O Mito e a Filosofia

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O Mito e a Filosofia
Ricardo Ernesto Rose
Jornalista e Licenciado em Filosofia
O conceito de mito
O mito tem várias definições, que variam segundo o autor. Um dos maiores mitólogos do
século XX, o romeno Mircea Eliade define assim o mito: “A definição que a mim, pessoalmente me
parece a menos perfeita, por ser a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele
relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros
temos, o mito narra como, graças à façanha dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir,
seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um
comportamento humano, uma instituição.” (Eliade, 1972). Para o antropólogo Claude Levy-Strauss
o mito é a história de um povo, é a identidade primeira e mais profunda de uma coletividade que se
quer explicar. O mitólogo e antropólogo americano Joseph Campbell escreve que “o material do
mito é material da nossa vida, do nosso corpo, do nosso ambiente; e uma mitologia viva, vital, lida
com tudo isso nos termos que se mostram mais adequados à natureza do conhecimento da época.”
(Campbell, 1993).
Nesta frase de Campbell já temos alguma indicação sobre como devemos encarar os mitos:
uma mitologia, ou seja, o estudo dos mitos lida com os mitos nos termos que se mostram mais
adequados ao conhecimento de uma época – de sua própria época. Exemplo dessa maneira diferente
de encarar o mito ao longo da história é que há 250 anos, em um período fortemente influenciado
pelo movimento iluminista, os mitos eram pouco valorizados e estudados. Todavia, cerca de cento e
poucos anos mais tarde, com o nascimento da sociologia, antropologia e etnografia, vemos que o
interesse pelo assunto aumentou, dando-se uma verdadeira corrida às regiões mais afastadas à época,
ainda habitadas por culturas originais – como a costa leste da América do Norte, a Oceania, a África
e a América do Sul – para que pudessem ser pesquisados e registrados os mitos destas culturas ditas
selvagens. James Frazer, Franz Boas, Bronislaw Malinowsky, Claude Levy-Strauss e Margareth
Mead, entre outros, foram os grandes pesquisadores deste período. Seus textos estão disponíveis e
serão de grande ajuda para todo estudioso que deseja obter uma compreensão do conceito do mito.
Do que expusemos até o momento concluímos que devemos fugir das explicações
simplistas do mito, como: “ficções construídas para aplacar o medo dos homens primitivos perante
os fenômenos naturais”, “narrativas pré-científicas para explicar o mundo”, “lendas desenvolvidas
pelos sacerdotes para dominar o povo”. Estas definições, apesar de tendenciosas, não deixam de ter
um fundo de verdade, mas não mostram uma profundidade de análise.
Origens da filosofia e sua relação com o mito
Mircea Eliade, em sua obra “História das Crenças e das Idéias Religiosas” nos dá uma boa
indicação do porque do desenvolvimento da filosofia na Antiga Grécia. Segundo Eliade, a religião
grega sempre foi um politeísmo, no qual os deuses tinham comportamento parecido aos dos
homens; os mesmos desejos, impulsos e emoções, com a diferença de que eram imortais. A religião
grega, pelas suas características, nunca chegou a ser uma religião estritamente normativa e ligada a
um povo específico (os gregos também dividiam muitos deuses com outros povos), como o foram a
religião egípcia e a judaica.
Os gregos nunca tiveram um Livro dos Mortos ou um Decálogo. Todavia, os relatos dos
bardos – entre eles os mais famosos Homero e Hesíodo – influenciaram a cultura grega da mesma
forma. Não através da criação de leis, impedimentos e sanções, mas através de exemplos da vida dos
deuses e dos heróis, a Paidéia, que foram incorporados à cultura grega – da poesia às tragédias, da
escultura à filosofia. O historiador Werner Jaeger escreve: “O testemunho mais remoto da antiga
cultura aristocrática helênica é Homero, se com esse nome designamos as duas epopéias: a Ilíada e a
Odisséia. Para nós, é ao mesmo tempo a fonte histórica da vida daqueles dias e a expressão poética
imutável de seus ideais” (Jaeger, 2003). Referindo-se a Hesíodo, Jaeger escreve: “O poema de
Hesíodo permite-nos conhecer com clareza o tesouro espiritual que os camponeses beócios
possuíam, independentemente de Homero. Na grande massa das sagas da Teogonia encontramos
muitos temas antiqüíssimos, já conhecidos de Homero, mas também muitos outros que nele não
apareceram.” (Jaeger, 2003). Este o arcabouço cultural da Antiga Grécia. As narrações dos dois
poetas eram transmitidas de uma geração à outra, terminando por serem fixadas por escrito em torno
do século VIII a.C.
Por volta do século VIII a.C. a população na península grega começa a crescer, forma-se as
cidades-Estado e aumenta o comércio ultramarino. Estabelecem-se as primeiras colônias de
mercadores gregos na Jônia – região hoje ocupada pela Turquia – e na Magna Grécia, a Eléia –
região onde hoje se o sul da Itália.
O comércio a agricultura, a navegação, a construção de canais e de pontes, o contato com
outros povos, fizeram com que se formasse nestas colônias gregas uma elite intelectual e econômica,
que dominava os mais importantes conhecimentos da época: matemática, astronomia, geometria,
línguas estrangeiras, escrita e religiões de outros povos.
No plano intelectual, toda esta vasta gama de conhecimentos fez com que jônios e eleatas
passassem a encarar o universo de uma maneira diferente. No plano religioso, ainda conheciam as
narrativas míticas de Homero e Hesíodo, as registravam e passavam para as gerações posteriores.
Mas aos poucos, estas narrativas foram perdendo seu caráter mítico-religioso e mantiveram apenas
sua função política de manutenção das tradições cívicas e das instituições das cidades-Estado.
Dentre esta elite altamente intelectualizada da Jônia e da Eléia, com acesso a todas as novas
idéias que circulavam na região do Mediterrâneo à época (já que viviam em cidades cosmopolitas
ligadas ao comércio) surge um novo grupo de homens: os filósofos. Estes foram os primeiros a não
se utilizarem mais do mito para explicar o mundo e seu surgimento, representando provavelmente o
primeiro movimento de laicização da cosmogonia, de tentativa de explicação da origem do universo
através de meios racionais – evidentemente limitados pelos conhecimentos práticos (científicos?) da
época. Estes pensadores, mais tarde conhecidos como pré-socráticos, apresentaram diversas
hipóteses para apontar o elemento do qual todo o universo é constituído. As hipóteses variavam da
água (Thales de Mileto na Jônia, considerado o primeiro filósofo), para o infinito (Anaximandro de
Mileto, introdutor da filosofia na Grécia continental), até os números (Pitágoras de Samos, filósofo
da escola eleata).
Todos os pensadores pré-socráticos tentam explicar o fundamento último do universo e, em
termos atuais, poderiam também ser chamados de primeiros cientistas. Fato mais importante neste
estudo é ressaltar a importância do surgimento da filosofia, como primeira tentativa de explicar o
mundo à parte do posicionamento definitivo e por vezes impositivo das religiões. Aí, neste
momento, tem origem a filosofia e todas as ciências que surgiram posteriormente.
Os pensadores pré-socráticos – e mesmo pensadores posteriores – não estão
definitivamente livres do mito. Em sua linguagem e na construção de suas idéias ainda são
utilizados termos oriundos do pensamento mítico. Em muitos relatos ainda há aparição de deuses (a
deusa que aparece a Parmênides) ou referência a eles.
Diferença entre mito e filosofia
O mito é um relato que oferece uma explicação definitiva; o mito não precisa de
justificativa. Ao contrário, é o mito que justifica uma sociedade, uma cultura, um costume, como
vimos acima.
Da maneira como é elaborado, o mito não é para ser criticado ou discutido. Da mesma
forma, ele não precisa ser apresentado através de argumentações – ele simplesmente é comunicado à
comunidade por aqueles que se consideram os arautos das Musas ou dos Deuses. Vale aqui lembrar
que quando uma religião se apropria do mito; este fica sujeito à crítica e precisa apresentar
justificativas.
Como exemplo perfeito disto tome-se o mito da Criação e de Adão e Eva. O relato é mais
antigo do que o judaísmo. Daí foi incorporado na religião e desde então precisa justificarse, já que
faz parte de um "plano" efetivo de Deus para com a humanidade, segundo o discurso religioso.
A filosofia é uma narrativa que não oferece uma explicação definitiva, já que a discussão é
própria da filosofia. Existem sistemas filosóficos que se pretendiam definitivos; que pretendiam
oferecer uma explicação definitiva da realidade. Talvez seja por isso que quase se transformaram em
seitas.
Outro aspecto é que a filosofia sempre precisa se justificar. O próprio ato de filosofar já
implica a apresentação de uma justificativa daquilo que vai ser dito. Por ser um processo baseado na
experiência e/ou no raciocínio lógico, a filosofia sempre está sujeita a criticas.
Bibliografia
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Campbell, Joseph, As Transformações do Mito Através do Tempo, Editora Cultrix Ltda.: São Paulo, 1993,
246 pgs.
Eliade, Mircea, Mito e Realidade, Editora Perspectiva: São Paulo, 1972, 183 pgs.
Eliade, Mircea, História das Crenças e da Idéias Religiosas, Zahar Editores: Rio de Janeiro, 1978, 284
pgs.
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Jaeger, Werner, Paidéia – A Formação do Homem Grego, Martins Fontes Editora: São Paulo, 2003, 1413
pgs.
Souza, José Cavalcante de, Os Pré-Socráticos – Fragmentos, Doxografia e Comentários, Editora Nova
Cultural: São Paulo, 1996, 320 pgs.
Strauss, Claude Levy-, Mito e Significado, Edições 70: Lisboa, 1989, 91 pgs.
http://www.consciencia.org/o-mito-e-a-filosofia <acessado 16/03/2013>
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