, numa espécie de antítese (HAUSER, 1998). 2 Conjunto de tendências (refinamento, complexidade chegando frequentemente à extravagância, alongamento das formas) que se manifestaram na pintura e na escultura dos séculos XVI e XVII na Itália (Pontormo, Parmeggianismo, Giambologna), depois na França (escola de Fontainebleau), na Espanha (El Greco), nos Países Baixos, etc. O maneirismo inclui-se entre a arte renascentista e a barroca, mas a fronteira não está bem definida (Miguel Ângelo, artista renascentista, é, por suas últimas obras, um dos representantes principais do maneirismo). Na literatura, o maneirismo precede as tendências da poesia barroca (marinismo, gongorismo), preparando-as. O maneirismo é mais estudado em suas manifestações na pintura, escultura e arquitetura da Itália, onde se originou, mas teve impacto também sobre as outras artes e influenciou a cultura de praticamente todas as nações européias, deixando traços até nas suas colônias da América e no Oriente. Tem um perfil de difícil definição, mas em linhas gerais caracterizou-se pela deliberada sofisticação intelectualista, pela valorização da originalidade e das interpretações individuais, pelo dinamismo e complexidade de suas formas, e pelo artificialismo no tratamento dos seus temas, a fim de se conseguir maior emoção, elegância, poder ou tensão. (GRANDE, 1971, p. 4235). 39 Figura 5 - Primeiro Fólio publicado em 1623 Fonte: Lion, 2007 40 2.3 A obra de William Shakespeare no contexto da época É importante compreender o universo shakespeariano no contexto da sua época, pois suas obras foram influenciadas pela dinâmica política, econômica e cultural do período em que viveu, e por assim dizer, retratam tais aspectos em seus textos. Ao mesmo tempo, tal assertiva se torna realmente necessária para favorecer a compreensão mais apurada da relação entre Direito e Literatura que se quer apreender por este estudo, visto que no caso de “Romeo and Juliet” o Direito aparece como garantia de paz, ordem social e conciliação de pares em conflito, espelhando uma tendência humanista que já encontrara campo no Renascimento com “Utopia” de Thomas More e “O Príncipe”, de Maquiavel, que trazem implícitos em si a ideologia política do bem estar social. 2.3.1 O Renascimento e o Maneirismo na Europa Embora os autores modernos classifiquem o Renascimento3 como fenômeno histórico tipicamente italiano, o certo é que também em outros países da Europa como França, Inglaterra e Países Baixos os seus efeitos foram claramente visíveis, tanto no aspecto artístico, quanto nos aspectos filosófico e político. A Itália foi o berço do movimento renascentista, caracterizado pela filosofia humanista e pelo florescimento das artes, das ciências e das letras, compreendido entre os séculos XIV e XVII e que rompeu com a cultura tipicamente eclesial do feudalismo na Europa. Mais do que um movimento artístico, ele extrapolou os padrões filosóficos implantados pela Igreja Católica na Idade Média e instituiu um novo padrão de pensamento baseado na valorização do homem e da natureza em oposição ao 3 Grande movimento de renovação das artes, das letras e das ciências. Movimento que procurou renovar não só as artes plásticas e as letras, mas também a organização política e econômica da sociedade, seguindo os exemplos e modelos da antiguidade greco-romana. Chamou-se "Renascimento" em virtude da redescoberta e revalorização das referências culturais da antiguidade clássica, que nortearam as mudanças deste período em direção a um ideal humanista e naturalista. O termo foi registrado pela primeira vez por Giorgio Vasari já no século XVI, mas a noção de Renascimento como hoje o entendemos surgiu a partir da publicação do livro de Jacob Burckhardt “A cultura do Renascimento na Itália”, onde ele definia o período como uma época de "descoberta do mundo e do homem”. (GRANDE, 1971, p. 5751-5754). 41 divino e sobrenatural, e na releitura dos antigos padrões culturais da Antiguidade Clássica, concomitante ao processo de substituição do poder econômico que se transferiu da nobreza para a influente e nascente burguesia mercantil. E a Itália, por reunir inicialmente as condições sociais e econômicas favoráveis a esta mudança de paradigma cultural no bojo do século XIV, tornou-se o berço do movimento renascentista (PROENÇA, 2003). Da Itália, o Renascimento alcançou a França, a Alemanha, os Países Baixos e a Grã-Bretanha, e em menor escala Portugal e Espanha. Num segundo momento originou a tendência maneirista, mais sombria e marcada pela contradição e pelo conflito, já evidenciando uma passagem para o Barroco. De fato, é indiscutível a produção cultural do período revelando talentos do porte de Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rafael, El Greco, Hans Holbein, Thomas More, Nicolau Maquiavel, Miguel de Cervantes, Christopher Marlowe e William Shakespeare, dentre tantos outros. Mais do que o forte sentimento de busca e encontro da perfeita noção de estética, a obra shakespeariana encontra um campo ainda mais vasto ao explorar a psicologia humana em toda a sua profundidade. Além disso, na acepção trágica, vasculha o interior do ser e expõe as amarguras e alegrias a que estão sujeitas a fragilidade humana. 2.3.2. A Inglaterra de Elizabeth I e a obra de William Shakespeare Longe de qualquer pretensão histórica a respeito, o trabalho propõe apenas situar de forma genérica o contexto shakespeariano em um momento crucial da história da Inglaterra, palco propício às discussões sobre a realidade política, cultural e social. Por assim dizer, a Inglaterra que conheceu o talento de William Shakespeare é ainda a Inglaterra da Dinastia Tudor, que se expande no despotismo. Primeiramente fora Henrique VIII e na sequência seus filhos Edward, Mary e Elizabeth que consolidaram a hegemonia e o grande poderio da Monarquia Inglesa, início do Império Britânico, ainda que o processo tenha sido longo e violento. De modo concomitante, William 42 Shakespeare viveu durante o governo de Elizabeth Tudor, época do apogeu da Monarquia Inglesa e por isso mesmo chamada de Era Elisabetana4 ou Era Dourada. Figura 6 - Rainha Elizabeth I (Inglaterra) Fonte: Cooper, 2008 4 O Período Elisabetano ou Período Isabelino é o período associado ao reino da rainha Isabel I ou Elizabeth I (1558-1603) - filha de Henrique VIII e Ana Boleana, sucedeu a sua meia-irmã Mary Tudor e considerado frequentemente uma “Era Dourada” da história inglesa. Esta época corresponde ao ápice da renascença inglesa, na qual se viu florescer a literatura e a poesia do país. Este foi também o tempo durante o qual o teatro elisabetano cresceu e William Shakespeare, entre outros, escreveu peças que rompiam com o estilo a que a Inglaterra estava acostumada. Foi um período de expansão e da exploração no exterior, enquanto no interior a Reforma Protestante era estabelecida e defendida contra as forças católicas do continente. (GRANDE, 1971, p. 3597). 43 De acordo com Arnold Hauser (1998), Elizabeth I, filha de Henrique VIII e Ana Boleana e que subiu ao trono em 1559, após a morte de sua irmã Mary Tudor, estabeleceu uma política forte que conduziu à formação do Império Inglês. Seu reinado foi marcado pelo apogeu da política, da economia e da cultura inglesa, com o fortalecimento da monarquia absolutista que tão soberanamente representou, a exemplo do pai. Subindo ao trono, Elizabeth I encontrou uma Inglaterra dividida por conflitos religiosos e uma nobreza praticamente destruída pela Guerra das Duas Rosas5. O país clamava por paz, ordem e pelo fim da anarquia, visto que os governos anteriores de Edward e Mary Tudor haviam sido fracos e permissivos, desgastando-se por questões religiosas e conflitos civis. O diferencial do governo de Elizabeth I encontra-se justamente na premissa de que ele foi forte o suficiente para estabilizar a sociedade, organizar o estado inglês e elevá-lo à categoria de potência. Para Arnold Hauser: A nobreza tinha sido quase completamente destruída no final da Guerra das Duas Rosas, mas a pequena nobreza, os pequenos proprietários rurais e a classe média urbana queriam, acima de tudo, paz e ordem - pouco lhes importava que espécie de governo tinham, desde que fosse suficientemente forte para impedir a volta da anarquia. Imediatamente antes da subida de Elizabeth ao trono, o país viu-se de novo atormentado com os horrores da guerra civil; os antagonismos religiosos pareciam ter-se tornado mais irreconciliáveis do que nunca, o orçamento nacional encontrava-se em situação desesperadora, as questões de política externa estavam confusas e em perigo. O próprio fato de a Rainha ter em parte eliminado e em parte se eximido a esses perigos assegurou-lhe uma certa medida de popularidade em muitos setores da população. Para as classes privilegiadas e ricas, seu reinado significou, sobretudo, que estavam protegidas contra o perigo ameaçador de movimentos revolucionários vindos de baixo. Todos os temores alimentados pelas classes médias quanto ao aumento dos poderes da soberana foram silenciados pelo apoio que tinham na monarquia para travar com êxito a guerra de classes (HAUSER, 1998, p. 419-420). É nesse contexto de aparente estabilidade social e econômica que emerge a produção cultural de William Shakespeare, ele mesmo um membro da baixa 5 Guerra civil que opôs, entre 1450 e 1485, dois ramos plantagenetas que pretendiam a coroa, o York e o Lancaster, cujos brasões exibiam uma rosa, branca para York, vermelha para Lancaster. A Guerra das Duas Rosas foi uma série de longas e intermitentes lutas dinásticas pelo trono da Inglaterra, durante os reinados de Henrique VI, Eduardo IV e Ricardo III. Em campos opostos encontravam-se as casas de York e de Lancaster. As lutas pelo trono da Inglaterra entre famílias rivais dos descendentes de Eduardo III devem o seu nome aos símbolos das duas facções: uma rosa branca para a Casa de York, uma vermelha para a Casa de Lancaster (ambas de ascendência Plantageneta). (GRANDE, 1971, p. 2286). 44 aristocracia rural, mas que, segundo Arnold Hauser (1998) via o mundo através dos olhos de um cidadão abastado, de mentalidade liberal, cético e, em alguns aspectos, desiludido. Shakespeare é, por assim dizer, um humanista nato, mas sua produção literária apresenta características maneiristas, que procura imprimir nos personagens de suas histórias, que se apresentam em geral conflituosos e trágicos. Durante a Era Elisabetana e tomando como exemplo a própria Rainha Elizabeth I, que herdou do pai o talento para a escrita em prosa ou poesia, a produção cultural foi fortemente protegida e incentivada, principalmente o teatro, as artes plásticas, a música e a literatura. A Coroa Inglesa estimulava e favorecia tanto a prática do teatro, que ele ficou conhecido como Teatro Elisabetano6 e a nobreza atuava como mecenas, patrocinando as peças, que não eram só encenadas e assistidas, mas também publicadas. No caso do teatro, William Shakespeare e Christopher Marlowe foram os dois expoentes mais famosos da época. Particularmente, Arnold Hauser (1998), como opção metodológica deste estudo, é um dos autores que melhor situa a obra shakespeariana no contexto do Renascimento, evidenciando a história da arte, das letras e da cultura em um período marcado pelo sentimento de comunidade social. Todavia, a união das várias camadas da sociedade no teatro foi possibilitada pela qualidade dinâmica da vida social. Conforme ensina Arnold Hauser: Shakespeare não escreve suas peças porque quer consolidar uma experiência ou resolver um problema; não descobre primeiro um tema e procura depois uma forma adequada e a possibilidade de representá-lo em público; primeiro vem a demanda, e depois ele tenta satisfazê-la. Escreve suas peças porque seu teatro necessita delas. É verdade que suas peças se destinavam, antes de tudo, a um teatro popular, mas ele estava escrevendo numa era de humanismo na qual muito era também lido. A grandeza de Shakespeare não pode ser explicada sociologicamente mais do que pode sê-lo a qualidade artística em geral (HAUSER, 1998, p. 432-433). 6 Em nenhuma outra época da história literária inglesa o teatro foi mais florescente do que sob o reinado de Elizabeth I e de seus dois sucessores, Jaime I e Carlos I, desde 1576, ano em que foi construído o primeiro teatro de Londres. Enquanto o drama renascentista italiano se desenvolvia com uma forma de arte elitista, o teatro isabelino ou elisabetano resultava em um grande fascinador de todas as classes, sendo assim um "nivelador" social. Às representações compareciam príncipes e camponeses, homens, mulheres e crianças, porque a entrada estava ao alcance de todos. Comparecer ao teatro era um costume muito arraigado na época. Por isso, todos os dramas deviam satisfazer gostos diversos: os dos soldados que desejavam ver guerras e duelos, das mulheres que procuravam por amor e sentimento, dos advogados que se interessavam pela filosofia moral e pelo direito, e assim com todos. Inclusive a linguagem teatral reflete esta exigência, enriquecendo-se com registros muito variados e adquirindo grande flexibilidade de expressão. (GRANDE, 1971, p. 2376-2377). 45 Figura 7 - Casa de Shakespeare em Stratford-upon-Avon (Inglaterra) Fonte: Jones, 2007 Pois bem, Shakespeare, embora casado e pai de quatro filhos, provavelmente por volta de 1492, deixou a família no campo, em Stratford-upon-Avon, sua terra natal e foi se aventurar em Londres (Inglaterra), onde se tornou ator e dramaturgo, tornando-se sócio da Lord Chamberlain’s Men, uma prestigiada companhia de teatro, mais tarde conhecida como King’s Men durante o governo do Rei Jaime I, que sucedeu Elizabeth no trono. Em pleno século XVI, o fato das obras para teatro também serem publicadas e lidas contribuiu ainda mais para popularizar os trabalhos de Shakespeare, cujas 46 multidões lotavam o Globe Theatre7 em Londres, incluindo no grande público praticamente todos os setores da sociedade. No caso de Shakespeare, foi o seu papel como acionista na companhia que o tornou um homem rico, mais do que a comercialização de suas peças (HAUSER, 1998). 2.4 A realidade social, política e cultural retratada em “Romeo and Juliet” de William Shakespeare: relações entre Estado, Direito e Literatura na Renascença Como visto anteriormente, de acordo com Arnold Hauser (1998), o teatro na época de Shakespeare alcançou tanta popularidade que tornou-se um dos meios mais eficazes de instrumentação ideológica junto às massas, pela fácil assimilação das mensagens pelas categorias iletradas e mais desfavorecidas da população. Relacionado à literatura e ao campo das artes, foi importante veículo da ideologia das classes dominantes. Muitas das vezes tal ideologia se vincula ao aparelho jurídico do Estado por representar a forma de efetivo controle da sociedade. E é justamente nesse contexto que se torna favorável analisar o Direito sob a ótica da Literatura, uma vez que a compreensão do discurso ideológico presente na produção cultural de uma outra época diz muito acerca do comportamento e da mentalidade do período. No presente estudo, tem-se que o aparato literário pode auxiliar enormemente na compreensão da realidade social, cultural e política em que o Direito se insere tanto na Inglaterra (terra natal do dramaturgo onde a obra foi lançada), como na Itália (cenário da tragédia dos dois amantes). Antes de tudo, é importante explicar o motivo pelo qual uma história alicerçada na cultura italiana alcançou tanto prestígio na conservadora sociedade inglesa. 7 Globe Theatre ou The Globe é um teatro inglês construído em 1599 e destruído em 1613 por um incêndio, sendo reconstruído em 1614 e fechado em 1642. O Globe original foi construído em 1599 por Peter Street na época elisabetana, no borough de Southwark, numa área chamada Bankside, próxima ao rio Tâmisa, com as estruturas do primeiro teatro inglês “The Theatre”, erguido em 1576 pelo ator James Burbage e demolido em 1598 depois de ter sua licença cassada. William Shakespeare tornouse um de seus sócios, transformando-o em arena para as representações de peças como “Hamlet” e “Rei Lear”. Fechado em 1642, após a vitória dos puritanos liderados por Oliver Cromwell na Guerra Civil Inglesa (1642-1649), o teatro seria reconstruído e reinaugurado em 1996. A reconstituição das características originais do Globe foi possível graças a pesquisas arqueológicas que em 1989 descobriram suas fundações e as ruínas do Rose Theatre, construção da mesma época. (GRANDE, 1971, p. 3080-3081). 47 2.4.1 O conto italiano e sua popularização na Europa Fato comum não só a Shakespeare, mas também a outros autores, dramaturgos e poetas da Renascença, é o desígnio do grande enfoque dado à cultura italiana na composição de suas obras. Os contos italianos, denominados novelles, sempre foram muito apreciados pela população européia e serviram de inspiração a muitos dramaturgos e autores que se basearam neles para compor peças teatrais, poemas, músicas e mais recentemente, no século XIX, famosas óperas. O desenvolvimento primordial da cultura romana e depois da cultura cristã legou à Itália centenas de mitos, lendas e contos, que versavam sobre inúmeros temas, abrangendo a mitologia greco-romana, a biografia dos imperadores e as vidas de santos, muito populares na Idade Média e também no Renascimento. A fonte de inspiração era abundante numa Itália que já sobressaía na arte e já imortalizava seus temas na pintura, escultura e literatura, embora esta última muitas das vezes ainda ficasse restrita ao campo da oralidade. Por outro lado, se a Itália foi capaz de produzir tanta cultura literária, por uma série de fatores isso não aconteceu com o teatro, que lá não se desenvolveu, ao contrário do que ocorreu na Inglaterra. Acerca disso, esclarece Arnold Hauser: As categorias sociais isoladas estão menos nitidamente separadas umas das outras na Inglaterra elisabetana do que em qualquer outro país da Europa Ocidental; as diferenças culturais, sobretudo, são menores na Inglaterra do que, por exemplo, na Itália da Renascença, onde o humanismo traçou linhas mais decisivas de demarcação entre as várias seções da sociedade do que na Inglaterra da era elisabetana, que tinha uma estrutura econômica e social similar mas era um país “mais jovem”. Na Itália, portanto, nenhuma instituição cultural com uma universidade comparável à do teatro inglês poderia ter esperanças de prosperar. Esse teatro era o resultado de um nivelamento das mentes, algo inaudito fora da Inglaterra. E, a esse respeito, a frequentemente exagerada analogia entre o teatro elisabetano e o cinema é, de fato, instrutiva. As pessoas vão ao cinema para assistir a um filme; educadas ou não, todas elas sabem o que esperar. Com uma peça teatral, por outro lado, não é esse o caso hoje em dia. Na era elisabetana, porém, as pessoas iam ao teatro como vamos ao cinema, e concordavam essencialmente em suas expectativas a respeito da performance, por muito diferentes que fossem suas necessidades intelectuais entre outros aspectos (HAUSER, 1998, p. 433-434). 48 Foi justamente o nivelamento cultural que na Inglaterra aproximou as classes mais baixas das classes médias, e, consequentemente, da nobreza (outro fator preponderante na ampla repercussão que o teatro alcançou na era elisabetana). Ele foi um fator de agregação das classes, que, embora se mantivessem distintas, ao mesmo tempo estavam dialeticamente próximas. 2.4.2. A Itália no universo shakespeariano e a proposta de discussão de Direito e Literatura A cultura italiana, com seus ricos paradigmas renascentistas, foi amplamente disseminada nos países da Europa Ocidental e absorvida por eles. Na Inglaterra podese ver sua grande influência no teatro, da qual Shakespeare foi o grande expoente. Dentre os renascentistas, ele foi um dos principais autores a transpor para a língua inglesa contos tradicionais da língua italiana e isso se verifica em grande parte de sua produção literária e para o teatro. De acordo com Joseph Sobran (1997), diante das várias peças teatrais, entre tragédias e comédias, muitas delas foram inspiradas por contos italianos e cujas histórias são situadas na própria Itália: The Comedy of Errors (“A Comédia dos Erros”, 1577), The Taming of the Shrew (“A Megera Domada”, 1579), All’s Well That Ends Well (“Tudo Bem Quando Termina Bem”, 1579), The Merchant of Venice (“O Mercador de Veneza”, 1579), The Two Gentleman of Verona (“Os Dois Cavalheiros de Verona”, 1590), Romeo and Juliet (“Romeu e Julieta”, 1591/1595), Much Ado About Nothing (“Muito Barulho Por Nada”, 1598), Othello, the Moor of Venice (“Otelo, o Mouro de Veneza”, 1604), Measure for Measure (“Medida por Medida”, 1604) e The Tempest (“A Tempestade”, 1611). Mas o que explicaria tanto o gosto de William Shakespeare pela realidade da Itália renascentista a ponto de retratá-la com tanta insistência em sua obra? Mais do que representar a realidade mercantil e a florescente cultura artística que ocorria nos principados italianos de seu tempo, ou descrever simplesmente suas paisagens e monumentos nacionais, Shakespeare soube envolver uma nova sociedade e, portanto, novas relações sociais em seu cotidiano. Qualquer um que estude mais atentamente suas peças e escritos, percebe que ele contextualiza suas histórias dentro 49 da realidade social, econômica e política local, com traços marcantes e olhares na Inglaterra. Este é o primeiro aspecto que nos permite identificar na obra de Shakespeare uma discussão acerca de Direito e Literatura. Mas como isso se torna possível? Tal premissa pode ser verificada tanto em “Romeo and Juliet” como em outras importantes obras shakespearianas, como “Othello”, “The Tempest” e “The Merchant of Venice”, onde o dramaturgo entrelaça a lenda e a ficção com fatos históricos que envolvem particularidades tais como disputas pelo poder, romance, rivalidades entre facções políticas, moral religiosa, ética, direito, justiça, questões legislativas e mercantis. Todos estes elementos podem ser encontrados na tragédia “Romeo and Juliet”: A disputa política entre pares rivais, os Capulet (Capuletos) e os Montague (Montéquios); o papel da Igreja Católica e do Estado na conciliação e na pacificação de conflitos; a moral social, a ética como doutrina da conduta humana, a justiça como virtude, a união de dois jovens como alternativa de ligações políticas, dentre outros aspectos. Um ponto comum que se verifica não só em “Romeo and Juliet”, mas também em outras obras do dramaturgo inglês é o fato de que a lei se apresenta como definidora dos rumos das tramas, ora favorecendo finais felizes, ora culminando em tragédias. Aqui se pode traçar um paralelo comparativo entre a realidade da Inglaterra e da Itália. O governo forte e liberal de Elizabeth I havia consolidado a política e a economia na Inglaterra, bem como estabilizado a sociedade que há décadas vivia em crise por conflitos civis e religiosos. Esta realidade não ocorria em muitos outros países da Europa, dentre eles a própria Itália, que não havia ainda se constituído como país, apresentando uma configuração política de principados e cidades-estado. Partindo do princípio de que o contexto social, político e cultural da Inglaterra durante o governo de Elizabeth I era amplamente favorável ao desenvolvimento de uma cultura que agradasse às massas, todas as formas de expressão da arte e do pensamento eram instrumentos também favoráveis ao controle das mesmas. Compreender de que forma as artes e mais especificamente a literatura servem ao poder como instrumento de coerção social é algo importante em qualquer estudo de 50 época, ainda mais se tratando da época e da obra de William Shakespeare e seus contemporâneos. O fato de dramaturgos do porte de Shakespeare, Marlowe, Peele, Dekker e Ben Jonson terem vindo originalmente de camadas mais pobres da sociedade inglesa e terem adquirido fama e sucesso com um trabalho apreciado tanto pela nobreza como pelas massas mostra bem esta tendência. Numa época em que a Inglaterra se consolidava como potência, a composição de uma obra teatral que preconizasse a paz e a ordem reforçava a noção de que o Estado, valendo-se do instrumento da lei, era eficiente para pôr fim aos conflitos, estabelecer a ordem e conduzir a nação à prosperidade. Em seu país, William Shakespeare posiciona-se a favor da coroa e da nobreza, associada à classe média a favor do progresso da nação, que eliminara totalmente toda e qualquer influência do feudalismo. Ele procurou incutir no público esta noção de ordem social que reinava na Inglaterra e apresentou a Itália, com sua configuração política fragmentada e disforme, mas ao mesmo tempo capaz de sintetizar o pensamento humanista próprio da Renascença, idealizando-a nas suas obras como uma terra conturbada por inúmeros problemas, mas onde o amor e a virtude genuína eram capazes de vencer, semelhante ao que aconteceu na Inglaterra. Em outras palavras, conforme afirma Arnold Hauser (1998), tais valores em sentido figurado representam o progresso do renascimento e da política liberal que superam o atraso do feudalismo: Os dramas históricos de Shakespeare deixam suficientemente claro que na luta entre a Coroa, a classe média e a pequena nobreza, de um lado, e a aristocracia feudal, de outro, o dramaturgo não se colocava, de maneira nenhuma, do lado dos cruéis e arrogantes rebeldes. Seus interesses e inclinações vinculavam-no às camadas sociais que englobavam a classe média e a aristocracia de mentalidade liberal que adotara a concepção de vida da classe média, e que formavam um grupo progressista, de qualquer modo, em contraste com a antiga nobreza feudal (HAUSER, 1998, p. 423). Isso explica porque Shakespeare era visto em seu país como o idealizador, o expoente máximo de um “movimento renascentista inglês”, consagrado pelo público e que espelhava o renascimento italiano. Convém ressaltar, no entanto, que o dramaturgo não era muito apreciado no restante da Europa, criticado pela elite 51 principalmente na Alemanha e na França, por produzir uma cultura de apelo popular, mas que servia também a nobreza britânica. Norbert Elias assim coloca a opinião de Frederico, o Grande, da Alemanha, a respeito da popularidade de Shakespeare: O que Frederico, o Grande, diz sobre Shakespeare é, na verdade, a opinião geral da classe alta da Europa, que só se expressava em francês. Ele nem “copia” nem “plagia” Voltaire. O que escreve é sua sincera opinião pessoal. Não acha graça nos chistes rudes e incivilizados de coveiros e gente da mesma laia, ainda mais se aparecem misturados com os grandes sentimentos trágicos de príncipes e reis. Acha que nada disso tem forma clara e concisa e que são “prazeres das classes baixas” (ELIAS, 1994, p. 33). Até então a cultura francesa sempre fora vista como privilegiada em toda a Europa, ao contrário da cultura inglesa, desprezada. Havia um forte sentimento contra a bem sucedida política de Elizabeth I e este poderia ser um dos motivos que explicam esta rejeição. Um aspecto que comprova esta teoria é que Shakespeare não situa nenhuma de suas tragédias na França e na Alemanha, países que tradicionalmente já haviam apresentado conflitos com a Inglaterra ao longo da história. O estudo sobre Direito e Literatura tomando como parâmetro de análise as obras de Shakespeare, mais especificamente “Romeo and Juliet”, deve se basear nessa premissa de que seu discurso e a ilustração da tragédia ambientada na cidade de Verona/Itália refletem as tendências politizantes no século XVI, na qual a lei, utilizada como instrumento de ordenação social em períodos de crise preconiza as possibilidades de progresso viabilizadas pelo Renascimento, em oposição ao Feudalismo, processo este que simboliza a Inglaterra e sua consolidação como potência na era elisabetana. 52 3 UMA RELEITURA DO POTENCIAL HUMANO EM WILLIAM SHAKESPEARE: A CAPACIDADE DE COMPREENSÃO DO SER NO CONTEXTO JURÍDICO-LITERÁRIO O dramaturgo inglês, William Shakespeare, é considerado por muitos um dos maiores escritores e poetas da língua inglesa de todos os tempos. Não há duvida de que todas as suas obras têm a capacidade de fundir o poético e o refinado a um forte caráter popular, agradando às diversas classes sociais, de todas as épocas. É tão notável o seu talento que este não recua ao realismo e humanismo, por mais grosseiro que possa parecer, sendo que sua linguagem é rica, criadora e demasiadamente autêntica. Ainda que se possa tecer longos comentários acerca de seu estilo literário, sua ideologia impressiona pelo fascínio, uma vez que seus versos só exprimem as ideias e sentimentos dos personagens, jamais do próprio autor, que nunca fala em primeira pessoa, parecendo não possuir filosofia alguma, o que significa, numa linguagem mais clara, o verdadeiro ser humano, com todos os ideais e sonhos juntos à ambição, não havendo homem ou mulher inteiramente bons ou totalmente maus. Em outras palavras, Shakespeare oportuniza a análise do próprio meio social, do homem e seus valores, de suas ideias, de sua moral, de sua ética e de seu direito. Veja que a exemplo de muitos outros autores, tanto da época de criação da obra como da atualidade, é um autor que continua assustando por sua modernidade em tom elevado. Além disso, é considerado um dos mais perspicazes observadores do subtexto da vida, deixando-nos entrever as motivações veladas de seus personagens. Mais especificamente, na obra “Romeo and Juliet,” são evidenciadas as chaves ocultas do comportamento humano, tendo como aspecto revelador o hiato existente entre o comportamento explícito e a motivação mascarada, caracteres preponderantes para o estudo do ser humano no enfoque jurídico-literário da tragédia. De fato, inúmeras são as possibilidades que emergem da dimensão oculta de seu discurso, permitindo em primazia problematizar e contextualizar a leitura crítica tradicional. No tocante a Shakespeare, o recurso teatral do travestimento vai muito além da convenção trágica, passando a ser uma espécie de conceito idealizador para questionar a noção de subjetividade e identidade na obra. Através desse recurso esplendoroso, o mesmo consegue analisar as contradições e lacunas existentes no 53 modelo patriarcal de seu tempo, questionando as ortodoxias de sua cultura, porém, respeitando sempre a autenticidade e o potencial humano. 3.1 Uma questão de autoria: o ser humano no imaginário shakespeariano Nas palavras de Bárbara Heliodora, “se o bom teatro nos ajuda a melhor compreender o ser humano, William Shakespeare o faz como ninguém” (HELIODORA, 2008, p. 8). No entanto, nada parece fascinar mais Shakespeare que a abrangência do potencial humano, algo de destaque em seu imaginário intelectual. A capacidade de investigar e compreender a fundo os processos do ser humano (uma viagem pelo corpo e pela alma de seus personagens) revela sua tênue preocupação como indivíduo na perspectiva social. Ainda que se possa tecer longos comentários acerca de seu estilo, o “bem da comunidade é o primeiro referencial de todas as obras teatrais shakespearianas, sejam elas comédias, peças históricas ou tragédias” (HELIODORA, 2008, p. 8). Considerando tais observações, em relação à grande quantidade de personagens retratados na obra “Romeo and Juliet”, diante de cada ação, diante de cada atividade, Shakespeare nos alerta para o fato de que o homem é também capaz de mais esta ou aquela ação ou emoção, e que toda ação ou emoção tem consequências, sejam elas favoráveis ou desfavoráveis. À medida em que Shakespeare consegue expressar com bastante fluidez os embates trágicos na obra “Romeo and Juliet”, enaltecendo a disputa por legitimidade entre as duas famílias rivais, os Capulet (Capuletos) e os Montague (Montéquios), sua impecável forma poética e literária vai se consolidando juntamente com o direito. Todavia, a paixão sem limites pela humanidade é um contorno de sua realidade com imensa força. Nesse sentido, Bárbara Heliodora afirma que: Nas mãos de um autor tão profundamente dramático e teatral, o verso se transforma em preciosa ferramenta de auxílio ao ator na execução de sua tarefa de interpretação, pois seguir o ritmo e a música do verso significa encontrar a essência do personagem e da situação (HELIODORA, 2008, p. 9). 54 Figura 8 - William Shakespeare e a “Grande Cadeia do Ser” Fonte: Draeta, 2011 A projeção dos mundos possíveis em William Shakespeare é extraordinária, o que dizer então de sua próspera ascensão social, depois de uma infância, adolescência e juventude de muitos estudos e desafios. A maior prova desse sucesso é a literatura elegante e o teatro, elementos marcantes de sua história. Segundo Bárbara Heliodora: 55 Shakespeare nasceu em um período privilegiado para o teatro. A Renascença, que chega tarde à Inglaterra, as então recentes descobertas do Oriente e das Américas e tudo o que estava acontecendo na ciência e na tecnologia se transformaram em inquietações e curiosidades, e ao teatro coube o papel de satisfazê-las. O teatro, aliás, para o elisabetano, era a caixa mágica onde se podiam não só ver lindos espetáculos, mas um pouco de cada coisa. Com fartas doses de imaginação, tinha-se ainda informações a respeito de lugares, fatos e fenômenos estranhos em que o fantástico, o quase miraculoso e o malévolo pululavam (HELIODORA, 2008, p. 9). Embora Shakespeare expressasse os elementos essenciais da vida humana, comum a experiência de todos, tais como, amor, saudade, dor, honra, dignidade, desejo, decepção, juventude, velhice, morte e justiça, ele geralmente o fazia em termos familiares à sua platéia original. Seu grande diferencial foi abordar a Grande Cadeia do Ser, ou seja, tudo girava em torno das sociedades, das famílias e dos indivíduos, enquanto esses conheciam seus deveres e mantinham-se firmes em suas posições sociais. Mas de fato surge um questionamento: como os elisabetanos encaravam as grandes mudanças sociais? Nas palavras de Laurie Rozakis: Muitas pessoas se apegavam tenazmente aos tradicionais modos de interpretar o mundo e compreender seu lugar. Quanto mais o mundo parecia estar mergulhado no caos, mais os elisabetanos abraçavam aos antigos conceitos de ordem. A palavra chave era “hierarquia”. [...] Os humanos estavam no topo da cadeia, acima de todas as criaturas (ROZAKIS, 2002, p. 19-20). Há um certo consenso em que o mundo estava em uma posição ordenada e racional, onde cada pessoa ocupava um degrau específico na escala social. As responsabilidades também dependiam de cada posição, pois cada um entendia e aceitava essa hierarquia, que era constantemente reforçada na vida diária. Essa ordem se estendeu a tudo e a todos no Universo. Cada elemento, criatura e ser espiritual ocupavam um lugar fixo no Universo. É, portanto, nesse espaço aberto para a conjugação de interpretações várias, além das teatrais, que o homem comum podia ouvir os comentários diretos e honestos sobre a vida. Na verdade, como afirma Laurie Rozakis, é isso que Shakespeare quis dizer com tamanha maestria ao assinalar que os atores são a “breve crônica dos tempos” (ROZAKIS, 2002, p. 28). 56 3.2 As referências incontestáveis de um período marcado pela ascensão intelectual: a importância do teatro como tempero da vida (o mundo é um palco) Todo o inesgotável acervo empírico da obra “Romeo and Juliet” é potencialmente revelador. Conhecer os termos básicos referentes aos usos e costumes da época representa muito para a transformação do enredo em arte e a arte em realidade. Mas como Shakespeare fez isso? Ele uniu observações agudas sobre a condição humana a dramas psicológicos e a uma poesia admirável. A julgar-se pelo bom senso do dramaturgo, concluiu o escritor John Dryden citado por Laurie Rozakis, em 1668, que “de todos os poetas modernos, e talvez de todos os antigos, ele era o homem que possuía a alma mais generosa e compreensiva” (DRYDEN apud ROZAKIS, 2002, p. 46). Contudo, entre as tantas inovações revolucionárias do alvorecer da economia de mercado de seu tempo, o teatro8 evoluiu e teve imenso impacto social. A primeira dessas tais condições foi devido à própria estrutura da sociedade. Shakespeare com o seu notável talento soube cercar-se do que havia de melhor nos anos do reinado de Elizabeth I, e ao longo de todo o período em que trabalhou pela consolidação e pelo progresso do reino, propiciou a ascensão intelectual da sociedade e o fascínio pela vida cênica. De maneira assombrosa, a popularidade permanente do teatro e da obra “Romeo and Juliet” alcançaram uma intensidade mítica com notória justificação social. Mesmo sendo um homem do século XVII, a universalidade e contemporaneidade de Shakespeare são incontestes. Em virtude dessa dualidade temporal, não podemos dissociá-lo do contexto histórico de seu tempo, pois, segundo Antônio Cândido “as obras se articulam no tempo, de modo a se poder discernir uma certa determinação na 8 O teatro, mais do que ser um local público onde se vê, é o lugar condensado das ambiguidades e paradoxos, onde as coisas são tomadas em mais de um sentido. Camargo assim o define: “O vocábulo grego Théatron (șȑĮIJȡȠȞ) estabelece o lugar físico do espectador, ‘lugar onde se vai para ver’ e onde, simultaneamente, acontece o drama como seu complemento visto, real e imaginário. Assim, o representado no palco é imaginado de outras formas pela platéia. Toda reflexão que tenha o drama como objeto precisa se apoiar numa tríade teatral: quem vê, o que se vê, e o imaginado. O teatro é um fenômeno que existe nos espaços do presente e do imaginário, nos tempos individuais e coletivos que se formam neste espaço" (CAMARGO, 2005). 57 maneira por que são produzidas e incorporadas ao patrimônio de uma civilização” (CÂNDIDO, 1981, p. 30). Por sua vez, Shakespeare foi a figura chave na criação de um sistema de significados, valores e regras implícitas próprio para a Renascença. Sutilmente, no tocante à regulação do pujante teatro elisabetano, que cresceu com a energia e uma estima pública sem precedentes, tudo era tolerado em “estado precário” e estava sujeito ao controle das autoridades. Para Gustavo H. B. Franco e Henry W. Farnam, “O controle do governo sobre a atividade teatral era absolutamente total, a começar pela censura” (FRANCO; FARNAM, 2009, p. 58). Na verdade, em observância à letra da lei, toda e qualquer atividade teatral destinava-se exclusivamente ao entretenimento da corte, sendo que quaisquer outras apresentações precisavam ter autorização. De qualquer modo, ao lado da ação humana, há, nos vários personagens que Shakespeare inspirou, um retrato comum de seu tempo (rei, príncipe, aristocratas, senhoras, criados, etc.). As cenas das peças do dramaturgo limitavam-se, em geral, à Europa e ao Mediterrâneo, ou ao que os antigos chamavam de mundo civilizado. A maioria das tramas também foi tirada de material já existente, seja da história antiga, da inglesa, seja de histórias de autores italianos ou de outra origem. No caso em especial, o desenrolar da tragédia em “Romeo and Juliet” teve como pano de fundo a cidade de Verona na Itália. De acordo com Barbara Heliodora, ao enaltecer a importância do mundo como um palco, assinala que “o segredo do teatro elisabetano foi ter aproveitado o melhor de dois mundos, misturando a ação do teatro popular e a forma do teatro romano” (HELIODORA, 2008, p. 13). Sem teorias predeterminantes, em uma época na qual os profissionais do teatro mal começavam a ser aceitos como membros mais ou menos respeitáveis da sociedade, há mais documentação sobre a vida de Shakespeare do que sobre a de qualquer de seus contemporâneos de profissão. Induvidosamente, os grandes acontecimentos políticos, econômicos e culturais marcaram profundamente a vida do dramaturgo, principalmente quando passou a viver em Londres (Inglaterra), onde fervilhavam intrigas tanto no poder quanto no teatro. 58 Figura 9 - Representação de como eram os Teatros Isabelinos Fonte: Madrid, 2007 De fato, é provável que o famoso temperamento gentil e cortês de Shakespeare lhe abrisse portas para o diálogo com toda espécie de gente, tanto na cidade como no campo. Na dramaturgia pré-shakespeariana, traço fundamental de sua literatura: A rigidez da poesia e dos personagens fazia com que a grande escola da interpretação fosse marcada por gestos encontrados nos manuais de retórica. No entanto, com a verdade e a flexibilidade dos textos de Shakespeare, os atores teriam de abrir mão dos gestos exagerados e definidores e prestar mais atenção ao fluxo e ao conteúdo do que estava dizendo (HELIODORA, 2008, p. 26). Nesse sentido, enfatiza Barbara Heliodora (2008) que o próprio Shakespeare evoluiu, e muito, em sua dramaturgia. Todavia, a sua maior riqueza está em criar personagens e se solidarizar com eles, utilizando como componentes de seu universo a aparência e a realidade, a justiça e a misericórdia, o bom e o mau governo, a verdade do amor e o valor da amizade, a covardia, a traição, o egoísmo e a generosidade. 59 Não se pode olvidar que Shakespeare conseguiu dar a seus leitores um espelho fiel dos costumes e da vida prática, prova secular de seu mérito literário e artístico, mas, em última análise, afirma Laurie Rozakis que: Seus personagens não são modificados pelos costumes locais em particular, estranhos ao resto do mundo [...] eles são a autêntica progenitura da humanidade comum, a qual o mundo irá sempre suprir, e a observação, sempre encontrar (ROZAKIS, 2002, p. 64). 3.3 A análise reflexiva a respeito do comportamento humano: independência, dramaturgia e lirismo em “Romeo and Juliet” Não é difícil identificar que Shakespeare deu tratamento diferente tanto às comédias como às peças históricas e às tragédias, mas uma coisa é certa, seus princípios eram válidos para todos os universos em que agiam seus personagens com os quais ele investigava determinado aspecto do comportamento humano. A pergunta é como ele havia feito isso e de que forma? Ora, de acordo com Bárbara Heliodora, “que Shakespeare o tenha feito da forma que o fez, é sorte nossa e do público elisabetano para o qual ele escreveu” (HELIODORA, 2008, p. 27). A variedade de gêneros, a linguagem, as imagens e a estrutura da sociedade eram aspectos significativos e marcantes para Shakespeare, haja vista ter vivido em uma época de grande orgulho nacional. Em “Romeo and Juliet” as confrontações são claras e tornam a obra do escritor inglês um marco universal atrativo para debates. O mais intrigante na tragédia é que o escritor deixa claro que toda ação humana tem consequências, e muitas das vezes, bem diferentes das esperadas. Para refletir a respeito do comportamento humano, Harold Bloom (2001) ressalta que em alguns casos Shakespeare recorre à presença de algum tipo de perigo, como sofrimento, morte, misericórdia e discórdia para se aproximar da vida real. Uma leitura cuidadosa do aparato comportamental na obra “Romeo and Juliet”, contudo, revela em um primeiro rascunho das maiores tragédias, seu talento teatral incomparável. O diálogo em tom trágico inconfundível tem uma graça que nos ajuda a acreditar em todos os obstáculos e soluções possíveis. Nesse sentido, toda a graça depende de informação e refinamento acima do exigido pelo corpo da obra, muito embora a ideia 60 dessa especificidade tenha base na existência de várias referências a pessoas e fatos em um universo privilegiado. Figura 10 - Um retrato da genialidade de William Shakespeare Fonte: Ngan, 2011 Harold Bloom (2001) esclarece que Shakespeare, sábio escultor da natureza humana, aproveita tudo o que o ambiente lhe oferece, usando sempre seus personagens como porta-vozes da razão e da sensatez. Seus textos são elaborados com uma quantidade exagerada de jogos de palavras, muita rima e as famosas 61 referências não identificáveis que emprestam à peça seu sabor especial. O aprendizado do universo especial em Shakespeare torna acessível a elegância de boa parte das falas e a complexidade da estrutura textual. A segura construção da tragédia shakespeariana mostra o autor já pleno senhor de seu ofício, com cada personagem claramente definido apenas pelo diálogo, ou seja, manipulando níveis variados de aparência e realidade, com extrema personalidade autêntica e assumida. O domínio do lirismo em Shakespeare é evidente em relação à língua como instrumento dramático e trágico. A evolução do autor é vista nas sutilezas ao desvelar os motivos e os sentimentos humanos nas mais variadas formas. Nenhuma outra peça ilustra tão bem a capacidade do dramaturgo de tornar a sua história a sua verdadeira fonte. Data de 1559 o poema “A trágica história de Romeu e Julieta”, de Arthur Brooke. O poema é longo e tedioso, porém fez sucesso na época. Com originalidade, seguindo de perto a história de Brooke, Shakespeare também abre a peça com um soneto que expressa outra posição: Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta) são vítimas do ódio entre suas famílias, com o que a peça se torna ao mesmo tempo uma história de amor e um sermão contra a guerra civil. Conforme identifica Bárbara Heliodora: Nessa peça de aparente simplicidade e de imensa complexidade, Shakespeare parece fazer uma assinatura geral de sua obra, reunindo nela todos os seus grandes temas favoritos, aqueles que sempre serviram de lente por intermédio da qual ele observava a humanidade que amou tanto e com tanta compaixão (HELIODORA, 2008, p. 77). Constata-se, pois, com dramaturgia e linguagem impecáveis, para não falar do memorável uso do palco elisabetano, Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta) é obviamente obra de um autor que já vive há seis ou oito anos em Londres (Inglaterra), e as alterações que introduz na ação confirmam sua crença na interdependência do indivíduo com o quadro social e político em que vive. Os versos não perdem beleza rítmica e sonora, apenas procuram ser em maior grau a imagem da fala humana. Interessa ressaltar na obra o uso da língua ornada a princípio pelo tom conflituoso existente entre as duas famílias, os Montague (Montéquios) e os Capulet (Capuletos), frente à paixão que faz tanto Romeo (Romeu) quanto Juliet (Juliet) padecerem pelo ódio de seus pares rivais. 62 Como se vê, na obra, os amantes são vítimas do ódio e do descontentamento de ambas famílias rivais que não aceitavam a união do casal por diversas razões, e não era só o Príncipe que condenava as brigas e o mal que faziam à comunidade. Os chefes das duas famílias não se compraziam com os desfechos e tormentas idealizados naquela época, fato este que os conflitos na maioria das vezes trágicos eram pacificados por Escalus (Escalo, Príncipe Regente de Verona). O conflito entre o particular e o público, a relação entre o Estado e a Igreja, e o contraste de temperamento tornam a obra riquíssima e servida por uma linguagem que, em suas imagens, não para de remeter as ações à sua relação com as dimensões do poder em jogo. No caso, o poder não corrompe e não rende prazeres desmedidos, apenas intensifica a noção de seriedade da tarefa que cabe ao monarca. 3.4 Pontos de apoio norteadores para a compreensão do ser no contexto jurídicoliterário Magistralmente, Shakespeare deixou um legado fantástico, qual seja, entender o ser humano em suas fraquezas, forças, felicidades, gozos e angústias. Certa impressão não se trata apenas de entender o outro, mas a nós mesmos também. Quanto ao ser humano, conforme salienta Nélson Jahr Garcia (2011), Shakespeare nos ensina algo importante, senão fundamental, o homem não é bom ou mau, apenas homem. Por sua vez, comungando a ideia da interdisciplinaridade, como ficará evidenciado ao longo deste estudo, o conhecimento tratado pela ciência jurídica não é um conhecimento autossuficiente, que se basta em si mesmo; ao contrário, de nada serviria o Direito se seus operadores não ousassem excursionarem-se nos demais continentes do saber. Nessa perspectiva, importante mencionar que o Direito não deve ser entendido como uma “ilha isolada”, pois sua abordagem é sempre dependente de outras instâncias cognitivas. Tal entrelaçamento se mostra necessário para a compreensão do ser no contexto jurídico-literário. De acordo com o jusfilósofo belga François Ost, ao tratar a Literatura como fonte do imaginário jurídico, este lembra que "a Literatura não é alheia às normas e às formas instituídas" (OST, 2005, p. 20), pois, mesmo ao fazer o registro de um personagem 63 individualmente, o alcance de sua percepção das nuances da Sociedade (inclusive de seu Direito vigente) pode tomar proporções coletivas ou mesmo universais. Embora considerando o declínio do positivismo jurídico9 e, sobretudo, os desafios colocados pelo século XXI, repensar o Direito é o desafio que se impõe, atualmente, aos juristas. E, dentre as inúmeras e mais variadas alternativas que se apresentam, o estudo do Direito e Literatura adquire especial relevância. De um modo geral, a interdisciplinaridade neste aspecto alcança posição de destaque na medida em que se baseia no cruzamento dos caminhos do Direito com as demais áreas do conhecimento, fundando um espaço crítico por excelência, através do qual seja possível questionar os pressupostos, os fundamentos, a legitimidade, o funcionamento e a efetividade do direito em determinado contexto. Vê-se, portanto, que a possibilidade da aproximação dos campos jurídico e literário favorece ao Direito assimilar a capacidade criadora, crítica e inovadora da Literatura e, assim, superar as barreiras colocadas pelo sentido comum teórico, bem como reconhecer a importância do caráter constitutivo da linguagem, destacando-se os paradigmas da intersubjetividade10 e da intertextualidade11. Logo, a tarefa de compatibilizar o estudo do Direito e Literatura, seja do Direito contado na Literatura, seja do Direito entendido como narrativa, em que pese o considerável prestígio, o espaço conquistado e a importância verificada, ao longo do século XX, junto às faculdades, programas de pós-graduação, departamentos, cursos, 9 O positivismo jurídico é caracterizado pelo fato de definir constantemente o direito em função da coação, no sentido que vê nesta última um elemento essencial e típico do direito. A sua tese básica afirma que o direito constitui produto da ação e vontade humana (direito posto, direito positivo), e não da imposição de Deus, da natureza ou da razão como afirma o Jusnaturalismo. O direito positivo é aquele que estabelece ações que, antes de serem reguladas, podem ser cumpridas indiferentemente de um modo ou de outro mas, uma vez reguladas pela lei, importa (isto é: correto e necessário), que sejam desempenhadas do modo prescrito em lei. (BOBBIO, 1995, p. 147). 10 A Intersubjetividade é a relação entre sujeito e sujeito e/ou sujeito e objeto. Comunicação das consciências individuais, umas com as outras, realizada com base na reciprocidade. Em diversas linhas do pensamento contemporâneo, campo de interação comunicativa ou relação interpessoal que, em oposição aos subjetivismos individualistas e solipsismos, constitui o sentido pleno da experiência humana. (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1100). 11 Pode-se definir a intertextualidade como sendo a superposição de um texto literário a outro. Influência de um texto sobre outro que o toma como modelo ou ponto de partida, e que gera a atualização do texto citado. Dependendo da situação, a intertextualidade tem funções diferentes que dependem muito dos textos/contextos em que ela é inserida. Evidentemente, o fenômeno da intertextualidade está ligado ao "conhecimento do mundo", que deve ser compartilhado, ou seja, comum ao produtor e ao receptor de textos. O diálogo pode ocorrer em diversas áreas do conhecimento, não se restringindo única e exclusivamente a textos literários. (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1100). 64 centros e institutos de pesquisa norte-americanos e europeus, é uma prática pedagógica ainda pouco comum na cultura jurídico-literária brasileira e latinoamericana, mas que tem se destacado pelo grande casuísmo e resultados. Por aí já se pode inferir que as interfaces existentes entre o Direito e a Literatura, a partir da análise de obras literárias, possibilitando a abertura de um novo campo para a realização de estudos e pesquisas jurídicas apresentam-se como um diferencial para a análise da realidade social. As soluções são demarcadas, em importância pelo ponto de partida do reconhecimento do problema, relacionando-se o sistema jurídico e a realidade social, de modo que o aprimoramento dos instrumentos e procedimentos utilizados possa transcender reformas e o aperfeiçoamento efetivo de tais expectativas. A difusão do conhecimento jurídico-literário, mediante o esforço e o diálogo entre as comunidades acadêmicas do Direito e da Literatura representa um passo importante na reflexão acerca da capacidade da narrativa literária auxiliar os juristas na árdua tarefa de desvelar, através da ficção, a realidade social e jurídica. Pelo exposto, pode-se seguramente inferir que o papel do Direito e da Literatura são essenciais para a afirmação e compreensão do ser no contexto jurídico-literário. Do mesmo modo, tanto o Direito como a Literatura devem possibilitar fudamentalmente uma abertura para a realização de estudos e pesquisas científicas. Ademais, a mentalidade inspiradora de Shakespeare na obra “Romeo and Juliet” revela que a busca pela solução de conflitos individuais e sociais demarca a evolução dos tempos, das sociedades, confundindo, em alguns momentos, com as próprias causas e fins de transformações político-sociais que são historicamente importantes. De maneira a aprofundar as interfaces existentes, é possível, não se tratando de mera coincidência, encontrar traços jurídicamente marcantes nas peças teatrais de William Shakespeare, em especial, “Romeo and Juliet”. Neste passo, partindo da premissa fundamental de que o Direito é produto social, assim como as Artes, é possível que o Direito se origine de qualquer fato social, inclusive se este fato se encontrar em prosa, em verso ou ainda no texto de alguma peça teatral. Não obstante, destacam Cláudia Damian Fernandes, Karine Miranda Campos e Cláudio Maraschin que “a obra jurídica e a obra literária, de um modo geral, partem de um contexto que poderíamos chamar de problemático, ou seja, enquanto o direito surge dos fatos 65 (realidade), a obra literária aparece a partir do contexto ficcional ou imaginário (ficção)” (FERNANDES; CAMPOS; MARASCHIN, 2009, p.5). Contudo, mesmo com a sociedade inglesa e as suas leis, Harold Bloom (2001) explica que Shakespeare secularizou o teatro, humanizou o ser e dotou seus personagens de características e sentimentos tão nobres e marcantes como qualquer outro. Na visão do autor, às vezes, os personagens têm importância para terceiros; porém, em última análise, sempre têm importância para si mesmos. Admiravelmente, como ele próprio apreendeu, o valor de um personagem é conferido por outros, ou através de outros, tudo movido pela esperança de cativar. Neste passo, afirma ainda que a impressão que Shakespeare faz do humano é inigualável, apesar da noção prevalente desde aquela época, de que os homens, mulheres e crianças, de certo modo, são mais naturais do que outros personagens dramáticos e literários. Pois bem, de acordo com Harol Bloom (2001), jamais se esgotará a perspectiva plausível de análise do ser no universo shakespeariano, pois a grandeza e o desprendimento do personagem na busca por novos ângulos interpretativos, mais do que, meramente incorporá-lo à natureza, fazem-no com esta se confundir. Neste aspecto, conclui-se que Shakespeare compreendeu como nenhum outro dramaturgo a essência do ser, sendo um conhecedor aprofundado da tão complexa natureza humana. Sua genialidade inconfundível a respeito do fantástico mundo do ser é expressada na obra “A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca” por Nélson Jahr Garcia, onde é possivel identificar: Que obra de arte é o homem: tão nobre no raciocínio; tão vário na capacidade; em forma e movimento, tão preciso e admirável, na ação é como um anjo; no entendimento é como um Deus; a beleza do mundo; o exemplo dos animais (GARCIA, 2000, p. 53). 3.5 O universalismo shakespeariano: uma tragédia autêntica na visão do Direito Por que é importante estudar o ser no universo shakespeariano? Em Shakespeare, a capacidade inquietante de atravessar os obscuros labirintos da mente humana, desnudando paixões, iluminando desejos e apontando os grandes fantasmas que perseguem o homem são claramente marcantes. A audaciosa intelectualidade de 66 Shakespeare vem desafiando estudiosos ao longo dos anos, isto porque, através de sua obra “Romeo and Juliet”, o dramaturgo não apenas representou, mas efetivamente inventou o homem. E é justamente por isso que Harold Bloom (2001) o identifica como o “inventor do humano”. Na verdade, a capacidade de evolução por uma relação consigo mesmo, e não com Deus ou deuses, a habilidade em mergulhar na difícil e desafiadora viagem do autoconhecimento pela reflexão têm profundamente revelado a incontestável riqueza de seu mundo criativo. A invenção do humano é para ele um exercício infinito que nunca se esgota, prescindindo sempre, conforme afirma Harold Bloom (2001), de um “processo claro de descoberta do ser”. Nesse sentido, compreende Harold Bloom (2001) que o universalismo shakespeariano é uma circunferência que a tudo abrange. A noção essencial de universalismo é muito complexa, global e multicultural, porém, não seria possível conceber Shakespeare sem encontrar um meio de explicar sua presença ubíqua, nos contextos mais improváveis (ao mesmo tempo, aqui, lá e em todo lugar). Tal visão remete a uma constelação e a uma aurora boreal visível em um ponto de percepção que a maioria de nós jamais conseguirá alcançar. A representação da natureza e da personalidade humana sempre há de encerrar um valor literário maior, seja no teatro, na poesia lírica ou na narrativa em prosa. Os vitalistas12 heróicos não transcendem a vida; são a grandeza da vida. Shakespeare, que em seu cotidiano parece não ter realizado gestos heróicos ou vitalísticos, criou Romeo (Romeo) e Juliet (Julieta) como tributos da arte à natureza. Mais do que outros prodígios shakespearianos, constituem a invenção do humano, ou melhor dizendo, a instauração da personalidade conforme hoje a conhecemos. Explica Harold Bloom (2001) que a ideia do personagem, do ser como agente moral, têm diversas origens, mas a personalidade, no sentido aqui proposto é uma invenção shakespeariana, e tal feito constitui não apenas a grande originalidade do dramaturgo, mas, também, a razão maior de sua perene presença. Shakespeare foi além de todos os precedentes e inventou o ser humano à medida de todas as coisas, 12 Doutrina fisiológica que admite um princípio vital distinto ao mesmo tempo da alma e do organismo, e do qual dependeriam todas as ações orgânicas. (GRANDE, 1971, p. 7055). 67 valorizando eminentemente a imagem do ser de forma tão sublime e exuberante. Conforme nos ensina Harold Bloom: Shakespeare cria maneiras diversas de representar a mudança no ser humano, alterações essas provocadas não apenas por falhas de caráter ou por corrupção, mas também pela vontade própria, pela vulnerabilidade temporal da vontade (BLOOM, 2001, p. 26). Ora, mas o que a discussão a respeito da ideia do personagem tem a ver com o Direito em Shakespeare? Esclarece Lawrence Flores Pereira que: Nos personagens inúmeras perspectivas são observáveis: intenções repartidas, pensamentos subliminares que podem ser deduzidos por um gesto linguístico determinado, por pensamentos que se materializam na forma de solilóquios meditativos, por processos complexos de reação a situações diversas que imitam hesitações humanas assim como pela dialética dos personagens. [...] O Direito, em Shakespeare, pode ser apontado, por outro lado, como um complexo ideológico que serve de pano de fundo de suas peças, um aspecto quase invisível delas. É a forma inconsciente das instituições que se inscrevem no discurso dos personagens, nas leis “inconscientes” que regem seus movimentos. Que se pense na ficção jurídica medieval do “direito divino dos reis” que reaparece constantemente na cena de frente e também no cenário de fundo de suas peças - uma ficção jurídica que estava, aliás, sendo reforçada por Elisabete e que se tornaria quase uma obsessão tanto de James como de Carlos I. Em um teatro onde os heróis e personagens vivem dilemas, questões de direito surgem, por outro lado, sem se anunciarem claramente. Estão interligadas, entrelaçadas e mesmo amalgamadas à observação psicológica, numa espécie de overlapping estético. Assuntos legais podem até mesmo ser o pano de fundo cultural de muitas peças, bruxuleando ao fundo, definindo movimentos, sem que nem mesmo estejamos cientes de sua presença. São elementos inconscientes que são considerados como “dados” (PEREIRA, 2010, p. 1-23). Desse modo, tendo em vista os caracteres fático-jurídicos e descritivos da personalidade elencados, ao se abrandar a questão da tragédia (a morte dos dois amantes) no final da obra “Romeo and Juliet”, cabe aqui destacar que tanto Romeo (Romeo) quanto Juliet (Julieta) são os principais personagens graças à excepcional capacidade de Shakespeare em representá-los além das explicações. Com efeito, pode parecer estranho que o dramaturgo reserve para as duas maiores personalidades, Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta), por ele próprio criadas o 68 oximoro13 da “boa morte”, mas que outra expressão poderíamos empregar? Por que seus personagens parecem tão reais, e como ele conseguia criar tal ilusão de modo tão convincente? As considerações históricas ou historicizadas não nos ajudam muito a responder essas perguntas. O certo é que, os ideais tanto da sociedade como do indivíduo, eram, talvez, mais importantes no mundo de Shakespeare do que em qualquer outro lugar. É difícil descrever os metódos de representação na obra sem recorrer a oxímoros, uma vez que a maioria desses métodos baseia-se em contradições aparentes. Em última análise, destaca-se que o dramaturgo é sábio demais para se ater a uma só crença, e, embora dê a impressão de tudo saber, celebra a vida, indo além da tragédia. 3.5.1 Homem ou personagem: produto das circunstâncias? A capacidade de criar formas mais reais que seres humanos vivos não parece ser resultado de uma perplexidade entre o conhecimento pessoal e ideal. Ao ler as peças escritas por William Shakespeare e, até certo ponto, ao assistir às encenações, o procedimento mais sensato é deixar-se levar pelo texto e pelos personagens, e permitir uma recepção que possa se distanciar daquilo que é lido, ouvido e visto, de maneira a incluir quaisquer contextos relevantes. Neste aspecto, nos alerta Harold Bloom na obra “Romeo and Juliet”, que “a dor é a origem primeira da memória humana” (BLOOM, 2001, p. 36). Procurando sempre edificar a figura do ser humano, não como um produto das circunstâncias, mas como a de um ser consciente, o dramaturgo superou todos os seus preceptores. Acentua Harold Bloom (2001) que não é por mera ilusão e coincidência que os espectadores encontram mais vitalidade nas palavras de Shakespeare e nos personagens do que em qualquer outro autor. Tentativas de historicizar o impacto teatral por ele causado continuam a fracassar diante da singularidade de sua grandeza. As críticas que apenas seguem modismos não convencem, pois, no fundo, pretendem tão-somente diminuir e distorcer a realidade social. Tal desmistificação se torna uma 13 Combinação de palavras contraditórias ou incongruentes, como “crueldade afável”, “terrível bondade”, etc. É uma figura de linguagem que harmoniza dois conceitos opostos numa só expressão, formando assim um terceiro conceito que dependerá da interpretação do leitor. (GRANDE, 1967, p. 865). 69 técnica inócua, se aplicada a um escritor que alcançou a própria autenticidade, exclusivamente, ao representar terceiros. Por sua vez, a relação entre a vida e a morte e o amor e o ódio está no cerne de Shakespeare, tendo sido surpreendentemente por ele próprio inventada em seus textos. Nas palavras de Harold Bloom (2001), a dor memorável ou a memória induzida pela dor, emana de uma circunstância ao mesmo tempo cognitiva e afetiva, prontamente engendrada por Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta) na obra. Personagem e peça misturam-se e dissolvem-se, e tudo o que resta é analisar a contumaz força do “deixa estar” e “deixa ser”. Em um sentido bastante real, esses são os significados realçados na produção literária shakespeariana, pois da união dos dois jovens muitas reflexões são trazidas para o mundo dos fatos. Sendo assim, conclui-se que os personagens shakespearianos são “repletos de vida” e dotados de um conjunto impresso de sinais sobre uma página. Em termos práticos, há pouca diferença entre o “personagem” e o “papel”, haja vista tais atribuições serem tão factuais quanto a impressão de que alguns personagens reforçam a concepção de pessoa, e outros não conseguem fazê-lo. Todavia, Harold Bloom (2001) destaca o fato de se estudar a perene supremacia do dramaturgo partindo da noção de que o mesmo é universalmente considerado o autor que melhor representou o universo concreto. Muito se deve a Shakespeare por isso, ainda mais sustentando a ideia de criação autêntica de seus personagens, uma tentativa de reinvenção do próprio ser humano. 3.5.2 Proposições fundamentais para uma observação de primeiro grau a partir do diferencial shakespeariano Induvidosamente, com o passar dos tempos, a obra “Romeo and Juliet” de William Shakespeare teve grande influência e repercussão universal, tendo em vista principalmente a ascensão social e intelectual do dramaturgo. No universo shakespeariano os personagens encenam suas dores, seus amores, assim como a eterna busca de conhecimento de si, dos mistérios do imenso mundo que vêem à sua frente, e dos meandros igualmente misteriosos do mundo interior. 70 Quanto à observação de questões essenciais, a palidez estudada do poeta pode ter sido uma de suas tantas máscaras, algo que lhe garantisse autonomia, controle, liberdade e originalidade tão vastas que, não apenas os contemporâneos, mas os predecessores e sucessores foram por ele bastante ofuscados. Porém, as realizações da literatura mudial, mais especificamente as tragédias de Shakespeare permanecem intactas, revelando a extraordinária fertilidade de seu gênio. Por mais “obscuras” que sejam as impressões de suas obras, todas advém da multiplicidade de sentidos que parece estar sendo comprimida em palavras ou frases. Com muita perspicácia, seu grande diferencial, todavia, está na capacidade de introduzir em suas tragédias elementos que contribuem para a ação, ou mesmo são indispensáveis a ela. Particularmente, a questão dos conflitos entre pares rivais na tragédia “Romeo and Juliet” apresenta-se como um marco pedagógico para o estudo do Direito na Literatura. Embora Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta) seja um triunfo do lirismo dramático, o desfecho trágico ofusca os demais aspectos da narrativa, deixando entrever conjecturas com relação à eventual responsabilidade dos jovens amantes em relação à catástrofe. De tal sorte, aventa-se a hipótese de que Shakespeare tenha-se interessado por peças desse tipo depois de explorar largamente as paixões fatais dos homens, buscando explorar temas complementares, que apontassem para algum tipo de reconciliação ou restauração, mas o certo é que, são necessários esforços analíticos ainda maiores para se interpretar a abordagem de suas perspectivas e colocar em primeiro plano o personagem em contraste com a realidade. 3.6 Os aspectos partilháveis do ser humano na história: por que Shakespeare? Certamente, a densidade e a riqueza imaginativa da obra de Shakespeare podem explicar o fato de que cada geração volta a descobrir e a confirmar essas qualidades, e, ao fazer isso, descobre a si própria. Nesse sentido, pode-se dizer que, sem ter escrito filosofia no sentido estrito, Shakespeare foi um pensador às voltas com os problemas fundamentais e aspectos eternamente partilháveis do ser humano. 71 A obra “Romeo and Juliet” é a expressão mais acabada do Renascimento, incorporando tenazmente as tensões da época. Com certo rigor, proporciona uma visão de mundo em particular, apresentando diversas passagens, às vezes mutuamente ambíguas, mas devido a autenticidade, extraordinariamente inconfundíveis. Com bastante simplicidade, Alípio Correia de França Neto e John Milton (2009) sustentam que Shakespeare se revela um verdadeiro e supremo artista “impessoal”, onde sua pujante “impessoalidade” embasa um valor literário expressivo, referindo basicamente à faculdade de apresentar uma visão de mundo não mediada por algum comprometimento declarado de ordem moral ou religiosa. Em razão da notoriedade expressiva, nenhum outro autor até então havia empreendido um exame tão aprofundado das relações de poder em sua época, e de sua obra podemos extrair várias tendências sociais, políticas, ideológicas e normativas. Graças a essa unanimidade literária em tom universalizante, Shakespeare logrou êxito e explorou todas as situações partilháveis do ser humano na história, retratando as várias formas de relacionamento entre as pessoas. A esse respeito, Alípio Correia de França Neto e John Milton destacam que: A propósito de pessoas, nenhum artista se compara a Shakespeare em termos de poder de caracterização de personagens. Estas sempre apareceram em cena perfeitamente individualizadas, inconfundíveis, com o registro da fala adequado a sua condição social, seus hábitos linguísticos e humor peculiares, compõem uma vasta galeria. Parecendo “reais”, personagens como Hamlet, Rei Lear, Otelo, MacBeth e Romeu e Julieta, dentre tantos outros, acabaram por fazer parte do imaginário ocidental (FRANÇA NETO; MILTON, 2009, p. 66). Não se deve esquecer também que: Sempre será um ato reducionista tentar arrolar, em poucas linhas, um número satisfatório de expedientes de sua poética - ou seja, seu repertório de temas e formas - por meio de que Shakespeare logrou no decorrer dos tempos essa unanimidade universal. É possível, porém, atribuir com segurança uma parte desta à variedade imensurável de temas: ao nos debruçarmos sobre sua obra, temos a impressão de que o “bardo” - uma denominação que lhe foi concedida com exclusividade - explorou todas as situações dramáticas possíveis (FRANÇA NETO; MILTON, 2009, p. 66). Ora, diante de tais considerações, por que Shakespeare então ajudou a estabelecer as bases teóricas para a compreensão de uma realidade desde suas estruturas mais profundas até a emergência de um sujeito a representar-se nos palcos 72 e a fazer vibrar nas mentes e nos corações do público novas metas para a expressão humana? A resposta é simples. Não apenas criador de personalidades como também de linguagem, Shakespeare desmancha e remodela a representação do ser, através da linguagem e na linguagem. Ele não deve ter pretendido fazer de seus personagens e público filhos seus, mas o fato é que o dramaturgo influenciou as culturas e gerações, e não apenas a do teatro, nem mesmo apenas a da literatura e do direito, mas de alguma forma tentou observar a realidade e procurou pensar os acontecimento além de sua própria aparência imediata. 73 4 DIREITO E LITERATURA: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA O DISCURSO JURÍDICO EM SHAKESPEARE A interface entre Direito e Literatura debruça-se na possibilidade de superação do tradicional modelo positivista. Na visão de Germano Schwartz, esta pequena análise a respeito da conexão existente entre Direito e Literatura tem por objetivo resgatar, se ainda há, o senso de um tempo em que a justiça era poética, quando os debates acadêmicos e sociais se desenvolviam em um ambiente de paixão, hoje, abandonado pela crescente burocratização do papel desempenhado pelos pesquisadores em nossas Universidades e pelos operadores do Direito na práxis jurídica. Tal compreensão é salutar para o desenvolvimento de análises de obras literárias, cujas abordagens encontram-se ligadas ao âmbito jurídico, onde a Literatura pode ser, do ponto de vista da estrutura do Direito, uma grande e rica fonte de conhecimento (SCHWARTZ, 2006, p. 15). Na verdade, a questão da interpretação do Direito com outros campos do saber, em especial a Literatura, permite a apreensão da realidade social. A partir da estrutura de construção do texto literário que trabalha com a subjetividade do real, a Literatura se torna um produto cultural de seu tempo. Entretanto, com a modernidade e o desencantamento do mundo, o Direito não poderá ignorar esta nova face de interdisciplinaridade, pois com ela é possível recriar a visão do homem sobre ele mesmo. Tem-se, assim, conforme preceitua Germano Schwartz, que tal relação entre Direito e Literatura aparece como uma forma diversa de abordagem da ciência do Direito, calcada na superação do modelo positivista, procurando novas formas de observação que possibilitem a constatação e a superação do já referido distanciamento temporal para com a sociedade na qual se insere (SCHWARTZ, 2006, p. 18). Nesse sentido, através da narrativa literária é possível chegar a determinadas conclusões a respeito das relações político-sociais, representações jurídicas que vão para além do imediato proposto e observável, trabalhando, em certo sentido, tanto com a dimensão objetiva quanto a dimensão subjetiva. Quem sustenta esta possibilidade é Ronald Dworkin ao recomendar que os juristas estudem não só a interpretação literária, 74 mas outras formas de interpretação artística, nas quais contribuem para a distinção categórica entre descrição e valoração na teoria jurídica14 (DWORKIN, 2005, p. 221). Para o jurista Germano Schwartz (2006), professor catedrático da disciplina Direito e Literatura na Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul, a Literatura humaniza o Direito. Em outras palavras, a Literatura ajuda a demonstrar que o Direito não se desvincula da realidade social que o circunda. O poder colocar-se na figura do outro é também uma das grandes contribuições que a Literatura pode dar ao Direito, já que tal sensibilidade é escassa entre os operadores do direito na “modernidade”. Neste passo, a Literatura pode recuperar a humanidade do Direito, que anda tão esquecida entre todos nós. A questão é como a Literatura pode contribuir para o Direito? Pois bem, no universo jurídico, uma das formas é que ela pode programar o Direito ao apresentar situações várias e futuras. E é certamente nesse aspecto que a mesma pode ser usada pelo Direito no sentido de expandir a compreensão do que seja legal ou ilegal, e também, justo ou injusto. Em outro aspecto, a Literatura propicia referências à argumentação jurídica, dando suporte ao Direito em vários sentidos da vida prática. A grande contribuição da Literatura ao Direito é no sentido de sensibilizar os juristas, fazendo com que estes percebam a dimensão do outro. Contudo, vale ressaltar que a análise de obras literárias 14 A priori, Ronald Dworkin aventa teses que ofereçam algum tipo de interpretação do significado de uma obra como um todo. Para oferecer esse tipo de interpretação, Ronald Dworkin elabora a tese da Hipótese Estética e da Intenção do Autor, partindo-se do pressuposto da dificuldade normal do significado pretendido pelo texto, o que pode influenciar em questões maiores. Hipótese Estética: Segundo essa tese, "a interpretação de uma obra literária tenta mostrar que maneira de ler (ou de falar, dirigir ou representar) o texto revela-o como a melhor obra de arte" (DWORKIN, 2005, p. 222). A interpretação de um texto tenta mostrá-lo como a melhor obra de arte que ele pode ser, e o pronome acentua a diferença entre explicar uma obra de arte e transformá-la em outra. Isso é o que também poderia ser chamado de teoria holística do direito. A principal tese da hipótese estética encontra-se no seu poder explicativo e, particularmente, no seu poder crítico. A tese da Intenção do Autor supõe: "O que é valioso numa obra de arte, o que nos deveria levar a valorizar uma obra de arte mais do que outra, limita-se ao que o autor, em algum sentido estrito ou restrito, pretendeu colocar nela" (DWORKIN, 2005, p. 229). É justamente desconstituindo a tese dos intencionalistas que Ronald Dworkin fundamenta a importância de sua tese, pois um autor seria capaz de separar o que escreveu de suas intenções e crenças anteriores, de tratá-los como um objeto em si. É por essa razão que é importante a interpretação da intenção do autor em uma obra literária. Conclui Ronald Dworkin que as intenções dos autores não são simplesmente conjuntivas, como a de alguém que vai ao mercado com uma lista de compras, mas estruturadas, de modo que as mais concretas delas, como as intenções sobre os motivos de um personagem particular em um romance, dependem de opiniões interpretativas cujo acerto varia com o que é produzido e que podem ser alteradas de tempos em tempos. 75 inaugura um campo fértil para a realização de estudos e pesquisas, pois permite uma reflexão acerca da realidade social e jurídica através da narrativa literária. Seja como for, analisando a proposta metodológica do presente estudo, a despeito das contribuições que a Literatura traz ao Direito, e reunindo as necessidades mais prementes da atualidade para o estabelecimento de uma racionalidade prática mais reveladora, esclarece Jackeline Cardoso Scarpelli que: A tentativa de aproximação entre o Direito e outras áreas do conhecimento é ensejada pelo movimento antipositivista que de maneira geral pretende reconstruir o papel do estudo jurídico para além das categorias estritamente dogmáticas e tecnicistas (SCARPELLI, 2008, p. 206). Com relação a isso, tem-se que o descrédito dado hoje à verdade objetiva, incomunicável e imutável reflete por consequência uma nova concepção de ciência. Neste sentido, cabe aqui mencionar que o ponto central da intertextualidade entre Direito e Literatura situa-se na linguagem, demonstrando claramente a fluidez com que tais conhecimentos interagem e convergem entre si. Todavia, acrescenta Jackeline Cardoso Scarpelli (2008) que para este desafio são lançadas inúmeras respostas, dentre as quais uma se encontra perfeitamente enraizada no constante exercício de interpretação. E é dentro desse contexto que o enfoque dado ao âmbito narrativo revela o caráter criativo do Direito que não se contenta em defender posições instituídas, mas exerce igualmente funções instituintes. “O que supõe a criação imaginária de significações sociais-históricas novas e desconstrução das significações instituídas que a elas se opõem” (SCARPELLI, 2008, p. 214). Por seu turno, categoricamente, Jackeline Cardoso Scarpelli assinala ainda que é possível “traçar um panorama geral da relação entre o Direito e a Literatura, abordando suas convergências e divergências; demonstrar a relevância de tal estudo expondo os elementos trazidos pela Literatura que enriquecem a compreensão e análise do Direito” (SCARPELLI, 2008, p. 206). Além desses, tantos outros pontos de contato podem ser pertinentemente levantados para o enriquecimento da análise em questão. Por sua vez, Joana Aguiar e Silva citada por Jackeline Cardoso Scarpelli, adverte que a Teoria do Direito também: 76 Experimentou este deslocamento de enfoque dado aos elementos presentes no processo interpretativo com destaque dado ao autor (intenção do legislador), ao texto (no positivismo jurídico) e mais recentemente ao intérprete elevado à categoria de coautor (SILVA apud SCARPELLI, 2008, p. 207). Nesse sentido, chega-se à conclusão que criar ou sustentar uma linguagem seria como criar ou sustentar um mundo. Ainda assim, conforme afirma Joana Aguiar e Silva citada por Jackeline Cardoso Scarpelli, em linhas gerais, “o direito é um universo discursivo, é uma linguagem histórica e culturalmente institucional. É uma forma de pensar e de organizar a vida e o mundo” (SILVA apud SCARPELLI, 2008, p. 207). Nota-se, então, conforme Jackeline Cardoso Scarpelli (2008), que a investigação de obras de cunho puramente Literário com o escopo de apreender o mundo simbólico do Direito e suscitar o levantamento de questões principalmente de cunho ético, tornase extremamente relevante. Assim, para eliminar tal descompasso porventura existente, deve-se entender a linguagem não apenas como instrumento que liga o sujeito cognoscente e o objeto do conhecimento, mas sim como parte constitutiva da própria humanidade e da história. Da mesma forma, ensina Jackeline Cardoso Scarpelli, que “o estudo da linguagem vem ganhando importância com relevantes desenvolvimentos da Teoria da Literatura e da própria Filosofia da Linguagem” (SCARPELLI, 2008, p. 208). De outro lado, cabe observar também que o Direito não pode fechar-se a essas perspectivas, ao contrário, deve se valer de suas contribuições. Estas, ao seu passo, podem estimular o resgate da dimensão transformadora e crítica do estudo jurídico. Portanto, pensar a respeito da linguagem do Direito é tarefa desafiadora, uma vez que a atividade discursiva sempre comparece ao primeiro plano da prática jurídica. Não é descabido afirmar que a linguagem é a “ferramenta” de interlocução entre os atores sociais, e o Direito, uma forma de ler o mundo, de interpretá-lo, atribuindo um significado a um significante. 4.1 Reflexões sobre o “Law and Literature Movement” Como bem menciona Germano Schwartz: 77 A reconstrução de um novo sentido para o Direito passa por uma premissa básica, a de que não é um organismo afastado das ocorrências do sistema social. Pelo contrário, dele faz parte, atuando e interagindo com todos os demais subsistemas componentes do todo societário, quaisquer que sejam eles (SCHWARTZ, 2006, p. 79). O “Law and Literature Movement”, iniciado nos anos 70 nos Estados Unidos, deu impulso aos estudos de Direito e Literatura, sistematizando e organizando seu método de estudo. O movimento conseguiu grande repercussão no velho continente e nos países anglo-saxões, mas resta despercebido na cultura jurídica brasileira. Por assim dizer, como afirma Germano Schwartz, importante destacar que o movimento “Law and Literature” surge a partir da publicação de “The Legal Imagination”, obra em que James Boyd-White15 discute o Direito com base em algumas peças literárias de autores tais como Henry Adams, Ésquilo, Jane Austen, William Blake, Geofrey Chaucer, D.H. Lawrence, Marlowe, Helman Melville, Milton, Molière, George Orwell, Alexander Pope, Proust, Ruskin, William Shakespeare, Shaw, Shelley, Thoreau, Tolstoy e Mark Twain (SCHWARTZ, 2006, p. 51-52). Com efeito, frise-se que o estudo do Direito e da Literatura nos Estados Unidos da América tomou corpo mesmo com certa ausência de metodologia. Com bastante evidência, um dos grandes objetivos dessa proposta foi encontrar na Literatura, pontos de apoio que forneçam ao Direito compreensões necessárias a serem amealhadas e reprocessadas por sua lógica funcional, ou seja, sobre o bem e o mal, o justo e o injusto e o legal e o ilegal. Levando-se em consideração que o ato literário é um ato criativo, o acoplamento entre os sistemas sociais (Direito e Arte-Literatura16) é possibilitado pela comunicação17, em suas mais variadas formas. Neste sentido, ambos, Direito e 15 16 17 BOYD WHITE, J. Law as Rhetoric, Rethoric as Law: the arts of cultural and communal life. Chicago: Universidade of Chicago Law Review, n. 52, 1985. A arte e suas manifestações são consideradas, também, como sistemas sociais autônomos. A Literatura pode ser considerada como parte integrante do sistema social arte como um subsistema a ele pertencente. Nesse sentido, consulte-se LUHMANN, Niklas. Art as a Social System. Stanford: Stanford University Press, 2000. Sobre o papel da comunicação em um sistema social, o melhor texto é, ainda, a obra central luhmanniana. LUHMANN, Niklas. Sistemas Sociales: lineamientos para una teoría general. México: Anthoropos: Universidad Ibero-americana; Santafé de Bogotá: CEJA, Pontifícia Universidad Javeriana, 1998. 78 Literatura, são comunicação em estado puro, e, no caso específico, comunicação via linguagem. Por conseguinte, Germano Schwartz assinala que: O Law and Literature Movement faz com que esse estudo apareça, via de regra, em uma divisão tripla: O Direito na Literatura, o Direito como Literatura e o Direito da Literatura. Dessa tripartição, aceita também na Europa, exsurge o formato de como se estudar o Direito com base na Literatura (SCHWARTZ, 2006, p. 52-53). Figura 11 - Law and Literature Movement (EUA), 1970 Fonte: Posner, 1998 79 Em outro sentido, é justamente nesse ponto que o auxílio da Literatura pode ser útil ao sistema jurídico. Nas palavras de Germano Schwartz: Ela pode sensibilizar o hermeneuta, conjugando o seu conhecimento técnico ao sentimento da humanidade que, conforme já referido, parece ter sido preterido em uma época de riscos e de incertezas. Acaso isso se consiga, poderá se reduzir a dicotomia entre o homem e seu mundo (SCHWARTZ, 2006, p. 75). Desse modo, nas palavras de Ediliane Lopes Leite Figueiredo (2010), enquanto a Literatura liberta as possibilidades, ou seja, coloca em desordem as convenções e suspende nossas certezas, o Direito codifica a realidade. À luz dessas observações, conduzidas pelo senso comum, o Direito decide entre os interesses em disputa, cumprindo a sua função social de estabilizar as expectativas e tranquilizar as angústias, mas, a Literatura, livre dessas exigências, cria, antes de tudo, a surpresa, pois a ela é permitido liberar o tempo das utopias criadoras (FIGUEIREDO, 2010, p. 1). 4.2 Uma abordagem a respeito do estudo do Direito a partir da Literatura Para fundamentar o valioso estudo do Direito a partir da Literatura, tema de grande relevância para nós, antes de mais nada, é necessário apontar os argumentos que permitiram um repensar do Direito via interdisciplinaridade. O “Law and Literature Movement” suscita olhares intrigantes sobre a discursividade normativa, sendo uma das maneiras de concretização do Direito como Arte, ou, na menos ambiciosa das hipóteses, uma forma diversa de interpretação das normas a partir de outros instrumentos externos (Arte-Literatura). Isso somente é possível por intermédio da abertura cognitiva do Direito. Nesse aspecto, enquanto uma obra literária tenta mostrar qual maneira de ler, de falar ou de representar, o texto se revela como a melhor obra de arte (DWORKIN, 2005, p. 222). Para tanto, Ronald Dworkin utiliza a interpretação literária como modelo para o método central da análise jurídica, por entender que: [...] quando uma lei, Constituição ou outro documento jurídico é parte da história doutrinal, a intenção do falante desempenhará um papel. Mas a escolha de qual dos vários sentidos, fundamentalmente diferentes, da intenção do falante ou do legislador é o sentido adequado, não pode ser remetida à intenção de ninguém, 80 devendo ser decidida, por quem quer que tome a decisão, como uma questão de teoria política (DWORKIN, 2005, p. 240). Figura 12 - Por que estudar Direito e Literatura? Fonte: Heil, 2010 Enfatizando o aspecto historicista, importante mencionar que a partir dos anos 60, muito antes da instauração do movimento nos Estados Unidos da América, diversas correntes começaram a tratar academicamente a relação entre o Direito e a Literatura: 81 “law and society, critical legal studies, critical race theory” e “feminist jurisprudence”, sendo a mais recente o movimento “law and literature”, que incentiva publicações e oferece disciplinas específicas nas faculdades de Direito (JUNQUEIRA, 1998, p. 150175). De acordo com Eliane Botelho Junqueira (1998), dois são os caminhos tomados pelo movimento. O primeiro é o “Literature in Law”, no qual os textos jurídicos podem ser lidos e interpretados como textos literários, possuindo uma linguagem e uma forma própria de raciocínio. No contexto, as palavras e a linguagem jurídica têm sua própria força simbólica e são passíveis de interpretação na sociedade. Já o segundo é o “Law in Literature”, que examina obras literárias que abordam questões jurídicas, tais como julgamentos, exercício profissional ou métodos legais de punição. Neste aspecto, o conhecimento auxiliaria o profissional do Direito a entrar em contato com determinadas experiências legais. Por sua vez, em meados da década de 80, Luís Alberto Warat (1985), ao propor uma nova forma de descoberta do ensino jurídico, afirmava que o espaço social onde as palavras são produzidas: [...] é condição da instauração das relações simbólicas de poder. A dimensão política da sociedade é também jogo de significações. Isso supõe que a linguagem seja simultaneamente um suporte e um instrumento de relações moleculares de poder. Mas também um espaço de poder nela mesma. A sociedade como realidade simbólica é indivisível das funções políticas e dos efeitos de poder das significações (WARAT, 1985, p. 100). Com esse fundamento, José Alcebíades Oliveira Júnior citado por Leonel Severo Rocha, trouxe para o mundo uma visão diferenciada e inovadora do contexto jurídico, passando a acentuar: A importância da linguagem textual e da Literatura para a compreensão do Direito, [...] sempre insistindo na crítica ao mito positivista da denotação pura, a proposta, também pela primeira vez, de uma leitura psicanalítica dos discursos do Direito (OLIVEIRA JÚNIOR apud ROCHA, 1998, p. 79). Numa análise mais cognitiva, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy citado por Luis Carlos Cancellier de Olivo, afirma que a Literatura pode fornecer tanto informações quanto subsídios para que o meio social, onde o Direito se desenvolve, seja compreendido, pois “ao exprimir uma visão de mundo, a Literatura traduz o que a 82 sociedade e seu tempo pensam sobre o Direito” (GODOY apud OLIVO, 2005, p. 23). Do mesmo modo, sustenta que “é a relação entre Direito e Literatura, a propósito de como essa focaliza aquele, até no esforço de melhor entendê-lo” (GODOY apud OLIVO, 2005, p. 23). Igualmente, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy citado por Luis Carlos Cancellier de Olivo, acredita ainda ser possível conhecer o Direito a partir da Arte, “embora sob um âmbito evidentemente não normativo” (GODOY apud OLIVO, 2005, p. 23-24), na medida em que a Literatura possibilita um enfoque de época e instituições, “captando o jurídico, como produto cultural” (GODOY apud OLIVO, 2005, p. 23-24). Além disso, a Literatura pode ser também considerada como uma boa fonte de conhecimento do Direito, pois aborda dimensões do fenômeno jurídico que não são tangidas pelos métodos pedagógico-jurídicos tradicionais. Por isso, entende Gary Bagnall citado por Germano Schwartz e Elaine Macedo, que “o Direito é uma empreitada artística” (BAGNALL apud SCHWARTZ; MACEDO, 2008, p. 1018). O mesmo é por demais complexo para se restringir à normatividade. Já Paulo Ferreira da Cunha citado por Germano Schwartz e Elaine Macedo, entende que o Direito é um fenômeno que deve ser analisado a partir de uma perspectiva tríplice, qual seja: técnica, ciência e arte, chegando à seguinte conclusão: “é a arte que comanda a vida do Direito. Ciência e técnica são suas servidoras: mas, como tais, imprescindíveis” (CUNHA apud SCHWARTZ; MACEDO, 2008, p. 1018). 4.2.1 O Direito na Literatura: uma reflexão acerca dos pretensos saberes positivos sobre os quais o direito busca sustentar sua fundamentação Fugindo de crenças em verdades absolutas, impositivas e incontestes, ”um dos grandes motivos para se estudar o Direito na Literatura reside na interpretação” (SCHWARTZ, 2006, p. 50). Como ambos são textos, Direito e Literatura reclamam uma atividade que apure o sentido de suas construções, evidenciando a relação entre o construtor/legislador e o destinatário/cidadão da norma jurídica. Com isto, retirar o fulcro legalista da ciência do Direito é outra forma de se justificar o estudo do Direito baseado na Literatura. De fato, o que os diferencia tem suporte na proposição de que do Direito se espera o comando e da Literatura se aguarda o belo. 83 No entanto, como objeto principal de análise desse estudo, “reduzir essa distância, permitindo o acoplamento entre o sistema jurídico e o sistema da arte, pode restaurar a essência das coisas, visto que as leis nascem das letras” (SCHWARTZ, 2006, p. 50). Veja-se que o estudo do Direito na Literatura é aquele que se apresenta como o mais construído e desenvolvido, pois o acoplamento entre o sistema jurídico e o sistema da arte é latente, visto existir imbricações bastante óbvias possibilitadas pela comunicação entre os textos. Não obstante, temos que o reprocessamento e a influência entre os dois sistemas é algo constante e dinâmico, possibilitando a construção e a aplicabilidade de um novo Direito a partir de paradigmas mais conectados com a sociedade na qual se insere (SCHWARTZ, 2006, p. 50). Parafraseando, a Literatura pode interpelar aspectos do mundo jurídico trazendo uma reflexão acerca dos pretensos saberes positivos sobre os quais o direito busca sustentar sua fundamentação. Como bem adverte François Ost, citado por André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert (2008), entre o “tudo é possível” da ficção literária e o “não deves” do imperativo jurídico, há, pelo menos, tanto interação quanto confronto. Com base em tal entendimento, a inspiração comum em ambos é possível ensejar importantes diálogos: Para Ost é possível extrair três conclusões para o estudo do Direito na Literatura; a) reduz o abismo aberto pelo pensamento analítico, desde Hume, entre os mundos do ser e do dever ser - ou melhor, entre fato e direito -, tendo em vista que o ser sempre aparece já interpretado; b) a experiência do contar constitui, precisamente, a mediação entre o descrever e o prescrever; c) a literatura deixa de ser considerada uma ornamentação, gratuita e exterior, passando a ser entendida como o modo mais significativo de assumir essa estrutura pré-narrativa da experiência comum e suas avaliações implícitas (OST apud TRINDADE; GUBERT, 2008, p. 51). Assim, compreende-se que os inúmeros contornos e detalhes a respeito da obra “Romeo and Juliet” de William Shakespeare são essenciais para o estudo do Direito na Literatura. O que chama mais atenção é o fato de o dramaturgo explorar com considerável sucesso estilístico os procedimentos legais e os temas ligados à própria essência do direito. Nesse sentido, graças ao enredo e a poética do caso, ao revelar os motivos e os sentimentos humanos de cada parte no contexto, tal produção literária, 84 oferece, pois, ao sistema jurídico como um todo, uma observação diferenciada, porém influenciada cognitivamente pelos fenômenos externos. 4.2.2 O Direito como Literatura: caminhos possíveis a partir da analogia dos fenômenos jurídico e literário A sociedade num movimento de constante evolução denota que “a linguagem é uma das formas de comunicação que possibilita o contato entre os sistemas sociais” (SCHWARTZ, 2006, p. 57). Em sendo assim, no caso do sistema jurídico e do sistema da arte, resta claro que ela é decisiva na objetivação dos motivos pelos quais tais sistemas são amplamente orientados. Há um certo consenso para Germano Schwartz (2006) que o mundo das leis compõem-se antes de palavras que de leis. Disso se extrai que a autoconstrução do Direito é permitida pela comunicação (linguagem), seja ela auto-referencial, seja ela uma influência externa amealhada por seu próprio código. Tem-se, assim, que o Direito como Literatura é feito por intermédio da lógica do sistema da arte, e não mais do sistema jurídico, o que não significa, objetivamente, que o sistema jurídico não possa usufruir da autopoiese do sistema da arte. Por outro lado, os avanços da teoria interpretativa possibilitaram a visualização da pluralidade de sentidos que permeiam um texto. Ter a consciência de que cada texto possui uma função específica, portanto, permite compreender os diferentes significados que o Direito como Literatura possuem no mundo das letras. Pode-se objetar também que por mais que um dos sentidos seja valorizado e tido como imediatamente correto, essa relação vem quase sempre de um esforço interpretativo histórico que tende a ressaltar uma determinada interpretação. Diante de tais questões, importante destacar que “a prática jurídica é um exercício de interpretação não apenas quando os juristas interpretam documentos ou leis específicas, mas de modo geral” (DWORKIN, 2005, p. 217). Ronald Dworkin explica que esse espaço aberto para interpretações pode ser facilmente explorado pelo Direito, propiciando uma análise do que é a interpretação em geral. Veja que, a respeito dos aspectos fundamentais entre Direito e Literatura, André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert apontam quatro pontos principais de descompasso, quais sejam: 85 a) O Direito é essencialmente formal, enquanto a Literatura atua no plano criativo, imaginativo. b) A função do Direito é prática: estabilizar as expectativas sociais; a Literatura como arte possui o escopo de inovar, criar, criticar, enfim emocionar. c) O Direito é expressão de ordem, comando; da Literatura esperase o estético, seja este belo ou transgressor. d) Se, por um lado, o Direito voltase para a generalidade e abstração, normalmente atribuídas à lei; por outro, a Literatura se atém ao particular e ao concreto, tendo em vista que todo enredo mostra-se irredutivelmente singular (KARAM; GUBERT, 2008, p. 23). Em tal aspecto, não há mais uma distinção categórica entre a interpretação, concebida como algo que revela o real significado de um obra, e a crítica, concebida como avaliação de seu sucesso ou importância. Por conta disso, existe uma grande diferença entre dizer quão boa pode se tornar uma obra e dizer quão boa ela é. Obviamente, a conexão existente entre Direito e Literatura é recíproca, valendo-se a interpretação de grande empreendimento entre ambas. Como se vê, as contribuições trazidas por uma maior problematização do exercício hermenêutico são de grande importância, mas pelo próprio teor prático e regulador do Direito encontram limites no texto da lei, uma vez que são possíveis diversos sentidos; entretanto, alguns deles são vedados pela própria literalidade do texto. De tal sorte, as contribuições da filosofia contemporânea, do estudo da linguagem e da teoria literária são de grande valia para a própria interpretação do Direito, entendido sob uma perspectiva mais alargada e crítica. Por que então estudar Direito como Literatura? Nas célebres palavras de Germano Schwartz (2006), ainda não se pode olvidar que o Direito é um “contar” de histórias, mas, sobretudo, resulta factível que a observação do Direito como Literatura pode trazer novos parâmetros de interpretação da “realidade” jurídica, sendo capaz de inovar em um terreno que há muito carece de novas ideias. 4.2.3 O Direito da Literatura: uma observação que se limita a cuidar das leis e das normas jurídicas que protegem a atividade literária Nas palavras de Germano Schwartz: 86 O Direito da Literatura é o ramo do sistema jurídico que já recebeu as informações necessárias advindas do sistema da arte e do sistema político. As leis e normas jurídicas que protegem a atividade literária são objeto central da observação nesse plano (SCHWARTZ, 2006, p. 60). Tal preceito temático trata antes de mais nada de uma reorganização de conteúdos e diplomas legais referentes à Literatura, e que há muito, são abordados nos mais diversos subsistemas jurídicos. Pode-se concluir também que o Direito da Literatura compreende: a) as relações jurídicas do exercício literário; b) as normas que regulam a criação e a difusão da obra literária e os direitos por ela gerados, tais como a censura (proibição); a liberdade artística e de expressão; os delitos relativos à liberdade de expressão e, por fim, o direito da propriedade intelectual (SCHWARTZ, 2006, p. 61). Neste passo, cabe esclarecer que o Direito da Literatura pode suscitar interações frutíferas, conduzindo o debate relativo às possibilidades e limites da compreensão do Direito. Neste sentido, Germano Schwartz (2006) identifica que o Direito da Literatura já possui uma vasta teia de interesses estabelecida sob outros nomes e códigos, além de pressupostos metodológicos e marcos teóricos que orientam a formação de um fenômeno jurídico, contribuindo paulatinamente para sua interpretação. O Direito da Literatura nada mais é do que uma abordagem mais estrita, limitando-se a reunir questões específicas e pertinentes ao âmbito normativo, mediante a investigação da tutela jurídica dada à Literatura. Há destaque aqui, portanto, para as questões referentes à propriedade intelectual, responsabilidade do escritor (civil e penal), o direito de imprensa, difamações e injúrias (direito penal) e direitos da personalidade, bem como os direitos autorais. Por fim, resta bastante claro que uma outra visão, vinda da Literatura, é capaz de reduzir a dicotomia entre o homem e seu mundo. A Literatura terá o condão de ofertar ao Direito uma comunicação bastante preciosa, ou seja, ela é um testemunho da realidade. E é justamente nesse ponto que o auxílio da Literatura pode ser útil ao sistema jurídico como um todo. 87 4.3 Um sentido claro para o Discurso Jurídico de William Shakespeare Diante das três perspectivas analisadas no decorrer desse trabalho (Direito na Literatura, Direito como Literatura e Direito da Literatura), optou-se por aprofundar na obra shakespeariana o estudo do Direito na Literatura. Mas por que então estudar o Direito na Literatura na obra “Romeo and Juliet”? É simples, a obra shakespeariana foi escolhida por interessar ao Direito, e mais que isso, por analisar a questão do Direito como garantia de pacificação e conciliação dos conflitos entre rivais na Itália renascentista. Destaca-se que o estudo do Direito na Literatura é aquele que se apresenta como o mais construído e desenvolvido, pois à Literatura é atribuído um papel criador capaz de provocar mudanças ao interrogar determinados valores estruturantes do Direito, auxiliando no sentido de redefini-los. Essa conectividade entre Direito e Literatura é bastante reveladora na narrativa literária, haja vista estar próxima de William Shakespeare na obra “Romeo and Juliet”. Ao se analisar o “sentido adequado” na “intenção do falante”, que será reconhecido por aquele incumbido da decisão, Ronald Dworkin (2005) abre espaço para o atravessamento de conceitos oriundos da escola francesa da Análise do Discurso. As temáticas a respeito da fala, do discurso, da linguagem, possuem sempre sentidos plúrimos, dependendo de quem os realiza, em que momento, em que espaço, em que contexto, em que tonalidade e em que forma. Veja-se que a Análise do Discurso é um instrumental importante para compreender o sentido do discurso shakespeariano e sua atualização contemporânea18. E isto ocorre basicamente porque, como explica Germano Schwartz (2006), o estudo do Direito baseado na Literatura retira o fulcro legalista da ciência do Direito. Partindo da premissa de que nas obras 18 A Análise do Discurso pode contribuir para revelar aspectos não percebidos do discurso de Shakespeare e, em especial, do seu discurso jurídico, seja através da linguística, do materialismo histórico ou da psicanálise. Buscou-se verificar se a Análise do Discurso é uma disciplina cuja formatação teórica e metodológica fornece instrumental para se estudar, a partir de Shakespeare, as relações existentes entre o Direito e a Literatura, independentemente a que escola se situe o autor (Literatura in Law ou Law in literatura). É possível apreender do conjunto da obra informações suficientes para debater qualquer caso em qualquer curso de Direito Civil, Direito Penal, Direito do Estado, Direito Constitucional, Teoria da Justiça, Direito Comercial, História do Direito, Filosofia do Direito, Hermenêutica, Processo Civil, Processo Penal, Direito Financeiro, Lógica Jurídica, Psicologia Jurídica, Direito Jurisprudencial e tantas quantas forem às disciplinas que venham a integrar os currículos das faculdades de direito, aqui ou em outro lugar (OLIVO, 2005, p. 60). 88 literárias é possível encontrar respostas pertinentes ao direito e à justiça, torna-se necessário estabelecer como estudar o Direito a partir da Literatura. É interessante notar que Harold Bloom disserta sobre duas maneiras de explicar a grandeza de Shakespeare no contexto do Direito na Literatura. A primeira revela que: [...] no entendimento dos que pensam ser a Literatura, basicamente, linguagem, a primazia de Shakespeare é um fenômeno cultural, produzido a partir de crises sociopolíticas. Sob essa ótica, Shakespeare não escreveu suas próprias obras: estas foram escritas pela energia social política e econômica da época (BLOOM, 2001, p. 42). Do mesmo modo, ressalta que: A outra maneira de estudar a perene supremacia de Shakespeare é bem mais empírica: parte da noção de que Shakespeare é universalmente considerado o autor que melhor representou o universo concreto, em todos os tempos. Tal noção tem sido corrente, pelo menos, desde meados do século XVIII, e, embora desgastada, permanece procedente, por mais banal que os teóricos do ressentimento a considerem (BLOOM, 2001, p. 42). Por outro lado, ao se examinar o contexto histórico, social, político e econômico da obra “Romeo and Juliet”, é possível verificar que Shakespeare exerce sobre nós uma influência bastante singular em termos de tempo e lugar. Na sequência, Harold Bloom acentua ainda que “quase todo o conhecimento de Shakespeare, que parece imensurável, foi gerado a partir dele mesmo” (BLOOM, 2001, p. 881), o que, em última instância, justificaria a sua genialidade. Nesse sentido, é possível dentro da análise do discurso jurídico compreender a universalidade e perspicácia de Shakespeare, em especial sua capacidade inigualável e privilegiada de conhecer não só a história, mas o momento vivido pelos atores de sua época. Importante mencionar que Shakespeare contempla quase todos os conceitos “tradicionais” de seu tempo, mas não se deixa levar por nenhum deles. Quem consegue ler as peças e reflete sobre as montagens que assiste, dificilmente, chegará à conclusão de que Shakespeare era protestante, ou católico, ou mesmo um cristão cético. O poder de cognição de Shakespeare é o que há de mais difícil de ser apreendido e admitido pelos estudiosos, pois apresenta suas reflexões de modo oblíquo, raramente permitindo a presença de um representante ou porta-voz, entre seus personagens. 89 Figura 13 - Uma visão abrangente do Direito e Literatura Fonte: Medved, 2010 Portanto, torna-se claro identificar que a busca da produção do sentido no discurso jurídico é mais uma possibilidade que se abre quando o objeto do estudo é o texto literário. Com bastante evidência, Shakespeare revela ter a percepção de como funcionam as articulações do poder, sejam movidas por sentimentos ou até mesmo expectativas das mais variadas. Com expressivo talento, Shakespeare foi audacioso em enumerar nas suas obras vários conceitos a respeito da própria natureza humana. O dramaturgo viveu a vida dos seus dias, com os acontecimentos historicizados. Diante de todas as perplexidades vividas, não foi um recluso monge eremita que recebeu a iluminação dos céus em momentos sublimes de revelação. Aprendeu a valorizar a Literatura com certa beleza através dos encantamentos do mundo, produzindo assim, um cruzamento de ideologias fundantes e essenciais. Nesse sentido, por retratar de forma lúcida os diversos aspectos da vida humana, primordialmente na compreensão do indivíduo e de 90 suas paixões, ou seja, o pensar sobre situações possíveis e perspectivas realizáveis, Shakespeare consegue ser interpretado em qualquer tempo. Por seu turno, dentro da análise do discurso jurídico, reside uma explicação possível por que tantos autores no campo jurídico, sociológico, político, filosófico ou literário, conseguem interpretar Shakespeare séculos mais tarde. É certo que o próprio dramaturgo historicizado possibilita que tribunais judiciários sentenciem hoje tomando como referência fatos e proposições contempladas em suas obras. Embora já afirmado, apesar do sentido da racionalidade inaugurada pela modernidade, Shakespeare tem na ordem jurídica a sua mais elevada expressão simbólica, pois os textos e obras do autor podem ser referenciados em um estudo como o aqui proposto sobre o Direito na Literatura, que por sua vez guarda estreita relação com outras ciências. No tocante à discursividade, o que está em questão é o sentido do argumento que Harold Bloom encontra para explicar o preciosismo de Shakespeare. É plausível, entretanto, que o fator possibilitador da atualização da obra shakespeariana esteja em sua historicidade e sua cultura, sendo impossível compreendê-la fora do contexto global de uma época. Ora, mas uma dúvida remanesce: por que Shakespeare alcançou tanto sucesso com a obra “Romeo and Juliet”? Seu sucesso foi à custa do que realmente se encontrava e se encontra em sua obra, mas que nem ele nem seus contemporâneos podiam, lucidamente, perceber e avaliar no contexto cultural da época. Afinal, o que Shakespeare conseguiu foi captar as imagens e sentimentos do seu tempo, mais do que isso, segundo Mikhail Bakhtin: [...] os tesouros de sentidos colocados em sua obra foram elaborados e acumulados no correr dos séculos, e até dos milênios; estavam ocultos na língua - e não só na língua escrita, mas também naqueles estratos da língua popular que, antes de Shakespeare, não haviam penetrado na Literatura ocultos na variedade dos gêneros e das formas da comunicação verbal, nas formas poderosas da cultura popular (sobretudo na carnavalesca) que se moldava ao longo dos milênios, dos gêneros do espetáculo teatral (mistérios, farsas, etc.), nos temas que remontam a uma antiguidade pré-histórica, e, finalmente, nas formas de pensamento. Shakespeare, como todo artista, construía sua obra a partir de formas carregadas de sentido, repleta desse sentido, e não a partir de elementos mortos (BAKHTIN, 1997, p. 365). 91 De forma brilhante, como pressuposto metodológico, Shakespeare na obra “Romeo and Juliet” procura demonstrar que os atores podiam não apenas percorrer o mundo, mas passar livremente do mundo da ação ao mundo das impressões interiores. Com isso, deu-se vida aos personagens graças às metáforas extraídas do mundo exterior, inclusive com aspectos distintivos entre eles. Sendo assim, conforme assinala Vera Lúcia Gonçalves Felício, elementar transcrever que sua força teatral: “[...] foi a de representar o homem sob todos os seus aspectos. Se o espectador se identificava emocional e subjetivamente às situações e aos personagens, ao mesmo tempo julgava a sociedade circundante, politicamente.” (FELÍCIO, 1992, p. 54). Em outras palavras, o sentido para o discurso jurídico de Shakespeare parte por um caminho nobre de construção de novos paradigmas, onde os valores e categorias tradicionais do Direito necessitam de “releituras”. Nesse contexto, a Literatura ocupa um papel essencial ao provocar a ciência jurídica a olhar para si mesma, revendo as suas posturas formalistas. E é nesta perspectiva de produção de um conhecimento crítico e reflexivo que o diálogo entre Direito e Literatura propiciam um estudo da sociedade em seus múltiplos aspectos, permitindo, na esfera universal, um olhar específico para o problema que se quer enfrentar. Assim, diante da complexa interação entre homem e sociedade na obra literária “Romeo and Juliet”, o estudo se cerca de objetivos mais específicos, visando uma releitura da tragédia pela ótica do justo meio, possibilitando a compreensão do Direito na Literatura, e sua prática no contexto global da obra. Além disso, desdobra-se o levantamento dos aspectos concernentes à prática histórica do Direito, a natureza da legislação criada para se conter os conflitos e seus resultados, a relação direta e mútua existente entre o Direito e a política e a política e a sociedade, bem como a forma como a literatura shakespeariana retrata as questões jurídicas a partir da ilustração de situações contidas no relato principal da obra. 92 4.4 A possibilidade do estudo do Direito em William Shakespeare: indicativos sob a ótica de um texto literário Não é demasiado referir que, na grande maioria das peças escritas por William Shakespeare, em especial “Romeo and Juliet”, encontram-se indicativos para o estudo do Direito. Sendo um autor dramaturgo dotado de grandes virtudes intelectuais, a esse respeito alude Arnold Hauser que a vida e a produção literária de Shakespeare podem ser classificadas em quatro fases distintas. Na solene fase inicial, o poeta se conforma com o gosto humanístico elegante e escreve para os círculos palacianos aristocráticos. Em um segundo momento, com a mutação para as ruas e para o teatro vivo, popular, Shakespeare amplia seu otimismo, escrevendo as grandes peças históricas e políticas, nas quais a ideia de monarquia é exaltada. Na passagem do século começa o terceiro e trágico período na evolução de sua arte, onde ele escreve direcionado para o grande público. Por fim, ante o aumento da violência e dos ataques promovidos por autoridades civis e eclesiásticas a toda e qualquer atividade teatral, segue-se um período de resignação e de calma sossegada com tragicomédias (HAUSER, 1998, p. 532-542). De acordo com a classificação proposta por Arnold Hauser, é possível situar o contexto da obra “Romeo and Juliet” na segunda e terceira fases. Todavia, com bastante evidência e visibilidade, entre o terceiro e o quarto período, Arnold Hauser (1998) identifica a principal transformação ocorrida no modo de ver o mundo de Shakespeare. Diz o historiador que na virada dos anos 1.500 para os 1.600: [...] na época da completa maturidade e do mais alto êxito, a sua filosofia sofreu uma modificação que, fundamentalmente, alterou todo o seu conceito da situação social e os seus sentimentos para com os diferentes setores da sociedade. A sua conformidade anterior com as condições existentes e o seu otimismo, no que respeita o futuro, foram minados, e, muito embora ele se mantivesse fiel ao princípio das ordens, aceitasse a estabilidade social e rejeitasse o ideal heróico da cavalaria feudal, parece haver perdido a confiança no absolutismo maquiavélico e numa economia de poder de compra implacável (HAUSER, 1998, p. 537). De qualquer modo, uma abordagem atualizada sobre os costumes, as relações sexuais, a monarquia, o uso e o desuso das leis, a criminologia, dentre várias outras acepções são constantes na literatura shakespeariana. Tanto para a Literatura quanto 93 para o Direito, a obra “Romeo and Juliet” é uma mina inesgotável de riquezas, pois não apenas os críticos da Arte e Literatura, mas também os juristas e os economistas puderam extrair dela dados e documentos da maior relevância. Sob o prisma enriquecedor da possibilidade do estudo do Direito em Shakespeare, é facilmente identificado na obra uma incalculável ordenação de conceitos, significados, princípios, valores e regras. Para Harold Bloom (2001), a influência de Shakespeare, espantosa na Literatura e no Direito, é ainda maior na vida real, tornando-se, assim, algo precioso, valoroso, chegando a concorrer com as escrituras sagradas (ocidentais e orientais), na formação do caráter e da personalidade humana. Outro detalhe importante a ser ressaltado é que em Shakespeare há sempre um resíduo, algo não explorado, por mais magnífico que seja o desempenho, mais perspicaz que seja a análise crítica, seja no estilo antigo ou audacioso da modernidade. Porém, para compreender Shakespeare no sentido jurídico, alegórico, irônico, artístico, político, social, privilegiando a história do Direito, será necessário um exercício sem fim, uma “transcendência literária” onde qualquer pessoa ficará exaurida muito antes que os conteúdos se esgotem. A esse respeito, o debate proposto por Shakespeare na esfera do Direito é ainda mais intrigante, pois ao analisarmos a prática jurídica na tragédia “Romeo and Juliet” temos que a decisão do Prince Escalus (Príncipe Escalo) era suprema e legítima, restando apenas apelação à sua misericórdia. Muito embora a Igreja possuísse uma posição privilegiada e de destaque no contexto da obra, era o monarca, como chefe de Estado, que geria a vida de todos os cidadãos veronenses. Através de um poder supremo, buscava-se controlar a vida das pessoas num plano social, econômico e político. Em outras palavras, era necessário levar em conta as regras de organização social, tendo o monarca no topo da cadeia hierárquica, para a manutenção da sociedade. Naquela época, Shakespeare tornou público o debate sobre as grandes questões que envolviam a Itália Renascentista, quais sejam, o direito de expressão, o poder, a rivalidade, a luta de classes, o bem, o mal, a hegemonia, a legitimidade, a justiça e etc. 94 Pensar a respeito da possibilidade do estudo do Direito na obra shakespeariana é abrandar a originalidade dos personagens idealizados pelo dramaturgo. A obra “Romeo e Juliet” contêm um elemento transbordante, um excesso que vai além da representação, um exemplo extraordinário de criação e de consciência do ser humano. Em especial, os personagens não se revelam, mas se desenvolvem, e o fazem porque têm a capacidade de se autorecriarem. Personagens shakespearianos são papéis a serem representados por atores, mas são, também, muito mais, verdadeiros enigmas a serem estudados e interpretados pelo Direito. Todavia, é justamente nesse ponto que o Direito, ao contrário da Literatura, assume a forma de um empreendimento político, cuja finalidade geral é coordenar o esforço social e individual, resolver disputas sociais e individuais e assegurar a justiça entre os cidadãos e entre eles e seu governo. Sobre esse tópico, não é demasiado referir que assim como as obras literárias, as leis podem conservar sua relevância e autorizar que os intérpretes atualizem o sentido de suas expressões conforme passem a plasmar outros valores no contexto da mudança social. Nesse sentido, acaso se consiga equalizar a distância entre Direito e Literatura, poderá se reduzir ao máximo a dicotomia existente entre o homem e seu mundo. E mais, o auxílio da Literatura pode ser bastante útil ao sistema jurídico, sensibilizando o hermeneuta a conjugar o seu conhecimento técnico ao sentimento de humanidade. Por isso, importa observar também que a Literatura é, antes de tudo, um modo de pensar a vida que complementa o conhecimento prático e acadêmico, unindo o autor ao leitor e vice e versa. No entanto, analisar a obra “Romeo and Juliet” de William Shakespeare no contexto do Direito na Literatura torna-se algo mais ambicioso à medida em que a Literatura tem (primariamente ou substancialmente) um propósito cognitivo. 95 5 DO TEATRO ELISABETANO AO DIREITO COMO GARANTIA DE PACIFICAÇÃO E CONCILIAÇÃO DOS CONFLITOS ENTRE RIVAIS NA ITÁLIA RENASCENTISTA: UMA ANÁLISE DA PRÁTICA JURÍDICA NA TRAGÉDIA “ROMEO AND JULIET” Dentro da vasta gama de possibilidades que a ciência do Direito oferece em termos de objetos de pesquisa, a propósito, deve o Direito regular a vida humana em sociedade, estabelecendo para esse fim normas de conduta que devem ser observadas pelas pessoas. Na prática, tem por finalidade a realização da paz e da ordem social, inclusive, atingindo as relações individuais das pessoas. Além disso, deve guardar relação com as ocorrências históricas e fatos diversos, mostrando sempre sua evolução através dos tempos. Pois bem, partindo da tendência moderna inserida no contexto da grande diversidade de temas que cercam a ciência jurídica, o estudo a respeito do Direito como garantia de pacificação e conciliação dos conflitos entre rivais na Itália Renascentista, mais especificamente na obra “Romeo and Juliet”, se mostra bastante interessante do ponto de vista crítico e científico, pois permite identificar através de relatos diferenciados das fontes tradicionais da época, os diversos modos como a prática do Direito e seus aspectos filosóficos evoluíram ao longo do processo histórico. Nesse contexto, os subsídios históricos têm de ser colhidos em fontes que na maioria das vezes ultrapassam os simples documentos históricos e buscam outras alternativas que tragam luzes a respeito da prática jurídica e da forma como se estabeleceram ao longo do tempo. De modo interessante, são justamente os relatos literários épicos, trágicos, dramáticos ou romanceados, tanto em prosa quanto em poesia, que trazem indicações concretas e ilustradas a respeito da forma como o Direito foi praticado ao longo da história. Um estudo desse porte torna-se importante do ponto de vista da prática e da filosofia jurídica, pois evidencia as situações concretas na qual o Direito encontra aplicabilidade prática, permitindo ao mesmo tempo compreender até que ponto ele também influenciou ou sofreu influência dos jogos políticos que se estabeleciam no cenário socioeconômico em fins da Idade Média e início da era Moderna. Não obstante, dentre os inúmeros estudos já realizados acerca da famosa obra literária “Romeo and 96 Juliet”, pouco ou nenhum deles se debruçou sobre a questão da prática jurídica e da sua significância no contexto histórico da trama. Assim, mais do que uma obra clássica, “Romeo and Juliet” fornece subsídios para se desvendar, pela pesquisa científica, intrincadas situações relacionadas à jurisprudência na época, importante para permitir o seu entendimento e compreensão. Tal estudo permite identificar através da releitura da imortal tragédia shakespeariana “Romeo and Juliet” a complicada situação de rivalidade existente entre os dois importantes clãs familiares da cidade de Verona na Itália - os Montague (Montéquios) e os Capulet (Capuletos) - e o papel assumido pelo Direito no contexto social da época entre as partes envolvidas, numa proposta pacificadora e conciliadora do conflito existente. 5.1 Shakespeare e a Lei: uma viagem através do tempo No sentido legal, a tragédia épica “Romeo and Juliet” é para Shakespeare um verdadeiro testemunho da prática judiciária de seu tempo. A obra aborda dentre muitos outros fatores a questão da lei, da ordem autoritária, dos conflitos existentes e da administração da justiça. Sob esta análise, em especial, o contexto de disputas envolvia uma pluralidade de aplicações práticas que traduziam unicamente a motivação dos atores sociais em estabelecer limites para a organização da sociedade. A lei e a prática jurídica foram ao longo da história influenciadas pela maneira de pensar e de fazer das sociedades, atribuindo-se ao Direito uma larga significação. Nesse sentido, o mito da genialidade natural de Shakespeare, que o tempo provou ser verdade, parece ser a resposta mais provável para explicar a sua relação tão íntima com a lei. Desse modo, tem-se que as questões do poder (como governar), e da justiça (como realizar o ideal de igualdade entre os súditos), são recorrentes em Shakespeare. Constata-se, pois, um aspecto importante que pode ser deduzido conjuntamente na obra “Romeo and Juliet”, deixando transparecer a existência de uma noção articulada sobre os temas jurídicos, sobretudo os relacionados ao poder, à solução dos conflitos, à forma de governo e à justiça, o que possibilitaria sustentar a tese segundo a qual há em 97 Shakespeare uma lei que reflete não apenas a sua época, mas anuncia o surgimento de um Direito moderno, baseado na predominância da razão humana. Na visão shakespeariana, a lei é em si uma forma de história, ou seja, um registro do progresso civil da sociedade. Com bastante evidência, de todas as coisas que o dramaturgo fazia para o seu público em geral, a mais surpreendente foi analisar o sentido da lei no contexto da história. Para a compreensão de questões jurídicas em suas peças, a lei era um de seus principais sustentáculos, pois envolvia em grande medida diversos componentes numa somatória de atributos. Conforme afirma Andrew Zurcher (2010), os primeiros estudiosos de Shakespeare, entre eles Edmund Malone, George Steevens e Churton Collins, admitiram seu domínio às questões jurídicas devido à sua precisão em revelar ao público em geral a importância da lei para a sociedade. Ora, como poderia alguém filho de um fabricante de artigos de couro e produtor agrícola e de uma doméstica (ambos sem escolaridade), ter reconhecida formação jurídica e saber tanto sobre a lei? Em verdade, conforme afirma Laurie Rozakis: Shakespeare veio de uma sólida família de classe média. O seu grande sucesso no mundo jurídico é fruto de uma objetividade impressionante, o tipo de objetividade e equilíbrio que permite ao leitor encontrar uma variedade de filosofias e posições nos escritos legais (ROZAKIS, 2002, p. 4-6) A esse respeito, analisa Laurie Rozakis (2002) que o dramaturgo pintou mais vivamente a majestade e o poder da lei e da justiça. A abrangência de seu pensamento jurídico assentou em seu público uma receptividade para múltiplos pontos de vista. Como um verdadeiro jurista em suas obras, os filamentos de seu pensamento são surpreendentes em variedade, chegando a estabelecer para os seus inúmeros argumentos uma composição de gênero fascinante. O uso de termos jurídicos como metáforas é totalmente preciso, demonstrando o tipo ideal de compreensão mais aprofundada com o seu uso. De fato, a interpretação da lei, da história e da filosofia transcende a mera reescrita. Porém, tem-se que o principal objetivo da lei para Shakespeare é a preservação da ordem num contexto tão amplo e variado, onde o alcance da norma é considerado em função da realidade que a originou. 98 Na prática, em Shakespeare, a lei se mostra como o conjunto de instruções ou de restrições para os atores (pessoas, grupos e instituições) que buscam objetivos, compartidos ou divergentes. Assim, quanto mais o direito e o sistema de justiça se transformam em órgãos de integração social, gerando subordinação recíproca e opondo-se à alteração das regras, mais grave e generalizado tende a ser o impacto das perturbações e dos deslocamentos de interesses que as mudanças costumam trazer em seu âmago. Por sua vez, Gary Watt e Paul Raffield (2008) privilegiam o pensamento shakespeariano quando uma lei é feita, por ser uma solução de conflitos de interesse, onde seu êxito depende da correspondência entre a sua vigência e as suas estruturas sociais, como condição sine qua non de eficácia, permitindo novos sentidos ou significados, mesmo quando mantidos inalterados as suas estruturas formais. Havia naquela época, uma semelhança muito grande entre a representatividade da cidade de Verona na Itália na obra “Romeo and Juliet” e a Inglaterra de Shakespeare. Pois bem, qual seria então esta provável semelhança? A íntima relação existente era que na Inglaterra a palavra da rainha Elizabeth I era a lei, assim como a do Príncipe (Escalo) em Verona na Itália. De forma bastante simplificada, entendia-se que a lei era a própria expressão da justiça ou do justo. Nota-se, portanto, conforme esclarece Pedro Scuro Neto (2010), que passo a passo o Direito desenvolve-se em Shakespeare no sentido da legalidade, nem sempre de forma “justa” ou equivalente, mas paralela à evolução do caráter, dos objetivos e da vontade da sociedade que o criou. Por seu turno, só assim é possível afirmar que “o Direito emana do grupo social; as normas jurídicas expressam a maneira pela qual esse grupo entende devam ser estabelecidas as relações sociais” (LÉVY-BRUHL, 1988, p. 38). Porém, tomando por base os relatos históricos descritos pelo dramaturgo na sua imortal tragédia, percebe-se nitidamente que a lei é tida como uma garantia de pacificação e conciliação dos conflitos políticos existentes entre as duas famílias rivais na cidade italiana de Verona no período Renascentista. Diante do quadro de subversões e ações ambivalentes suplantadas no contexto da obra, premia-se a relação existente entre os súditos, a Igreja e o Estado, expondo um verdadeiro 99 contraste vivido pelos organismos sociais na luta por legitimidade. De igual lado, Shakespeare atribui à lei um ingrediente secreto ao estudo e prática do amor e da vida, sempre em conformidade com a razão, com a integridade, com o direito e, principalmente, com o justo. 5.2 O Direito, a justiça e os métodos de solução de conflitos na obra “Romeo and Juliet” de William Shakespeare Direito e justiça se manifestam por meio das pessoas e se perpetuam no tempo devido às necessidades e demandas sociais. Dadas às complexidades do mundo exterior, é imprescindível que as pessoas sejam reconhecidas em seus contextos históricos e culturais de acordo com suas especificidades. Tanto o Direito como a justiça exercem funções sociais específicas, estabelecem e mantêm as condições genéricas de coercibilidade, controle social, consenso e interdependência, contribuindo para a existência e a preservação do sistema social. Por força dessas premissas, ressalta-se que não há como considerar qualquer sistema jurídico divorciado da realidade social. As soluções são demarcadas em importância pelo ponto de partida do reconhecimento do problema, relacionando-se sistema jurídico e realidade social, de modo que possam transcender reformas que respondam efetivamente aos anseios sociais. Em decorrência desses postulados, tais sistemas devem preencher certas condições ou pré-requisitos necessários à sobrevivência da sociedade. Por assim dizer, Direito e justiça mediam entre interesses políticos e econômicos, entre a ordem normativa da sociedade e a cultura, estabelecendo e mantendo interdependência, e se constituindo em fonte de controle social, consenso e coerção. Todavia, quanto aos resultados esperados, considera-se fundamental a superação de obstáculos para a efetiva utilização do sistema jurídico estruturado em prol da solução de conflitos e da garantia de direitos. Esse resultado é que permite, mais ou menos, a promoção da justiça social e, por conseguinte, o fortalecimento do Estado. 100 Sob o prisma existencial do homem, Direito e justiça são conceitos correlativos e abrangentes para a estruturação do consenso e preservação da ordem na sociedade. Conforme afirma Goffredo Telles Júnior: A sociedade vive sob uma constelação de normas, a imensa maioria das quais normas jurídicas, que autorizam quem foi lesado a exigir, por meios competentes, que as regras sejam cumpridas, o mal sofrido reparado, a obrigação cumprida, as coisas repostas no estado em que estavam, ou, em caso de crime, que uma penalidade seja imposta ao seu infrator (TELLES JÚNIOR, 2001, p. 44). A todo instante, geralmente sem perceber, o ser humano inspira-se em normas que servem de guia ou de modelo. Todas as ações, desde os pensamentos e sensações mais íntimas, até os gestos e atitudes mais evidentes submetem-se a regras exteriores. A partir do momento em que vivemos uns ao lado dos outros, temos necessidade de regras de conduta, pois não há sociedade possível sem haver uma ordem. Para compreender o que é a regra de conduta é necessário conhecer o fim a que ela se propõe. Este fim é permitir o bem-estar e a vida em sociedade. Por extensão, a exemplo disso, a ideia inspiradora na ordem vislumbrada por Shakespeare na obra “Romeo and Juliet” é bastante coerente, diante da diversidade de situações empreendidas na época. Na realidade, o dramaturgo tenta de algum modo proporcionar a felicidade social de seus personagens, isto é, satisfazer as necessidades reconhecidas pela autoridade do Príncipe como necessidades dignas de serem satisfeitas. Tais condições muito embora aparentemente idealizadas, são contrastadas pela situação conflituosa existente no bojo da sociedade veronense. Porém, paralelamente a isso, importante registrar que Shakespeare ao escrever sua obra, estava inserido no contexto histórico da Inglaterra da “Época de Ouro”, governada por Elizabeth I. Surgem, pois, não obstante, várias indagações que premiam a obra do dramaturgo inglês. Nesse aspecto, qual seria a relação de Elizabeth I com a obra que aqui se propõe? Como Elizabeth I teria influenciado Shakespeare ao ponto de percebermos traços daquela monarca na vida de Shakespeare, dentro de uma tragédia de amor deste autor? Ou melhor, teria essa monarca influenciado Shakespeare? E mais, seria possível compreender o Direito como garantia de pacificação e conciliação dos conflitos entre rivais na obra shakespeariana? Talvez Shakespeare julgasse impossível criar algo melhor, mas Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta) nessa linha lírica é 101 sublime, seja na própria obra, seja em toda a literatura mundial, como visão de um amor recíproco e incondicional que perece por seu próprio idealismo, por sua própria intensidade. 5.2.1 Mecanismos de controle e regulação: os conflitos sociais na esfera do Direito Os inúmeros embates sociais, as lutas de classes, as revoluções políticas, as reformas em geral, os pactos constitucionais nascidos de crises e os conflitos historicamente significativos, mostraram a vitalidade e o peso da relação entre a cultura dos direitos e a pressão dos movimentos sociais para a criação de formas institucionais, regimes, governos e processos democráticos ao longo da história. Na base dessas constatações, as estruturas da sociedade diferem conforme o status, a situação, a condição dos atores, assim como de acordo aos papéis e aos estratos sociais, aos valores e interesses, comuns ou divergentes. De acordo com Pedro Scuro Neto: Esses elementos contribuem não apenas para diferenciar as estruturas, mas também para expor os indivíduos e instituições nelas situados a pressões diferenciadas, que os sujeitam de forma diversa ao potencial desorganizado e às tendências desviantes da totalidade da estrutura. O ator, dependendo da sua posição na estrutura social, é mais ou menos exposto às contingências da conduta desviante e mais ou menos vulnerável às suas consequências (SCURO NETO, 2010, p. 213). Com efeito, explica Pedro Scuro Neto (2010) que o controle social é nessa medida um conjunto de sanções positivas e negativas, especificadas durante o processo de socialização e seus mecanismos, que agem desde cedo para incutir na personalidade valores, normas e modelos normativos, conformando a capacidade individual de estabelecer juízos morais. Os conflitos são inerentes ao convívio social e cada grupo encontra uma maneira de resolvê-los. Dentre as organizações formais que sustentam a ordem normativa, a derradeira é o Estado. Como um órgão regulador, a ele compete garantir aos sujeitos o exercício aos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça. Entretanto, para sustentar a ordem normativa, 102 o Estado regulamenta os atos que dela desviam ou possam colocar em risco a sua estabilidade. Nesse sentido, para minimizar os atritos existentes que inevitavelmente resultam dessa seleção criteriosa em termos, o Estado propõe soluções de compromisso cuja expectativa de existência pressupõe a resolução da controvérsia. De acordo com Hans Kelsen: Só uma ordem dessa espécie está em posição de assegurar a paz social numa base relativamente permanente. E, apesar de o ideal de justiça em seu sentido original [...] ser razoavelmente diferente do ideal de paz, isto é, ausência de perturbação, existe uma tendência definida de identificar os dois [...] ou de, pelo menos, substituir o ideal de justiça pelo de paz (KELSEN, 1992, p. 21). Através dessa análise, Pedro Scuro Neto (2010) conclui que todas as sociedades, sem exceção, são governadas por normas. Nas simples ou “primitivas”, costumes, moralidade e Direito articulavam-se em uma unidade objetiva, formando um só contexto homogêneo. Com bastante evidência, impregnado de moralidade e costumes, o Direito era aplicado como se fosse uma vontade grupal; era um “estado da consciência coletiva”, em quase nada divergindo do conjunto de crenças e sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade. Na verdade, a conduta humana era coagida por normas que no geral e por definição correspondiam à “maneira de pensar e de sentir” e que todos estavam “acostumados a obedecer”. Paralelamente a isso, dentro da perspectiva sociológica durkheimiana, a existência de uma sociedade só é possível a partir de um determinado grau de consenso entre seus membros constituintes: os indivíduos. Neste aspecto, esclarece Émile Durkheim (2004) que esse consenso se assenta em diferentes tipos de solidariedade social. A solidariedade mecânica prevalece naquelas sociedades ditas "primitivas" ou "arcaicas", ou seja, em agrupamentos humanos de tipo tribal formado por clãs. Nestas sociedades, os indivíduos que a integram compartilham das mesmas noções e valores sociais tanto no que se refere às crenças religiosas como em relação aos interesses materiais necessários à subsistência do grupo, sendo que essa correspondência de valores assegura a coesão social. 103 De modo distinto, existe também a solidariedade orgânica que é a do tipo que predomina nas sociedades ditas "modernas" ou "complexas" do ponto de vista da maior diferenciação individual e social (aplicada às sociedades capitalistas). Além de não compartilharem dos mesmos valores e crenças sociais, os interesses individuais são bastante distintos e a consciência de cada indivíduo é mais acentuada. Essa variabilidade de gêneros sociais sugere não uma única alternativa singular ao Direito posto e imposto pelo Estado, mas uma diversidade de modos de ação regulatória. Para a solução dos conflitos, cabe aqui elucidar a importância da pacificação e conciliação, pois como se sabe, tais mecanismos são auxiliares e indispensáveis ao Direito na solução de controvérsias. 5.2.2 Pacificação: a busca pelo equilíbrio das relações sociais O Direito como um fenômeno social se manifesta face às necessidades e demandas dos indivíduos e/ou grupos sociais. Normalmente, os conflitos surgem em todos os sistemas sociais. Segundo Homero Reis (2011), os conflitos surgem quando há a necessidade de escolha entre situações que podem ser consideradas incompatíveis entre si e defendidas por pessoas distintas. Tais situações de conflito são antagônicas e, por tal, perturbam o fluxo natural dos relacionamentos entre pessoas ou grupos. Contudo, indaga-se o seguinte: por que é importante estudar a pacificação na obra shakespeariana? Sua relevância e tida como fundamental, pois a pacificação deve ser analisada como uma garantia de harmonização das relações sociais, haja vista os interesses em disputa. Nesse sentido, em especial na obra shakespeariana, deve o Direito buscar a efetiva pacificação social das partes em conflito, fazendo desta sua realidade concreta. De qualquer forma, diante do desequilíbrio social, é preciso entender as causas da divergência entre as partes para se solucionar um conflito de interesses. A esse respeito, a busca pela compreensão do outro é característica fundamental na tomada de decisões, tendo em vista que quando não se consegue entender aos anseios das pessoas a decisão tomada será ineficaz. Conforme explica Maria Tereza Fonseca Dias: 104 Deve-se enxergar o Direito como um meio para que as pessoas possam participar e inserir-se na sociedade. O Direito dever ser o instrumento para que os cidadãos sejam atendidos em suas necessidades e resolvam seus problemas de modo consciente (DIAS, 2010, p. 51). De maneira geral, os conflitos uma vez dissecados passam por uma observação gradual e analítica de compreensão mútua e valorização da alteridade. Entre outras palavras, argumenta Maria Tereza Fonseca Dias que “O modelo tradicional de resolução de litígios configura um recorte do conflito, o que significa abordar uma situação prática e individualizada do cidadão a partir do mero enquadramento e subsunção do fato à norma” (DIAS, 2010, p. 61). No entanto, a pergunta ainda remanesce, o que é a pacificação? A pacificação, como escopo primordial na obra “Romeo and Juliet”, nada mais é do que a paz pela força. Em Shakespeare, o soberano detém e exerce o poder absoluto de autodeterminação e auto-organização da sociedade. Seu poder é indivisível e incontrastável, onde faz cumprir as suas decisões emanadas inclusive pela força, se necessário. A vontade soberana apresenta-se e se manifesta através do denominado poder absoluto. A grande figura que retrata este poder na obra shakespeariana é Escalus (Escalo), Príncipe de Verona na Itália. Além disso, etimologicamente, a palavra pacificação, de acordo com Aurélio Buarque de Holanda Ferreira significa: “restabelecer a paz; apaziguar; serenar, tranquilizar, acalmar, abrandar” (FERREIRA, 1999, p. 1470). Por sua vez, significa também harmonizar, apaziguar interesses, ideias, sentimentos opostos; restabelecer a ordem; tranquilizar desentendimentos. Ainda assim, na visão de Fernando Horta Tavares, a respeito do termo pacificação, destaca-se que “é muito mais salutar que se encontrem fórmulas de consenso, para que a pretensão resistida chegue a bom termo, atingindo o ideal de justiça das partes” (TAVARES, 2002, p. 17). Para Norbert Elias (1994), a pacificação é a retirada da violência física das relações interpessoais que passa a ser monopolizada de forma legítima pelo Estado Moderno. Nesse sentido, esclarece que: 105 Tanto nos tempos feudais como nos modernos, a livre competição pelas oportunidades ainda não centralmente organizadas ou monopolizadas tende, através de todas suas ramificações, a subjugar e eliminar um número sempre crescente de rivais, que são destruídos como unidades sociais ou reduzidos a dependência; a acumular oportunidades nas mãos de um número sempre menor de rivais; tende à dominação e, finalmente, ao monopólio. Além do mais, o evento social da monopolização não se limita aos processos em que pensamos normalmente quando se fala em "monopólios". A acumulação de possibilidades que possam ser convertidas em somas de dinheiro, ou pelo menos expressas dessa maneira, foi apenas uma mudança histórica entre muitas outras que ocorreram no processo de monopolização. Processos funcionalmente semelhantes, isto é, que tendem a formar uma estrutura global de relações humanas, na qual indivíduos ou grupos possam, pela ameaça direta ou indireta de violência, restringir e controlar o acesso de outros a certas possibilidades contestadas - tais processos ocorreram, sob grande variedade de formas, em pontos muito distintos da história humana. Nas lutas travadas em ambos esses períodos, correu risco a existência social dos próprios participantes. E é esta a compulsão por trás das lutas. E isso o que torna tais combates, e seus resultados, inescapáveis desde que surge a situação básica da livre competição. Tão logo a sociedade inicia um movimento desse tipo, todas as unidades sociais existentes na esfera ainda não monopolizada - quer se trate de famílias de cavaleiros feudais, empresas econômicas, territórios ou Estados - enfrentam sempre a mesma opção (ELIAS, 1994, p. 133-134). Em resumo, a pacificação no Direito deve ir além da dogmática, de maneira a aproximar as pessoas, implementando e permitindo desenvolver sentimentos de agradabilidade entre os diversos atores sociais. Nessa diretriz, o objetivo precípuo do Direito deve ser, então, a garantia da paz e do equilíbrio das relações sociais, resolvendo conflitos com fins de promover o desenvolvimento do grupo social (sociedade) com redução das desigualdades existentes. É por demais evidente que ao Estado, retratado na obra “Romeo and Juliet” por Prince Escalus (Príncipe Escalo), compete a função de pacificar a sociedade, proporcionando dentre outras alternativas, o fim dos conflitos entre as duas famílias rivais. 5.2.3 Conciliação: uma forma efetiva de solução de conflitos É importante ressaltar que o Direito exerce na sociedade uma função ordenadora, de modo a organizar a coletividade, coordenar os interesses e compor os litígios que surgem na vida social. Para que isso ocorra, é necessário entender a conciliação como uma forma de solução de problemas e conflitos na sociedade, haja vista que as relações sociais estão cada vez mais complexas e, portanto, necessitam 106 de meios mais dinâmicos e adequados às complexidades para a resolução dos problemas entre as pessoas em sociedade. Da mesma forma que a pacificação, indaga-se também o seguinte: por que é importante estudar a conciliação na obra shakespeariana? É simples. Novas soluções precisam ser desenhadas na estrutura social, e para isso é preciso conscientizar-se da existência de outras formas possíveis de dizer o Direito no aspecto decisório. No caso de Shakespeare, a conciliação deve ser entendida como o ato pelo qual duas ou mais pessoas, em desacordo a respeito de um determinado assunto, põe fim à divergência amigavelmente. Pode-se dizer que é a harmonização de algo que se diverge, ou a retirada da oposição havida a respeito de uma coisa ou um fato. Com segurança, o Direito deve ser capaz de reconhecer as partes litigantes e promover as suas garantias. Trata-se a conciliação de um meio alternativo de pacificação social. Lília Maia de Moraes Sales a conceitua como: [...] meio de solução de conflitos em que as pessoas buscam sanar as divergências com o auxílio de um terceiro, o qual recebe a denominação de conciliador. A conciliação em muito se assemelha à mediação. A diferença fundamental está na forma de condução do diálogo entre as partes (SALES, 2003, p. 42). Luiz Antunes Caetano define conciliação como: [...] meio ou modo de acordo do conflito entre partes adversas, desavindas em seus interesses ou direitos, pela atuação de um terceiro. A conciliação também é um dos modos alternativos de solução extrajudicial de conflitos. Em casos específicos, por força de Lei, está sendo aplicada pelos órgãos do Poder Judiciário (CAETANO, 2002, p. 17). Com a conciliação é possível aumentar o potencial comunicativo entre os sujeitos para que se chegue a uma solução do problema de forma mais negociada e menos coercitiva. Não obstante, importa em demasia a satisfação real dos interessados nas questões levantadas e não uma decisão vertical impositiva. Deve-se ter em mente o resgate do diálogo para a reparação ou criação de laços sociais, principalmente quando a conciliação é realizada em setores de vulnerabilidade e exclusão social. De forma pedagógica, a conciliação deve ser pautada no diálogo, na não adversariedade, cooperação e confidencialidade, traços marcantes que delimitarão a 107 garantia efetiva de direitos. Isso porque é importante para que todos os sujeitos possam compreender as situações uns dos outros, e ao final, chegarem a um consenso a respeito da melhor alternativa de solução do caso proposto. A missão nobre da conciliação aliada ao exercício da cidadania rende frutos como a integração social e o restabelecimento do diálogo entre os sujeitos, além disso, a valorização do indivíduo e dos aspectos mais específicos que o envolvem. Enxergar a conciliação como um meio de solução de controvérsias em que as partes resolvem o conflito, através da ação de um terceiro, o conciliador (sujeito que aproxima as partes, aconselha e ajuda, fazendo sugestões de acordo), é de grande valia para o sistema das decisões, pois há notável preservação de valores intrínsecos e extrínsecos das partes em conflito. Nesse contexto, resgatando a ideia do diálogo com a finalidade de um mútuo entendimento com aproximação dos desejos ou integração dos interesses, entende Jürgen Habermas que “a racionalidade dos fundamentos e das tomadas de decisão faz com que os acordos sejam efetivamente válidos, pela intercompreensão e a cooperação entre os envolvidos” (HABERMAS, 1983). Diante de tais argumentos, o que seria então a conciliação? Etimologicamente, a palavra conciliação de acordo com Aurélio Buarque de Holanda Ferreira significa: “pôr em boa harmonia; pôr de acordo; congraçar; reconciliar” (FERREIRA, 1999, p. 520). Em outras palavras, entende-se como um meio alternativo de solução de conflitos em que as partes confiam a uma terceira pessoa (neutra), o conciliador, a função de aproximálas e orientá-las na construção de um acordo. Veja-se que o conciliador é uma pessoa que atua como facilitador do acordo entre os envolvidos, criando um contexto propício ao entendimento mútuo, à aproximação de interesses e à harmonização das relações sociais. Roberto Portugal Bacellar, a respeito deste terceiro, afirma que: [...] deve o conciliador fazer-se apresentar de maneira adequada, ouvir a posição dos interessados e intervir com criatividade - mostrando os riscos e as consequências do litígio -, sugerindo opções de acordo e incentivando concessões mútuas (BACELLAR, 2003, p. 76). Certamente, no que concerne ao termo conciliação, de forma análoga, para que se tenha ideia da importância desse método resolutório de conflito, a ex-ministra Hellen 108 Gracie Northfleet do Supremo Tribunal Federal (STF), no lançamento do Movimento Nacional pela Conciliação ocorrido no dia 23/08/2006 declarou que: A conciliação é o caminho para a construção de uma convivência mais pacífica. O entendimento entre as partes é sempre a melhor forma para que a Justiça prevaleça. O objetivo é uma sociedade capaz de enfrentar suas controvérsias de modo menos litigioso, valendo-se da conciliação, orientada por pessoas qualificadas, para diminuir o tempo na busca da solução de conflitos e reduzir o número de processos, contribuindo, assim, para o alcance da paz social (BRASIL, 2011). Importante é perceber que, em “Romeo and Juliet”, Friar Lawrence (Frei Lourenço) exerce o papel de conciliador, não obstante visto também como o catalisador da esperança dos dois jovens, ameaçados pela situação de conflito familiar existente que os impedia de se unirem. Na temática da obra, é bom frisar que o frade franciscano atua mais como um conciliador, figura que tenta aproximar as duas famílias em conflito, vendo a possibilidade na união de seus filhos. Entretanto, como forma efetiva de solução de conflitos na sociedade, a conciliação objetiva instituir uma nova mentalidade, a qual seja voltada à harmonização dos conflitos, permitindo que as desavenças sejam solucionadas mediante procedimentos simples e eficazes. 5.3 O Teatro Elisabetano no contexto geopolítico da Renascença Embora William Shakespeare seja inglês, a tragédia “Romeo and Juliet” é ambientada na cidade italiana de Verona, em meados do Século XVI, coincidente com o reinado de Elizabeth I e Jaime I, ambos monarcas absolutistas da Dinastia Tudor19. Foi um período de apogeu econômico, cultural e artístico da Inglaterra e que por isso mesmo o denominou “Era de Ouro”. Importante símbolo desse período áureo da história inglesa foi o Teatro Elisabetano. Como dito anteriormente, tal deslocamento espacial se deveu ao fato da Itália ainda guardar resquícios do feudalismo medieval, que na sua estrutura evidenciava a 19 Dinastia de monarcas britânicos que reinou na Inglaterra de 1485 a 1603. A família galesa governou a Inglaterra num período relativamente pacífico, depois da sucessão de guerras com a Escócia, da Guerra dos Cem Anos e da Guerra das Rosas. A economia e o comércio prosperaram apesar dos conflitos internos que marcaram o período (GRANDE, 1971, p. 6786). 109 partilha do poder entre a Igreja e o Estado nascente, em meio a inúmeros conflitos sociais e ideológicos. Convém lembrar que a Inglaterra havia saído de uma delicada questão religiosa, ainda recente, que foi a frustrada tentativa de restauração do catolicismo por Maria Tudor, antecessora de Elizabeth I. Observa-se o fato de que o mais famoso produto cultural da “Era do Ouro”, justamente o Teatro Elisabetano, alcançando uma dimensão espacial mais ampla, extrapolou os limites de sucesso dentro e fora da Inglaterra, visto que as obras dos dramaturgos, principalmente Shakespeare, alcançaram renome mundial. O Teatro Elisabetano servia a uma função maior do que a própria cultura que ele preconizava, fato este que também impulsionou seu sucesso em termos geopolíticos e era, talvez, a maior propaganda do poderio real inglês pela Europa: Não surpreende, portanto, que, por trás de boa parte de sua poesia e de muitas situações dramáticas, escondido em muitas figuras de discurso, espreite um pensamento que chamamos econômico, no sentido de que tem a ver com a produção, troca, distribuição ou consumo de riqueza. Esse pensamento raramente está na superfície. Ele funde-se com a ação, as imagens, as emoções das peças. Precisa ser decantado por um processo que lembra a metalurgia. Mas é rico, quando encontrado, e ocorre principalmente sob três formas. Em primeiro lugar, várias das tramas possuem um contexto econômico. Ou a própria ação adquire um significado econômico, ou envolve uma situação econômica, um problema econômico, um abuso econômico. O tema principal pode ser uma história de amor, e, no entanto, como tantas histórias de amor da vida real, as condições econômicas podem desempenhar um papel importante na sua realização ou frustração, determinando se a trama acabará em comédia ou tragédia. Mais uma vez, o material econômico é oculto em descrições casuais, em metáforas ou alegorias, ou mesmo em invectivas, tiradas do comércio, das profissões, da agricultura, da tributação e da distribuição de riqueza. Essas referências incidentais refletem o que Shakespeare e seus contemporâneos pensavam sobre tudo isso e podem ser agrupadas de acordo com o enredo econômico genérico que seguem. A maior parte do que chamamos aqui de economia em Shakespeare deriva dessa fonte. Por fim, há alguns casos em que encontramos uma discussão de teoria econômica. Isso ocorre especialmente em relação a questões como juros e distribuição de riqueza (FRANCO; FARNAM, 2009, p. 110). Claro que o teatro, nessa escala espetacular e inusitada, representava um novo fenômeno social, bem além das preocupações das autoridades, por conta da magnitude da aglomeração e seu inédito potencial. Segundo Gustavo H. B. Franco e Henry W. Farnam (2009), a ressonância social do teatro, multiplicada de forma avassaladora pela maciça presença do público, multidão de proporções inéditas ordenada por uma nova 110 sociabilidade que as autoridades mal começavam a compreender, era inquietante em seus aspectos de controle social, e fascinante pela explosão de subjetividade que acabou ensejando. Figura 14 - O Teatro Elisabetano na Inglaterra Fonte: Palitot, 2009 Partindo do princípio de que o Teatro Elisabetano servia a Coroa Britânica como instrumento ideológico por atingir a todas as camadas da sociedade, fica claro então que o dramaturgo tinha a intenção de representar em suas peças a realidade política, jurídica, social e econômica em que vivia, expandindo a noção de hegemonia da Inglaterra inicialmente para a sociedade inglesa e depois para o restante do mundo. Desse modo, surge uma questão intrigante em tal aspecto: seria possível Shakespeare associar o comportamento do Príncipe na obra “Romeo and Juliet”, com a própria rainha Elizabeth I? A resposta tem demonstrado ser em sentido afirmativo, muito embora existissem algumas diferenças. A esse respeito Bárbara Heliodora explica que: 111 Shakespeare se voltava com infinita curiosidade para o que acontecia à sua volta, mas, apesar do culto à soberana de longo e bem-sucedido reinado, não podemos deixar de notar que nenhum outro poeta de seu tempo foi tão conhecido e discreto em elogios a Elizabeth I (HELIODORA, 2008, p. 25). Conforme assinala Célia Luiza Andrade Prado, o contexto em que Shakespeare se insere nos permite compreender que: Romeu e Julieta apresenta a sociedade bastante estratificada, como no caso da Inglaterra elisabetana: o monarca, Príncipe Escalo, encontra-se no topo da escala social. No primeiro ato da cena I, ele exerce sua autoridade, mesmo sobre aqueles pertencentes à elite. O príncipe chama Montéquio e Capuleto de “rebellious subjects, enemies to peace” e estabelece uma trégua instável dizendo: “Once more on pain of death, all men depart”. Elizabeth I também delibera sobre a vida de seus súditos. Para acabar com a conspiração contra seu reinado, executa o Conde de Northumberland, o Duque de Norfolk e Mary Stuart. Na Inglaterra dos séculos XVI e XVII, a família “lato sensu”, que incluía todos aqueles unidos pelos laços do casamento e mais os serviçais, era da maior importância social. Dela irradiavam os princípios morais e materiais que regiam a vida dos cidadãos na sociedade da época. O casamento não visava exclusivamente à procriação e educação da prole [...]. A instituição do casamento era, em todas as classes sociais: um foco importante para a atividade econômica, tanto de produção, quanto de consumo e, sobretudo, o lugar para o exercício da autoridade patriarcal e a reprodução da hierarquia baseada na idade e no sexo. Sexo, poder e dinheiro achavam-se intimamente ligados. O lar era considerado o “viveiro” da religião, que por sua vez era, na visão do Estado, uma instituição política vital. Consequentemente, a corte e o casamento não eram assunto puramente emocional ou pessoal, mas assumiam uma importância pública. Essa relação entre o sagrado e o terreno, o público e o privado, gerava tensão e conflitos entre gerações, gêneros e classes. Em consequência, amor, sexo e casamento tornaram-se temas recorrentes na obra de Shakespeare e de seus contemporâneos. Em Romeu e Julieta, a sociedade se impõe e invade o mundo privado do casal, que, tragicamente, não escapa às exigências das convenções. Na fala de Romeu na Cena I, Ato I, ouve-se um anseio mais individual, de emoção mais pessoal: “Here's much to do with hate, but more with love”, ou seja, o amor que sinto me causa mais sofrimento do que essa contenda (PRADO, 2005, p. 6). A obra “Romeo and Juliet” gira em torno de dois núcleos centrais: a rivalidade entre as duas famílias de grande influência (de igual dignidade e de igual nobreza20), os Montague (Montéquios, parentes de Romeu) e os Capulet (Capuletos, parentes de Julieta); e o Governo da Itália, especificamente de Verona, representado pelo Prince Escalus (Príncipe Escalo) que intervinha quando da constância de rivalidades que 20 Todos in Shakespeare, 1977, p. 6. 112 chegavam a perturbar a ordem e a paz da cidade, ação paralela à da Igreja Católica, representada na peça por Friar Lawrence (Frei Lourenço). 5.4 O Príncipe Escalo e o papel do Estado na solução de conflitos O real sentido ou a intenção de Shakespeare em escrever a tragédia “Romeo and Juliet” não foi mostrar o amor superando o ódio das famílias, ou mostrar o quanto Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta) se amavam ao ponto de viverem uma paixão inesperada. Pelo contrário, nas palavras de Luiz Mergulhão (2011), Shakespeare quis mostrar o quanto um amor desordenado é perigoso, tão perigoso quanto o ódio das duas famílias rivais. As desavenças existentes entre os Montague (Montéquios) e os Capulet (Capuletos), tendo em vista os embates sangrentos, eram sinais claros de desrespeito às leis do Estado e da Igreja. Com Romeo (Romeo) e Juliet (Julieta), a obra de Shakespeare perdurou ao longo dos séculos como uma referência da literatura dramática universal. Através de um enredo habilmente construído, em que o amor e a morte se encadeiam numa sucessão emocionante de encontros e desencontros, ódios e amizades, esperanças e desesperos, surge a figura marcante do Prince Escalus (Príncipe Escalo), principal representante do poder estatal na obra. Nesse sentido, torna-se possível compreender o Direito como garantia de solução dos conflitos entre os rivais na Itália renascentista, pois “a atuação de Escalus, o Príncipe de Verona, mostra como Shakespeare encarava o poder político em meio a uma situação de conflitos” (BUARQUE, 1998, p. 5). Isto considerado, há que se observar o seguinte: A Dinastia Tudor teve grande expressão no governo da Inglaterra nos séculos XV e XVI. Henrique VIII foi o rei de maior destaque, uma vez que durante seu reinado instaurou-se o Absolutismo e o Anglicanismo, transformando o soberano num monarca único, divino e centralizador. Seu poder limitou a atuação da nobreza, que se enfraqueceu devido às mortes ocorridas durante as Guerras dos Cem Anos e das Duas Rosas. A elite até então dispunha dos poderes estabelecidos pela Magna Carta, documento redigido nos idos de 1200, que restringia a atuação de João Sem Terra, líder de uma Inglaterra feudal em decadência (BUARQUE, 1998, p. 7). 113 Ainda assim, verifica-se que: Romeu e Julieta reflete a situação política e social do período. A instauração do Absolutismo concedeu poderes ilimitados a Henrique VIII. O rompimento com a Igreja Católica foi um artifício utilizado para manter-se no poder através da Igreja Anglicana. Essa organização aceitou as condições impostas por ele e acabaram firmando uma aliança que o favoreceu, pois o que antes era prestígio apenas da Igreja passou a ser seu também: o controle da religião, das taxas arrecadadas, além de poder unir-se com Ana Boleana, regularizando sua ligação conjugal que não era aceita pela Igreja Católica, já que estava casado com Catarina de Aragão e desejava separar-se dela. O Ato de Supremacia legalizou sua situação pessoal e política em 1534, tornando-se lei depois da aprovação pelo Parlamento Inglês (BUARQUE, 1998, p. 7-8). Mas de que modo Romeo (Romeu) e Juliet (Juliet) pode nos auxiliar no fim a que nos propusemos identificar? Nas passagens onde aparece, nota-se que Escalus, o Príncipe de Verona é o pacificador entre as duas famílias, tentando estabelecer a ordem através de seu poder. Tem livre arbítrio para decidir entre o bem e o mal, independente da opinião alheia, já que foi escolhido por Deus. O Príncipe é uma figura que retrata a força política do rei na época Tudor. A peça mostra um perfil em que ele, embora pacificador, possui autoridade o bastante para ditar as regras que vigoram em Verona. Sua postura é distante do povo justamente para manter sua posição superior perante seus súditos; sua linguagem é semelhante à de um membro do clero, sempre citando palavras ligadas a religião, como “perdão”, “sangue irmão”, “paz”, palavras fortes e convincentes que impõem controle e obediência (BUARQUE, 1998, p. 8). Seria possível fundamentar a partir de “Romeo and Juliet”, a premissa de que os conflitos podem ser atenuados, ou quiçá solucionados de forma mais amistosa, valendo-nos, para tanto, da figura do Prince Escalus (Príncipe Escalo)? Conforme já assinalado, certamente que sim. 114 Figura 15 - Prince Escalus (Príncipe Escalo) Fonte: Dawursk, 2011 O Príncipe de Verona (Escalo) aparece em momentos bem distintos da obra: num primeiro momento, podemos citar a tentativa do monarca em conter a rivalidade entre as duas Casas, quando Sampson (Sansão) e Gregory (Gregório) - criados de Capulet (Capuleto); este pai de Juliet (Julieta) - tentam armar uma situação de legítima defesa para agredir Abraham (Abraão) - criado de Montague (Montéquio); este pai de Romeo (Romeu) - e Benvolio (Benvólio) sobrinho de Montague (Montéquio), e acabam generalizando o conflito ao ponto de entrarem “vários indivíduos de ambas as casas” e tomarem “parte na refuga”; além de entrarem cidadãos “com paus e partazanas21”: 21 Todos in Shakespeare, 1977, p. 11. 115 PRINCE: Rebellious subjects, enemies to peace, / Profaners of this neighborstained steel / Will they not hear? What, ho! you men, you beasts / That quench the fire of your pernicious rage / With purple fountains issuing from your veins, / On pain of torture, from those bloody hands / Throw your mistemper'd weapons to the ground, / And hear the sentence of your moved prince. / Three civil brawls, bred of an airy word, / By thee, old Capulet, and Montague, / Have thrice disturb'd the quiet of our streets, / And made Verona's ancient citizens / Cast by their grave beseeming ornaments, / To wield old partisans, in hands as old, / Canker'd with peace, to part your canker'd hate; / If ever you disturb our streets again, / Your lives shall pay the forfeit of the peace. / For this time, all the rest depart away: / You Capulet; shall go along with me: / And, Montague, come you this afternoon, / To know our further pleasure in this case, / To old Free-town, our common judgment-place. / Once more, on pain of death, all men depart22 (SHAKESPEARE, 1977, p. 123-124). O Príncipe de Verona (Escalo) deixa claro que se o conflito existente entre as duas famílias não cessasse, os responsabilizados seriam punidos com a morte. Em outro momento, deixa de aplicar a pena de morte a Romeo (Romeo), quando este mata Tybalt (Tebaldo), sobrinho de Lady Capulet, a qual é mãe de Juliet (Julieta), que havia matado a Mercutio (Mercúcio), parente do Príncipe e amigo de Romeo (Romeu), entendendo ser mais conveniente a expulsão de Romeo (Romeu) da cidade: PRINCE: And for that offence / Immediately we do exile him hence. / I have an interest in your hearts' proceeding; / My blood for your rude brawls doth lie ableeding. / But I'll amerce you with so strong a fine / That you shall all repent the loss of min. / I will be deaf to pleading and excuses; / Nor tears nor prayers shall purchase out abuses. / Therefore use none. Let Romeo hence in haste, / Else, when he is found, that hour is his last. / Bear hence this body and attend our will. 23 / Mercy but murders, pardoning those that kill (SHAKESPEARE, 1977, p. 167). 22 23 Por se tratar de inglês arcaico, traduz-se: PRÍNCIPE: Oh, vassalos rebeldes, inimigos da paz, que profanais essas lâminas de aço manchadas com o sangue dos vossos irmãos! O quê? Eles não querem me ouvir! Que quer isto dizer? Oh, homens, oh, feras, que apagais o fogo da vossa raiva insensata com os jorros purpúreos que brotam das vossas veias! Sob pena de tortura, que as vossas mãos sanguinolentas arrojem ao chão essas armas mal apontadas, e ouvi a sentença de vosso príncipe irritado. Por tua causa, velho Capuleto, e pela tua, Montéquio, já três rixas civis, nascidas de qualquer frivolidade, perturbaram por três vezes o sossego das nossas ruas e obrigaram velhos cidadãos de Verona a pôr de parte os seus graves e decentes vestuários para brandirem velhas partazanas, corroídos pela paz, nas suas mãos tão velhas como elas, a fim de separarem o ódio que vos corrói. Se mais alguma vez perturbardes o sossego das nossas ruas, as vossas vidas hão de pagar o dano feito à paz. Por esta vez, que todos se retirem. Vós, Capuleto, vireis comigo; e vós Montéquio, ide esta tarde à velha Vila Franca, no habitual lugar de justiça, para que conheçais o que mais nos aprouver resolver sobre este assunto. Mais uma vez repito: que toda a gente se retire, sob pena de morte. Por se tratar de inglês arcaico, traduz-se: PRÍNCIPE: E por essa ofensa / nós exilamo-lo imediatamente. / Eu próprio sou vítima do vosso ódio / Por causa das vossas brigas correu sangue meu. / Mas hei de punir-vos com um castigo tão pesado/ Que haveis de penas tão severas de arrepender-vos da perda que eu sofro. / Serei surdo a explicações e desculpas; / Nem lágrimas nem rogos resgatarão os abusos/ Tudo isso é pois inútil. / Que Romeu se apresse a partir / A hora em que 116 Assim, conforme Adriana Buarque, é possível argumentar que: O Príncipe toma uma posição central demonstrando força e influência perante os súditos. No início da peça, os chefes de ambas as casas ao entrarem na briga aprovam-na, posto que são responsáveis por tudo o que se segue. Os membros mais jovens não davam muita importância a ela, com exceção de Tebaldo. Com a reconciliação de Montéquios e Capuletos perante os corpos de seus filhos, uma nova ordem surge em Verona. Escalus fala de uma paz que reinará a partir de então como se tal fosse triste e escura, próxima da morte e do desespero (BUARQUE, 1998, p. 9). De fato, o Prince Escalus (Príncipe Escalo) representa, nesse contexto, o poder institucionalizado do Estado, atuante na dinâmica de conflitos muito comuns à época. Convém lembrar que as lutas entre facções Guelfas e Gibelinas24 do recente passado medieval da Itália também necessitavam muitas vezes de personagens pacificadores como Príncipes e nobres para pôr fim às sangrentas disputas e batalhas. 24 ele aqui for encontrado será para ele a última. / Levai daqui este corpo, e que a nossa vontade seja cumprida. / A clemência seria assassina se perdoasse àqueles que matam. Partidos italianos, cujos nomes vêm de famílias alemães rivais. Em 1198, Oto Von Braunschweig (um Welf da Baviera) tornou-se rei da Germânia. Depois da batalha de Bouvines (1214), foi destronado por Frederico II de Staufen (rei da Sicília). Em 1215 irrompeu uma disputa entre duas grandes famílias florentinas, que fez os adversários apelar, uns para Otto (guelfos), os outros para Frederico (gibelinos). Essas duas facções, logo em seguida, dividiam a nobreza de Florença e de muitas cidades da Itália. Os partidários do papado se declararam guelfos, lutando contra os gibelinos de Frederico II. Os guelfos levaram a melhor em Florença, Bolonha, Milão, Mântua, Ferrara e Pádua; os gibelinos em Cremona, Pavia, Modena, Rimini, Siena, Lucca e Pisa. As guerras civis entre os dois só terminaram muito depois da transferência do papado para Avignon. (GRANDE, 1971, p. 3227). 117 Figura 16 - Um retrato das batalhas sangrentas e violentas entre os Montague (Montéquios) e os Capulet (Capuletos) Fonte: Zacher, 2011 Somando-se a isso, é historicamente provado que os Montague (Montéquios) e os Capulet (Capuletos) foram realmente ligados a estas duas facções políticas, mas a história não guardou maiores informações que pudessem comprovar uma mortal rivalidade entre ambas. Shakespeare podia bem ter se valido dessa informação para 118 construir o personagem atuante do Príncipe de Verona (Escalo), embora também não se possa comprovar com rigor sua autenticidade histórica nem mesmo na lenda já tão antiga. Talvez isso seja de difícil percepção para alguns, mas o certo é que o Príncipe de Verona (Escalo), na obra “Romeo and Juliet” foi pacificador, entretanto, de um Estado Absoluto, e não Democrático de Direito. Pois bem, o que pretendia Shakespeare com a criação do Prince Escalus (Príncipe Escalo) na obra shakespeariana? Shakespeare criou um personagem que era a voz ativa do Estado, um líder para o povo, uma autoridade na cidade italiana de Verona. A presença do personagem é marcante na medida em que pune os súditos revoltosos, não por vingança, mas para restabelecer a paz. Nesse sentido, o Príncipe representa a instância da lei, a ordem, o poder legítimo, implementado para proteger a todos, reprovando e reprimindo os comportamentos violentos e reafirmando os valores sociais enunciados pelo próprio Direito. De todo modo, a participação do personagem é fundamental na tentativa de pacificação da contenda existente entre os Montague (Montéquios) e os Capulet (Capuletos), que só foi realmente obtida à custa da trágica morte dos dois jovens: ESCALO REPRESENTA A LEI E A JUSTIÇA. Ele aparece nos três pontos cruciais da peça: quando a rivalidade reaparece, na morte de Mercúcio e no fatal clímax da morte dos amantes. [...] Chamando as duas famílias rivais à sua presença, Escalo diz: “Vede o flagelo que caiu sobre vosso ódio e como os céus acharam meios de, pelo amor, destruir vossas alegrias”. O próprio Príncipe havia perdido dois parentes por não ter punido severamente as famílias rivais a fim de fazê-las parar. Capuleto e Montéquio prometem fazer estátuas de ouro dos filhos e apertam-se as mãos, comprometendo-se a acabar de vez com a rivalidade. A peça termina com um tom melancólico de paz: “O sol não mostrará seu rosto por causa do nosso luto” (ROZAKIS, 2002, p. 184-186). Na peça, ao se retratar a cidade italiana de Verona, Shakespeare estava de alguma forma dialogando com o seu público a respeito da realidade inglesa. Esse era o grande diferencial do dramaturgo, motivo pelo qual sua história alicerçada na cultura italiana alcançou tanto prestígio na conservadora sociedade inglesa. O teatro naquela época demandava público para a sua sobrevivência, e este só pôde ser encontrado em cidades prósperas e populosas. Por sua vez, Shakespeare também reforçava a ideia da importância de um poder central que monopolizasse o uso legítimo da violência física, o que, neste sentido, geraria espaços sociais pacificados. Todavia, o público que assistia 119 à peça shakespeariana, conseguia identificar nos personagens a sua própria experiência com o Absolutismo da era Tudor; daí o grande sucesso da obra. Figura 17 - Um retrato das batalhas sangrentas e violentas entre os Montague (Montéquios) e os Capulet (Capuletos) Fonte: Zacher, 2011 Assim, é possível compreender que o Prince Escalus (Príncipe Escalo) representava o Estado e a instância da lei reguladora da moral cívica e mantenedora da paz e da ordem, mas não era somente ele que cumpria este papel na cidade de Verona/Itália em “Romeo and Juliet”. Havia uma outra força também muito importante que atuava nos processos de conciliação, no campo da moral espiritual e que também 120 intervinha nos processos de restauração e regulação da ordem social: a Igreja. 5.5 Frei Lourenço e o papel da Igreja na solução de conflitos William Shakespeare, embora não fosse religioso, conhecia bem o papel que a religião (Igreja) exercia sobre a sociedade da época, definindo dentro dela não só consciências, mas também aspectos culturais, morais e até mesmo políticos e econômicos. Os pesquisadores da vida e da obra do dramaturgo divergem com relação à sua opção religiosa. Nascido no seio de uma família católica, Shakespeare viveu em uma Inglaterra conturbada por conflitos religiosos entre anglicanos (a religião oficial), puritanos e católicos. Declarar-se católico ou puritano era sinônimo de perigo em vista da perseguição imposta pela Coroa e pela Igreja Anglicana e por isso os cultos, principalmente católicos, tinham de ser realizados secretamente. Talvez por isso, a grande incerteza quanto à fé praticada por Shakespeare. No entanto, em relação a Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta), observa-se uma grande preponderância do catolicismo agindo no contexto da trama. Isso se pode explicar pelo fato de que a história original da tragédia que serviu de inspiração para a peça se passava num período anterior às divergências religiosas da Reforma e ContraReforma e que a Igreja Católica era realmente a força mais poderosa atuante sobre a sociedade, ao lado do Estado e da Lei. O poder da Igreja é representado por Shakespeare em “Romeo and Juliet” pela figura carismática e bondosa de Friar Lawrence (Frei Lourenço), ao que se pode deduzir conforme esclarece Alban Butler, religioso da “Ordem dos Frades Menores, ordem religiosa católica criada por São Francisco de Assis em 1223 e que se tornou muito popular em toda a Europa, principalmente na Itália” (BUTLER, 1992, p. 49). Na trama, o frade franciscano aparece como conselheiro dos jovens amantes e tem papel fundamental no desenrolar dos fatos que levam ao casamento secreto de Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta) e, de certa forma, ao desfecho trágico do relacionamento, quando ambos morrem por uma fatalidade do destino. 121 Figura 18 - Friar Lawrence (Frei Lourenço) Fonte: Weller, 2006 A figura de Friar Lawrence (Frei Lourenço) aparece primeiramente na segunda cena do segundo ato, quando, ao ouvir dos lábios de Romeo (Romeu) acerca de sua súbita paixão pela jovem Juliet (Julieta), claramente põe em evidência a ideia de que a união dos dois jovens pode representar o fim da mortal rivalidade entre as duas famílias, num claro posicionamento a favor da conciliação, que tentará efetivar a todo custo. 122 FRIAR LAWRENCE: Oh she knell well thy love did read by rote that could not spell. But come, young waverer, come go with me; In one respect I’ll thy assistant be, for this alliance may so happy prove to turn your households’ 25 rancour to pure love (SHAKESPEARE, 1977, p. 109). A partir daí, Friar Lawrence (Frei Lourenço) se torna o catalisador da esperança dos dois jovens, ameaçados pela situação de conflito familiar existente que os impedia de se unirem, aconselhando Romeo (Romeu) e consolando Juliet (Julieta) em suas angústias. Na obra, o desfecho esperado pelos dois não se concretiza por uma sequência de acontecimentos inusitados. Diante da colisão de princípios existentes entre a “Religião Cristã” e a “Religião do Amor”, Adriana Buarque destaca um ponto importante: O clérigo faz de tudo para auxiliar o casal, nem que para isso tenha que contrariar os princípios da Igreja, pois acredita que esse amor é mais importante que tudo. Rompe os limites da obediência e da santidade de seu ofício quando sugere a Julieta a simulação do suicídio a fim de dar um final feliz ao desenlace dos dois amantes. Os princípios da Religião Cristã chocam-se com os princípios da Religião do Amor, uma vez que é necessária a morte de uma crença para que a outra viva, apesar de ambas buscarem um objetivo em comum: a felicidade do amor pleno, superando todas as barreiras do mundo material (BUARQUE, 1998, p. 30-31). Historicamente, a Igreja sempre se manteve numa situação contraditória em relação à política e à guerra, ora por vezes condenando conflitos, ora por vezes favorecendo-os, como por exemplo, no caso das cruzadas26, que ela ajudou a financiar. O derramamento de sangue era permitido e até incentivado, caso os inimigos da fé cristã fossem julgados inveterados hereges ou infiéis. 25 26 Por se tratar de inglês arcaico, traduz-se: FREI LOURENÇO: Oh! Explica-se: é que ela bem sabia que o amor era de cor, não soletrava. Mas vem contar-me esta paixão tão brava, meu jovem sonhador. Vem, vem comigo: a respeito disso eu te assistirei, pois é possível que tão feliz aliança mude este ódio em puro amor. Nome dado às expedições que os cristãos do Ocidente fizeram, na Idade Média, à Terra Santa, para dela expulsar os muçulmanos. Nas cruzadas medievais, à ideia da guerra santa juntou-se a de peregrinação aos Lugares Santos, que era necessário livrar do jugo muçulmano. Os que se engajavam nas cruzadas e costuravam sobre sua vestimenta uma cruz de pano como sinal do voto de peregrinação a Jerusalém, beneficiavam-se da proteção especial da Igreja em relação a sua pessoa e seus bens. (GRANDE, 1971, p. 2010). 123 Figura 19 - Um retrato de Romeo (Romeu), Juliet (Juliet) e Friar Lawrence (Frei Lourenço) por Henry Bunbury, 1792-1796 Fonte: Bunbury, 1792-1796 Por outro lado, as chamadas Ordens Mendicantes que surgiram no ambiente eclesial da Europa, no início do século XIII, principalmente a Ordem dos Frades Menores (também chamados Franciscanos) e a Ordem dos Frades Pregadores (ou Dominicanos) iam na contramão desse pensamento. Por conseguinte, a Ordem dos Frades Menores, pelo fato de adotar uma concepção estrita de pobreza, segundo a regra do fundador São Francisco de Assis (1182-1226) que não aceitava posses de nenhuma natureza, propunha a paz e a conciliação contra os valores de ódio e vingança que geravam e alimentavam os conflitos na sociedade. Isso talvez explique o fato de que o representante religioso de Verona/Itália na obra de Shakespeare fosse justamente um frade franciscano. Curiosamente, em “Romeo and Juliet” não se observa nenhuma outra representação religiosa de maior 124 dignidade, como um Bispo ou mesmo o Papa. Não se faz referência a nenhuma outra figura religiosa que não Friar Lawrence (Frei Lourenço), o que é curioso, pois ele certamente não devia ser o único franciscano do lugar, visto que os Frades Menores viviam em comunidade, criando mosteiros com mais ou menos cerca de dez a quinze confrades. Um outro aspecto importante a salientar é que em muitos momentos da história a Igreja criou mecanismos para propor a conciliação de pares em conflito, principalmente no que tange ao conflito armado instaurado entre Guelfos e Gibelinos na Itália, que muito se assemelha à rivalidade entre os Montague (Montéquios) e os Capulet (Capuletos): Em termos políticos, havia os conflitos entre os guelfos e os gibelinos, que investiam também no plano religioso, envolvendo as autoridades eclesiásticas, além das famílias fiéis ou contrárias ao papado. Agravavam esse clima de turbulências comuns às sociedades eclesiástica e civil, as lacerações consequentes ao “cativeiro de Avignon”, somente terminado com o retorno a Roam de Gregório XI, em 1374. Nem se podia considerar superado o trauma daquela mortificação que havia levado grandes mulheres, como Catarina de Siena e Brígida de Upsala, a enfrentarem o Papa, instando-o a ser “homem viril, intimorato” a primeira; amedrontando-o com predições de morte se não voltasse para Roma a segunda, ao dizer-lhe: bem pouco poderá ajudá-lo a ciência dos médicos [...] Nem lhe será confortável o bom ar de sua terra para alongar-lhe a vida (CUOMO, 2000, p. 24). De acordo com Franco Cuomo (2000), tais mecanismos de solução de contendas, que procuravam atuar junto à legislação local para reprimir e acabar com os conflitos entre Guelfos e Gibelinos estavam centrados na chamada Irmandade da Pacificação, atividade civil colocada no bojo da sociedade, amparada pela lei dos homens e pela lei divina. Em sua obra intitulada “Santa Rita degli impossibili”, Franco Cuomo (2000) estuda cientificamente e de forma pormenorizada a vida de Rita Lotti (1381-1457), elevada aos altares católicos como Santa Rita de Cássia, uma das mais famosas pacificadoras de sua época. O autor analisa a grande importância que a Irmandade dos Pacificadores tinha perante a sociedade em conflito: Às hostilidades de caráter religioso e civil se sobrepunham as de caráter familiar, motivadas por enormes interesses econômicos. E aumentaram vertiginosamente, nesse clima de sobrefacção, os conflitos de ordem social, colocando os ricos contra os pobres, os nobres contra os plebeus, os artesãos de uma corporação contra os de outra. Pode-se bem compreender o grau de importância que acabaria por assumir, nesse crescendo de ódio e de rancor, o 125 papel dos “pacificadores”, pessoas investidas do dever de acabar com os litígios por meio de uma obra de persuasão e arbitragem. Era uma tarefa delicada e complexa, que demandava uma avaliação atenta dos interesses a conciliar e, sobretudo, dos sentimentos sobre os quais se fundamentava a discórdia. Tratando-se de um ofício público, os que eram chamados a desempenhá-lo deviam oferecer garantias de probidade e dispor de um patrimônio que pudesse defendê-los da tentação de deixar-se corromper. Pertenciam, pois, a famílias abastadas, de condições mais burguesas, mas nem sempre na aparência. Eram voluntários, mas não quer dizer que não houvesse, em certos casos, uma contrapartida nessa sua atividade. É lícito, todavia, julgar que fossem animados por idealismos cristãos, além de por um senso cívico profundo, o que os fazia parecer, aos olhos do mundo, “bons anjos da paz” [...] Pode-se facilmente intuir quanta necessidade de paz tinha Cássia, na época em que Rita nasceu, se considerarmos o zelo com que as leis da República estimulavam essas “pacificações fora dos tribunais”, com o objetivo de livrar-se do peso dos processos a julgar. Para induzir os ânimos à composição extrajudicial dos litígios, prometiam-se sensíveis reduções das penas monetárias. De tal modo sensíveis que, com o tempo, o erário público sofreu um “rombo” tão grande que levou o fisco a rever e limitar as bonificações (CUOMO, 2000, p. 25-27). Como se pode ver aqui, tanto a conciliação como a pacificação, enquanto estratégias paralelas aos processos judiciais são anteriores à época de Shakespeare. Em termos de história, muitos santos na Itália se lançaram a esta missão, fossem ou não da Irmandade dos Pacificadores. Pode-se citar além de Santa Rita de Cássia, também Santa Catarina de Siena, São Francisco de Assis, Santo Antônio de Pádua, Santa Brígida de Upsala, Santa Catarina da Suécia, dentre muitos outros. Na realidade, embora a figura de Friar Lawrence (Frei Lourenço) não remeta ao caso das pacificações entre Guelfos e Gibelinos, ela é bastante expressiva, inclusive pelo temor de vingança das famílias ressentidas caso a Igreja manifestasse seu apoio ao romance secreto de Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta). Friar Lawrence (Frei Lourenço) não representa o poder instituído do Estado, como o Prince Escalus (Príncipe Escalo), mas representa sim uma autoridade eclesiástica, legitimada por um poder divino que intervinha nas relações sociais. Por isso atua mais como um conciliador, figura que tenta aproximar as duas famílias, vendo a possibilidade na união de seus filhos. Um aspecto preponderante a considerar acerca da obra “Romeo and Juliet” é o posicionamento da Igreja, sempre cautelosa, que não vai contra a lei civil em se tratando da regulação dos processos sociais, mas sim apoiando-a, na maioria das vezes. Pode-se observar pela fala de Friar Lawrence (Frei Lourenço) na cena III do 126 terceiro ato, quando dá a notícia a Romeo (Romeu) acerca da decisão de Escalus (Escalo) de puni-lo, banindo-o de Verona/Itália pelo crime de ter matado Tybalt (Tebaldo), primo de Juliet (Julieta): FRIAR LAWRENCE: O deadly sin! O rude unthankfulness! Thy fault our law calls death, but the kind Prince, taking thy part, hath rushed aside the law, and turned that black word “death” to “banishment”. This is dear mercy, and thou 27 seest it not (SHAKESPEARE, 1977, p. 177-179). Ao elogiar a iniciativa do Prince Escalus (Príncipe Escalo) de comutar a pena de morte para degredo, Friar Lawrence (Frei Lourenço) demonstra também estar submetido a esta mesma lei e tenta amenizar o sofrimento de Romeo (Romeu), alegando ter sido a melhor opção para ele. Tal atitude encontra reflexo na realidade da Inglaterra elisabetana. Ao fundar a Igreja Anglicana, o Rei Henrique VIII submeteu o clero católico às leis civis, como forma de erradicar o catolicismo da nação e manter o controle de suas posses confiscadas. Na sociedade renascentista européia, na maioria dos países católicos, a Igreja se encontrava separada do Estado, mas em muitos casos, também submetida à lei civil. Os clérigos, pertencentes ou não às ordens religiosas, também tinham muitos aspectos de sua conduta regulados pela mesma lei que regulava a vida dos civis. Certamente, Shakespeare retratou na figura de Friar Lawrence (Frei Lourenço) este traço da sociedade clerical de seu tempo e expressado na afirmação dita a Romeo (Romeu) sua aparente submissão à lei instituída. De fato, o que então poderia significar o fracasso de Friar Lawrence (Frei Lourenço) em conciliar as duas famílias? Na visão de Shakespeare, a posição conciliatória de Friar Lawrence (Frei Lourenço) é moralmente ambígua, pois tentava corrigir o erro (dos pais) com o erro (dos filhos). Porém, tais erros não são equivalentes, embora mantivessem uma relação causal. Em guerra civil, as casas dos Montague (Montéquios) e dos Capulet (Capuletos) jamais planejaram uma paz duradoura, tanto é verdade que, desde o baile, pensando em casar Juliet (Julieta), o pai de Juliet (Julieta) pensava em Count Paris (Conde Páris), parente do Príncipe, como o melhor 27 Por se tratar de inglês arcaico, traduz-se: FREI LOURENÇO: Oh pecado mortal! Oh rude e absurda ingratidão! Nossas leis dão o nome de morte à tua falta. Mas o benigno Príncipe, tomando teu partido, a lei pôs de lado, logo, e em exílio mudou o escuro termo. É graça, e grande, e tu não queres vê-la! 127 pretendente, não se vislumbrando a possibilidade do jovem Romeo (Romeu). Nesse sentido, Friar Lawrence (Frei Lourenço) tenta fazer com que as intenções indecorosas e indiscretas de Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta), circunstancialmente desculpáveis pela juventude e pela rivalidade de suas famílias, tenham um efeito político eficiente, ou seja, a paz em Verona na Itália. Todavia, no plano narrativo da peça, não há espaço moral para o êxito de seu artifício, pois seria o mesmo que transformar em meios políticos as intenções de dois jovens que representavam deformações do princípio de autoridade e das hierarquias sociais. Por seu turno, a conciliação praticada por Friar Lawrence (Frei Lourenço) é mais uma tentativa pessoal de se acabar com os conflitos apoiado na moral cristã do amor e do perdão vencendo o ódio, não se tratando de uma conciliação instituída como aquela praticada pela Irmandade dos Pacificadores. No caso da obra “Romeo and Juliet”, em termos de conciliação, não se apela ao Tribunal Eclesiástico e nem ao Direito Canônico, é realizada de forma espontânea. Entretanto, todas essas considerações representam um ingrediente a mais para a análise da obra, e nos ajudam a refletir sobre a atuação de Friar Lawrence (Frei Lourenço) no contexto jurídico-literário da tragédia. 5.6 Análise direta dos efeitos da intervenção jurídica no contexto da pacificação e conciliação dos pares rivais na obra “Romeo and Juliet” A natureza da história deixa entrever que o conflito entre as duas famílias, os Montague (Montéquios) e os Capulet (Capuletos), era algo que realmente punha em perigo a paz e o frágil equilíbrio da sociedade veronense, pois incluía duelos e batalhas sangrentas, descritas com maestria por Shakespeare. No que concerne às intenções do autor, talvez o bardo inglês não estivesse se referindo a uma situação particular ocorrida na cidade de Verona/Itália, mas estivesse propondo uma discussão de cunho universal relativa ao processo de desenvolvimento civilizacional com a criação do Estado e sua luta pelo monopólio legítimo da violência. Por outro lado, o certo é que as leis da cidade procuravam coibir os abusos e as intolerâncias, punindo sempre os conflitos existentes. 128 Nesse contexto é que se insere a análise do Direito, pois as intervenções do Príncipe de Verona (Escalo), na qualidade de regente e soberano ilustram em muitos momentos a preocupação que tais conflitos civis provocavam na cidade. Inúmeras vezes a obra é pontuada com exemplos da intervenção do Príncipe de Verona (Escalo), soberano absoluto, na questão do conflito de rivalidade. Num apontamento mais específico, analisam-se as citações observando a natureza do ato e a extensão do seu poder de coerção ao longo de todo o relato, sublinhando a força da lei como uma garantia jurídica e sua capacidade de pôr ou não fim aos conflitos, estabelecidos os interesses políticos em questão. Os efeitos diretos da aplicabilidade prática da lei pelo Príncipe de Verona (Escalo), conforme relatos da obra literária em estudo, demonstram o alcance da influência legislativa do governante em um período de crises. O soberano ao estabelecer regras para o convívio social na cidade de Verona/Itália, expressa sua respeitável autoridade para a solução dos conflitos que se seguiam em um período de guerra civil entre as duas famílias. Ambas, por muitas vezes quebrarem a paz local na luta por legitimidade, dando causa a batalhas sangrentas, acabaram sendo punidas pelo Príncipe de Verona (Escalo). Com a intervenção do soberano, dotado de força estatal e fibra indispensáveis ao bom governo, a paz de alguma forma se estabeleceu entre os súditos. Como pacificador em um período marcado por crises sociais, o Príncipe de Verona (Escalo) cessou conflitos elevando sua voz numa forma, valendo-se de um dos meios possíveis das leis de Verona/Itália, ou, como tão bem apontou Adriana Buarque, tentando “estabelecer a ordem através de seu poder” (BUARQUE, 1998, p. 8). Força e influência são descrições deste monarca em relação aos súditos. Por outro lado, há quem diferencie, mas a figura de Friar Lawrence (Frei Lourenço) como o conciliador é de elementar importância no desfecho da obra. É evidente a boa vontade de um clérigo bem-intencionado que julgou ver no casamento de dois amantes a oportunidade para conciliar as duas famílias historicamente inimigas. O problema é que, por uma série de mal-entendidos, a paz só se fez tragicamente, com a morte dos dois amantes (na verdade, já marido e mulher), não com o casamento. Os desencontros que se seguiram ao casamento secreto é que ditaram o rumo trágico da 129 história. Nota-se, pois, na tragédia épica, que a Igreja, através de Friar Lawrence (Frei Lourenço), exerceu papel político de importância no trato com o Príncipe de Verona (Escalo), tendo em vista seu próprio poder temporal na região da península diretamente governada pelo monarca. A temática envolvendo o Estado e a Igreja, a busca por legitimidade e os conflitos existentes são marcantes na obra “Romeo and Juliet” de William Shakespeare. O dramaturgo vê na ocasião para a denúncia da guerra civil, o mal e o ódio que as lutas entre facções poderosas dentro de uma mesma comunidade podiam trazer ao todo, destruindo a possibilidade da existência da paz. Afinal, na trama, a espada estava sendo empunhada banalmente por questões privadas e, em vez de assegurar a justiça e a paz, tornou-se apenas um instrumento sujo da exibição da força de súditos revoltosos, cuja insensatez provocava a ruptura periódica dos laços vicinais de amizade. Por fim, Shakespeare além de demonstrar certa preocupação em descrever e analisar o comportamento humano diante dos conflitos existentes, também concedeu importância às questões do poder (como governar), e da justiça (como realizar o ideal de igualdade entre os súditos). Nesse aspecto, o dramaturgo não se torna importante apenas para o Direito e a Literatura, mas também para o crescimento intelectual; intelectualidade tal que se faz essencial para a compreensão de um novo sistema de valores, regras e princípios, no qual as ideias de justiça e de realização dos direitos fundamentais do homem possam desempenhar um papel central na abordagem e busca pelo bem comum através da norma. 130 Figura 20 - A Reconciliação dos Montague (Montéquios) e dos Capulet (Capuletos) diante da morte de Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta), por Frederic Leighton, 1855 Fonte: Leighton, 1855 131 6 CONCLUSÃO Diante de todas as considerações abordadas, emblematicamente, o dever de obediência da lei por parte dos cidadãos e o dever de garantir o cumprimento da lei por parte das autoridades, como pressupostos de existência ou efetivação do Direito, são lembrados por Shakespeare em “Romeo and Juliet”. Se essa ideia parece ser audaciosa, a inobservância da lei representa um risco permanente de se enfraquecer a ordem normativa, comprometendo-se, portanto, o próprio desenvolvimento da sociedade. Contudo, analisando o movimento teatral e seus reflexos no período elisabetano, chega-se à conclusão que a preocupação maior de Shakespeare passa a ser a segurança jurídica, a despeito do conteúdo que ela realize. A justiça, em linhas gerais, afastada de seus preceitos substanciais, é identificada, pois, como a força capaz de garantir o cumprimento da lei ou do pacto protegido pela lei. Todavia, em razão disso, ter a oportunidade de conhecer a história de Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta) na perspectiva do Direito e Literatura, é uma tarefa pretensamente valiosa. Em outros termos, fica evidente que o dramaturgo constrói um texto performativo, no qual os elementos constitutivos, tais como convenções, regras, elementos formais e as próprias palavras formam vozes de um complexo argumento que lhe permitiram interrogar os padrões de sua cultura e questionar as atitudes propulsoras de seu tempo. O percurso shakespeariano não é o do regresso, mas o da reconstrução de valores e de ideias, apoiada na expectativa e na esperança do novo, como caminho para lidar com a ruptura e afirmar a paz e a ordem. Pois bem, se o homem só pode desenvolver suas potencialidades racionais e éticas através da vida em sociedade, é inegável que a sua realização plena depende da construção democrática e da observância de normas de comportamento, sem as quais a vida em sociedade não seria possível. De acordo com Ronald Dworkin, assim como a interpretação literária pode nos revelar qual é a melhor obra de arte, no Direito também é possível buscar uma interpretação que seja a mais adequada. Na obra, esta vinculação ao tema pode ser traduzida pela idéia de justiça shakespeariana não como uma construção pública da igualdade (análise da cidadania como o direito a ter direito), mas sim como proporcionalidade e partilha. 132 Por este viés, é possível perceber da narrativa shakespeariana que uma sociedade autônoma, vale dizer, não alienada de si mesma, é aquela em que suas regras estão permanentemente em questão; onde, em outras palavras, a ordem está em questão. Sempre que se garanta esta possibilidade, mesmo diante dos mecanismos conhecidos de apropriação privada e excludente do poder e das riquezas, é sabido que estes mesmos mecanismos estarão sob uma oposição de Direito. O Estado Democrático de Direito, entretanto, ultrapassa esta condição por experimentar direitos que ainda não lhe estão formalmente incorporados. Afinal, qualquer ação humana de edificação deve se tornar um consciente e simultâneo ato de autodeterminação, pois, caso contrário, o mecanismo da guerra civil estaria sempre engatilhado contra qualquer possibilidade de forma estável de vida social. Em Shakespeare, o que se deve reconhecer é que os personagens somente desenvolvem as suas virtualidades como pessoas, isto é, de homens capazes, quando vivem em sociedade. É preciso não esquecer que as qualidades eminentes e próprias do ser humano no contexto literário, tais como a razão, a capacidade de criação estética e o amor, são essencialmente vinculantes. A substância da natureza humana é histórica, isto é, vive em perpétua transformação, pela memória do passado e o projeto do futuro. A especificidade da condição humana, aliás, não se esgota na mera transformação do mundo circunstancial, com a acumulação da “cultura objetiva”, mas compreende também uma alteração essencial do próprio sujeito histórico. Todavia, é neste sentido que se propõem o desvelar acerca da questão do direito como garantia de pacificação e conciliação de conflitos entre rivais na obra. A sua validade deve assentar-se em algo mais profundo e permanente. Tudo isto significa, a rigor, que a afirmação de autênticos direitos garantidores é incompatível com uma concepção positivista do direito. O positivismo contenta-se com a validade formal das normas jurídicas, quando todo o problema situa-se numa esfera mais profunda, correspondente ao valor ético do direito. Nesse sentido, a questão da obediência à lei não se resolve pela força, como afirma a tradição, mas sim pela opinião e pelo número daqueles que compartilham o curso comum de ação expresso no comando legal. Em síntese, a pergunta essencial não é por que obedece à lei, mas porque se apóia a lei, obedecendo-a. Na obra 133 “Romeo and Juliet”, o Príncipe de Verona (Escalo) é a autoridade soberana que busca estabelecer uma escala de harmonia nas coisas do governo de forma a evitar que seu principado se perca em guerras civis. Para tanto, é fundamental que as duas principais famílias de Verona/Itália, abaixo da autoridade principesca e, portanto, intermediárias de seu poder, cessem as suas guerras. Não se pode, por outro lado, negligenciar o papel da Igreja e dos frades da época na conciliação das famílias, que era realmente efetivo. Na verdade, de instituição máxima da lei e de protetor de todos os habitantes de seu território, o Estado legitimado em Shakespeare se torna instrumento da sociedade e tem de priorizar os seus interesses, visto que o Direito passa a ser o que é bom para a comunidade. Em contrapartida, o Direito pode ser lido e visto na sua dinâmica social, contemplado nos aspectos literários, nas narrativas e nas descrições de condutas sociais de uma determinada época ou período histórico e pode, também neste sentido, reintroduzir-se no seio social, muitas vezes, refletido e reavaliado. Por fim, a interação obra/leitor não pode ser desvinculada do devir histórico em que está inserida, uma vez que se anularia a natureza dialética que a caracteriza, pois a leitura do texto literário constitui uma atividade sintetizadora, na medida em que permite ao indivíduo penetrar o âmbito da alteridade, sem perder de vista sua subjetividade e história. O amor trágico e desmedido de Romeo (Romeu) e Juliet (Julieta) parece instaurar um arquétipo de um amor ideal, muitas vezes, distante das experiências afetivas cotidianamente experimentadas. Shakespeare foi um gênio que, nas suas peças, ousou antecipar, através do drama de seus personagens, muitas reflexões teóricas, que seriam examinadas muito adiante do seu tempo. Percebemos nele uma certa “atitude pedagógica” de buscar o esclarecimento dos comportamentos humanos, através de uma variada mescla de gêneros e temas, como um tipo de representação da própria condição humana, pois, segundo suas próprias palavras, vivemos num grande palco, somos atores e representamos vários papéis ao longo da nossa história. 134 REFERÊNCIAS AMADO, Juan Antonio García. Breve introducción sobre derecho y literatura: ensayos de filosofía jurídica. Bogotá: Temis, 2003. ARÊAS, Alcebíades Martins; CAMBEIRO, Délia. A instigante prosa de Matteo Bandello. Filologia, 2009. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/viicnlf/anais/ caderno04-01.html>. Acesso em: 21 fev. 2009. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução: Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2004. BACELLAR, Roberto Portugal. 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