391 - O papel do MangueBit na música contemporânea brasileira.

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ÁREA TEMÁTICA: Arte, cultura e comunicação.
O papel do MangueBit na música contemporânea brasileira.
NASCIMENTO, Francisco Gerardo Cavalcante do
Mestrando em História
Universidade Estadual do Ceará
[email protected]
Resumo
Forjado nas usinas culturais das periferias brasileiras, o MangueBit multicultural por excelência, delineou
os novos rumos da música contemporânea do Brasil, tendo em sua alma o conceito de diversidade de
culturas, instituiu novas modalidades de cultura, repensadas em um contexto global, porém com os pés
fincados em suas raízes, denotando assim a idéia principal do movimento MangueBit “Uma parabólica
enfiada na lama”. Idéia que representa todo um contexto de negociações culturais em diversos aspectos,
ou seja, unir o secular representado pelos Maracatus, cirandas, emboladas, afoxés, com o elemento
estrangeiro representado pelo Hip Hop, Soul, Funk, Rock, entre outros estilos.
Desta forma acreditamos que o MangueBit foi singularmente heterogêneo comparando-o com outras
manifestações culturais do Brasil contemporâneo, utilizando para isto toda a conjuntura sócio-cultural da
cidade de Recife, representada em verso e prosa pelos seus poetas urbanos.
Nesta seara de configurações o MangueBit construiu suas composições a partir dos problemas inerentes
à cidade de Recife, de uma forma em que a mesma pareça um lugar imaginário, em que seus habitantes
assumam características antropozoomórficas, e que os heróis do povo sejam justamente os antiheróis do
imaginário popular.
A denominação do MangueBit ultrapassa as fronteiras de um gênero musical, tornado-o uma extensão da
forma de pensar um habitat cultural, em que a ruptura estética é uma necessidade para a auto-afirmação
enquanto seres produtores e consumidores de cultura, em suma uma grande teia cultural tecida por
jovens insatisfeitos com a cultura transmitida em sua cidade e que através de um cooperativismo cultural,
fomentaram um ser híbrido da música contemporânea brasileira.
Palavras-chave: Maracatu, Música, Multiculturalismo, Hibridismos, MangueBit.
NÚMERO DE SÉRIE: 391
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O PAPEL DO MANGUEBIT NA MÚSICA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA
1 - A GÊNESE MANGUEBIT
Modernizar o passado/ é uma evolução musical/ é que as notas que estavam
aqui/ não preciso delas/ basta deixar tudo soando bem aos ouvidos/ o medo dá
origem ao mal/ o homem coletivo sente a necessidade de lutar/ o orgulho/ a
arrogância/ a glória/ enchem a imaginação de domínio/ são demônios os que
destróem o poder bravio da humanidade/ viva Zapata/ viva Sandino/Viva Zumbi/
Antônio Conselheiro/ Todos os panteras negras/ Lampião sua imagem e
semelhança/ eu tenho certeza/ eles também cantaram um dia.i
As notas musicais ressoaram pela cidade estuário, a evolução sonora proposta, foi deflagrada, através de
uma juventude instigada e desta forma a música contemporânea brasileira das duas últimas décadas foi
sacudida, tendo como ponto de partida a cidade de Recife no Nordeste brasileiro.
A Gênese do MangueBitii está datada por volta de 1991, quando alguns jovens insatisfeitos com a realidade
cultural de sua cidade, organizaram uma movimentação cultural, em que Recife servisse de inspiração para
seus versos repletos de caos, amores reais, antiheróis da história recente de Pernambuco, entre outros
temas.
A representação da cidade de Recife como um grande palco para a poesia e a música, foi um dos primeiros
passos dados por esta juventude inquieta, para a desconstrução de estigmas culturais e a organização de
um levante artístico, baseado na diversidade de estilos que uma metrópole brasileira oferece a seus
habitantes, principalmente Recife, com sua história marcada pela colonização portuguesa e o cultivo da
cana-de-açúcar.
O imaginário popular dos pernambucanos está repleto de influências indígenas, européias, e principalmente
africana, ou seja, verificamos ums forte tradição de manifestações da cultura afro na cidade de Recife, como
os Maracatus, Afoxés, Candomblés, entre outras.
As influências musicais, nas quais os artifices do MangueBit se inspiraram, foram muito além da cultura
popular pernambucana, estenderam-se além mar, ou seja, os ritmos estrangeiras como o Funk, Soul, Hip
Hop, Rock, a música eletrônica e a técnica de Sampleriii foram utilizados como ingredientes sonoras na
alquimia de sons que os Mangueboys1 proporam ao público.
Certamente, o termo fusão seria simplório para denominar toda esta negociação cultural, delineada pelo
MangueBit, ou seja, propomos uma resignificação de símbolos, ou:
Os termos do embate cultural, seja através de antagonismos ou afiliação, são
produzidos performativamente. A representação da diferença não deve ser lida
apressadamente como o reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos,
inscritos na lápide fixa da tradição. A articulação social da diferença, da
perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura
conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de
transformação histórica( Bhabha, 2005: 20-21)
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Desta forma o MangueBit entrou na música contemporânea brasileira como um ser híbrido, cambiante, que
soube traduzir o próprio momento histórico que o Brasil atravessava, ou seja, o início do MangueBit está
diretamente ligado a um período de transição da política brasileira recém saída de uma ditadura militar,
além do fim da União Soviética, eleições diretas para a presidência da república, uma maior divulgação da
Internet, Mcdonald´s, MTV, e principalmente a própria realidade sócio-cultural de Recife, classificada como
a quarta pior cidade do mundo para se habitariv.
Devemos ressaltar que o MangueBit não é um gênero musical, mas um estilo de pensar seu habitat cultural,
reler suas tradições na busca da ruptura estética, onde a fantasia de uma cidade imaginária como a
Manguetown se faz necessária:
Estou enfiado na lama / É um bairro sujo / Onde os urubus tem casas / E eu não
tenho asas / Mas estou aqui em minha casa / Onde os urubus tem asas / Vou
pintando segurando as paredes do mangue do meu quintal / Manguetown /
Andando por entre becos /Andando em coletivos / Ninguém foge ao cheiro sujo /
Da lama da Manguetown / Andando por entre becos / Andando em coletivos /
Ninguém foge à vida suja dos dias de Manguetown / Esta noite sairei / Vou beber
com os meus amigos / E com as asas que os urubus me deram ao dia / Eu voarei
por toda periferia / Vou sonhando com a mulher / Que talvez eu possa encontrar /
Ela também vai andar / Na lama do meu quintal / Manguetownv
A cidade imaginária que o MangueBit propõe se personifica, em um local onde o sujeito surreal, sai com os
amigos, anda de coletivo, é refém da poluição instalada na cidade, bebe com as poucas asas que foram
ganhas durante o dia em algum subemprego dirigido aos seres classificados como periféricos pelas elites,
porém ao mesmo tempo percorre toda esta periferia como um super-herói e usa o verbo voar no futuro do
presente, para reafirmar seu mundo de felicidade, sua diversão, reside na periferia, pois lá estão seus
companheiros, sua musa inspiradora que também anda sobre a lama; protagonistas do Brasil real que se
reinventa a cada dia, reinventa a própria realidade na busca de soluções para seus males, é assim uma:
Produção cultural urbana, agressiva, experimental, crítica, avessa aos encantos
da “indústria cultural”, produzida por grupos periféricos e marginais, cheias de
sonhos e imagens do desejo, mas profundamente refratária às formas de
sociabilidade do Brasil institucional. Formas culturais heterogêneas, disformes,
caóticas, mas representativas do processo de exclusão social existente no país
(Zaidan, 2000: 24)
É o MangueBit, essencialmente urbano, forjado nas usinas culturais periféricas da cidade de Recife,
descrente do Brasil oficial, híbrido, agressivo, e experimentalista por excelência, que sempre buscou “novas
modalidades de organização da cultura” (Canclini, 2000: 283), ou seja, legítimos representantes do Brasil
real.
Em épocas Armoriaisvi, esta miscelânea de ritmos seria pouco festejada, ou seja, em um primeiro instante
como poderíamos vislumbrar um movimento musical que utilizou elementos seculares e contemporâneos,
ao mesmo tempo em que os valorizou e os retirou do esquecimento?
O monumento musical erguido pelos Mangueboysvii, foi construído por inúmeros mosaicos culturais
presentes em seu habitat, considerando estas influências musicais principalmente as populares como
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ferramentas que serviram para tecer esta teia multicultural em questão, diferentemente de uma visão
conservadora que considera esta cultura popular como algo intocável e imaculado.
Indubitavelmente, o MangueBit criou em Recife toda uma cadeia cultural produtiva, que se iniciava com as
principais bandas do movimento que eram Chico Science e Nação Zumbi, e Mundo Livre S.A, continuando
pelos produtores culturais, empresários e terminando nos roadiesviii e músicos das periferias que ganharam
oportunidades de trabalho devido ao MangueBit.
Maternidade / diversidade / Salinidade / Fertilidade / Produtividade / Recife cidade
estuário / Recife cidade és tu / Água salobra, desova e criação / Matéria orgânica,
troca e produção / Recife cidade estuário / És tu .../ ( mangue injeta, abastece,
alimenta, recarrega as baterias da Veneza esclerosada, destituída, depauperada,
embrutecida ...) / Mangue Manguetown / cidade complexo / Caos portuário /
Berçário / Caos / Cidade estuário.ix
Em suma esta composição reflete Recife e o mangue como um só corpo e expressão, confundindo-as
propositalmente para delinear o que realmente é o MangueBit, ou seja, produção artística que desova e cria
seres híbridos capazes de sobreviver na Manguetown depauperada pela poluição,este mesmo mangue que
é agredido, mas que ao mesmo tempo injeta cultura, abastece e sacia a fome de cultura e alimento, e
mesmo no caos o mangue aparece como um “Eldorado”, único reduto capaz de salvar a cidade estuário
esclerosada e embrutecida.
2 - SOUL, SOUL, SOUL, MANGUEBOY.
Alma e conceito, reconhecimento e ressurreição, destarte o Mangueboy se reconheceu como parte
integrante de toda uma cadeia sócio-cultural presente na cidade de Recife, produto legítimo das disjunções
inerentes a uma metrópole, ou: “estas disjunções se tornaram fundamentais para a política da cultura
global” (Appadurai1999: 312-313); como tais são presupostos de problemáticas amplas, vicissitudes de um
enredo complexo, em que o diálogo deve ser uma constante, pois” em qualquer hipótese, a construção
cultural deve ser tratada como um problema, e não como premissa, e um problema merecedor de análise
mais detalhada “(Burke, 2000: 171).
Dentro desta premissa suscitada por Burke, acreditamos que a identidade de um ser humano que se
reconhece como agente cultural está conectado diretamente com o imaginário coletivo que o seu habitat, ou
melhor ainda seu ambiente de produção e consumo cultural lhes oferecem, certamente, não estamos
falando em passividade do sujeito diante as ofertas de signos que suas experiências recebem e deslocam,
mas uma participação ativa destes cidadãos, entranhados pelo passado secular, e a convivência
contemporânea.
A tradução do MangueBit através da sua metrópole brasileira, afogada em um caos urbano, não foi apenas
social e econômico, mas cultural, todavia é necessário apontarmos quase sempre para o bojo cultural que o
Estado de Pernambuco proporciona aos seus patrícios, ou seja, a Grande Recifex e adjacências foram o
mote para os poetas do mangue, a articulação do local com o global, sem privilégios, ou:
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O essencial é que a ideologia cultural em questão articula o mundo segundo o
modo mais funcionalmente útil, ou ainda, segundo modos que possam ser
funcionalmente reapropriados. A razão porque certa fração de classe
proporcionaria essas articulações ideológicas é uma questão histórica.
( Jameson, 2006: 83).
Jameson define de forma apropriada a mentalidade dos artifices do MangueBit como o próprio Chico
Science afirmou: “não conseguimos acompanhar o motor da história, mas somos batizados pelo batuque e
apreciamos a agricultura celestexi”, ou seja, coaduna com a união de fragmentos proposta pelo MangueBit
de uma sociedade caótica e a construção de sua própria identidade, porém esta identidade não pode ser
definida como um novo gênero musical, mas como uma criação de uma cena musical que oxigenou
culturalmente a cidade de Recife, com bandas, bares, espaços culturais, oportunidades para os músicos, e
assistentes de palco e etc; ou seja, criou toda uma cadeia cultural que começava nos idealizadores do
movimento como Fred 04, Chico Science e Renato L e se estendia até os roadies.
Outro ponto que deve ser discutido é justamente a legitimidade da imposição, pois é sabido que os
discursos dominantes estão embasados justamente na verdade silente das classes menos favorecidas, ou
seja, a legitimação da barbárie cultural é tão intensa que uma crítica ao discurso hegemônico seria no
mínimo inaudível, intimado pelo historicismo arraigado no domínio datado desde as épocas ultramarinas
porém este questionamento nos remete diretamente às mentiras salientes do pós-colonialismo, ou: “É a
perversidade radical, e não a sensata sabedoria política, que impulsiona a intrigante vontade de saber do
discurso pós-colonial ”(Bhabha, 2005:292); resta para aqueles que são citados pelas elites pós-coloniais
como objetos de caridade, paternalismo, ou até mesmo vencidos; restando como única saída, uma
intervenção negociada e consciente, para consequentemente alcançarem uma inserção, dentro desta
disputa em que o primeiro golpe é desferido sempre na cultura e muitas vezes é letal.
Contudo a entrada da grande massa humana contemporânea na produção e consumo de bens culturais,
requer antes de tudo uma tomada de consciência, ou seja, o exercício da produção de ações culturais deve
ser uma constante nos agentes culturais da contemporaneidade especificamente, ou: “O agente cultural é,
aqui um animador é dele que parte a ação nessa terminologia teológica, é ele o criador”(Coelho, 2002:16),
contudo devemos fazer algumas ressalvas com relação ao agente cultural citado anteriormente, ou seja,
devemos defini-lo não apenas como um manipulador de massas, especialmente as urbanas, mas colocá-lo
de uma forma ampla como qualquer indivíduo que promova a cultura, seja ele músico, ator, pintor, escultor,
dramaturgo, produtor cultural, ou até mesmo o empresário que de alguma forma prática o mecenato,
embora seja uma denominação ampla para o termo “agente cultural”, nossa intenção é desconstruir o mito
da arte em si, ou seja, não apresentá-la como um fetiche, algo inalcansável, mas como uma produção e
reprodução dos bens simbólicos acessíveis ao grande público, pois é nesta democratização do fazer arte
que reside o alicerce da construção das identidades culturais, ou seja, a partir do momento em que o sujeito
histórico se reconhece não apenas como um espectador, mas como parte integrante da arquitetura cultural
de uma forma direta, as identidades tornam-se legítimas representantes da constituição e significação
cultural.
A identidade quando assume novos propósitos, adquire uma estética própria em que assumir-se como
vanguarda estética, nos remete a uma posição superior do MangueBit em relação às outras manifestações
culturais, resumindo-as às trevas artísticas; o que consideramos como uma inverdade, é por isso que o
MangueBit não desconsiderou qualquer expressão artística que primasse pela autenticidade e criatividade,
seja ela o Maracatu, o Rock, a embolada, o Soul, ou qualquer outro estilo.
O local e o global, a tradição e a modernidade presentes no MangueBit, criaram sim uma rede identitária de
símbolos e indivíduos, ou seja, a criação não foi apenas de Chico Science, Fred 04, Renato L, ou qualquer
outro artista, mas uma construção coletiva de cultura e identidade, em que jornalistas de classe media,
músicos, artistas, entre outros, enxergassem uma gama variada de possibilidades, que iam desde as
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composições , até a indumentária usada pelos Mangueboys como forma de reafirmação da cultura
pernambucana.
Verificamos no decorrer do nosso texto, a resignificação cultural que a música brasileira contemporânea
adquiriu nesta duas últimas décadas, especificamente o MangueBit, ou seja, a própria construção de uma
identidade própria foi a saída encontrada pelos jovens artistas para a autopromoção, e para sua própria
existência enquanto seres dotados da arte, não obstante a própria condição da cidade de Recife e o Estado
de Pernambuco, imprimia aos jovens recifenses, uma necessidade quase que latente de mudança cultural,
dentre outros fatores também o próprio esquecimento da cultura popular pelos jovens de Recife, causando
uma morte lenta, gradativa e quase irreversível das tradições.
Podemos tentar definir o MangueBit como ser híbrido da moderna música brasileira, que desde a época da
Bossa Nova virou símbolo de qualidade e criatividade, possuidor de um contexto internacional de cultura
contemporânea, não linear aos propósitos nebulosos da indústria cultural, avesso aos modismos; e
seguramente não circunstancial, porém mutante da moderna cultura brasileira, que carregam em si boa
parte da moderna tradição brasileira.
3 - A JUVENTUDE PEDE PASSAGEM.
A construção de uma nova identidade proposta pelo MangueBit, está imbuída de globalismos, histórias
individuais e coletivas dos próprios sujeitos históricos que contribuíram de qualquer forma para a
fomentação e consolidação da cena cultural do MangueBit, e principalmente pela participação de vários
segmentos da sociedade, ou seja, artistas, empresários, mídia e principalmente a juventude que formou
público para as apresentações e poesia para as composições.
Nesta seara representada pela juventude, verificamos basicamente três segmentos, ou vertentes destes
jovens recifenses, ou seja, os artifices do movimento, que fomentaram toda a cena cultural, entre eles Chico
Science, Fred 04, Renato L, além dos músicos das bandas e produtores culturais.
As experiências musicais delinearam novos horizontes para a música contemporânea brasileira, visto que
estes músicos possuíam uma variedade enorme de influências sonoras, que colocaram em prática nas
composições das bandas e na própria ideologia do movimento MangueBit.
Outro segmento que deve ser destacado em nosso texto é a juventude da classe media de Recife que
através da compra de Cd’s, ingressos para os Shows, impulsionaram a carreira das bandas em questão,
desta forma ofereceram um certo suporte financeiro para estas bandas que estavam começando a debutar
no cenário musical da cidade e precisavam de incentivos.
Porém os jovens que realmente ganharam oportunidades, espaços e reconhecimento por boa parte da
população pernambucana, foram os jovens da periferia, que se tornaram músicos, roadies, produtores,
professors de música, comerciantes, entre outras profissões, graças ao fomento e advento do MangueBit,
que possuía entre seus artifices, vários jovens oriundas da periferias de Recife, entre eles o próprio Chico
Science e Jorge du Peixexii vindos do Bairro de Rio Doce periferia de Olinda, além de Toca Ogan, Gilmar
Bola Oito percussionistas da Nação Zumbi, saídos das periferias de Peixinhos e Chão de Estrelas
respectivamente
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4 - O MANGUEBIT NA SEARA CULTURAL BRASILEIRA.
Sou eu um transistor?/ Recife é um circuito?/ O país é um chip?/ Se a terra é um
rádio, qual é a música?/ MangueBit – MangueBit/ O vírus contamina/ Pelos olhos
– ouvidos, línguas, narizes – fios ( elétricos)/ ondas sonoras, vírus conduzidos a
cabo/ UHF/ Antenas agulhas/ Eletricidade alimenta/ tanto quanto oxigênio/ (Meus
pulmões ligados)/ Informações entram pelas narinas/ E da cultura sai mau hálito
( ideologia)/ Sou eu um transistor?/ Se a terra é um rádio/ Qual é a músicaxiii?
Os sons tupiniquins não seriam mais os mesmos, o homem, a cidade, o país e o planeta em um só
organismo movido à vibrações sonoras, em que respirar oxigênio é secundário, e a cultura impregna como o
mau hálito, que na verdade é ideologia que exala do corpo, a tecnologia torna-se comestível e começa a
fazer parte do próprio homem, pois nas sociedades pós-modernas a previsibilidade e a linearidade da
escrita não é mais suficiente para a digestão das informações que chegam à grande massa de maneira
intensa, veloz, e constante; assim o mundo tornou-se também audiovisual, os sentidos se complementam
para que a avalanche informativa seja consumida e digerida em tempo hábil.
Sendo assim a melhor forma de caracterizar a cultura brasileira contemporânea, em especial a música e o
movimento MangueBit seria colocá-los como tradutores multifacetados de um grande organismo vivo
composto por pessoas, experiências, desigualdades, riqueza de símbolos e resignificações, chamado de
Brasil.
Traduzir o país em música, assim acreditamos que o MangueBit agiu dentro de sua trilha ideológica
estritamente não linear, pois “ o leito não linear, segue para dentro do universo” ( CSNZ, 1994), aquilo que
não está pré-estabelecido em um primeiro contato pode parecer sem nexo, ou até mesmo sem sentido,
porém é neste contexto disforme e deveras consciente que o MangueBit se faz amplo dentro da moderna
cultura brasileira, avesso à arte efêmera, singularmente pluralizado e democraticamente eclético.
As comparações realizadas por um pesquisador com relação à épocas diferentes, deve ser realizada com
muito critério e atenção para as particularidades de cada época, evitando assim anacronismos sucessivos
nestas analogias.
Analisando os três principais movimentos musicais da cultura contemporânea brasileira, verificamos
algumas particularidades inerentes ao MangueBit, ou seja, enquanto que a Bossa Nova foi fomentada e
realizada por jovens cariocas universitários de classe média como Tom Jobim, Vinícius de Morais, entre
outros, e que possuíam como principal característica as composições bem executadas e permeadas pelo
Jazz e o Samba. Com relação à Tropicália verificamos uma aproximação sutil com as idéias sonoras do
MangueBit, ou seja, a antropofagia musical já se fazia presente em um Brasil marcado pela Ditadura militar
dos anos 60, entretanto devemos ressaltar que seus participantes também eram oriundas em sua maioria
de famílias de classe média, universitários.
Em ambos os casos citados anteriormente, algumas semelhanças devem ser ressaltadas como a qualidade
musical, a origem social de seus fomentadores já citada, e o local de concepção e consolidação destes
movimentos: o Sudeste brasileiro.
Desta maneira verificamos que mesmo em épocas distintas, ou seja, um Brasil em busca de sua autoafirmação nos anos 50, um país mergulhando em um período ditatorial violento, e uma nação prestes a
entrar no novo milênio, porém com problemas relacionados a um profundo atraso socioeconômico. O
MangueBit dentre os outros movimentos já relacionados, conjugou uma mistura de indivíduos de várias
classes sociais em sua construção, e deslocou os olhos da mídia brasileira que sempre foram voltados pra a
região Sudeste do Brasil, ou seja, para algum artista do Nordeste brasileiro alcançar algum sucesso, é
necessário que o mesmo fixe residência próximo aos locais onde a grande mídia instalou suas sedes.
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5 - A CIDADE É NOSSO PALCO DE ILUSÕES.
O Sol nasce e ilumina as pedras evoluídas/ Que cresceram com a força de
pedreiros suicidas/ Cavaleiros circulam vigiando as pessoas/ Não importa se são
ruins/ Nem importa se são boas/ E a cidade se apresenta centro das ambições/
Para mendigos ou ricos e outras armações/ Coletivos, automóveis, motos e
metrôs/ Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs/ A cidade não pára, a cidade
só cresce/ O de cima sobe e o debaixo desce/ A cidade se encontra prostituída/
Por aqueles que a usaram em busca de saída/ Ilusora de pessoas e outros
lugares/ A cidade e sua fama vai além dos mares/ No meio da esperteza
internacional/ A cidade até que não está tão mal/ E a situação sempre mais ou
menos/ Sempre uns com mais e outros com menos/ A cidade não pára, a cidade
só cresce/ O de cima sobe e o debaixo desce/ Eu vou fazer uma embolada, um
samba, um maracatu/ Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tu/ Pra
gente sair da lama e enfrentar os urubus. (haha)/ Num dia de Sol, Recife acordou/
Com
a
mesma
fedentina
anteriorxiv.
A cidade pulsa, vibra corrompe, constitui vida e concreto, ambição e caos; doce ilusão amarga para a
grande maioria das pessoas que não participam da grande festa do consumo capitalista e esta
desigualdade é ainda bastante acentuada quando estamos nos referindo ao Nordeste brasileiro, pois em
períodos de seca no sertão nordestino, o êxodo rural é bastante significativo, transferindo do interior para as
capitais uma leva de imigrantes famintos, sem instrução e perspectivas de melhorias em suas vidas.
No caso de Recife estes retirantes amontoam-se em casebres à beira dos mangues em condições
miseráveis para fixarem residência, por vários motivos, entre eles a falta de interesse comercial das
imobiliárias nas regiões dos manguezais, as moradia construídas com restos de papelão, zinco, madeira e
outros materiais descartados pela própria cidade, e principalmente pela necessidade alimentar, pois o
mangue fornece alimento para estas pessoas, principalmente o caranguejo que muitas vezes é a única
fonte alimentar disponível, fazendo com que estes seres humanos tornem-se parte integrante do mangue,
ou:
Este corpo de lama que tu vê/ É apenas a imagem que sou/ Este corpo de lama
que tu vê/ É apenas a imagem que sou/ Que o sol não segue os pensamentos,
mas a chuva mude os sentimentos/ Se o asfalto é meu amigo eu caminho, como
aquele grupo de caranguejos, ouvindo a música dos trovões/ Essa chuva de
longe que tu vê, é apenas a imagem que sou/ Esse sol bem longe que tu vê, é
apenas a imagem que é tu/ Fiquei apenas pensando, que seu rosto parece com
minhas idéias/ Fiquei lembrando que há muitas garotas em ruas distantes/ Há
muitos meninos correndo em mangues distantes/ Essa rua de longe que tu vê, é
apenas a imagem que sou/ Esse mangues de longe que tu vê, é apenas a
imagem que é tu/ Se o asfalto é meu amigo.../ (Deixar que os fatos sejam fatos
naturalmente, sem que sejam forjados para acontecer/ Deixar que os olhos vejam
pequenos detalhes lentamente/ Deixar que as coisas que lhe circundam estejam
sempre inertes, como móveis/ inofensivos, pra lhe servir quando for preciso, e
nunca lhe causar danos morais, físicos ou psicológicos)xv.
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Deveras o habitante dos mangues em Recife transforma-se em um corpo de lama, o sujeito e o ambiente
fundem-se em uma simbiose degradativa, socialmente para o homem e ambiental para o mangue.
Uma das poucas saídas para estes indivíduos são as estradas que cortam os manguezais, servindo como
grandes mercados de caranguejos a céu aberto, tornando este asfalto amigo e fonte de renda digna para
estes cidadãos.
A cidade é fugaz para aqueles habitantes dos mangues, que assistem o transitar dos automóveis velozes
que passam sobre as pontes, restando para estes homens um sonho distante d belas garotas que vivem
sob um céu de oportunidades, enquanto eles jazem sob as chuvas das incertezas cotidianas.
O poeta Chico Science demonstra que estas elites apressadas que singram a cidade com seus automóveis,
também são parte integrante desta cidade estuário, palco de ilusões e desigualdades, em que o rico tem
seu papel definido como explorador, e os pobres devem ser prestativos quando necessários e inofensivos
para não causarem danos à sociedade ideal das elites.
6 - A INDÚSTRIA CULTURAL FONOGRÁFICA BRASILEIRA DA DÉCADA DE 1990.
Certamente, não poderíamos falar em mídia e centros consumidores de cultura, sem nos debruçarmos
sobre as análises relacionadas com a indústria cultural fonográfica brasileira da década de 1990, suas
singularidades, segregações geográficas, e principalmente suas imposições mercadológicas para os bens
culturais.
As dificuldades na avaliação do que era autêntica e efetivamente independente
parecem residir na confusão que se estabelecia entre, de um lado, o artista que
tem uma attitude independente, procurando esse tipo de meio para veicular um
produto de proposta estética, diferenciada e, muitas vezes, inovadora sem lugar
nos planos da grande empresa e do grande mercado. ( Dias, 2000: 134)
A referida década de 1990 configura-se no Brasil como uma época de transição sob vários aspectos, ou
seja, ocorria não somente no Brasil, mas em boa parte do mundo Ocidental a substituição do vinil pelo Cd, e
especificamente no Brasil uma reordenação das grandes gravadoras com relação aos seus produtores
culturais, e seus presidentes.
Nesta conjuntura industrial da cultura, estas grandes gravadoras transnacionais como: PolyGram, EMI,
BMG-Ariola, Sony Music, Warner Music, entre outras, dominavam o mercado nacional através sua rede de
produção, distribuição e contatos com a mídia, certamente que estas características não são exclusividades
do Brasil, porém devemos ressaltar que as pequenas e médias gravadoras conhecidas como Indies,
funcionavam no mercado brasileiro como Marketing para os artistas em busca de uma oportunidades nestas
Majors.
Esta duas formas de produção fonográfica eram as mais praticadas no mercado brasileiro e envolviam
diretamente interesses comerciais sobre os bens culturais, entretanto acreditamos que o MangueBit serviu
como uma terceira via para esta comercialização da arte, ou seja, o movimento conseguiu deslocar os
holofotes da mídia para o Nordeste, visto que sempre estiveram voltados para o Sudeste brasileiro,
forçando os artistas nordestinos a uma transferência de suas carreira, exemplos disto foram os músicos Luiz
Gonzaga na década de 1950, Belchior na década de 1960, Alceu Valença na década de 1970, entre muitos
outros.
Outras conquistas do MangueBit que devemos salientar foi a concepção da capa do primeiro CD de Chico
Science e Nação Zumbi, produzida pelos artistas pernambucanos Dolores, Morales, Helder, fato que até
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então era restrito aos artistas do Sudeste brasileiro, além da assinatura de um contrato com o selo CHAOS
de propriedade da Sony Music, pois os artistas que assinavam com as grandes gravadoras da época não
possuíam uma preocupação com a qualidade de suas músicas, ou seja, eram legítimos produtos da
massificação artística imposta pela indústria cultural fonográfica brasileira.
Estas conquistas foram possíveis somente graças a toda uma identidade construída a partir de estratégias
pensadas pelos artifices do movimento MangueBit, ou “a diversidade cultural pode inclusive emergir como
um sistema de articulação e intercâmbio de signos culturais em certos relatos antropológicos do início do
estruturalismo” ( Bhabha, 2005: 63), ou seja, movimentar-se culturalmente era a palavra de ordem dos
artífices do MangueBit, ter a consciência do simbolismo cultural pertencente a Recife, estruturar-se como
ambiente de cultura, desenvolver toda uma cadeia produtiva cultural que começava nas montagens de
palco, passava pelos locais de apresentações, o lançamento de Cd’s das bandas relacionadas com o
movimento, e até mesmo criar uma indumentária inspirada nos camelôs de Recife com óculos escuros,
cordões, anéis, e com o regionalismo através do chapéu de palha, em suma existir como ser cultural que
interage e modifica sua realidade artística, ou como Bivar propõe:
Além da necessidade da movimentação, a busca da autopromoção, claro que
esta promoção pessoal não representava uma entrega total aos meios de
comunicação de massa, mas a criação de todo um universo simbólico em torno
deles, com músicas característica da ideologia dos respectivos movimentos, ou
seja, toda uma cadeia produtiva que vai desde a criação de uma indumentária
que remetesse aos conceitos estabelecidos pelos participantes, promoção de
simples festas, até o lançamento de Cd’s.(Bivar, 1988: 57)
O MangueBit provou que esta indústria cultural que elege e condena, exalta e corrompe, pode ser
sobrepujada através de criatividade e ads resignificações culturais, atitudes que demonstram que a
quantidade perseguida pelas grandes gravadoras não sintetizam a qualidade musical, admitimos também
que o MangueBit não alcançou as cifras esperadas por sua gravadora, porém caracterizou sua essência
como não efêmera, calcada no alicerce da boa música que não reconhece fronteiras sociais, culturais ou
econômicas.
7 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
BIVAR, Antônio ( 1988), O que é Punk, São Paulo, Brasiliense, p.57.
BURKE, Peter (2000), História e teoria social, São Paulo, Editora UNESP, p.171.
BHABHA, Homi. (2005), O local da cultura, Belo Horizonte, Editora UFMG, p. 20-21, 63, 292.
CANCLINI, Nestor Garcia (2000), Culturas Híbridas, São Paulo, Edusp, p. 283.
COELHO, Teixeira, (2002), O que é ação cultural?, São Paulo, Brasiliense, p.16.
FEATHERSTONE, Mike (orgs) (1999), Cultura Global: Nacionalismo, Globalização e Modernidade,
Petrópolis, Editora Vozes, p.312-313.
JAMESON, Fredric, ( 2006), A virada cultural: Reflexões sobre o pós-moderno, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, p. 83.
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VI CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA
DIAS, Márcia Tosta (2000), Os donos da voz. Indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura,
São Paulo, Boitempo editorial, p. 134.
ZAIDAN, Michel.(2000), O Fim do Nordeste e Outros Mitos, São Paulo, Ed: Cortez, p.24.
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i
Música “Monólogo ao pé do ouvido” do Cd Da lama ao caos de Chico Science e Nação Zumbi de 1994.
ii
A grafia “MangueBit” irá respeitar a grafia original do Release Caranguejos com cérebro escrito em 1991, e
publicado no cd “Da lama ao caos” de Chico Science e Nação Zumbi de 1994.
iii
O Sampler é uma técnica musical que consiste em sobreposição de músicas de ritmos diferentes ou semelhantes,
uma das características fundamentais do MangueBit.
iv
Esta classificação foi feita por um Instituto de pesquisas sociais de Washington no início da década de 1990,
classificando a cidade de Recife como a quarta pior cidade do mundo para se viver, devido aos seus altos índices de
violência e as altas taxas de desemprego.
v
Música “Manguetown” do Cd Afrociberdelia de Chico Science e Nação Zumbi de 1996.
vi
Esta expressão faz alusão direta ao Movimento Armorial, liderado pelo escritor Ariano Suassuna, que teve como
principal característica o resgate e a promoção de ritmos musicais essencialmente populares.
vii
Mangueboys: expressão inspirada nos B-Boys e B-Girls do movimento Hip Hop, que caracterizava os jovens
apreciadores do movimento MangueBit.
viii
Expressão usada para denominar as pessoas que apóiam a logística das bandas, ou seja, montam os palcos, a
iluminação, o som e etc.
ix
Música Cidade Estuário da banda Mundo Livre S.A, contida no cd “Samba Esquema Noise” de 1994 lançado pelo
selo Banguela Records.
x
O Grande Recife é composto ainda por outros 13 municípios (Abreu Lima, Araçoiaba, Cabo, Camaragibe, Igarassu,
Itamaracá, Ipojuca, Itapissuma, Jaboatão dos Guararapes, Moreno, Olinda, Paulista, e São Lourenço da Mata).
xi
Trecho da canção Sangue de Bairro do Cd Afrociberdelia de Chico Science e Nação Zumbi de 1996.
xii
Jorge Du Peixe é o atual vocalista da Nação Zumbi, autor de músicas como Maracatu de tiro certeiro e está na banda
desde sua formação original com Chico Science.
xiii
Música MangueBit da banda Mundo Livre s.a, contida no CD “Samba Esquema Noise” de 1994 lançado pelo selo
Banguela Records.
xiv
Música “A cidade” do Cd Da lama ao caos de Chico Science e Nação Zumbi de 1994.
xv
Música “Corpo de Lama” do Cd Afrociberdelia de Chico Science e Nação Zumbi de 1996.
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