A ANÁLISE DE ADVÉRBIO EM SALA DE AULA: UMA POSSÍVEL CONTRIBUÍÇÃO AO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA Rafael Bezerra de LIMA1 - UFAL 1. INTRODUÇÃO O ensino de (L)íngua (P)ortuguesa, no Brasil, tem por finalidade, segundo diversas propostas curriculares, criar situações nas quais os alunos ampliem o domínio ativo do discurso nas diversas situações comunicativas, possibilitando, nesse sentido, sua inserção efetiva no mundo da escrita, ampliando a probabilidade de participação social no exercício da cidadania. Porém, de uma maneira geral, o que se pode observar atualmente em diversas escolas, tanto na rede pública quanto na rede privada, é que essas situações são excluídas das aulas do ensino de LP e, se ocorrem, são de maneira oblíqua, dando ênfase maior às regras “ditatoriais” da (G)ramática (T)radicional, encontrando-se o aluno impossibilitado de criar suas próprias idéias e desenvolvê-las. É pertinente pontuar que este trabalho faz referência a uma das oficinas ministrada por mim em parceria com Adeilson Pinheiro Sedrins e promovida pelo projeto RALPE (Reflexão e Análise Lingüística versus Produção Escrita nos 3o e 4o ciclos do Ensino Fundamental), vinculado ao PET (Programa de Educação Tutorial). Esse projeto se propôs a viabilizar uma proposta teórico-metodológica alternativa para o ensino/aprendizagem de LP e tentar amenizar as deficiências sofridas pelos alunos e professores no que diz respeito às formas tradicionais de ensino. Os professores, dentre outros fatores, por não terem uma formação adequada e/ou subsídios suficientes para verem além da GT; e os alunos por não usarem ou serem inibidos de usar sua língua de forma natural, talvez por serem marcados pela imposição de regras gramaticais nas aulas de língua materna. Com base nas questões acima mencionadas, propomos então uma alternativa de ensino do advérbio, na sala de aula, partindo não das definições, como propõem as gramáticas normativas, mas do conhecimento lingüístico que o aluno possui, levando-se em consideração que se trata de um falante nativo de sua língua. 2. UMA ANÁLISE A PARTIR DO USO Uma das formas mais instigantes de análise lingüística em sala de aula é a produção textual, haja vista que a partir dela pode-se trabalhar diversos aspectos gramaticais de uma única vez. Em razão disso, abaixo, selecionamos alguns textos2 produzidos por alunos, seguidos das análises de seus próprios professores. É pertinente destacar o fato de que foram refutadas as orações adverbiais, atemo-nos apenas ao advérbio e às locuções adverbiais. 1 2 Bolsista CAPES e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFAL. Os textos foram digitados conforme a escrita dos alunos. Texto I È ótima por que ensina como escrever e falar as palavras corretamente e com a colaboração da professora fica melhor. · A spectos apontados: Corretamente, relacionando-se à maneira de escrever e falar; com a colaboração da professora, apenas alguns professores apontaram a expressão como adverbial; melhor, referindo-se à aula, (como em: Assim, a aula fica melhor). Houve dúvidas em classificar como adjetivo ou advérbio. Texto II Eu gosto das aulas da professora, ela explica muito bem e a gente entende. Mas de boa professora ela é gentil, educada e trata a gente com respeito. · A aspetos apontados: Muito, intensificando o advérbio bem; bem, relacionado ao verbo explicar; com respeito, relacionado ao verbo tratar. Texto III É uma aula boa e ao mesmo tempo é chata, porque a professora fala muito, escreve demais, mas explica bem. A professora é muito rígida as vezes por causa da bagunça em sala. Não tenho mais nada a declarar. Esqueci, não gosto muito da matéria, prefiro o inglês. · A spectos apontados: Muito (do inicio da segunda linha), relacionado ao verbo falar; demais relacionado ao verbo escrever; bem relacionado ao verbo explicar; ao mesmo tempo relacionado a todo o predicado; muito (final da segunda linha) relacionado ao adjetivo rígida; às vezes: dúvidas em classificar como modificador apenas do adjetivo rígida ou de toda a oração; em sala relacionado ao nome bagunça;não, relacionado ao verbo; mais relacionado ao verbo ter; não e muito (quarta linha) relacionados ao verbo gostar. Nas análises feitas pelos professores, verificamos algumas vezes a dificuldade de chegar a um consenso no que diz respeito à identificação e classificação de um advérbio, bem como sua sintaxe. De vários exemplos, a expressão em sala (no texto III), chamou bastante a atenção por estar expressando circunstância de lugar, porém especifica também o substantivo bagunça. Alguns gramáticos podem justificar como sendo uma locução adverbial de lugar, mas estas podem ser deslocadas para a periferia ou centro da oração sem alterar-lhe o sentido como em: (i) (ii) (iii) Todos conversam na sala Na sala, todos conversavam Todos na sala conversavam No entanto, se permutarmos a expressão em sala, no exemplo dado, poderemos verificar que o sentido será alterado, determina-se, portanto, que o termo está realmente relacionado ao substantivo. Nas análises supracitadas, é possível observar, também, a existência de vários fenômenos lingüísticos nos textos, que não são relacionados a advérbios, isso, entretanto, não impede que o professor, optando por trabalhar com as produções, discuta-os em sala de aula. É partindo disso que notamos o quão importante é levar em consideração as produções textuais dos alunos. A partir do exposto, faz-se mister pontuar que essas análises servem também para que os professores de LP reflitam sobre a importância de não adotarem a classificação de palavras sem que estas estejam inseridas num contexto. Com base nessa premissa, verificamos que alguns advérbios vão de encontro ao modo de classificação da GT, uma vez que esta separa os advérbios em quadros (BECHARA, 2004; CUNHA, 1986; ALMEIDA, 2001; ROCHA LIMA, 1964), sem levar em consideração, porém, os diversos contextos em que podem ocupar na fala. Neves (2000) afirma que: Na prática, o gramático defronta-se com inúmeros exemplos em que aqueles critérios (morfológico e sintático) levam a classificações conflitantes; e às dificuldades da aplicação dos próprios critérios a gramática tradicional tem acrescentado as de um tratamento até certo ponto inconseqüente, decorrente em grande parte da tentativa de associar de maneira constante à palavra certas propriedades que se confirmam apenas para algumas de suas ocorrências. Ao classificar e expor os advérbios em quadros como, por exemplo, advérbios de modo, intensidade, dúvida etc., a GT ignora a possibilidade de um mesmo vocábulo exprimir diversas circunstâncias em contextos diferentes, ou até mesmo, apresentarem uma função diferente da sua como o caso de agora, classificado pela gramática como advérbio de tempo, mas que tem a função, em alguns contextos, de conjunção coordenativa como, por exemplo, em “vou fazer a prova, agora não estudei”. Parece-nos, então, ser importante objetivarmos analisar as ocorrências dos advérbios em seu uso concreto, buscando, junto aos professores, uma alternativa para uma melhoria do ensino da LP. 3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS DEFINIÇÕES GRAMATICAIS ACERCA DO ADVÉRBIO Como foram expostas na introdução desse trabalho, as definições inframencionadas apontam alguns defeitos em suas definições, deixando-as, dessa maneira, incoerentes em relação ao uso. É importante levar em consideração que não é nossa finalidade propor uma definição que contemple todas as possibilidades de uso do advérbio, mas destacar que simples definições, como fazem as GTs, não levam os alunos a identificar os advérbios, apesar de eles os usarem em suas produções textuais. Vejamos: (i) “Advérbio é a expressão modificadora que por si só denota uma circunstância (de lugar, de tempo, modo, intensidade, condição etc.) e desempenha na oração a função de adjunto adverbial”. (BECHARA, 2004, p. 287); (ii) [Do Latim Adverbiu.] s.m. gram. “Palavra invariável que modifica um verbo, um adjetivo ou outro advérbio, exprimindo circunstância de tempo, de lugar, modo, dúvida etc”. (AURÉLIO, 1986, p. 51); (iii) “É a palavra que geralmente modifica o verbo, indicando as circunstâncias em que se dá a ação verbal”. (CEREJA & MAGALHÃES, 1999, p. 172); (iv) “É o vocábulo determinativo do verbo, do adjetivo ou de outro advérbio” (SAID ALI, 1964, p. 183). A primeira definição se apresenta ao aluno como acontece em aulas tradicionais de gramática, deixando muito a ser explicado. Seria necessário que ficasse claro o que é função de adjunto adverbial, o que é uma circunstância e uma expressão modificadora. Na oficina, os professores apontaram as definições como sendo redundantes, não esclarecendo o que realmente vem a ser um advérbio. No que se refere à segunda definição, traz o critério morfológico do advérbio como palavra invariável, encontrado em várias gramáticas. Outro aspecto que devemos levar em consideração refere-se ao grau do advérbio, por exemplo, na frase: o sorvete está um pouquinho ruim, seria coerente dizer que o advérbio varia, de acordo com esse exemplo? Sandmann (1991) destaca a confusão que gramáticas trazem considerando o grau como flexão: [...] o morfema que indica grau não é flexão, mas sufixo [...] o advérbio é uma palavra invariável. Perto, pertinho e pertíssimo são lexemas diferentes, são unidades lexicais independentes, partilhando, é claro, a mesma base perto. O autor aponta ainda o caráter sistemático a que uma flexão obedece na LP, como a de número representada pela presença ou ausência da desinência –s, em oposição a derivações que não obedecem a um critério sistemático, como acontece com o grau do advérbio. É importante ressaltar que não há considerações sobre o uso nessas reflexões de Sandmann (op. cit.), pois não faz menção à utilização, errônea segundo a GT e variável do ponto de vista lingüístico, de formas gramaticais como: “eu num tinha estudado”, “professor, eu num vou não.” As definições: “É a palavra que geralmente modifica o verbo, indicando as circunstâncias em que se dá a ação verbal” e “É o vocábulo determinativo do verbo, do adjetivo ou de outro advérbio” remetem ao aspecto sintático de palavra modificadora apenas de adjetivo, verbo e do próprio advérbio. Neves (2000, p. 235) considera o advérbio como “satélite de um núcleo”, podendo este núcleo além das categorias mencionadas nas definições das GT ser um numeral, como nos mostram os exemplos em (1): (1) É um imperativo de segurança da causa, que todos esposamos valorizar também a América Latina, com os seus duzentos milhões de habitantes APROXIMADAMENTE, fazê-la adquirir maior relevo. A autora ainda aponta exemplos de uso de advérbio relacionados a pronomes, como exemplo em (2), à conjunção embora, como exemplo em (3), a substantivo, como exemplos em (4), e principalmente a toda uma oração, como pudemos verificar no exemplo em (5). (2) E quem sabe se de tudo que pudesse fazer, se entre todas as reações possíveis, não era JUSTAMENTE isso – ceder, pagar. (3) Alguns inquéritos solicitados pelo Saps à polícia arrastam-se morosamente sem chegar à apuração policial dos crimes, MUITO embora as autoridades da mais alta hierarquia se empenhem nisso. (4) a. Não diz bobagem. Greve AGORA não vai nada bem. b. Portas À DIREITA e À ESQUERDA. (5) a. INFELIZMENTE, não poderei ir para a escola hoje. O exposto acima nos oferece subsídios para propormos uma analise do advérbio de maneira que levemos em consideração a capacidade do aluno em usar/utilizar efetivamente sua própria língua. Não se está aqui afirmando que se deva excluir a GT das aulas de LP, mas, ao contrário, temos que promover ao aluno o acesso às tais normas, uma vez que isso o tornará um poliglota em sua própria língua. Ao nosso modo de ver, o papel fundamental da escola é tornar o aluno apto a usar a norma padrão nas situações comunicativas em que for necessária, sem, com isso, excluir todo o conhecimento prévio que ele já possui. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS É imperativo destacar que as considerações acima expostas longe estão de contemplar todos os aspectos relacionados ao advérbio. Porém, é preciso alertar aos professores de LP que observem a gramática, não mais como um conjunto de regras incontestáveis. Consideramos mais importante que o esforço do professor para que o aluno saiba classificar os advérbios e as locuções adverbiais em quadros distribucionais e classificatórios, destacar a função dessa categoria na produção de textos, pois permitem precisar melhor as ações, os nomes etc. Sugerimos que o professor desenvolva situações em que o aluno possa utilizar circunstâncias em seus textos, explorando vários meios de precisar, complementar suas informações, respondendo a questões como: Onde? Quando? Como? Por quê? Com quê? Com quem? etc., sem necessariamente recorrer a terminologias e definições que bloqueiam a atividade lingüística do aluno em sala de aula, fazendo com que saia da sala dizendo: “não entendo nada de português”. 5. REFERÊNCIAS ALMEIDA, N. M. de. Gramática metódica da língua portuguesa. 44.ed. São Paulo: Saraiva, 2001. BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37.ed. rev. e amp. 14. reimpr. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T. C. Gramática reflexiva: texto, semântica e interação. São Paulo: Atual, 1999. CUNHA, C. F. da. Gramática da língua portuguesa. 11.ed. Rio de Janeiro: FAE, 1986, p. 499. NEVES, M. H. de M. Gramática de usos do português. 2.ed. São Paulo: UNESP, 2000. ROCHA LIMA, C. H. da. Gramática normativa da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1964. SAID ALI, M. Gramática histórica da língua portuguesa. 3.ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1964, p. 183-203. SANDMANN, A. J. Morfologia geral. São Paulo: Contexto, 1991.