78 A Performance da Cultura Identidade, Cultura e Política num Tempo de Globalização Rita de Cácia Oenning da Silva 2005 2 Antropologia em Primeira Mão é uma revista seriada editada pelo Programa de PósGraduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Visa à publicação de artigos, ensaios, notas de pesquisa e resenhas, inéditos ou não, de autoria preferencialmente dos professores e estudantes de pós-graduação do PPGAS. Universidade Federal de Santa Catarina Reitor: Lúcio José Botelho. Diretor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas: Maria Juracy Toneli. Chefe do Departamento de Antropologia: Alicia N. González de Castells. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social: Sonia Weidner Maluf. Sub-Coordenador: Oscar Calavia Sáez. Editor responsável Rafael José de Menezes Bastos ISSN 1677-7174 Comissão Editorial do PPGAS Carmen Sílvia Moraes Rial Maria Amélia Schmidt Dickie Oscar Calávia Sáez Rafael José de Menezes Bastos Solicita-se permuta/Exchange Desired Conselho Editorial Alberto Groisman Aldo Litaiff Alicia Castells Ana Luiza Carvalho da Rocha Antonella M. Imperatriz Tassinari Dennis Wayne Werner Deise Lucy O. Montardo Esther Jean Langdon Ilka Boaventura Leite Maria José Reis Márnio Teixeira Pinto Miriam Hartung Miriam Pillar Grossi Neusa Bloemer Silvio Coelho dos Santos Sônia Weidner Maluf Theophilos Rifiotis Copyright Todos os direitos reservados. Nenhum extrato desta revista poderá ser reproduzido, armazenado ou transmitido sob qualquer forma ou meio, eletrônico, mecânico, por fotocópia, por gravação ou outro, sem a autorização por escrito da comissão editorial. As posições expressas nos textos assinados são de responsabilidade exclusiva de seus autores. 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Programa de Pós Graduação em Antropologia Social. 4 A performance da cultura Identidade, cultura e política num tempo de globalização1 Rita de Cácia Oenning da Silva (...) el estudio de las representaciones de la identidad y de la alteridad no es, hablando metafóricamente, un estudio de mecánica sino de óptica, de imágenes deformadas, reflejadas o refractadas, de focos virtuales y de emisiones de atributos que se estructuran y reestructuran de continuo. (Manoel Gutiérres Estéves) Preâmbulo “Hoje fui ao centro prá comprar uns presentes pros amigos do Bogotá e entrei numa loja típica, de artesania pouco interessante, quando aconteceu um fenômeno da globalização. Escutei o som, o que tinha tocado algo muito cursi, e acatei que era "Saudade (Batucada)" de Daniela Mercury, mas Daniela não cantou, e não era em Português. Nem nenhum idioma que conheci: algo africano, eu acho, mais que tudo porque os tambores eram africanos. Já estranho na Santa Fé, mas depois olhei para a moça da loja, uma indígena bonita de 20 anos (Navajo, talvez) e ela estava bailando em meio da loja, ignorando o público, mas com um passo que jamais tinha visto. Menina dançando passos navajos (?) com uma música brasileira tocada com tambores africanos... Na verdade, eu acho que ainda tem esperança para o futuro do mundo.” ----- Original Message ----From: Kurt Shaw To: <[email protected]> Sent: Friday, May 07, 2004 6:38 PM Subject: Globalização Apesar do remetente da mensagem acima ver de forma muito positiva a “Globalização”, o receio de que o ‘progresso’ e a modernidade engulam por completo a tradição, eliminando a heterogeneidade cultural, faz ressurgir constantemente a pergunta cuja resposta positiva, de certa forma, foi uma certeza para Franz Boas durante um período do seu trabalho em relação às “disappearing cultures”: pode a modernidade e a globalização destruir as identidades locais, suas tradições, sua linguagem, transformando o mundo da diversidade cultural em um “plasma homogêneo da cultura”? Esse mito, divulgado por alguns membros da chamada Escola de Frankfurt 2, Artigo apresentado à Banca de Qualificação de Doutorado- PPGAS/UFSC – 01/2005. Agradeço especialmente a Laura Gil e Miguel Caribe empréstimo de textos; a Adiléia Bernardo, Cláudia Gonçalves e Kurt Shaw, que foram, durante esta prova, amigos e interlocutores; à Sandra Oenning da Silva e Deyvid Camargo, por me tirarem da leitura para passear, rir e comer longe das letrinhas. E-mail: <[email protected]>. 2 Adorno foi um grande divulgador deste mito nos anos 40 dentro da Escola de Frankfurt. Opondo-se às novas tecnologias, queria manter a pureza das culturas “rústicas” e das elites. A Escola de Chicago, nas suas teorias de contraste (Redfield, Park), têm uma visão negativa da formação de cidades multiculturais, pois essas fragmentariam os laços sociais, provocando o isolamento e o anonimato. Mais recentemente, Richard Sennet, na obra Vida urbana y identidad personal, critica esse mito, pois diz que essa perspectiva da cultura (a crise da cidade, da tradição) leva a uma romantização do passado. A antropologia urbana brasileira com Ruben Oliven, Gilberto Velho, Eunice Durhan (Velho, 1979), desenvolve a mesma crítica. 1 5 persiste ainda hoje e, segundo Arjun Appadurai (1994), a tensão entre a homogeneidade e a heterogeneidade cultural é o problema central das interações globais. Estudos3 que abordam o contato entre grupos distintos e a disseminação do capitalismo pelo mundo, ao contrário da visão pessimista do fim das tradições, apontam o oposto daquilo que o mito enuncia4. Recorrendo a termos como a “invenção das tradições”, “culturas híbridas”, “comunidades imaginadas”, “mundo em pedaços”, “transnacionalismos”, “diásporas”, e mesmo não negando as assimetrias e os novos processos de exclusão discutidos amplamente por Canclini (2001), esses autores vão na contramão de uma noção de cultura estática, com identidades essencialistas e primordialistas, como se supôs por algum tempo na Antropologia5, e ressaltam a agência das comunidades pesquisadas e a não linearidade nos processos de contato. Respondendo a essa mesma questão, feita por um estudante preocupado com o perigo da americanização e de suas potências multinacionais, Roberto DaMatta (apud Lacerda, 2003), numa conferência dada na Universidade Federal de Santa Catarina, expõe três aspectos contemporâneos do mundo globalizado: a intensidade dos processos locais de afirmação étnica, a emergência de transnacionalismos de toda ordem e, finalmente, a progressão incalculável das viagens. DaMatta mostrava que a ascensão do individualismo moderno (Dumont, [1983] 2000), outro mito da modernidade, não impede inúmeros rearranjos coletivos e identificações de toda espécie. Esses aspectos citados por DaMatta, especificamente ou em conjunto, são notórios nos processos migratórios mundiais, nos movimentos de reivindicação identitária (étnicos, de gênero, religiosos, geracionais/etários) e nas tribalizações urbanas. Tais movimentos multiplicam-se pelo globo e motivam uma ampla discussão acadêmica sobre cultura, etnicidade, globalização e política, mas também, em certo grau, são reflexos dessa discussão, tendo em vista a relação entre academia e 3 Entre esses Maybury-Lewis (2003), Featherstone (1994), Appadurai (1994), Sahlins (1997), Friedman (1994), Cuche (1999), Menezes Bastos (1997), Rial (1995). 4 Em tempos de guerras e de processos de xenofobia extremados, em que estados totalitários impõem a sua cultura como aquela que é digna de se expandir pelo globo, executando muitas vezes limpeza étnica, como alertam Maybury-Lewis (2003), Geertz (2001), Homi Bhabha e Edward Said (Barbosa, 2003), não estamos exatamente diante de um mito. 5 Ver Montero (1997) e Cuche (1999). Isac Schapera, em entrevista concedida a Adam Kuper (2001), revela que esta temática era motivo de divisão entre os antropólogos europeus que trabalhavam com com temas africanos. Adam Kuper resume “Mas, na verdade, esse era o grande divisor. O grande debate na antropologia sul-africana era entre aqueles que diziam que a sociedade tradicional era a coisa a ser de algum modo protegida, conservada, revivida; e aqueles outros, como você (Isac Schapera), RadcliffeBrown e Macmillan, que diziam que a situação se havia modificado tão completamente nas últimas duas gerações, que falar de sociedade tradicional como algo ainda vital era simplesmente ridículo” (Kuper, 2001). 6 movimentos sociais6. A preocupação com, por assim dizer, o “homo/hetero” da cultura foi, e em alguns casos ainda é, perpassada por um paradoxo: por um lado, o medo da uniformização cultural e a tomada dos “países em desenvolvimento” pelos “impérios” modernos7; por outro lado, o medo do esfacelamento total do mundo em etnias, tribos, personalidades (Geertz, 2002) cada vez mais particularistas, que levaria ao individualismo e ao narcisismo. Nem tanto ao céu nem tanto à terra, há hoje, sobretudo, uma preocupação em entender e explicar como se dá o fluxo entre essas duas vias extremadas de análise; afirma-se que “a fragmentação étnica e cultural e a homogeneização modernista não são dois argumentos, duas visões opostas daquilo que está acontecendo hoje no mundo, mas sim suas tendências constitutivas da realidade global” (Friedman, 1994:311). Neste artigo, retomando a discussão sobre o contato intersocietário8, abordo a relação entre reivindicações identitárias contemporâneas e a produção de conceitos acadêmicos9, considerando a maneira pela qual agentes (indivíduos ou coletividades) locais/regionais/nacionais e globais10, em uma época em que a autoria é valorizada, negociam agendas públicas e privadas frente a instituições e valores contemporâneos. Para tanto, debruço-me, por um lado, sobre as novas formas de “estar junto”11 promovidas e intensificadas pelos meios de comunicação, pelas viagens e pela virtualidade das relações, cada vez mais freqüentes; por outro lado, tematizo novas formas de demarcar identidades e fronteiras, considerando a tensão da dupla 6 Retornarei a esta temática, pois trata-se de um dos eixos centrais deste artigo. A grande narrativa dominante criticada por Sahlins (1997), a americanização, o macdonaldismo criticado por Rial (2004). 8 Ver Cardoso de Oliveira (1976); Menezes Bastos (1997); Montero (1997). 9 A vasta literatura que envolve a temática, formada por alguns títulos já clássicos e por muitos outros mais recentes, revela vertentes e tensões que sempre existiram no seio dessa matriz epistemológica, na tentativa de compreender, explicar e conceituar (e em alguns casos domesticar) a empiria. Também revelam os limites da possibilidade de compreensão dos percursos e percalços feitos na tentativa de entender a alteridade e os processos de contato dentro de um mundo onde os poderes e saberes locais e globais estão em jogo. Cabe neste ensaio percorrer alguns desses caminhos, destacando a relação da antropologia com a empiria, e o impacto de conceitos como “cultura”, “etnicidade” e “agência” (categorias políticas por excelência), que ligam o “nós” e o “outros” (considerando que “nós” também somos “outros”) como meio de constituir a diversidade identitária contemporânea. 10 A tensão entre local e global não é recente na antropologia, apesar de muitas vezes ser assim anunciada, vide o particularismo histórico boasiano, o evolucionismo de Morgan, ou a discussão de 1913 de Marcel Mauss e Durkheim sobre a noção de Civilização; nem se restringe à disciplina, vide a filosofia na discussão do “geral” e “particular” (Menezes Bastos, 1997). No Manifesto Comunista encontramos a preocupação de Marx com os processos mundializados de mercado e a expansão do modo capitalista. Em Weber e Durkheim, a visão sobre os efeitos da industrialização e da divisão social do trabalho no mundo das grandes transformações remete à discussão. Foi justamente a perspectiva global de Tylor, ao observar a diversidade de culturas e a suposição de uma origem comum, que o capacitou a formular o conceito de “cultura” pela primeira vez. 11 Maffesoli (1997); Appadurai (1994); Ribeiro (1996). 7 7 hermenêutica apontada por Giddens (1991) entre o “empírico” e o “acadêmico”.12 Pontuando os sujeitos da antropologia em diferentes períodos da disciplina, considero a questão da identidade e da política como centrais para pensar um sujeito contemporâneo performático, que tanto reivindica uma identidade essencialista quanto foge dela, num jogo de espelhos que se dará na negociação permanente com o outro e consigo mesmo. A arena “movediça” da cultura: a política do nós-eles A agência No encontro intersocietário antropológico, a noção de que existe um “nós” (os antropólogos) e um “eles” (os nativos), que seriam nossos objetos de curiosidade, e cuja cultura, modo de viver e filosofia devemos interpretar e dar visibilidade, trai a agenda antropológica, quando a reflexividade nativa toma corpo em ação política. Com a emergência dos movimentos sociais (de gênero: movimento feminista, homossexual; geracional: 3 ª idade, infância; de grupos étnicos: negritude, indigenidade) vislumbra-se um novo ponto nas agendas dos antropólogos: já não é mais somente o antropólogo quem decide reivindicar os direitos dos “seus nativos”, mas são os “nativos” que solicitam a presença do antropólogo, a fim de legitimar políticas já encabeçadas pelos mesmos.13 Os movimentos reivindicatórios tomam visibilidade na agenda pública e chegam aos “grandes homens” do congresso, de agências mundiais como a ONU, do Greenpeace, pondo em destaque saberes e direitos de suas culturas14. De “objetos”, assumem-se como “sujeitos” e buscam legitimidade15 na academia – que reconhecem como instrumento de algumas reivindicações; assim, apresentam mais uma vez “cultura” e “etnicidade” como “moedas fortes no mercado”, ou, como diria Mauss, como um dom que remete a uma dádiva, um mana que circula entre o nós e o eles, Ou, como fez Bruno Latour, transformar o segundo no primeiro, a fim de se tornar um “nativo relativo”, na expressão de Viveiros de Castro (2002). 13 Um exemplo interessante é descrito pelo antropólogo Rafael Menezes Bastos (Dioniso em Santa Catarina, Fpolis: Ed da UFSC, 1993), quando chamado para estudar a Farra do Boi e dar visibilidade à prática, cuja proibição era requerida pelo governo do Estado de SC e por parte da população. 14 Conklin (1995), Oakdale (2004). 15 Nessa arena, em busca da legitimidade, antropólogos também não fogem ao enfrentamento. Aí se situa a conhecida “rinha acadêmica” entre Obeyesekere e o irônico Marshal Sahlins. De quem são os nativos, afinal? Quem pode e quem não pode falar sobre o outro, expressar a sua própria interpretação sobre um objeto que se constrói? Obeyesekere, como oriental (ocidentalizado), numa volta aos Mitos e à história de vida, viagem e morte do capitão James Cook, proclama seu direito de falar sobre o encontro entre Cook e os havaianos já que não faz parte do mundo dos colonizadores como Sahlins, e supostamente não teria os mesmos vícios que este apresentaria na interpretação dos dados. Nesse caso, a própria identidade da antropologia e do antropólogo e suas interpretações estão em pauta, tendo como pano de fundo a antiga 12 8 cujos poderes são requisitados para afirmar identidades (essencialistas ou não) que devem ser respeitadas na sua alteridade. O lugar do outro Se por um lado “o outro” toma sua agência16 através da culture-consciousness17, em muitos casos fazendo antropologia dos antropólogos, ou tomando-os como seu objeto de estudo18, por outro lado, na antropologia, o lugar da alteridade também varia muito ao longo da história da disciplina e remete a diferentes modos de relação com a empiria. Do “outro inferiorizado” da escala evolutiva de Morgan, cuja origem comum contrasta “primitivos” e “civilizados” (Montero, 1997), ao outro particular e homogêneo do funcionalismo inglês de Radcliffe-Brown e Malinowski (Hanners, 1997; Montero, 1997) e do particularismo de Boas, cujas noções de diversidade e diferença inauguram um conceito de cultura irredutível, não comparável, “funda-se imaginariamente grupos étnicos discretos e homogêneos com língua, hábitos, valores e psicologias próprias – logo, com uma identidade própria” (Montero, 1997:59). Com estas “comunidades étnicas”, imaginadas por pesquisadores e administrações coloniais (Copans, 1999)19, a identidade nacional coloca-se como meio de domesticar diferenças e particularidades, reforçando o Estado-nação. relação, discutida já pelos antropólogos ingleses, entre o colonizador e o colonizado. Sobre o tema, ver Kuper (2002) e Geertz (2001). 16 É preciso observar processos por vezes perversos no entendimento da “agência” nativa. Algumas ONGs e órgãos internacionais financiadores de projetos em áreas indígenas vêm sistematicamente introduzindo burocracias “brancas” nas comunidades, alegando que essas são agentes, e portanto não devem depender de brancos. Foi surpreendente ver um livro preparado por uma ONG (São Paulo) para formação de líderes indígenas, que incluía ensinar aos mesmos que em cada reunião deveriam dar boas vindas, apresentar-se, dar a palavra às pessoas, e depois, ao final, recolher canetas, lápis, borrachas, cadeiras, e finalmente “apagar a luz”. O livro dedicava várias páginas a explicar esses procedimentos básicos de “como se reunir”. 17 Sobre este aspecto, destaco os trabalhos de Oakdale (2004), Conklin (1995), Turner (1996) e Menezes Bastos (1996). 18 Elsje Lagrou, citando Erikson, Keifenheim e Calávia Saez, observa que os Pano são conhecidos na literatura etnográfica como especialmente “obcecados” pelos estrangeiros e por todos os tipos de “outros”. Diz que o intrigante conceito nawa, para o qual há variações na maioria desses grupos, é paradigmático da ambigüidade Pano com relação à definição de fronteiras entre o “eu” e o "outro”. 19 Copans (1999), ao referir-se ao tema, afirma que “numerosas análises das tipificações étnicas concluíram que foram as administrações coloniais que inventaram as etnias, categorizando e diferenciando oficialmente grupos com fronteiras móveis e com identidades mais relacionais que tradicionais” (:72). Para ele, as regularidades existiam, mas é o campo político moderno que lhes confere significação e que dá coerência e continuidade ao que é heterogêneo e descontínuo. Para uma abordagem mais detalhada sobre esta questão, ver também Ella Shohat e Robert Stam, “Form of Imperial family to the transnational imaginary: media spectatorship in the age of Globalization” (in: Wilson, R. and Dissanayake, W., Global, Local. Cultural Production and the Transnacional imaginary, Duhan e Londres: Duke Press, 1996). 9 Até a metade do século XX, postula-se um outro relacional cujo estudo só pode ser feito na interação com grupos vizinhos (Edmund Leach, [1964] e Max Glukmam), ou na relação face-a-face (Erving Goffman, [1959]), na qual, a partir de “uma realidade concreta de um grupo local de pessoas” (Leach, [1964]:29), a cultura passa a ser vista como espaço de conflito, cujas relações e os papéis sociais não estão dados a priori e nunca estão em equilíbrio. Cachins e Chans, dois grupos vizinhos estudados por Leach, reportam-se aos rituais e à língua para se aproximarem e para se oporem aos demais (no grupo e fora dele), constituindo assim fronteiras em termos rituais-simbólicos e políticos. Com a noção de estrutura social em situações práticas, Leach apresenta os indivíduos de um determinado grupo ou etnia como agentes ativos, e atribui ao desejo de ganhar poder um dos principais móveis de suas ações – e, conseqüentemente, de mudança social. Essa perspectiva é contemporânea da “heresia” do deslocamento do objeto antropológico dos sistemas coloniais para os centros de migração urbana (Velho, 1979), onde foi possível verificar que sequer o Estado-nação liquidou as diferenças identitárias; ao contrário, as reivindicações étnicas tornavam-se cada vez mais evidentes em um mundo onde a hegemonia nacional parecia mais contundente. A noção de uma identidade relacional ou construtivista (Agier, 2004) é assumida definitivamente a partir dos anos 60 com os clássicos trabalhos de Frederich Barth, Grupos Étnicos e suas fronteiras (Barth, 1969), e, quase na mesma época, de Roberto Cardoso de Oliveira, Identidade, Etnia e Estrutura Social (1976). Mediante um deslocamento nos estudos de etnicidade “do foco das relações de equilíbrio e das representações de consenso para as relações de conflito e para as representações de dissenso” (Cardoso de Oliveira, 1976:47), abrem-se caminhos para uma “cultura inventada”, mas nem por isso menos original, cuja história da invenção será mais tarde objeto central dos estudos de etnogênese. A obra de Barth (1969) é considerada um marco fundamental, pois a partir dela se acata de forma ampla que identificação étnica não remete à cultura e à sua permanência. Deslocando a análise da formação da identidade étnica para as suas fronteiras, Barth (1969) afasta-se de perspectivas culturalistas. Este autor apresenta o grupo étnico como um tipo organizacional, considerando: a atribuição categorial na dialética exógeno/endógeno, que constitui o poder de nomear, e pela qual os atores se identificam e são identificados pelos outros; as fronteiras do nós/eles, produzidas e reproduzidas pelos atores que as manipulam no decorrer das interações sociais, que são mais ou menos estáveis e cuja manutenção não depende da permanência de suas culturas; a fixação de símbolos identitários, que 10 codificam a crença na origem comum; e, finalmente, a importância do “realce”, que abrange o conjunto de processos pelos quais os traços étnicos são destacados na interação social (Pontignat e Steiff, 1998:141,142). Roberto Cardoso de Oliveira propõe que se observe sistematicamente a sociedade nacional em sua interação com as etnias indígenas como elemento de determinação da dinâmica do contato interétnico. O conceito de “fricção interétnica”, um equivalente lógico, mas não ontológico, da luta de classes, é usado para abordar a relação entre índios e brancos nos seus antagonismos. Diferenciando grupos étnicos de classes sociais, Oliveira diz que a ideologia é estratégica para analisar o comportamento interétnico, pois nos estudos de situação de classe dos índios a etnia seria um sobredeterminador. Para esse autor, a essência da identidade étnica é a noção de contraste entre “nós” e “eles”: um se afirma negando o outro; em situações não raras de assimetria, friccionam-se em “culturas de contato”, em que a identidade é evocada no confronto. Tentando desvendar “etnicidade” em sua dupla dimensão, a de estrutura social e de identidade, o autor afirma que no tocante à estrutura social, os grupos de identidade minoritária possuem organizações próprias, diferenciadas ou não das sociedades nacionais em que se inserem. A identidade de caráter minoritário está em oposição a uma identidade majoritária, associada a grupos dominantes, geralmente instalados nos aparelhos de Estado, cuja identidade não se aplicaria à noção de etnia. A etnia, “uma representação social”, “uma relação”, só se revela dentro de uma relação assimétrica – está concentrada na identidade étnica, numa ideologia de caráter etnocêntrico, em cujo interior se condensam valores culturais mais expressivos do grupo minoritário, seja esse atual ou histórico. A “consciência” do outro relacional remete à polêmica crise dos “pósmodernos”. As acaloradas discussões sobre a relação da antropologia com o imperialismo e o colonialismo (entre as décadas de 60 e 80) chamam atenção para o “pós-colonialismo”, as novas identidades (da própria disciplina e dos “colonizados”), as discussões de gênero e, antes disso, para a questão da autoria antropológica, esta última provocando enorme debate e desconforto, especialmente dentro da antropologia norteamericana.20 Tal polêmica aproxima o conceito de cultura do “simbólico” (Rosaldo, Os chamados “pós-modernos” (Kuper, 2002) buscam desconstruir antigas categorias, num afã de aproximar ao máximo a antropologia da literatura, em alguns casos confundindo-as. Em outros, a sua contribuição vai além do que pareceu mais uma febre momentânea, com avanços teóricos fundamentais que se instituem em novas correntes, como a antropologia interpretativa, a antropologia simbólica. Estas atribuem grande importância à dialogia, ao simbólico e à hermenêutica. 20 11 apud Kuper, 2001). Além disso, ao aproximar a antropologia do “mundo real” numa “antropologia engajada”, quer tomar o próximo como objeto legítimo (como faz a antropologia urbana), rejeitando a exotização do “nativo”. O antropólogo torna-se um autor que produz um texto sobre um determinado grupo, e a antropologia uma atividade política. É no “burburinho” dos inúmeros movimentos reivindicatórios da época (Ortner, 1994; Kuper, 2001), numa relação estreita com conceitos antropológicos como o relativismo cultural, que termos como “cultura” e “etnicidade” viram “palavras de ordem”, tensionados com os direitos humanos universais. Este último, de resto, é um tema mal resolvido para a antropologia ainda hoje, já que a “cultura – es una intuición central de la antropología – se forma dentro de un sistema de variaciones. Crece en la medida que se particulariza; cuando busca la unidad, se disolve” (Saés, 2000:340). Sendo a cultura processual, dinâmica, conflitiva, e, mais recentemente – segundo abordagem pós-moderna –, polifônica, multivocal, emergente (Langdon, 1997), carregada de símbolos e envolvida em subjetividades de atores sociais que atuam constantemente, negociando valores e significados – ou seja, polissêmica –, parece fundamental entender que além de ser "uma espécie de abrigo virtual, ao qual é indispensável nos referirmos para explicar um determinado número de coisas, sem que este tenha jamais uma existência real" (Lévi-Strauss, [1977]:369), é importante considerar que a identidade se transforma numa ferramenta política21 que remete a símbolos, signos, valores elaborados pelos grupos em contraste com os seus outros, a serem utilizados especialmente quando o contexto reivindica, e reelaborados continuamente. Através dos “Panoramas globais” Apesar de não haver concordância entre os teóricos sobre o melhor termo para designar o período em que vivemos, isso é de pouca importância perante a unanimidade de que algo no mundo contemporâneo mudou. As novas formas de comunicação de massa, as interatividades virtuais, a expansão do mercado mundial, as transformações das grandes e pequenas cidades (Sassen, 2001), a junção e separação de grupos (Mayberry-Lewis, 2003), as reconfigurações de alianças internacionais, a junção de Estados-nação em blocos internacionais (Europeu, Mercosul) fazem parte de um arcabouço que, senão completamente novo, evidencia um certo ar de “desarranjo” em 21 Ver Copans (1999); Appadurai (1994); Friedman (1994); Carneiro da Cunha (1986). 12 categorias analíticas da modernidade, como etnia, classe, gênero e condição profissional, que antes situavam socialmente os indivíduos, e hoje se transformam em fronteiras ambíguas, permeáveis e móveis – causando, de resto, um desconforto teóricometodológico, na medida em que visões panorâmicas da cultura mundial parecem por demais abrangentes aos olhos dos antropólogos acostumados a atentar para o contexto local. Como estudar o particular num mundo onde na esquina de nossas casas se pode comprar os mais diversos produtos “made in” a preço de R$1,99, 1,98 22 , o in referindo-se normalmente um país “oriental”, mitologicamente construído pelo “ocidente”? num mundo onde índios brasileiros assistem ao vivo a queima de corpos na guerra do Iraque na TV? ou onde a guerra de imagens (Rial, 2004) sugere a manutenção de velhos mitos imperialistas, mas não consegue esconder mundos em total desacordo? ou onde fast-foods prometem oferecer aos viajantes globais o conforto do gosto familiar, sem deixar de dar seu toque cultural particular? Que entendimento locais puristas quereríamos extrair de “universos transpassados” como esses? Canclini (2003), auxiliado por autores como Sassen, Castells e Hannerz, sustenta que para uma cidade ser alçada à categoria de global deve atender aos seguintes requisitos: “ter forte presença de empresas transnacionais, especialmente de organismos de gestão, pesquisa e consultoria; ter uma mistura multicultural de habitantes nacionais e estrangeiros; ter prestígio decorrente da concentração de elites artísticas e científicas; ter alta porcentagem de turismo internacional”. Essas cidades globais, como Nova York, Paris, Los Angeles, Londres, Tóquio e Hong Kong, são diferenciadas daquelas “emergentes” como São Paulo, Cidade do México, Chicago, Moscou, Barcelona e Taipei, pois, nestas últimas, novos modos de gestão de serviços globalizados conviveriam com setores tradicionais. Certamente os fluxos entre local e global nessas cidades “globais” são muito mais intensos, como também o parecem ser as formas de inclusão e exclusão dos grupos que nelas convivem (Canclini, 2003; Shaw, 2002). Entende-se que o fluxo intensificado das imagens, dos mercados e das pessoas estão mais diretamente relacionados a grupos como o terceiro setor (Bhabha, 1998), transmigrantes (Ribeiro, 2003), mediadores culturais23 – os go-betweens (Velho, 2001) 22 Impossível não notar as inúmeras lojas de R$1,99 que se alastraram rapidamente a partir do final dos anos 90 na maioria das cidades brasileiras. 23 Para Velho (2001) “Os indivíduos, especialmente em meio metropolitano, estão potencialmente expostos a experiências muito diferenciadas, na medida em que se deslocam e têm contato com universos sociológicos, estilos de vida e modos de percepção da realidade distintos e mesmo contrastantes. Ora, certos indivíduos mais do que outros não só fazem esse trânsito mas desempenham o papel de mediadores entre diferentes mundos, estilos de vida e experiências” (:20). 13 –, comunidades virtuais e vizinhanças virtuais (Appadurai, 1994), em que o efêmero das possibilidades interativas formula sensibilidades, valores, espaços de convívio e configurações de tempo-espaço, que só podem ser entendidos em alguns casos com semânticas24 ainda não bem apreendidas. Giddens (1991), referindo-se ao mundo contemporâneo como uma conseqüência da modernidade, aponta certas descontinuidades, tais como a separação entre tempo e espaço, o desenvolvimento de mecanismos de desencaixe (como o dinheiro) e a apropriação reflexiva do conhecimento – descontinuidades essas que fornecem chaves importantes para a compreensão de eventos atuais e instituições modernas, suas fronteiras e suas virtualidades. Para o autor, as dimensões da globalização seriam o sistema de Estado-nação, a economia capitalista mundial, a ordem militar e a divisão social do trabalho. A globalização seria uma “intensificação das relações em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo muitas milhas de distância e vice-versa” (1991:69); nessa medida, através de um processo dialético, “a transformação local é tanto uma parte da globalização quanto a extensão lateral das conexões sociais através do tempo e do espaço” (1991:70). “Não podemos ignorar que o que acontece na vizinhança tende a ser influenciado por fatores – tais como dinheiro mundial e mercado de bens – operando a uma distância indefinida da mesma” (1991:70), de modo que o resultado não é um conjunto generalizado de mudanças que atuam numa direção uniforme, mas pode consistir em mudanças mutuamente opostas, o que mostra como a homogeneidade cultural parece inviável, e que “qualquer semelhança não é mera coincidência”. Parece que o mundo inteiro está perpassado por elementos do global. Num momento em que se anuncia que “tudo o que é sólido se desmancha no ar” e a relatividade einsteiniana se torna um paradigma, num momento em que os fluxos transmigrantes, as comunidades virtuais, os chats, os blogs e a expansão do mercado internacional reconfiguram a vida das cidades e de seus habitantes (Sassen, 2001; Maffesoli, 1997), e apontam para conexões entre local e global antes nunca imaginadas; nesse momento, dizíamos, temos aí elementos que se colocam como empirias 24 Guimarães (2000), estudando sociabilidades virtuais, ao deparar-se com as categorias nativas on-line, como por exemplo representações de papel de gênero, relembra a comparação feita pelo pesquisador de salas de bate-papo na internet Marcus Leaning, entre o mundo virtual e a literatura colonial: “Colonial literature sought to understand the new worlds by applying models from the known. This process was not a complete replacement of indigenous features with known ones by the colonialist. Rather, the process was one of a re-negotiation of concepts and cognitive templates. In applying a model of gendered 14 desafiantes (Rial, 1995; Guimarães, 2000),25 e abrem possibilidades analíticas que pretendem ir além dos centralismos e dos localismos, apontados por Menezes Bastos (1997) como núcleos improdutivos da discussão sobre o global na disciplina26. Parece que o outro se torna cada vez mais virtual 27 e, questão já apontada por Benedict Anderson [1983] pelo conceito de “comunidades imaginadas”, reavivou o debate sobre o binômio real/imaginado28 – neste caso não apenas da cultura e da identidade (não só a étnica; nunca foi só ela), mas da imagem, do amor, da cor da pele, do sexo, da intimidade, de localidades, dos nacionalismos. Uma inserção em estudos sobre globalização mostra a centralidade da desterritorialização e suas dinâmicas culturais nos transnacionalismos, nos novos agrupamentos étnicos, nos movimentos separatistas e formações políticas. Segundo Appadurai (2001), esses crescentemente operam de forma a transcender as fronteiras territoriais específicas e de identidades. Para o autor, a desterritorialização afeta as lealdades entre grupos e as estratégias do Estado; portanto, afeta a forma com que comunidades locais produzem seus significados. Para Appadurai (1996, 2001), a nova apreensão etnográfica exige repensar o papel da imaginação na vida social. Voltando-se aos “mundos imaginados” de Benedict Anderson, ressalta a importância de considerar os sonhos, fantasias, mitos e histórias, novos poderes da vida social moderna, para fazer uma “macroetnografia” do mundo desterritorializado. behavior to an unknown, cyberpace, we are applying a set of motifs to an unknown form” (Leaning, 1998 apud Guimarães, 2000:148). 25 A antropóloga Carmen Rial (2004), enquanto estava na França (final dos anos 80), de olhos abertos aos fenômenos sociais mundiais que transitavam à sua frente, chama a atenção para um novo campo para além dos velhos estabelecidos oceanistas, africanistas e americanistas. A autora pergunta: “Seria conveniente, em nome da sacralidade das fronteiras do campo, fechar os olhos aos títulos de jornais que anunciavam abertura de um fast-food em Moscou, ou em outras cidades situadas fora dos limites geográficos do meu campo? Ou ainda, deveria desviar os olhos das filas de espera diante do fast-food em Budapeste, deixar de escutar o relato de um empregado do McDonald's de Londres, passar sem entrar diante de um fast-food plantado no centro de Marraquesh? (Rial, 2004:04). 26 Entre os antropólogos, segundo Menezes Bastos (1997), a tensão constituinte da discussão entre global e local estaria entre os “centralistas” e os “localistas” (1997:05). O autor pontua a discussão entre Wolf (Europe and the People without history) e Sahlins (Ilhas de História). O primeiro se encaixaria entre os centralistas, para quem “o nível local dos fenômenos sócio-culturais e históricos teriam realidade apenas pontual, tipicamente no caso das relações das nações-estados modernas com os primitivos, tudo não passando da submissão destes últimos a uma lógica exterior, proveniente do dominador ocidental”. No extremo oposto estariam os “localistas”, representado por Sahlins, para quem “a problemática deixa de existir pois o que seria nível global daqueles fenômenos (sócio-culturais e históricos) se desfaz sob o império da intradutibilidade de lógicas locais” (Menezes Bastos, 1997:05). 27 Ribeiro (1996); Friedman (1994); Appadurai (1994). 28 A distinção entre realidade e imaginação é feita desde Aristóteles, que vê a imaginação como a possibilidade de evocar ou produzir imagens, independentemente da presença do objeto a que se refere. No caso deste texto, abordo este dois elementos não como duais, mas como Fichte propõe: a imaginação como produtora da realidade (Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, SP: Martins Fontes, 2000). 15 O nacionalismo e sua relação com o Estado-nação é, para Arjun Appadurai, um dos problemas mais importantes para as Ciências Humanas na atualidade, pois a emergência de “novos patriotismos”, como o do Québec, as “etnicidades modernas”, cuja proporção é muito maior que as “etnias tradicionalmente estudadas pela antropologia”, como as dos tamis, sérvios e bascos, confrontam-se violentamente com os Estados hegemônicos e contra outros grupos étnicos, e trazem um desafio ao próprio conceito de etnia. Transmigrantes readaptam a sua identidade nacional em territórios estrangeiros, muitas vezes etnicizando-se (Ribeiro, 2003), transformam seu território nacional num paraíso a ser reconquistado ou num porto seguro (real ou imaginário). O sentimento de pertença nacional e étnica, como já ocorria entre alemães migrantes do século XIX, conforme Giralda Seyferth, ao invés de evaporar, intensifica-se; a rapidez com que alguns grupos (não todos) podem ir e vir permite por exemplo que, morando no exterior, continuem com uma vida no seu país natal e invistam nele política e financeiramente, mantendo vínculos afetivos, econômicos e políticos quase cotidianos (Appadurai, 1994). Um exemplo da importância que transmigrantes exercem na building nation é o caso dos Filipinos nos EUA descritos por Basch, Glick-Schiller e Blanc (1994). Organizados, mesmo à distância, conseguem mudar o governo do seu país. O campo social transnacional torna-se o palco de ininterruptas negociações entre grandes interesses estatais e econômicos, onde o idioma dos Estados-nações, seus símbolos, seus ícones e o próprio sentimento nacional não desaparecem, mas são até mesmo intensificados. Grünewald diz que, “se a antropologia focaliza a interação social que cria as fronteiras étnicas, para os membros desses grupos o discurso étnico ressalta, na maioria dos casos, os conteúdos de sua origem, história, cultura ou raça – mesmo que esses sejam criados no presente para fins de auto-representação ou de representação para os outros” (2003:5). Os exemplos estudados mostram que a “valorização do local’, a proliferação dos hibridismos, o “mundo em pedaços”, as “fronteiras sociais flexíveis”, as “zonas simbólicas” de contato, o favorecimento do jogo tático de identidades não impedem a tensão com categorias universalizantes de sujeitos e de coletividades, que levam adiante o projeto moderno da expansão do Estado-nação, tão falado nas ciências humanas, já que esse trata de cumprir com alguns artifícios de garantia dos nacionalismos ao incutir nos seus compatriotas a necessidade da segurança (física e simbólica) que o Estado oferece, mesmo para os transmigrantes. Mas também mostram 16 a formação de novos espaços de convivência como os “vizinhos virtuais’ (Appadurai, 1996), “comunidades afetivas” (Lacerda, 2003), as comunidades virtuais em que a desterritorialização permite o “estar junto” de pessoas reais e imaginadas. São estudos que se iniciam e que têm muito a ensinar sobre mutações e conexões entre os universos “inter” e “trans”. O outro e o eu performáticos Maffesoli (1989) e Featherstone (1990) consideram a nossa época como um período da estetização da vida cotidiana, da barroquização do mundo. Maffesoli (1997) aborda a materialidade do estar-em-conjunto da pós-modernidade através do “paradigma estético”, tentando mobilizar o porquê e o como dos múltiplos agrupamentos efêmeros da pós-modernidade. Para o autor, a transfiguração do político está justamente neste novo “estar junto” estetizado da vida cotidiana. A agência e as reivindicações (étnicas, de gênero, religiosas, etárias), a cultura inventada, as comunidades virtuais/imaginadas, as aglomerações estetizadas, o neotribalismo trazem à tona o que tem sido discutido pelos autores preocupados com o turismo cultural (Banduchi e Barreto, 2001): a alteridade gerida pela mimese. Como já foi apontado por Goffman (1969) e por Barth (1969), ao interagir com o seu “outro” imediato, seja ele o “não-índio”, o “não-nativo”, o “não-negro”, o “não-branco” – o outro muda conforme o contexto e a exigência da fronteira –, os “agentes” tratam de perceber o que é ser “índio” para esse outro e, na perspectiva da aceitabilidade no “mercado das etnias”29, passam a representar para esses o que os indígenas acham que os brancos acham que é ser índio. Essa manipulação da representação de si ou do grupo foi acusada muitas vezes de “não autêntica”, tanto nos media quanto em trabalhos acadêmicos, colocando comunidades como “engodos culturais”, e considerando a “cultura inventada” como uma farsa, um simulacro, já que “apelam para artifícios não originários” do seu próprio grupo. O que é preciso nesses casos, mais uma vez, é voltarse para o contexto e pesquisar onde e como se dá a representação do grupo, e como a “autenticidade” é reivindicada, para entender o que se passa além da perspectiva de “simulação” que muitas vezes impregna o olhar do pesquisador. Segundo Subirats Ao usar a expressão “mercado das etnias”, não estou tentando anatematizar o uso variado dos atributos identitários entre os grupos sociais como pura mercadoria, mas chamar atenção para a habilidade perceptiva dos grupos sociais em entender e usar de forma inteligente e eficaz os conceitos em voga na academia, nos debates amplos das financiadoras, do próprio Estado que o abrange, e por que não dizer, dos atributos globais que chegam até esses. 29 17 (1989), “a reprodução do mundo como simulacro pressupõe o fim do sujeito e da história, o esvaziamento consumado da existência na ordem indiferenciada da cultura, concebida como segunda natureza ou natureza programada” (1989:66). A minha preocupação aqui não é com o autêntico ou não autêntico da cultura, mas sim com a recorrência do uso de rituais, espetáculos ou eventos que “encenam a cultura” (Goffman, 1989), e a partir dessas chamar a atenção para a performatividade e a narratividade presentes nesses eventos de contato identitários (inter- ou transsocietários), especialmente quando focamos aquelas personagens eleitas pelo grupo para fazerem a mediação cultural. Nesse caso, etnicidade, além de uma ferramenta política e de um abrigo virtual carregado de símbolos, passa a ser também uma possível narrativa de si (e do seu grupo) em relação ao outro e, mais especificamente, como uma performance, nos termos de Bauman (1977) e de Briggs (1990), em que os atores ou grupos sociais, na experiência do evento da interação, estão tentando comunicar algo a um público que os avalia constantemente, de modo que precisam exibir talento e competência para adquirir legitimidade. Essa identidade performática, como a chamarei aqui, não se limita aos grupos indígenas em seus contatos com as comunidades nacionais (apesar de serem muito freqüentes entre alguns grupos, como os Kayapó, os Kamayurá, os Xavante, talvez justamente por serem esses que têm se tornado visíveis nos meios de comunicação), mas se expande por todos os setores sociais que pretendem requerer uma identidade de grupo (permanente ou momentânea); além disso pode ser observada em individualidades como propõe Simmel [1902], quem, ao analisar o homem moderno do início do século XX, já anunciava que, ao viver nas cidades, "a pessoa precisa enfrentar a dificuldade de afirmar a sua própria personalidade no campo abrangido pelas dimensões da vida metropolitana” (1979:22). Para Simmel [1902], “onde o aumento quantitativo em importância e o dispêndio de energia assumem os seus limites, a pessoa se volta para as diferenças qualitativas, de modo a atrair, por alguma forma, a atenção do círculo social, explorando sua sensibilidade e diferenças. (...) o homem é tentado a adotar as peculiaridades mais tendenciosas, isto é, as extravagâncias especificamente metropolitanas do maneirismo, capricho e preciosismo. Agora, o significado dessas extravagâncias não jaz absolutamente no conteúdo de tal comportamento, mas antes na sua forma de 'ser diferente', de sobressair de forma notável e assim atrair atenção” (Simmel, 1979:22). Essa “metacultura” definida por Greg Urban como “culture that is about culture” ou o “judgments made by natives about similarietes and differences with the past and 18 change” (Urban apud Oakdale, 2004:02), mais do que uma problemática ontológica, é uma questão de reflexividade (Giddens, 1991) e de entendimento das regras do jogo estabelecidas num sentido do poder foucaultiano (relacional), que serve não somente para o contato com o “não-índio”, mas também, e especialmente, frente a especialistas de todo o tipo e a instituições de toda ordem e abrangência, tais como o Estado, a Nação, os meios de comunicação, agências financiadoras de projetos, a Igreja, a academia, entre outras. Mauss [1936] refere-se à mimese da gestualidade social inscrita na manifestação cotidiana das atuações corporais, entendidas como realizações e montagens fisiopsicológicas; neste sentido, o corpo é ao mesmo tempo instrumento com que se molda o mundo e substância a partir da qual, por usos metafóricos e metonímicos, se entende o mundo. Não se trata de acusar o outro de representar aquilo que queremos, porque se sabe que o processo de representação de si é cheio de efeitos caleidoscópicos surpreendentes (e por isso mesmo cabe continuarmos a refletir sobre estes últimos). Parece que é preciso olhar além da desconfiança, e salientar as estratégias de representação do “nós” e do “eu”, que são mais complexas e portanto menos estáticas e lineares do que se supôs serem na luta travada por alguns setores da disciplina, durante os anos 80, na “recuperação das etnicidades”. Para Leslie Baxter e Barbara Montgomery, a dialética relacional reconhece diferenças fundamentais nas interações relacionais cronotipicamente situadas, diferenças essas que representam a multivocalidade da existência social. Essas diferenças serão, muitas vezes, mutuamente exclusivas e contraditórias (Baxter e Montgomery apud Mendes, 2002). Assim parece ser a identidade da pós-modernidade. Ao focar a idéia de performatividade, Judith Butler (2003) diz que o gênero é uma identidade tenuamente constituída no tempo, instituída num espaço externo por meio de uma repetição estilizada de atos, cujo efeito se produz pela estilização dos corpos – é uma temporalidade espacial. Gênero, para Butler, é um estilo corporal, um “ato” que é tanto intencional como performativo, onde performativo sugere uma construção dramática e contingente de sentido (2003:199). Para a autora, o eu do gênero é permanentemente estruturado por atos repetitivos que buscam aproximar o ideal de uma base substancial de identidade, mas revelador, em sua descontinuidade ocasional, da falta de fundamento temporal contingente dessa “base”. Então, os atributos de gênero não são expressivos, mas performativos, constituindo efetivamente a identidade que 19 pretensamente expressariam ou revelariam. Portanto, “não há identidade pré-existente pela qual um ato ou atributo possa ser medido; e não há atos de gênero verdadeiros ou falsos, reais ou distorcidos” (Butler, 2003:199), assim como não deve haver identidades quaisquer verdadeiras ou falsas, imitação de uma cultura autêntica. Se não há sequer cultura dada, como imitá-la? Se há, voltamos ao princípio da discussão da homogeneidade e da imutabilidade da cultura. Para além dos conflitos intersocietários nos estágios atuais da globalização, que não são poucos e cuja análise não é menos pertinente, quero fechar este texto pensando nas micropolíticas das identidades – um processo que envolve a interioridade e a exterioridade, e que transcende a dúvida entre real e imaginado. A sua estetização e a sua performatividade, capacidades altamente criativas, inventivas, perceptivas, politizadas e portanto que refletem sobre o que é o contato com o outro – seja ele presencial imediato, regional, global, ou ainda virtual (mas nem por isso menos presente) – espalham-se como a etnicidade proposta por Carneiro da Cunha (1986): como uma linguagem em que a situação do contato e as muitas informações captadas nela, dadas num enquadramento adequado (Bateson, 1998), vão permitir que o grupo e os seus membros expressem as suas capacidades criativas e as suas potências imaginativas, recriando a mesmidade da cultura. A performance entra aqui como um elemento essencial e não mais uma farsa ou imitação, pois é ela que permitirá a estratégia do contato, que, segundo Rafael Menezes Bastos, é sempre uma tentativa de armistício, talvez sem nunca o levar a cabo, já que cisões também são constitutivas: criam-se cisões dentro dos mais pequenos grupos, muitas vezes dentro de nós mesmos, saindo da mesmidade estagnante. Como propõe Maffesoli (1997), “é preciso saber aceitar esses meandros de uma vida efervescente e empática que não se deixa encurralar, a priori, num sistema de verdades preestabelecidas”, e que é capaz de criar igualdades quando a diferença inferioriza, e de criar diferenças quando a igualdade descaracteriza. Assim, a cultura, a etnicidade (neste caso a identidade) são arenas pintadas com motivos barrocos mutantes, nas quais estamos todos a jogar (ou a brincar), por vezes entendendo as regras do jogo, outras vezes inventando-as, ou ainda sendo surpreendidos por elas ou pela (in)comunicabilidade nelas. O problema desse “eu performático” é que a sua estética inclui os mais extremos exemplos de atuação e de legitimidade, como foi a de Hitler e a de Stálin, para citar alguns, e mais contemporaneamente a atuação de Bush, ou dos paramilitares 20 colombianos, ou dos narcotraficantes no RJ – atores que vistos um a um parecem performances individuais, mas que enunciam, explicitam ou instigam performances coletivas que incluem sentimentos como a xenofobia, o desejo desenfreado pelo poder, os nacionalismos mais fulminantes, com rituais que não raro incluem sacrifícios de sangue. Mesmo assim, quero enfatizar a sua cultura possível – combatível, do meu ponto de vista, mas, acima de tudo, possível, especialmente quando instigada por “grandes homens” por nós mesmos inventados. No sentido delineado nos últimos parágrafos, podemos dizer que o jogo antropológico é também uma performance, uma forma de se tornar visível perante o outro ajudando-o a criar a sua narrativa performática, mas também criando a sua própria. É nessa perspectiva que o trabalho do antropólogo não se restringe ao contato com esse “outro nativo”, mas de si mesmo como outro (Eckert e Rocha, 1998), já que na narrativa do seu contato com o outro se depara com o si mesmo como um outro. E se para Valeri (1994) o jogo oferece, pois, ao adulto o espelho em que se deveria necessariamente olhar para redescobrir o Si ilusório em que se funda o Si real, eu proporia que nos jogos da identidade o Si é sempre ilusório, inventado, virtual, cheio de barroquismos e, ainda assim, real. 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