1 KARL BARTH: UMA INTRODUÇÃO Á SUA CARREIRA E AOS

Propaganda
1
KARL BARTH: UMA INTRODUÇÃO Á SUA CARREIRA E AOS PRINCIPAIS TEMAS DE
SUA TEOLOGIA
Franklin Ferreira*
Este ensaio tem como alvo oferecer uma introdução à vida e a alguns dos principais tópicos do
pensamento de Karl Barth, talvez um dos teólogos mais importantes do século XX, um dos fundadores
da chamada teologia neo-ortodoxa.1 No decorrer do mesmo será oferecido um breve panorama das
várias etapas da peregrinação teológica de Barth, e uma avaliação de seu pensamento, tendo como base
a fé reformada, como exposta nas confissões clássicas,2 com especial atenção a seus principais temas
teológicos (o Deus Triúno, a Palavra de Deus, a concentração cristológica, a reconciliação e a
predestinação), a partir, especialmente, de sua Die Kirchliche Dogmatik [Dogmática Eclesiástica].3
1. FORMAÇÃO TEOLÓGICA4
Karl Barth nasceu em Basiléia, Suíça, em 10 de maio de 1886. Era filho de Fritz Barth, um ministro
reformado e professor de Novo Testamento e História da Igreja na Universidade de Berna, na Suíça, e
Anna Sartorius. Ele recebeu sua educação inicial como membro da Igreja Reformada Suíça por seu
pastor, Robert Aeschbacher. Essa educação deixou marcas profundas em sua mente, as quais podem ser
notadas em toda a sua produção teológica. Por toda Die Kirchliche Dogmatik [Dogmática Eclesiástica]5
ressoam as frases do Catecismo de Heidelberg. Estes estudos levaram-no a se decidir por estudar
teologia. Estudou nas universidades de Bern, Berlin, Tübingen e Marburg, tendo recebido seu
bacharelado em 1909. Sua monografia foi sobre “O Descensus Christi ad inferos nos três primeiros
*
Ministro da Convenção Batista Brasileira, doutorando em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, e
professor de Teologia Sistemática e História da Igreja no mesmo seminário e na Escola de Pastores, no Rio de Janeiro.
1
Uma definição da neo-ortodoxia como movimento de reação ao liberalismo teológico está longe do escopo deste trabalho.
Para mais informações, consultar, R. V. Schnucker, “Neo-ortodoxia” em Walter A. Ellwell (ed.), Enciclopédia HistóricoTeológica da Igreja Cristã. vol. 3 (São Paulo: Vida Nova, 1990), pp. 12-15 e Roger Olson, História da Teologia Cristã
(São Paulo: Vida, 2001), pp. 585-605. Para os desdobramentos deste movimento, cf. Stanley Grenz & Roger Olson,
Teologia do Século XX: Deus e o Mundo Numa Era de Transição (São Paulo: Cultura Cristã, 2003) e Stanley Gundry (ed.),
Teologia Contemporânea (São Paulo: Mundo Cristão, 1987).
2
Gostaria de deixar explícito que meu pressuposto ao avaliar o pensamento bartiano é, claramente, a fé evangélica como
afirmada e defendida na Confissão e Catecismos de Westminster e nas Três Fórmulas da União (Confissão Belga,
Catecismo de Heidelberg e nos Cânones de Dort).
3
Seus muitos escritos (uma bibliografia completa, até janeiro de 1966, alcançou nada menos do que 553 títulos!) podem ser
divididos em quatro grupos principais: exegéticos, históricos, dogmáticos e políticos. cf. Eberhard Busch, Karl Barth: His
life from letters and autobiographical texts (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1994), pp. 509-512.
4
A biografia definitiva é Eberhard Busch, Karl Barth: His life from letters and autobiographical texts. Para mais
informações biográficas, cf. Georges Casalis, Retrato de Karl Barth (Buenos Aires: Methopress, 1966), pp. 17-74 e T. H. L.
Parker, Karl Barth (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1977). cf. também T. F. Torrance, Karl Barth: an introduction to
his early theology: 1910-1931 (Bloomsbury Street, London: SCM Press, 1962), p. 15-25. Para uma crítica fundamentada e
bem documentada, da perspectiva adulatória de Torrance, cf. Sebastian Rehman, “Barthian epigoni”, Westminster
Theological Journal (vol. 60, n. 2, fall 1998), pp. 271-296. Para uma defesa de Barth como um teólogo evangélico, ver o
ensaio de Alan Pieratt, “Era Karl Barth um evangélico?” em Vox Scripturae 8/1 (Julho de 1998), pp. 61-72. Pieratt nem
define o que é ser evangélico nem demonstra que Barth realmente cria no que constitui a fé evangélica.
5
Traduzida para o inglês por uma equipe de estudiosos sob a editoria geral de G. W. Bromiley e T. F. Torrance, com o
título de Church Dogmatics (originariamente publicada em Edinburgh, pela T & T Clark, 1936 em diante), doravante CD.
As citações dos tomos, volumes e seções [§] são do resumo da CD, preparada por Geoffrey W. Bromiley, An Introduction
to the Theology of Karl Barth (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1979). Uma coletânea introdutória da CD pode ser
encontrada em Karl Barth, Church Dogmatics: a selection with introduction by Helmut Gollwitzer (Louisville, Kentucky:
Westminster, John Knox Press, 1994).
2
séculos”.6 Suas principais influências acadêmicas foram Adolf von Harnack (1851-1930), Hermann
Gunkel (1862-1932), Adolf Schlatter (1862-1938) e Willhem Herrmann (1846-1922).
Concluídos seus estudos, foi convidado a ser pastor assistente da paróquia reformada suíço-alemã de
Genebra (ele pregava de tempos em tempos no mesmo grande salão em que Calvino havia falado, três
séculos e meio antes), e, em 1911, iniciou o pastorado numa pequena igreja reformada no interior da
Suíça, em Safenwill (a única igreja numa pequena cidade de 2.000 habitantes), no cantão da Aargau,
onde ficou até 1921.7 Ele deparou-se com a realidade rural e com os conflitos entre operários e patrões,
que ocorriam na única fábrica existente na região e da qual dependia toda a comunidade. Barth passou,
então, a envolver-se com conflitos e questões sociais. Por essa época tornou-se socialista cristão,
recebendo influências de Hermann Kutter (1869-1931) e Leonhard Ragaz (1868-1945). Participou de
ações políticas e ajudou a organizar um sindicato. Em 1915, filiou-se ao Partido Social-Democrata.
Mas, com o início da I Guerra Mundial, Barth viu sua fé liberal abalada, assim como seus ideais
socialistas.8
2. O DER RÖMERBRIEF
Barth percebeu que a teologia liberal de nada serviu em sua tarefa de pregar ao povo de Safenwil.
Durante esses anos conheceu Eduard Thurneysen (1888-1977), pastor em Leutwil, um amigo que o
acompanharia por toda a vida. Em 1914, ele e Thurneysen resolveram buscar uma resposta ao desafio
da pregação. Durante quatro anos, Thurneysen estudou Dostoievsky, e Barth estudou Kierkegaard.
Nesta época, ganhou importância para ele os escritos de Martinho Lutero (1483-1546) e João Calvino
(1509-1564). Ele também visitou o pregador pietista Christoph Blumhardt (1843-1919), na casa de
retiro espiritual de Bad-Boll, em Wurtemberg, e foi convencido de forma irresistível da realidade da
vitoriosa ressurreição de Cristo.
Como fruto desses estudos, em 1919, Barth publicou a Carta aos Romanos [Der Römerbrief] – que
teria uma segunda edição totalmente reformulada em 1922.
Neste livro, Barth formulou vigoroso protesto não apenas contra a teologia contemporânea, mas contra toda a
tradição que se vinha formando desde Schleiermacher e que fundamentava o cristianismo na experiência humana.
A Carta aos Romanos foi também um protesto contra aquelas escolas que tinham transformado a teologia em
ciência da religião e tinham apresentado a análise histórico-crítica da Bíblia como a única interpretação possível.
Barth publicou a segunda edição da obra poucos anos depois, e esta edição, completamente revisada, pode ser
considerada o início da nova escola que posteriormente se tornou conhecida como a escola dialética. Como fez ver
claramente na Carta aos Romanos, Barth pretendia substituir a interpretação meramente filológica e histórica com
uma exposição ‘dialética’ mais profunda do próprio material bíblico. Encontrou exemplos principalmente nos
clássicos da tradição cristã, como, por exemplo, em Lutero e Calvino. A interpretação da Bíblia de Barth,
entretanto, não é mera cópia da obra dos reformadores; a dialética que encontrou na Bíblia não é, como acontece
com Lutero, o contraste entre a ira e a graça de Deus, entre o pecado do homem e a justiça providenciada por Deus;
é antes o contraste fundamental entre eternidade e tempo, entre Deus como Deus e o homem como homem. A
6
Barth nunca completou um doutorado, apesar de mais tarde em sua vida ele ter sido contemplado com inúmeros títulos
honorários de diversas grandes universidades. Ele ganhou doutorado honoris causa em teologia das Universidades de
Münster, Alemanha (1922, cassado em 1938 e concedido novamente em 1946), Glasgow, Escócia (1930), Utrech, Holanda
(1936), St. Andrews, Aberdeen, Escócia (1937), Oxford, Inglaterra (1938), Budapest, Hungria (1954), Edinburgh, Escócia
(1956), Faculdade Teológica Protestante de Estrasburgo, na França (1959), Chicago, Estados Unidos (1962) e Sorbonne,
Paris, França (1963).
7
Em 1913 ele se casou com Nelly Hoffman, uma talentosa violonista, com a qual teve uma filha e quatro filhos: Franziska
nasceu em 1914; Markus em 1915, Christoph em 1917, Matthias em 1921 (morto em 1941, acidentado nas montanhas),
Hans Jakob em 1925.
8
Roger Olson, História da Teologia Cristã, p. 593: Barth “ficou decepcionado com o protestantismo liberal quando seus
próprios mentores teológicos, como Harnack e outros professores alemães, apoiaram publicamente a política de guerra do
imperador da Alemanha em 1914”.
3
aplicação deste conceito fundamental, via de regra, resultou na rejeição do humano, fazendo assim lugar para a
revelação divina, para o ‘totalmente outro’, que é revelado pela palavra de Deus aos que em espírito de humildade
mostram-se receptivos às ações divinas e à mensagem da igreja.9
A Carta aos Romanos é considerada o texto mais representativo da teologia dialética.10 Aqui ele
enfatizou a transcendência de Deus, Deus como “absolutamente outro”, a “distinção qualitativa
infinita” entre Deus e o homem. A teologia passou a ser o estudo não de filosofia ou experiência
religiosa, mas da Palavra de Deus. Para Barth, “a Bíblia [veio a ser] não meramente uma coletânea de
documentos antigos a serem examinados criticamente, mas, sim, uma testemunha de Deus”.11
Argumentava que essas grandes verdades não podem ser construídas a partir da experiência ou da
razão, mas devem ser recebidas da revelação de Deus, numa atitude de obediência. O que estava em
curso era uma revolução no método teológico, uma teologia “do alto”, para substituir a antiga teologia
“de baixo”, centralizada no ser humano. Barth ficou surpreso com a reação a seu livro.
Pareço mais um rapaz que, subindo ao campanário da igreja paroquial, puxa uma corda ao acaso e, sem querer,
coloca em movimento o sino maior: trêmulo e amedrontado, percebe que acordou não apenas sua casa, mas
também a aldeia inteira.12
3. DIE KIRCHLICHE DOGMATIK
Em 1922, foi convidado para ser preletor de teologia reformada na Universidade de Göttingen, onde
ajudou a desenvolver a teologia dialética junto com Eduard Thurneysen, Rudolf Bultmann (18841976), Friedrich Gogarten (1887-1967) e Emil Brunner (1886-1966). Uma de suas principais tarefas foi
preparar palestras acerca da teologia dos reformadores.13 Dessas meditações, emergiu uma verdadeira
renascença no estudo de Calvino (no qual Peter Barth, irmão de Karl, desempenhou um papel
importante) e uma nova avaliação da pertinência de Calvino para nossos tempos perturbados.
Entre 1926 e 1929 foi professor de Dogmática e Teologia do Novo Testamento na universidade de
Münster e em 1930 se tornou catedrático de Teologia Sistemática na Universidade de Bonn.14 Por esta
9
cf. Bengt Hägglund, História da Teologia (Porto Alegre: Concórdia, 1995), pp. 343-345. O Der Römerbrief foi publicado
em português como a Carta aos Romanos (São Paulo, Novo Século, 2000). Lamentavelmente, a opção por incluir
comentários do tradutor ao lado dos comentários de Barth, separados apenas por colchetes, prejudica bastante a leitura.
10
cf. em Georges Casalis, Retrato de Karl Barth, pp. 131-137: Esta nova abordagem metodológica passou a ser usada por
Barth, na qual colocam-se pontos de vista diferentes um em oposição ao outro, a fim de que possam mutuamente lançar luz
sobre o assunto em foco. Ele insistiu que somos incapazes de esclarecer ou expressar o conteúdo da revelação divina usando
afirmações diretas, o que constituiria uma abordagem “dogmática”. Isto, em sua opinião, só poderia ser feito com base no
confronto permanente de afirmações contrastantes. Deste modo, pode-se atingir um equilíbrio entre as declarações que
afirmam e as que negam certas proposições. No entendimento de Paul Tillich (Perspectivas da Teologia Protestante nos
séculos XIX e XX (São Paulo: ASTE, 1999), p. 243), este tem sido “um termo inadequado. Essa teologia, no seu início
profético, era paradoxal; depois, se sobrenaturalizou [grifo meu]. Mas nunca foi dialética. A dialética supõe um progresso
interno que vai de um estado a outro impulsionado por dinâmica própria”. Sugestivamente, esta aversão à toda categoria
“sobrenaturalista” perpassou toda a teologia de Tillich. cf. em especial Vernon C. Grounds, “Precursores da teologia radical
dos anos 60 e 70” em Stanley Gundry (ed.), Teologia Contemporânea, pp. 88-105. Para uma avaliação crítica devastadora
do método dialético, cf. Cornelius Van Til, The new modernism (Philadelphia, PA: Presbiterian and Reformed, 1947), pp.
43-79 e especialmente Christianity and Barthianism (Nutley, New Jersey: Presbiterian and Reformed, 1977), pp. 203-315.
11
Colin Brown, Filosofia e fé cristã; um esboço histórico desde a Idade Média até o presente (SP: Vida Nova, 1989), p.
159.
12
Citado em G. C. Berkouwer, A half century of theology (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1977), p. 39.
13
Em Göttingen, Barth consagrou cinco semestres de cursos para aprofundar a história da teologia sistemática, enfocando,
de forma profunda, a teologia de Calvino, Zwínglio, Schleiermacher e de dois textos decisivos da teologia reformada: a
Confissão de Fé de La Rochelle e o Catecismo de Genebra.
14
Para uma primeira impressão da teologia bartiana, por parte dos teólogos do Wesminster Theological Seminary, já em
princípios da década de 1930, cf. D. G. Hart, “Machen on Barth: Introduction to a recently uncovered paper” e J. Gresham
Machen, “Karl Barth and ‘The Theology of Crisis’”, Westminster Theological Journal (vol. 53, n. 2, fall 1991), pp. 189-
4
época, Fräulein Charlote “Lollo” von Kirschbaum, membro da igreja luterana, começou a trabalhar
como sua assistente, auxiliando-o com seu grande conhecimento em grego e hebraico.15
Com Fides quaerens intellectum (1931) – uma interpretação pessoal e vigorosa do Proslogium de
Anselmo de Canterbury – Barth elaborou a teologia da Palavra, o que significou um rompimento com
seus amigos Brunner, Gogarten e Bultmann.
Nessa obra, Barth estudou melhor a natureza e função da teologia. Ao contrário de muitas interpretações de
Anselmo, Barth argumentou que o argumento ontológico de Anselmo em favor da existência de Deus não era uma
tentativa de provar Deus independente da fé, mas sim de entender com a mente aquilo em que já se acreditava
através da fé.
Barth entendeu que, para Anselmo, toda teologia deve ser feita num contexto de oração e obediência.
Isso significa que a teologia não pode ser uma ciência objetiva e desapaixonada, mas deve ser a
compreensão da revelação de Deus em Jesus Cristo, possível somente através da graça e da fé. Barth
afirmou que o pré-requisito para a teologia correta é uma vida de fé, e sua marca é o desejo de jamais
contradizer explicitamente a Bíblia.
[Ele] compreendeu que a tarefa do teólogo não é tanto acentuar a distância entre o homem e Deus, mas muito mais
penetrar no significado do conhecimento de Deus que é colocado à disposição do homem na revelação. Então,
impõe-se a Barth o problema da analogia, como o único método apto a resolver o significado da Palavra de Deus.
Somente com o método da analogia é que o teólogo pode chegar a compreender o conteúdo da revelação. Não,
porém, por intermédio da analogia entis (analogia do ser), que sendo uma categoria filosófica e humana, não pode
estar em condições de entender a Palavra de Deus. A única analogia que pode compreender Deus e sua revelação é
16
a analogia da fé (analogia fidei): a analogia que parte da fé ao invés de partir da razão.
207. Já nesta época, as principais críticas de Cornelius van Til, Paul Wholley, Caspar Wistar Hodge e J. Gresham Machen
se concentravam no campo da epistemologia, em especial no entendimento bartiano da Palavra de Deus.
15
cf. a resenha do livro de Suzanne Selinger, Charlotte von Kirschbaum and Karl Barth: A Study in Biography and the
History of Theology (University Park, PA: Pennsylvania State University Press, 1998), por George Hunsinger, em
http://www.ptsem.edu/grow/Barth/Selinger_review.htm. Ele diz: “Em outubro de 1925 Barth trocou compromissos
pedagógicos universitários de Göttingen para Münster. Sua esposa e família permaneceram para trás até que uma residência
satisfatória pudesse ser achada. Em fevereiro de 1926 [Charlotte] von Kirschbaum visitou Barth durante um mês em
Münster, antes que sua família se reunisse novamente, enquanto ele ainda estava vivendo sozinho. A situação de Barth neste
momento deve ser notada. Ele tinha 39 anos, estava casado com Nelly (então com 32 anos) há quase 13 anos, e tiveram
cinco filhos. O matrimônio não era particularmente feliz... Embora nós não saibamos o que aconteceu exatamente entre
Barth e Charlotte von Kirschbaum naquele encontro fatal de 1926, nós sabemos que daquele ponto em diante eles se
apaixonaram, e, a partir daí [até 1964, quando von Kirschbaum teve que ser admitida em uma casa de repouso com a doença
de alzheimer], Barth entregou imediatamente manuscrito após manuscrito para seu conselho e correção, e a isso ela se
comprometeu dali em diante, fazendo tudo que era possível para fazer avançar o trabalho teológico dele... Estes foram
exatamente os anos de vida intelectual mais produtiva de Barth. Como uma estudante sem igual, crítica, investigadora,
conselheira, colaboradora, companheira, assistente, porta-voz, e confidente, Charlotte von Kirschbaum era indispensável a
ele. Ele não poderia ter sido o que era, ou fazer o que fez, sem ela... Nós podemos desejar saber também onde Nelly Barth
se encaixava no meio de tudo isso. Há indubitavelmente muito que nós nunca saberemos. Sabemos que, a seu próprio modo,
ela nunca deixou de acreditar em seu marido e no trabalho dele. Nós sabemos que os dois experimentaram uma
reconciliação depois que Charlotte saiu de sua residência [após 1929 ela passou a viver com a família], e que ela e Karl a
visitaram na casa de repouso aos domingos, e que ela continuou essas visitas depois que Karl morreu em 1968, e que
quando a própria Charlotte morreu, em 1975, Nelly honrou os desejos de Karl, enterrando Charlotte no jazigo da família
Barth. Nelly morreu em 1976. Quem visita o cemitério de Basiléia Hörnli hoje pode ver o nome dos três gravados juntos na
mesma lápide”.
16
cf. cf. Battista Mondin, Os grandes teólogos do século vinte; vol. 2 – os teólogos protestantes e ortodoxos (São Paulo:
Paulinas, 1980), pp. 18-19. Esta obra foi publicada em português como Fé em busca de compreensão (São Paulo, Novo
Século, 2000). Esta obra deve ser lida juntamente com alguma edição do Proslogium, por ser comentário da mesma (por
exemplo, Santo Anselmo da Cantuária, “Proslógio” em Os Pensadores [São Paulo: Abril, 1984], pp. 67-123).
5
O Fides Quaerens Intellectum assinala, portanto, a segunda virada decisiva na peregrinação teológica
de Karl Barth: o abandono da dialética em favor da analogia. A partir de então, em Barth, a teologia da
Palavra se torna uma cristologia.
Em 1927 publicou o primeiro de uma projetada série de volumes sobre Die Christliche Dogmatik
[Dogmática Cristã]. Mas Barth foi criticado por esta ser baseada na filosofia existencialista.
Certamente, ele não subordinou a revelação ao existencialismo na mesma medida que Bultmann. Mas
ele desejava produzir uma teologia bíblica e livre da dependência de qualquer influência filosófica.
Além disso, queria enfatizar a objetividade da revelação de Deus mais do que a subjetividade da fé
humana. Então, ele decidiu começar novamente, e em 1932 iniciou a Die Kirchliche Dogmatik, obra
que não chegou a terminar. Esta é a disposição dos volumes editados:17
I/1 (A Palavra de Deus como critério para a dogmática, 1932) e I/2 (A revelação de Deus, a Sagrada
Escritura, o anúncio da Igreja, 1938): Contém os prolegômenos da obra: a tarefa, o objeto, as bases, o
método e os meios de conhecimento da teologia em geral e da dogmática em particular. A estes se
acrescentam os capítulos fundamentais sobre a doutrina da Trindade (ponto de partida objetivo de toda
teologia), a doutrina do Espírito Santo e a doutrina da Escritura.18
II/1 (A obra da criação, 1940): O conhecimento de Deus: possibilidades, limites; a realidade de Deus,
seus atributos: “as perfeições do amor divino” (que incluem graça e santidade, misericórdia e retidão,
paciência e sabedoria) e “as perfeições da liberdade divina” (que incluem unidade [ou simplicitas Dei]
e onipresença, constância e onipotência, eternidade e glória).
II/2 (A eleição gratuita de Deus – O mandamento de Deus, 1942): a doutrina da eleição gratuita de
Deus e o mandamento de Deus como o fundamento da ética cristã. Grande parte deste volume é um
comentário de Romanos 9 a 11.
III/1 (A obra da criação, 1945): fundamentos da criação, relação entre o pacto e a criação. Todo o
volume é uma profunda e abrangente exegese de Gênesis 1 e 2.19
III/2 (A criatura, 1948): A doutrina cristã do homem (antropologia teológica).
III/3 (O criador e a sua criatura, 1950): A providência de Deus, as potestades e os anjos.
17
cf. Georges Casalis, Retrato de Karl Barth, pp. 101-103. A quinta (e última) parte abordaria a escatologia (doutrina da
redenção). cf. também os apêndices III e IV, “Karl Barth – his message to us” e “Karl Barth: Die Kirchliche Dogmatik – a
book review” em Cornelius Van Til, Christianity and Barthianism, pp. 477-490. Esta obra chegou a 13 tomos (um deles é o
índice geral da obra), que se estenderam por 9.185 paginas! – quem as contou foi seu último assistente, Eberhard Busch.
18
cf. Roger Olson, História da Teologia Cristã, pp. 593-594: “Diferentemente da maioria dos sistemas de teologia, liberais
ou conservadores, a Dogmática Eclesiática não tem (...) [uma] seção introdutória sobre teologia natural ou evidências
racionais para a crença em Deus e nas Sagradas Escrituras. Pelo contrário, Barth lançou-se diretamente à exposição da
Palavra de Deus em Jesus Cristo, na igreja e nas Escrituras, ou seja, da revelação especial. (...) Barth evitou a teologia
natural, as defesas filosóficas da revelação divina, a apologética racional e qualquer outro alicerce racional para o
conhecimento cristão de Deus além do próprio evangelho de Jesus Cristo legítimo em si mesmo”.
19
Barth dedicou quatro tomos à consideração da criação (CD, III/1, 2, 3, 4; tese básica em II/1 §25). Afastando-se de
interpretações tradicionais, em seu entendimento, Gênesis 3.1-7 não é um mito, mas um conto ou saga (definida como um
“quadro poeticamente elaborado de uma concreta e de uma vez por todas pré-histórica Geschichtswirklichkeit [realidade
histórica], sujeita às limitações temporais e espaciais” [CD, III/1, p. 81]), que deve ser interpretado cristologicamente (CD,
IV/1 §60, p. 508). Adão não é uma figura histórica, mas é, exemplarmente, o representante de todos que o seguiram. Além
do mais, não houve um tempo em que o homem não fosse um transgressor e que, portanto, estivesse sem culpa diante de
Deus (CD, IV/1 §60, p. 495). Para um resumo e avaliação crítica da doutrina da imago Dei em Barth, ver Anthony
Hoekema, Criados à imagem de Deus (São Paulo, Cultura Cristã, 1999), pp. 63-66.
6
III/4 (O mandamento do criador, 1951): Problemas éticos em relação com o estado de criatura do
homem; relação com a criação animada, relações homem-mulher: casamento, pais e filhos, povo e
humanidade, respeito pela vida (suicídio, enfermidade, pena de morte, guerra), trabalho, ofício,
dignidade, honra, Dia do Senhor, etc.
IV/1 (O objeto e os problemas da doutrina da reconciliação. Jesus Cristo, o Senhor como Servo,
1953): Jesus Cristo, o Filho de Deus, juiz dos vivos e dos mortos, se humilha a si mesmo e se faz
solidário com o homem destinado ao juízo: o Senhor se faz escravo (ministério sacerdotal de Cristo);
por este ato se põe manifesto que o pecado é especialmente o orgulho, que faz frente ao juízo de Deus
que realiza a justificação do pecador; esta justificação se traduz pela ação do Espírito Santo na vida dos
homens pela união deste com a Igreja e no surgimento da fé em cada cristão.
IV/2 (Jesus Cristo, o Servo como Senhor, 1955): Jesus Cristo é a reabilitação do homem caído, que
ascende para a vida com e para Deus; o escravo se torna Senhor (ministério real de Cristo); por este ato
se põe manifesto que o pecado é essencialmente a inércia ante a Palavra de Deus e suas exigências; a
obra de Deus prossegue na vida pela santificação do pecador justificado; esta justificação se traduz na
vida dos homens pela edificação da Igreja e pela vida nova do cristão em amor.
IV/3 (Jesus Cristo, a verdadeira testemunha, 1959): Jesus Cristo é o fiador e o testamento de nossa
reconciliação, em quem se manifesta em sua plena luz (ministério profético de Cristo); assim, o pecado
se revela como mentira, negação da verdade, rejeição da Palavra; a obra de Deus no homem, a vitória
do Espírito Santo sobre o pecado-mentira, que se expressa na missão e no testemunho da Igreja, e na
vida do cristão em esperança.
IV/4: Este volume foi publicado como fragmento, tratando da ética da reconciliação, do Pai-Nosso e do
sacramento do batismo.
A Die Kirchliche Dogmatik [A Dogmática Eclesiástica] recebeu este nome por dois motivos:
Porque, tendo eu combatido muito o uso demasiado fácil que se faz do título ‘cristão’, quis começar por dar eu
próprio o exemplo; depois, e este é o ponto decisivo, porque queria chamar a atenção, desde o início, para o fato de
que a dogmática não é uma ciência ‘independente’; ela está ligada ao âmbito da Igreja e só assim torna-se possível
como ciência e adquire todo o seu sentido.20
A Die Kirchliche Dogmatik buscou ser expressão da fé da igreja, e não de uma escola teológica
particular. Ele eliminou “todos os elementos de filosofia existencial que então [nos tempos da
Dogmática Cristã] pensava que devia fazer intervir para fundamentar, apoiar e até justificar a
teologia”.21 A analogia fidei (ou analogia gratiae ou analogia revelationis) e a concentração
cristológica – dois traços que caracterizam a Die Kirchliche Dogmatik – obedecem a esse critério de
insistência de rigor absoluto, pois, para Barth,
uma dogmática cristã deve ser cristológica em sua estrutura fundamental como em todas as suas partes, se é
verdade que o seu único critério é a Palavra de Deus revelada e atestada pela Sagrada Escritura e pregada pela
Igreja e se é verdade que esta Palavra de Deus revelada se identifica com Jesus Cristo. (...) A cristologia deve
ocupar todo o espaço na teologia… quer dizer, em todos os domínios da dogmática e da eclesiologia… A
dogmática deve ser em seu fundamento mesmo uma cristologia e nada mais.22
20
CD, I/1 §1.
CD, I/1 §2.
22
CD, I/2, §14, p. 114; I/2 §15, p. 975.
21
7
Segundo Brown, “apesar de todas as suas falhas, a Church Dogmatics é a obra mais impressionante dos
tempos modernos a ser escrita por um único autor”.23
4. A IGREJA CONFESSANTE
Entre 1933 e 1934, Barth envolveu-se no movimento de resistência à presença do nacional-socialismo
dentro das igrejas luterana e reformada. Dessa resistência originou-se a Igreja Confessante (Die
bekennende Kirche), apoiada por Dietrich Bonhoeffer, Hermann Hesse e Martin Niemöller, que em 4
de janeiro de 1934 se reuniu como concílio livre das comunidades luteranas-reformadas em Barmen, o
que deu início à “disputa pela Igreja” (Kirchenkampf). Um concílio confessante ocorreu em 31 de maio
deste mesmo ano, onde foi aprovada a Declaração Teológica (Declaração de Barmen).24
Por não querer começar suas aulas com a saudação nazista, mas persistir em começá-las com uma
oração, Barth foi suspenso como professor universitário, sendo expulso da Alemanha, em 1935.
Passou, então, a lecionar na Universidade de Basiléia, na Suíça. Após o fim da Segunda Guerra, Barth
engajou-se em polêmicas sobre o batismo,25 hermenêutica e o programa de “desmitologização” (ou
melhor, a “interpretação existencial” de Bultmann, em que divisava um retorno à teologia liberal do
século 19).26 Ele também participou na assembléia de fundação do Conselho Mundial de Igrejas, em
Amsterdã, Holanda, realizado entre 28 de agosto e 4 de setembro de 1948.
5. A HUMANIDADE DE DEUS
Barth continuou coerente em suas posições básicas, mas revisou algumas de suas opiniões. Nos
primeiros anos do movimento neo-ortodoxo, Barth enfatizou fortemente a transcendência de Deus. Em
1956, numa preleção sobre a Humanidade de Deus, Barth reconheceu que havia sido unilateral demais,
23
Colin Brown, Filosofia e fé cristã, p. 160.
Esta fase é sumariada por Daniel Cornu, Karl Barth, teólogo da liberdade (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971), pp. 11-125.
25
Apesar de se entender como membro da tradição reformada, ele rejeitou o batismo infantil, recomendando o batismo de
adultos. Sua posição pode ser resumida como se segue: o batismo não é um sacramento, e sim uma resposta ao único
sacramento da história de Jesus Cristo, da sua ressurreição, do dom do Espírito Santo, e que, portanto, o batismo das
crianças deve ser descartado como “uma práxis penitencial profundamente distorcida”. cf. também Karl Barth, O ensino da
igreja acerca do batismo (Porto: [s/ed.], 1965).
26
Barth comentou, com razão, que este programa, ao tentar libertar o Novo Testamento de supostos mitos, exalou um “forte
cheiro de docetismo”. cf. Geoffrey Bromiley, “The Karl Barth Experience” em Donald McKim (ed.), How Karl Barth
changed my mind (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1986), pp. 75-76: “A correspondência entre Barth e Bultmann dá
evidência da separação que já estava presente desde a inicial – e aparente – aliança com Bultmann: a insistência de Barth em
exegese junto aos autores bíblicos em vez de acima deles; sua recusa em se curvar à primazia do existencialismo e seus
conceitos supostamente mais puros; sua preocupação com a factualidade da Palavra revelando e reconciliando [a
humanidade] em Deus, por meio da obra de Cristo; sua convicção de só podemos descansar em Deus por Sua obra já
realizada por nós; e em sua exigência por uma afirmação mais forte contra o juramento de lealdade pessoal que estava sendo
imposta por Hitler [Bultmann veio a se tornar membro do partido nazista]. (...) Ele divertidamente aludiu à uma nova
doença [que ele chamou de] ‘bultmannitis’, que deixou várias vítimas severamente desnutridas. Ele chamou a escola de
Bultmann de companhia de Coré [um levita rebelde que sugestivamente foi tragado no deserto, Nm 16], os comparou a
gnomos de jardim, e sugeriu que o movimento inteiro era como um carro com quatro pneus quadrados (...). [O livro] Honest
to God, de J. A. T. Robinson o fez lembrar da espuma misturada de três bebidas fermentadas (Bonhoeffer, Bultmann e
Tillich) que as pessoas ficam mascateando e estão bebendo como o mais recente elixir. Para Barth, a melhor resposta para
toda esta loucura teológica era tratá-la com o ridículo que ela merece”. Para a correspondência entre Barth e Bultmann, cf.
Bernd Jaspert (ed.), Karl Barth – Rudolf Bultmann; letters 1922-1966 (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1981). Um dos
melhores estudos críticos em português sobre o programa de desmitologização é: Herman Ridderbos, Bultmann (Recife:
Cruzada de Literatura Evangélica do Brasil, 1966).
24
8
por causa da necessidade da época.27 Agora era necessário haver outra mudança, mas não em oposição
à ênfase anterior na transcendência de Deus. Junto e incluído na transcendência de Deus está sua
humanidade – em Jesus Cristo.
Esta modificação atingiu até mesmo sua compreensão da revelação natural. Ele contrastou Jesus Cristo, a única
Palavra de Deus e a única luz da vida, com outras ‘palavras verdadeiras’ e ‘luzes menores’ através das quais ele
fala. Estas incluem a palavra não-cristã e a criação física. Mas Barth ainda insistiu que estes ainda não são
independentes da única revelação de Deus em Jesus Cristo.28
Em seu último curso na Universidade de Basiléia, Introdução à Teologia Evangélica,29 em 1962, Barth
definiu a existência teológica, que fora sua paixão: admiração diante do objeto teológico, submissão ao
objeto incomparável, compromisso, fé. Com o termo “evangélica”, Barth não pretendeu assinalar um
novo objeto da teologia nem uma nova perspectiva teológica, mas sim uma atitude particular, uma
disposição interior do teólogo. O objeto e a perspectiva estão sempre em Cristo. E não poderia ser de
outra maneira, dado que o Deus do Evangelho não é outro senão Jesus Cristo. Mas o Deus do
Evangelho, Cristo, é abordado com uma atitude de humildade, modéstia, respeito, temor. Na meditação
teológica, a mente deve deixar ser guiada por ele; nunca pode pretender submetê-lo aos seus critérios,
sejam os da história, da psicologia, da política, da metafísica ou da antropologia. Qualquer espécie de
racionalismo é um atentado contra a teologia evangélica e deve ser drasticamente reprimido. Deve-se
adorar somente a Deus, a Escritura basta para guiar a Igreja no sentido da verdade e a graça de Cristo
basta para regular nossa vida.
No período de 1962 a 1965 Barth enfrentou várias enfermidades, com diversas operações e internações
hospitalares. Neste tempo, sua influência teológica já estava em declínio. Por esta época Carl Henry
escreveu:
Com a idade de setenta e nove anos [1965], porém, as enfermidades próprias da decrepitude fizeram com que os
pensamentos de Barth se voltassem mais e mais ‘para a tenda que começa a ser desfeita’, como ele teve ocasião de
expressar-se. Apesar de ele continuar a manter seus colóquios mensais na sala que fica nas escadarias do
Restaurante Bruderholz, próximo de sua residência em Basiléia, o fato é que a obra criadora de Barth já começou a
tornar-se morosa, de modo que ele não se sente certo da possibilidade de levar a termo sua Dogmática da Igreja.
Ativamente, mas com cautela, tem estado a modificar sua teologia na direção de uma concepção de objetividade, a
fim de fugir à expropriação bultmaniana. ‘Barth quase se tornou outra vez um escolástico protestante’, assim
ironiza Gerhard Friedrich, erudito do Novo Testamento de Erlangen. ‘Mais e mais o vemos a pender para o que é
histórico, em detrimento do que é existencial’. Entretanto, o sentimento generalizado é de que as revisões que se
processam na teologia de Barth são ‘demasiado mínimas e tardias’... Isto significa que as revisões propostas à
teologia de Barth se vêm arrastando demasiadamente, para que possam proporcionar algum apreciável impacto
sobre a linha principal da teologia continental.30
Em 1966, foi nomeado Senador Honorífico da Universidade de Bonn, tendo viajado neste mesmo ano
para o Vaticano, em setembro. Karl Barth faleceu em 10 de dezembro de 1968, aos 82 anos, em
Basiléia. A última palavra que pronunciou, na noite anterior, em telefonema a seu amigo Thurneysen,
foi: “Deus não nos abandona a nenhum de nós e tampouco a nós todos juntos! – Há um governo!”31
27
Karl Barth, “A humanidade de Deus” em Karl Barth, Dádiva e Louvor; artigos selecionados por Walter Altmann (São
Leopoldo: Sinodal, 1986), pp. 389-405. Esta é uma coletânea representativa de ensaios e palestras das principais etapas da
peregrinação teológica de Barth.
28
Tony Lane, Pensamento cristão; vol. 2 (São Paulo: Abba, 1999), p. 116.
29
Publicado em português como Introdução à teologia evangélica (São Leopoldo: Sinodal, 1996).
30
C. F. H. Henry, Fronteiras na teologia moderna (Rio de Janeiro: JUERP, 1971), pp. 46-47. Para algumas das razões para
o declínio da influência bartiana na Alemanha, ver especialmente pp. 35-48.
31
Para um comovente testemunho das últimas horas de Barth, cf. Eberhard Busch, “Memories of Karl Barth” em Donald
McKim (ed.), How Karl Barth changed my mind, p. 14: “Na última noite, dois dias antes dele falecer, eu estava com minha
9
6. TÓPICOS PRINCIPAIS DA TEOLOGIA DE KARL BARTH32
Podemos sintetizar a variação da linha teórica da teologia de Barth desta forma:33
No período dialético da Carta aos Romanos, encontramos as seguintes afirmações centrais:
1. Deus é Deus, e não é o mundo;
2. o mundo é mundo, e não é Deus, e nenhuma via conduz do mundo a Deus;
3. se Deus encontra o mundo – e é este o grande tema da teologia cristã –, esse encontro é krisis, é
juízo, é um tocar o mundo tangencialmente, que delimita e separa o mundo novo do velho.
No período da Die Kirchliche Dogmatik tomam consistência as seguintes afirmações centrais:
1. Deus é Deus, mas é Deus para o mundo: ao Deus que é “totalmente Outro” sucede a figura de
Deus que se faz próximo do mundo;
2. o mundo é mundo, mas é um mundo amado por Deus: passa-se do conceito da infinita diferença
qualitativa aos conceitos de aliança, reconciliação, redenção, como conceitos-chave do discurso
teológico;
3. Deus encontra o mundo em sua Palavra, em Jesus Cristo: daí se segue a concentração
cristológica subseqüente ao enfoque do período dialético.
Para Barth, a “dogmática é a ciência na qual a Igreja, segundo o estado atual do seu conhecimento,
expõe o conteúdo da sua mensagem, criticamente, isto é, avaliando-o por meio das Sagradas Escrituras
e guiando-se por seus escritos confessionais”.34 A partir desta definição, podem ser identificados doze
princípios metodológicos que guiaram a produção teológica bartiana:35
1. A dogmática é uma função da Igreja.
esposa em sua casa. E eu penso que nestes últimos dias ele veio a temer a noite. Então ele não queria que nós deixássemos a
casa dele. Por volta de uma hora da manhã, ele nos chamou, e nos disse que se deitaria um pouco, e que nós deveríamos vir
e cantar canções. Por volta das 1:15 as janelas de sua casa estavam abertas para a rua da frente. Eu disse: ‘Nós teremos que
fechar as janelas porque outras pessoas serão acordadas por nossa canção’. Barth disse: ‘Oh, não importa, será uma boa
canção’. E primeiro ele começou com canções de sua infância, então ele me pediu para apanhar um hinário da igreja, e nós
cantamos uma canção sobre o Advento. Agora, quando Barth cantou, ele não sussurrou. Ele cantou ruidosamente, como um
leão. E eu penso que em muitas casas puderam ouvir aquela grande canção! Nós cantamos uma canção do Advento, que
falava do grande conforto que nós receberemos com a vinda em alegria de Cristo. E esta foi a última vez que eu vi Karl
Barth”.
32
Para uma penetrante avaliação de sua teologia, por uma ótica reformada, cf. Cornelius Van Til, Karl Barth and
evangelicalism (Philadelphia, PA: Presbiterian and Reformed, 1964), pp. 13-27. cf. também Cornelius Van Til, The new
modernism (Philadelphia, PA: Presbiterian and Reformed, 1947), pp. 131-159. Gordon H. Clark, Karl Barth’s Theological
Method (Philadelphia: The Presbyterian and Reformed, 1963).
33
Rosino Gibellini, A teologia do século XX (São Paulo: Loyola, 1998), p. 30. cf. T. H. L. Parker, Karl Barth, p. 109, para
acompanhar as fontes a que Barth recorreu nestas duas fases. Na época do Der Römerbrief ele citou Franz Overbeck,
Kierkegaard, Dostoievski, Blumhardt, Grünewald, Calvino, Lutero e Friedrich Nietzsche. Na época da Kirchliche Dogmatik
são citados Lutero e Calvino, mas também Agostinho, Tomás de Aquino e Schleiermacher. Os Pais Gregos também são
muito mencionados: Irineu, Atanásio e especialmente Gregório de Nissa. João Damasceno e Inácio de Antioquia também
são muito mencionados nos dois primeiros volumes da CD. Dos Pais Latinos, o mais citado é Tertuliano, mas o Credo dos
Apóstolos e o Credo Niceno podem ser considerados representativos desta tradição. Entre os escolásticos protestantes são
citados Polanus, Cocceius, Wolleb e Turrentini, entre os reformados, e John Gerhard e Quenstedt, entre os luteranos. Poucos
ingleses são mencionados. Entre eles Edward Irving, John Wesley e William Perkins. Mozart também é abundantemente
mencionado, especialmente na CD III/3.
34
CD, I/1, §7.
35
Geoffrey Bolich, Karl Barth & evangelicalism (Downers Grove, Il: InterVarsity Press, 1980), pp. 121-122.
10
2.
3.
4.
5.
A dogmática deve estar baseada na Palavra de Deus somente.
A primeira e última pergunta da dogmática é a pergunta sobre Deus.
A dogmática sabe que Deus se revelou somente em Jesus Cristo.
O pensamento dogmático sobre a revelação de Deus em Cristo é um pensamento
automaticamente trinitário.
6. A dogmática relaciona todas as partes [loci] da dogmática para seu centro cristológico.
7. A dogmática reconhece seus limites e preserva o mistério de Deus.
8. A dogmática insiste na liberdade do Evangelho de uma relação de a priori com a existência
humana.
9. O pensamento dogmático não separa a ética da dogmática.
10. A dogmática se recusa a admitir qualquer tipo de dualismo e assim se recusa a considerar o mal
tão seriamente quanto a graça.
11. A dogmática se move da ação para a existência, da realidade para possibilidade, do Evangelho
para a Lei, do “sim” de Deus para o “não” de Deus.
12. O pensamento dogmático sabe que uma dogmática pode ser arquiteturalmente bonita e
teologicamente exata.
A abordagem filosófica de Barth reconheceu que todos temos nossas filosofias preconcebidas. Podem
ser sofisticadas ou ingênuas. Podem oferecer uma compreensão valiosa da existência, ou não. Mas
porque somos homens, e não Deus, nenhuma filosofia pode chegar a ser exaustiva. Além disto, toda
filosofia exige ser modificada à luz da experiência, não menos que à luz da Palavra de Deus. Cada
filosofia, portanto, por melhor que seja, nada mais é que uma hipótese de trabalho. “Não pode, de modo
algum, tornar-se uma finalidade em si mesma” [CD, I/2 §21, p. 731]. “Quando se trata da questão do
conhecimento de Deus, devemos começar com o dado primário da fé cristã – a revelação que Deus fez
de si mesmo na sua Palavra. É à luz da Palavra de Deus que devemos julgar nossas idéias
preconcebidas, e não vice-versa”.36 Mas, mesmo tendo estes cuidados, pressupostos filosóficos neoplatônicos e kantianos continuaram exercendo influência sobre toda a construção da teologia bartiana.
O que se mostra responsável pela tensão existente na teologia européia contemporânea é a noção especulativa de
que a revelação divina nunca nos seja comunicada objetivamente – nem mediante ocorrências históricas nem
através de proposições inteligíveis – pois é algo sempre apreendido subjetivamente, à base de uma resposta de
submissão em face de Deus. Tal maneira de conceber-se contraria o pensamento cristão tradicional de que a
revelação divina seja manifestação objetiva e inteligível. (...) Numa só palavra, portanto, a Igreja Cristã Histórica
tem compreendido que a revelação divina é uma inteligível e objetivamente oferecida manifestação da divindade,
seja isto com relação à revelação universal (mediante a natureza, a história e a consciência humana) ou à revelação
especial (mediante os feitos redentores e as declarações registradas na Bíblia). (...) [E a] redefinição dialética e
existencial [da revelação reflete, de modo muito claro, a influência de Immanuel Kant, que] insistia em que os
conceitos oriundos da razão humana não poderiam apreender realidades metafísicas e sustentava que as afirmações
relativas à ordem espiritual, portanto, carecem de validade universal.37
Talvez o problema mais sério reside no fato de que “o bartianismo não é nenhum atalho que nos
capacita a evadir questões históricas. Não podemos ter a revelação e a teologia bíblica sem estarmos
dispostos a defender a base histórica delas. O próprio Barth parece ser indiferente a isto, e, como
conseqüência, parece que seu ensino é deixado flutuando no ar”.38 Podemos entender este afastamento
dos elementos históricos do cristianismo (primeiro em Friedrich Schleiermacher, depois em Bultmann,
36
Colin Brown, Filosofia e fé cristã, p. 164.
C. F. H. Henry, Fronteiras na teologia moderna, pp. 97-98, 101.
38
Colin Brown, Filosofia e fé cristã, p. 163: Ele diz mais: “A alternativa é perguntar a nós mesmos se esta fuga da história
não tem sido demasiadamente apressada, e dedicar-nos à tarefa longa e árdua, porém, vital, de examinar de novo a base
histórica da fé cristã”.
37
11
Tillich e até mesmo em Barth) como um passo de submissão ao Iluminismo (Aufklärung) e,
principalmente, à crítica kantiana à religião. Os campos da natureza e da história passaram a ser
considerados como propriedade exclusiva da ciência secular, e a ciência, segundo ela afirma, não
descobriu nesses campos nenhuma evidência de Deus. Tudo é aparentemente sujeito às leis da história:
todos os eventos são análogos e interligados por relações inevitáveis de causa e efeito.
O triunfo desta perspectiva expulsou os teólogos para a meta-história (geschichte) – ou para uma
transcendência absoluta ou para algum tipo de imanência.39 Separados assim da verdade objetiva, eles
se voltaram para dentro de si mesmos em busca de uma compreensão da própria existência, sempre
sem o apoio da história. Mas, fugindo da crítica kantiana, estes teólogos foram pegos pela crítica de
Feuerbach e Marx.40 A investigação desses movimentos teológicos, nos séculos XIX e XX, revela o
grande erro que foi o abandono da história como um elemento da teologia cristã.41 Por isto, a tendência
para uma doutrina da reconciliação universal, que permeia a teologia de Barth, é apenas um sintoma de
uma falha mais profunda, “sua falta de historicidade”.
Ao mencionar que este tipo de objetivismo dogmático é vulnerável à crítica da religião de Feuerbach e
Marx, Bockmuehl diz:
A primeira fase da teologia de Karl Barth é sujeita a este juízo. É verdade que se opõe ao subjetivismo, armado
com afirmações objetivas sobre a transcendência da Palavra de Deus. Ao mesmo tempo, Barth elogia a crítica de
Feuerbach, vendo nela uma aliada contra o subjetivismo. Mas a sua teologia deixa de lado a história de Jesus
Cristo, a verdadeira e principal objetividade da fé. Numa troca de artigos com Adolf Harnack em 1924, Barth
relega a história de Cristo a um tipo de meta-história. Utiliza a distinção entre história [historie] (a história profana)
e geschichte (a história sagrada), posteriormente popularizada por Bultmann. Assim, Barth fez da teologia uma
39
Este é o argumento central da pesquisa de Stanley Grenz & Roger Olson, Teologia do Século XX: Deus e o Mundo Numa
Era de Transição.
40
cf. Tony Lane, Pensamento cristão; vol. 2, pp. 114-115: “O filósofo Ludwig Feuerbach, em sua obra A essência do
cristianismo (1854) afirmou que toda teologia (fala sobre Deus) é realmente antropologia (fala sobre o homem). Afirmar
que Deus é amoroso e sábio, diz ele, é assegurar o supremo valor do amor e da sabedoria humanos. As culturas atribuem a
Deus aquelas qualidades que eles acham louváveis. A religião é a forma primitiva e indireta de auto-conhecimento do
homem – que é agora substituída pela filosofia. As idéias de Feuerbach foram imensamente influentes – sobre Marx que viu
isto como a explicação da religião; sobre Freud que viu Deus como a projeção no céu de uma figura paterna.
Schleiermacher e a tradição liberal, baseando a teologia na experiência religiosa humana. Todos eles foram particularmente
vulneráveis a estas investidas – como Bultmann também foi, mais tarde. Toda a teologia de Barth pode ser vista como uma
resposta firme contra Feuerbach, uma tentativa de mostrar que Deus não é feito à imagem do homem. Para compreender
Deus, nós não deveríamos começar com uma idéia abstrata do significado da palavra ‘Deus’ e então relacionar esta idéia ao
Deus cristão. Este foi o caminho de Tomás de Aquino, que começou com a teologia natural – que é o caminho das teologias
sistemáticas mais tradicionais que começam com a doutrina de Deus antes de considerar sua auto-revelação. Em vez disto,
nós deveríamos começar com Deus como revelado em Jesus Cristo”. Barth escreveu um prefácio para a mais recente edição
da obra A essência do cristianismo. Ele sentiu que o ataque feito por Feuerbach contra o cristianismo afundou a teologia
liberal.
41
Klaus Bockmuehl, “A crítica marxista à religião e a historicidade da fé cristã” em Paul Freston (org.). Marxismo e fé
cristã (São Paulo: ABU, 1989), pp. 24-26. Ele diz: “Não quero com isso dizer que a teologia deva voltar à asseveração
simplista de que a evidência da revelação de Deus na história é tão esmagadora que só uma pessoa cega ou perversamente
irracional não a reconhece. Dessa forma a fé reduzir-se-ia a um reconhecimento frio dos fatos. A história não é a revelação e
nem a revelação é a história. (...) Se existissem fatos indubitáveis, com apenas uma interpretação possível, a fé não seria
necessária. E não haveria um compromisso com a pessoa (Jesus Cristo) que demanda a auto-entrega, a confiança e o crédito
– enfim, a fé, com a plena evidência disponível no futuro. Por outro lado, se não existisse fato algum, a mensagem seria uma
‘interpretação’ arbitrária e ridícula de coisas que nunca aconteceram. Contudo, este ‘decisionismo’ é o que encontramos em
vários teólogos modernos. Sua posição, porém, só pode ser passageira, porque o seu irracionalismo os expõe à crítica de
Feuerbach e Marx. Para evitar este desfecho, devemos insistir no elemento histórico da mensagem cristã. A história é a base
necessária, embora não suficiente, da fé”.
12
contenda arbitrária e dogmática, em vez de a exposição da obra de Deus na história. Somente depois de 1956 é que
Barth começou a descer a uma compreensão da história divina da salvação dentro da história do mundo.42
Mas como esta influência filosófica difere da dependência de Agostinho ao neo-platonismo ou de
Tomás de Aquino ao aristotelismo? Agostinho e Tomás de Aquino claramente reconheceram a
primazia e a autoridade da Escritura. Ambos se separaram de suas filosofias onde viam que elas
conflitavam com as Escrituras. Barth, ao contrário, não concede à Escritura tal papel normativo e não é
tão crítico com seus pressupostos neo-platônicos e kantianos, como Agostinho e Aquino foram com
seus pressupostos filosóficos.43
Infelizmente, estes pressupostos se evidenciaram em toda a construção teológica bartiana,
especialmente na manutenção da distinção entre historie e geschichte, como veremos ao enfocarmos os
principais tópicos de sua teologia.44
6.1. O Deus Triúno – Em Barth, Deus é absolutamente transcendente. A partir deste prisma, ele fez
uma forte distinção entre a procura helênica por Deus (que ele chama de “teologia natural”) e a
proclamação do evangelho de que em Jesus, Deus nos procura (o que ele chama de “revelação”),
usando essa percepção como a única força motora do discurso trinitário. Barth colocou a doutrina da
Trindade como ponto de partida para a teologia. Ele argumentou que:
A doutrina da Trindade é o que, basicamente, define o caráter cristão da doutrina de Deus e, portanto, distingue
como sendo cristão o conceito de revelação, diferente de outras doutrinas possíveis sobre Deus e sobre o conceito
de revelação.45
Barth via na doutrina da Trindade a única resposta possível para a pergunta: Quem é esse Deus que se
revela? A revelação bíblica, então, faz três perguntas: Quem é revelado? O que ele fez para se revelar?
O que a revelação realiza? A resposta a cada uma deve ser Deus, sem restrição.46 “Deus se revela a si
próprio. Ele se revela através de si próprio. Ele se revela a si próprio”.47 E separadas de cada uma
42
cf. também Klaus Bockmuehl, “A crítica marxista à religião e a historicidade da fé cristã” em Paul Freston (org.).
Marxismo e fé cristã, p. 24.
43
Mas como resolver o problema do papel controlador dos pressupostos, ao se ler as Escrituras e fazer teologia? O filósofo
reformado Cornelius van Til propôs “um argumento por pressuposto”. Esta abordagem reconhece que nenhum fato,
histórico ou não, pode ser interpretado de maneira coerente sem o pressuposto do Deus Trino da Bíblia (como afirmado na
igreja primitiva na regula fidei). Avançamos a partir das pressuposições das Escrituras, através das proposições das
Escrituras, até as conclusões das Escrituras. Isto, naturalmente, não é nem neutro nem objetivo. Tem, porém, dois
argumentos fortes a seu favor. Metodologicamente, não podemos esperar que sequer entendamos, e muito menos que
aceitemos, a mensagem da Bíblia se impusermos sobre ela pressuposições estranhas. Devemos permitir, portanto, que nosso
pensamento, pelo menos temporariamente, seja moldado pelas pressuposições da própria Escritura, simplesmente a fim de
entendê-la. A não ser que sejam aceitas as reivindicações do Jesus histórico e Sua interpretação de Si mesmo, a
possibilidade de qualquer conhecimento histórico se evapora. Os fatos da história e a interpretação bíblica deles são
inseparáveis (cf. Colin Brown, Filosofia e fé cristã, pp. 156-159). Para mais informações sobre a apologética
pressuposicional, cf. Ricardo Quadros Gouvêa, “Calvinistas também pensam: uma introdução à filosofia reformada” em
Fides Reformata 1/1 (Janeiro-Junho 1996), pp. 34-59 e, em especial, os excelentes artigos de David Charles Gomes, “Fides
et Scientia: indo além da discussão de ‘fatos’” em Fides Reformata 2/2 (Julho-Dezembro 1997), pp. 129-146 e “A suposta
morte da epistemologia e o colapso do fundacionalismo clássico” em Fides Reformata 5/2 (Julho-Dezembro 2000), pp. 115142.
44
Ainda que os conceitos de historie e geschichte permeiem algumas de suas principais afirmações teológicas, deve-se fazer
justiça a Barth, pois ele criticou vigorosamente a epistemologia iluminista e kantiana, afirmando a absoluta prioridade da
auto-revelação de Deus (principalmente na CD I/1), em forte contraste com a incredulidade e ceticismo metafísicos tão
presentes em sua época.
45
CD, I/1 §8, p. 301.
46
CD I/1 §8, pp. 311-352.
47
CD I/1 §8, pp. 312.
13
dessas três frases, as outras duas permanecem ambíguas.48 Toda a doutrina da Trindade, diz ele, é
somente a especificação de que Deus pode se revelar a si próprio assim como Deus de fato se revelou
em Cristo.49
Para Barth, Deus é a resposta a todas as três perguntas. Se a revelação, Jesus, ou a realização da
revelação entre nós, o Espírito Santo, não fossem simplesmente o próprio Deus, nós seríamos lançados
a uma procura religiosa inútil pelo próprio Deus. Mas o que a cruz e a ressurreição revelam é
exatamente que tal procura, negando a suficiência da palavra do evangelho, é incredulidade.
Resumindo, aquele que é revelado é Deus. Pai, Filho e Espírito Santo são formas divinas de ser que
existem eternamente dentro da unidade absoluta de Deus. Ainda assim, a distinção entre essas formas50
consiste numa pré-condição necessária para a revelação de Deus em Jesus Cristo e na presença
espiritual de Deus dentro da vida da igreja. Contudo, o Deus que assim se revela a si próprio não se
torna com isso meramente idêntico à revelação histórica e à presença consumada; a cruz revela, de
novo, que Deus jamais é apreendido dessa maneira por nós.
6.2. A Palavra de Deus51 – Barth fez uma distinção entre “inspiração verbal” e “inspiração literal”. A
partir deste pressuposto, a Palavra e as ações de Deus nunca podem ser identificadas com palavras
humanas ou eventos históricos registrados na Bíblia, mas devem ser transcendentais. A inspiração
verbal seria teologicamente irrenunciável, na medida em que a Escritura testemunha a Cristo, o “verbo”
divino. A inspiração literal, no entanto, deveria ser rejeitada como tentativa de dar uma garantia
miraculosa para o testemunho da Escritura.52
Por outro lado, defendeu a “inspiração” (Inspiration) da Escritura como um processo ativo de
permanente iniciativa de Deus, mas rejeitou a “inspiracidade” (Inspiriertheit), uma qualidade
48
CD I/1 §9, pp. 321-322.
CD, I/1 §8, pp. 32, 329.
50
cf. Roger E. Olson & Christopher A. Hall, The Trinity: Guides to Theology (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 2002),
pp. 96-97, 140. Barth deixou claro que, ao falar sobre Jesus Cristo ele estava falando sobre a encarnação da “Segunda forma
de Ser” (Seinsweise) de Deus. Ele preferia o termo “forma” ao invés de “pessoa” pois, aos ouvidos modernos, a palavra
“pessoa” inevitavelmente implica em uma “personalidade” e Deus tem apenas uma personalidade. Ainda assim, o
trinitarianismo bartiano tem recebido críticas. Entre elas, a de que a real distinção entre as três pessoas divinas parece
gravemente comprometida por um cristocentrismo que tende a transformar-se sistematicamente em cristomonismo – um
isolamento e abstração da segunda pessoa da Trindade. Eles também dizem: “Enquanto o modalismo pode ter sido um
perigo que surgiu muito cedo na carreira de Barth, em seu entendimento da doutrina da Trindade, suas reflexões posteriores
(como na CD, IV/1) (...) deixam muito claro o reconhecimento de Barth da realidade das distinções ontológicas entre o Pai,
o Filho e o Espírito Santo. Não há nenhuma dúvida sobre a ortodoxia de Barth [neste tópico] e o seu compromisso com a fé
nicena da Igreja Primitiva”.
51
Da qual falou na CD I/1 e I/2. Na teologia de Barth, a Palavra de Deus é o conceito central. A Palavra de Deus vem até
nós em uma forma tripla: a Palavra pregada, a Palavra escrita e a Palavra revelada. Correspondentemente, a Palavra é, por
natureza, fala, ato e mistério – uma triplicidade que está presente em cada forma da palavra de Deus. Esta triplicidade na
unicidade e esta unicidade na triplicidade oferecem a única analogia à doutrina da Santa Trindade. Para um estudo mais
aprofundado sobre este tópico, cf. Welerson Alves Duarte, O problema contemporâneo das exposições do conceito triádico
da Palavra de Deus em Karl Barth. Dissertação de Mestrado (São Paulo: Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew
Jumper, 2001).
52
Deve ser mencionado que Barth admitia que o conceito de inspiração verbal já estava presente na teologia da Igreja
primitiva: em Atenágoras (Leg. Pro Christianos, 7, 9), no Pseudo-Justino (Coh. ad Graecos, 8), em Hipólito (De
Antichristo, 2), em Clemente de Alexandria (Protrepticus, IX, 82, 1), em Gregório de Nazianzeno (Orationes, 2, 105) e,
atravessando os séculos, em Martinho Lutero e João Calvino.
49
14
ontológica da Escritura enquanto letra.53 A Palavra pregada e escrita (a única que ultrapassa o abismo
entre Deus e o homem) nada mais faz além do que apontar para a verdadeira revelação divina, a saber,
a palavra de Deus em seu sentido absoluto e transcendental.
Como a realidade do Criador se distingue de toda outra realidade pelo fato de que ele e somente ele existe para si,
isto é, originariamente, assim sua auto-manifestação se distingue da de qualquer outro ser e espírito criado, pelo
fato de que ele e somente ele pode manifestar a sua existência autenticamente, veridicamente, eficazmente,
documentando assim o seu ser em sua revelação.54
Barth afirmou que reconhecer a autoridade da Escritura é uma questão de confissão, porque “se não
estamos para desistir de nossa fé temos que crer no milagre da graça” (CD, I/2, p. 598). Quando
falamos da autoridade na Igreja, isso implica que há na igreja uma corte de apelação, que tem uma
relação mais próxima com a base e a essência da Igreja que qualquer outra. Esta autoridade é a
Escritura porque esta é o registro existente mais antigo das origens da Igreja e, portanto, da base e
natureza da Igreja. A autoridade da Escritura não é uma possessão em si mesma, nem mesmo uma
dádiva outorgada pelo próprio Deus. A Escritura tem autoridade porque o próprio Deus a toma e fala
através dela.55
A idéia que a proclamação constitui o ponto de partida para a teologia é fundamental para o
pensamento de Barth, por entender que a teologia deve servir exclusivamente às necessidades da
pregação.56 Ou, mais especificamente, diria que a tarefa da teologia é a de testar e guiar a pregação de
maneira crítica. Isto é acima de tudo tarefa da dogmática: “A dogmática como disciplina teológica é a
autocrítica científica da igreja cristã relativamente ao conteúdo de sua linguagem própria sobre
Deus”.57
A palavra de Deus é a Palavra ouvida na proclamação da Igreja hoje. A Igreja prega a Palavra que é
testemunha de Cristo, a Palavra revelada. Esta Palavra revelada, proclamada na linguagem da Igreja, é
atestada pela palavra da Escritura. Desta maneira, as três formas – pregação, revelação e Escritura58 –
convergem no nome único de Jesus Cristo, no qual Deus se revela. A Escritura é uma produção
humana que se torna objetiva se for “revelada”, “escrita” e “pregada” sob a ação do Espírito Santo,
caso contrário, não é uma revelação de Deus. Portanto, é o Espírito Santo quem legitima a palavra
humana sobre Deus, sempre de modo atual. Neste sentido, a pregação se torna central não apenas como
pressuposto da atividade teológica, mas também porque é o ponto em que a palavra de Deus confronta
a congregação ouvinte hoje. Assim é que o encontro divino-humano ocorre, conduzindo à fé.
A doutrina da Palavra de Deus de Barth e sua cristologia correspondem-se reciprocamente. A palavra
de Deus nos confronta na Escritura Sagrada, mas a Escritura não é, no sentido verdadeiro, palavra de
Deus – é apenas testemunho dela e aponta para a eterna Palavra de Deus. Da mesma forma, o Cristo da
história não é nem Filho de Deus nem Filho do Homem, no sentido exato. Em vez disso “ilustra” e nos
53
CD, I/2 §19. Para uma exposição de sua exegese de 2Tm 3.16, e sua refutação, ver os ensaios de J. I. Packer, “A
inspiração da Bíblia”, e Harold O. J. Brown, “A inerrância e a infalibilidade da Bíblia”, em Philip Wesley Comfort (ed.), A
origem da Bíblia (Rio de Janeiro: CPAD, 1998), pp. 49-75.
54
CD, I/1 §4, p. 114.
55
cf. Antônio de Godoy Sobrinho, “A autoridade da Escritura em Karl Barth e Rudolf Bultmann” em Revista Teológica
Londrinense 1 (Número 1 - 2001), pp. 16-18.
56
cf. especialmente Karl Barth, A proclamação do evangelho; homilética (São Paulo: Novo Século, 2001). Este texto não é
o texto revisado a partir das notas de Barth, publicado em 1966, com o nome de Homilética, mas o texto de 1963, produzido
a partir de notas de seus alunos.
57
CD, I/1 §7.
58
cf. CD, I/1 §4, pp. 89-124.
15
apresenta, como por analogia, as ações do eterno Filho de Deus e providencia o modelo para o papel do
homem diante de Deus.
Pode-se ir mesmo além e dizer que Cristo – como pessoa histórica – não realizou nossa salvação dentro do
contexto do tempo, mas que apenas dá testemunho da salvação eterna, cuja realidade se encontra no decreto de
Deus, e a proclama. Como resultado disso, o conceito de salvação de Barth enfatiza o conhecimento: a morte e a
ressurreição de Cristo deram a conhecer ao homem que a salvação eterna consiste nisto, que o Pai primeiro rejeitou
e então elevou o Filho. Os que reconhecem este fato foram reconciliados com Deus. A história da salvação como
registrada na Bíblia é apenas um reflexo da eterna “história da salvação” (Heilsgeschichte). Aprende-se a conhecer
esta através daquela, e é assim, segundo Barth, que ocorre a reconciliação. O perdão dos pecados e a justificação
nos fornecem uma analogia e representa aqui no tempo, aquela salvação eterna que é a única que constitui a base e
o verdadeiro objeto da fé.59
Precisamos perguntar se realmente é possível que Barth elaborasse sua exposição das doutrinas
clássicas do cristianismo se permanecesse completamente coerente à sua teoria das Escrituras.
Colocando em termos simples, sua afirmação sobre a tensão que existe entre seu conceito da Palavra de
Deus e suas afirmações teológicas acerca das Escrituras, dificilmente serve para justificar uma
exposição tão sistematizada dos ensinamentos bíblicos. Aplica-se aqui a justa crítica de Courthial:
Esta tradição crítica (não suficientemente criticada), estabelecida em ‘motivos de base’ racionalistas ou
existencialistas, marcou o pensamento de Barth com impressão tão profunda e persistente, que os ‘motivos de base’
bíblicos – inegáveis – da Dogmática se patenteiam constantemente contrafeitos, e as formulações mais
‘reformadas’ de Barth – e as há! – são, dir-se-á a despeito de si mesmo, constantemente ‘deformadas’... O ‘defeito’
maior e mais radical do pensamento de Karl Barth reside por certo exatamente neste ponto; sua doutrina nãoescriturística da Escritura.60
6.3. Concentração cristológica61 – O conceito da Palavra de Deus de Barth nos conduz a sua
cristologia – e ele mesmo disse ter operado em sua Dogmática uma “concentração cristológica”. A
Palavra de Deus é, a rigor, a pessoa de Jesus Cristo, que inclui a encarnação e a redenção. “Assim a
Escritura se impõe a si mesma, em virtude desse conteúdo. Em contraste com todo outro escrito, a
Escritura, com este conteúdo – realmente esse! – é Escritura Sagrada” e “isso implica que a Escritura
Sagrada também é a Palavra de Deus”.62
A palavra de Deus, segundo Barth, confronta o homem não apenas na mensagem pregada, mas também
na Escritura, que fornece as normas para a pregação e o critério segundo o qual a proclamação deve ser
testada. Significa isto, então que a Escritura é a palavra de Deus? Não no sentido direto – mas a
Escritura refere-se à Palavra “revelada”, a saber, ao aparecimento do Deus oculto em Cristo. A Bíblia
“dá testemunho” da revelação que ocorreu com a vinda de Cristo. “Dar testemunho”, neste contexto,
significa “apontar a uma direção definida além de si próprio a algum outro”.63
[Cristo revela que Deus] é Pai, Filho e Espírito Santo, Criador, Reconciliador e Redentor, o Altíssimo, o único
Senhor verdadeiro, cujo conhecimento ocorre nessa inteireza ou não ocorre absolutamente. Com efeito, não há uma
59
cf. Bengt Hägglund, História da Teologia, p. 349. Barth evitou usar o termo “história da salvação” (Heilsgeschichte),
preferindo o conceito de Geschichte Jesu Christi (“História de Jesus Cristo”).
60
Pierre Courthial, O conceito bartiano das Escrituras (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, s.d.), p. 6. Neste ponto,
Barth se distanciou da crença na inerrância das Escrituras, tradicionalmente aceita na igreja cristã, desde os primórdios. cf.
John H. Gerstner, “A doutrina da igreja sobre a inspiração bíblica” em James Montgomery Boice (ed.), O alicerce da
autoridade bíblica (São Paulo: Vida Nova, 1989), pp. 25-68.
61
Para uma avaliação mais aprofundada deste tópico, cf. Cornelius Van Til, Barth’s Christology (Philadelphia, PA:
Presbiterian and Reformed, 1962) e Christianity and Barthianism, pp. 13-29.
62
CD, I/1 §4.
63
CD, I/1 §1, p. 14.
16
essência de Deus aquém ou além de tal inteireza; tudo aquilo que é possível conhecer e dizer sobre a essência de
Deus só pode ser uma explicação ulterior de sua inteireza.64
O divino não pode de nenhum modo ser colocado no mesmo nível com qualquer coisa temporal ou
humana – esta pode, portanto, apenas “apontar” na direção daquele.
O abismo entre Deus e o homem foi ultrapassado em um ponto, e isto ocorreu com a encarnação, que
significa que a eterna palavra de Deus assumiu a natureza humana, e o fez em Jesus Cristo. Isto foi
expressão da liberdade soberana de Deus, ação que ocorreu exclusivamente com resultado do exercício
da liberdade divina. Barth encontra isto ilustrado no nascimento da virgem: o milagre da encarnação
teve lugar sem qualquer cooperação humana.65
A cristologia que Barth desenvolve a partir dessas premissas ocupa lugar central em sua dogmática.
Visto não ser possível qualquer contato entre o divino e o humano a não ser na encarnação, o resultado
é que todas as questões no campo da dogmática são relacionadas com a cristologia. A relação entre
Deus e o homem – o tema básico da teologia – foi demonstrada em Cristo de modo exemplar.
A eterna Palavra de Deus escolheu essência e existência humana, santificou-a e assumiu-a até fazer dela uma só
realidade consigo mesmo, de maneira a tornar-se, enquanto verdadeiro Deus e verdadeiro homem, a Palavra da
reconciliação dita ao homem por Deus.66
Nele vemos refletido o modo de Deus tratar com o homem e a obediência do homem e sua elevação à
semelhança com Deus. A criação não tem outro significado que o de prefigurar a ação de Deus que
seria realizada em Cristo. A doutrina da igreja de Barth (e também sua ética) foi desenvolvida de
acordo com sua cristologia; entendia que ambas servem para explicar a relação entre Deus e os homens
que é ilustrada na pessoa e obra de Cristo.
A “concentração cristológica” implica no completo repúdio de toda e qualquer espécie de teologia
“natural”. Já na Carta aos Romanos, Barth atacava a religiosidade humana (ou religião natural), que se
baseia somente na experiência humana e considerava a religião um dos aspectos desta experiência.
Tudo o que é humano deve reduzir-se a nada na presença da Palavra divina, que vem “diretamente do
alto” e assim invade a existência humana e leva o homem a enfrentar a necessidade de tomar uma
decisão.
Quando Emil Brunner, em Natur und Gnade (1934), afirmou que apesar disso deve haver um ponto de
contato no homem natural para a Palavra proclamada, a fim de que o homem possa ser influenciado por
64
CD, II/1 §25, pp. 55-56.
Emil Brunner negou o nascimento virginal de Cristo em seu livro The Mediator (Philadelphia: Westminster Press, 1947,
p. 326). Ele o chamou de “curiosidade biológica” e viu uma possível conexão com o docetismo porque essa doutrina fazia
com que o Espírito Santo usurpasse a função do pai humano. Barth rejeitou os argumentos de Brunner chamando-os de “um
mau negócio” (CD, I/2 §15, p. 184).
66
CD, I/2 §15, p. 134. Deve ser notado que Barth aceitou a definição de fé de Calcedônia (CD, IV/1 §58, p. 133) e também
a cláusula filioque (CD, I/2 §16, p. 250). cf. Karl Barth, Church Dogmatics: a selection with introduction by Helmut
Gollwitzer, p. 92: “As definições dogmáticas da Igreja Primitiva relativas à relação da divindade e humanidade na pessoa de
Jesus Cristo, ou às naturezas divina e humana de Cristo, não são consideradas por Barth como o resultado de uma distorção
do cristianismo primitivo pela metafísica grega, mas como uma introdução insubstituível para a compreensão correta das
declarações sobre Cristo encontradas no Novo Testamento. Prevenindo-se contra a distorção de que estas definições se
referem a um estranho e maravilhoso Deus-homem, Barth as interpreta como sendo a descrição, não de uma essência
estática, mas de uma ação de Deus que acontece em Jesus Cristo. Esta é o centro determinante do destino cósmico e
humano”. cf. também Hans Boersma, “Alexandrian or Antiochian? A dilemma in Barth’s christology”, Westminster
Theological Journal (vol. 52, n. 2, fall 1990), pp. 263-280.
65
17
ela, Barth respondeu com um categórico não! Em uma obra intitulada Nein! (1934), Barth não só se
dissociou da teologia natural em sua forma tradicional (a idéia que o homem possui certo conhecimento
de Deus e também uma percepção natural relativa ao certo e ao errado), mas também do conceito de
Brunner da existência de “um ponto de contato”. Esta controvérsia provocou a separação de Barth e
Brunner.67 Mas a rejeição da “teologia natural” por parte de Barth provocou forte impacto sobre a
teologia contemporânea, mesmo fora da escola dialética.68
6.4. Reconciliação – Gollwitzer diz: “A pessoa e trabalho de Jesus Cristo são um, e não podem ser
separados nem sequer com a finalidade de estudo [em Barth]. Tudo aquilo que Ele é também o é o seu
trabalho visando homens; Ele é homem a favor de outros homens”.69 Mesmo diante desta advertência,
por uma questão de clareza, separaremos neste ensaio o entendimento bartiano da pessoa e a obra de
Cristo.
Para Barth, em Jesus Cristo, humanidade e divindade se unem, sem comprometer a transcendência de
Deus. Não existe a possibilidade de que o homem tenha acesso a Deus. É sempre Deus, em liberdade,
quem se dirige ao homem. O homem não pode ser salvo por meio de seus feitos e esforços, a salvação é
obtida pela graça de Deus. “Em vista desse seu Filho, que devia tornar-se homem e portador dos
pecados dos homens, Deus amou o homem e, com o homem, todo o mundo desde a eternidade, antes
ainda de criá-los”.70 Barth não chega a propor uma teoria específica sobre o mistério da expiação.
Para Barth, os atos de Deus são tão superlativamente divinos a ponto de estarem além das formulações claras da
razão humana. Assim, a expiação é, ao mesmo tempo, mistério e milagre. Contudo, ‘no desenvolvimento temporal
da expiação está presente o pacto eterno de Deus com o homem, sua eleição eterna da criatura humana, sua
fidelidade eterna a si mesmo e a ela’ [CD, IV/1 §58, p. 80].71
Deus decidiu ser misericordioso para com o mundo em Jesus Cristo. A criação, a encarnação,72 a cruz e
a ressurreição73 são a execução dessa decisão de ser misericordioso. O Filho de Deus viaja a um país
67
Para uma avaliação das posições no diálogo entre Barth e Brunner, cf. também Cornelius Van Til, The new modernism
(Philadelphia, PA: Presbiterian and Reformed, 1947), pp. 188-211 e o ensaio de Justo Gonzáles, “La teologia en las ultimas
décadas”, em Hugh Ross Mackintosh, Corrientes teológicas contemporáneas; de Schleiermacher a Barth, pp. 296-300.
Para a história da reaproximação tardia entre Barth e Brunner, cf. I. John Hesselink, “Karl Barth and Emil Brunner – A
tangled tale with a happy ending (or, the story of a relationship)” em Donald McKim (ed.), How Karl Barth changed my
mind, pp. 131-142.
68
cf. Bengt Hägglund, História da Teologia, pp. 348-349. Para Barth, não existe analogia entis (analogia que parte do ser
das coisas, postulada por Emil Brunner), mas somente a analogia fidei (a analogia que tem a revelação como ponto de
partida) que é compreendida a partir da revelação da graça de Cristo. Encontramos, assim, uma redução cristológica
aplicada à antropologia. Cristo seria, então, o sujeito e o objeto da imago Dei, o seu brilho e reflexo. cf. também Euler R.
Westphall, “A revelação exclusiva em Jesus Cristo numa realidade religiosa pluralista” em Vox Scripturae 4/1 (Março de
1996), pp. 139-141: “A crítica de Barth é procedente à medida em que as culturas e religiões são idealizadas, como se
tivessem em si mesmas elementos de salvação. As culturas e religiões estão debaixo da marca do pecado, e elas são em si
pródigas em criar opressões e maldades. O pecado como tragédia e responsabilidade humana também se mostra no âmbito
das culturas, pois o pecado é um poder pessoal e as culturas também estão cativas sob o pecado como sujeito da maldade.
Devemos tomar o cuidado de não colocar a revelação de Deus no mesmo nível da história, das religiões e das culturas,
como o fez a ideologia do Nacional-Socialismo, contra a qual Barth se insurgiu com tanta paixão. A identificação pura e
simples da história ou religião com a revelação cria patologias irreversíveis no seio da Igreja de Cristo”.
69
cf. Karl Barth, Church Dogmatics: a selection with introduction by Helmut Gollwitzer, p. 93. Para a centralidade da
doutrina da reconciliação, e sua ligação com o pacto da graça em Barth, cf. Arthur C. Cochrane “A doutrina do pacto de
Karl Barth” em Donald McKim (ed.). Grandes temas da tradição reformada (São Paulo, Pendão Real, 1998), pp. 91-98.
70
CD, III/1 §41, pp. 53-54.
71
cf. H. D. McDonald, “Modelos de expiação na Teologia Reformada” em Donald McKim (ed.), Grandes temas da
tradição reformada, p. 109.
72
cf. Alderi S. de Matos, “Edward Irving: precursor do movimento carismático na Igreja Reformada” em Fides Reformata
I/2 (Julho-Dezembro 1996), p. 8: Reconhecendo explicitamente a contribuição do teólogo presbiteriano escocês Edward
18
distante para tornar manifesta esta decisão. Sua vitória consiste exatamente em realizar isso contra toda
oposição. Ela traz a reconciliação da comunhão com Deus. Como tal, ela é o triunfo de Cristo sobre os
poderes do pecado e da morte. Demonstrando afinidade com a teoria que Gustav Áulen (1879-1978)
chamou de Christus Victor, temos em Barth um farto emprego da linguagem de “vitória”: Jesus é o
vitorioso sobre os poderes das trevas, o “Redentor do pecado, morte e diabo”.74 Jesus é o “rei
vitorioso”.75
Já que era homem como nós, encontrou-se na condição de ser julgado enquanto homem. Como Filho de Deus e
Deus ele próprio, tinha toda a competência e autoridade para fazer-se justiça. E, ademais, enquanto juiz divino em
meio a nós, tinha toda a autoridade, no seu próprio abandonar-se ao juízo em nosso lugar, para exercer a justiça da
graça, para declarar-nos verdadeiramente livres de acusação, do juízo e da pena, em virtude daquilo que ele teve
que experimentar em nosso lugar, e para nos salvar do iminente perigo de nos perder. Colocando-se com divina
liberdade no caminho da obediência, não vacilou em fazer sua, nesse mesmo abandono, a vontade do seu Pai.
Fazendo isso por nós, assumindo a si, para que a justiça se cumprisse inteiramente, a nossa acusação, o nosso juízo
e a nossa pena, sofrendo portanto em nosso lugar e por nós, realizou a nossa reconciliação com Deus.76
A vitória não é fundamentalmente diferente de uma morte por nossos pecados, mesmo de uma
satisfação da justiça divina. Isto se deve ao fato de Barth reconhecer que o pecado é inimizade contra a
graça de Deus, a recusa de ser alguém que recebe Deus. Por isto, o Filho de Deus, em sua viagem, sofre
por nosso pecado. Ele tem que sofrer a ira de Deus.
Nesse lugar ele não apenas suportou a inimizade do homem contra a graça de Deus, revelando-a em toda a sua
profundidade. Suportou o fardo muito maior, a ira justa de Deus contra os inimigos de sua graça, a ira que tem que
recair sobre nós.77
Visto que Cristo assume nosso lugar e sofre a ira, Barth pode dizer que agora ela é removida de nós.
Cristo interveio por nós. A “resolução em que o homem como tal está posicionado contra a graça” foi
“expiada”. Cristo é aquele que foi “carregado com nosso pecado” e como alguém que “sofreu punição
por nosso pecado”.
Barth afirmou que a expiação não produziu uma mudança em Deus, ou simplesmente uma mudança de
idéia ou de sentimento no pecador, mas, antes, uma situação foi mudada devido à resolução de Deus ser
gracioso. A inimizade rejeita tudo o que não é da graça. Como aquele em quem Deus decidiu ser
gracioso para com todas as criaturas, Jesus tem que suportar a rejeição que quer frustrar essa eleição.
Ele é o eleito e o rejeitado. Só assim ele pode ser por nós. Jesus tem que morrer para ser
verdadeiramente por nós. A eleição divina seria um terror se Deus não fosse aquele que suporta nossa
rejeição por nós.
Irving (1792-1834), Barth afirmou nos termos mais incisivos o caráter radical da humanidade de Jesus e, neste sentido,
argumentou que na encarnação o Filho não assumira uma humanidade perfeita, incorruptível, mas a própria natureza
humana decaída. Se Jesus nasceu na história humana de uma mãe humana, ponderou, então o seu corpo necessariamente
consistia de matéria que partilhava do caráter decaído do mundo (CD, I/2 §15, p. 154).
73
Que Cristo foi ressuscitado dos mortos em um sentido literal é afirmado por Barth com as seguintes palavras: “Se Jesus
Cristo não ressuscitou – corporal, visível, audível, perceptível, no mesmo sentido concreto em que morreu, como os textos
mesmo o afirmam – se ele não é ressuscitado também, então nossa pregação e nossa fé são vãs e fúteis; ainda estamos em
nossos pecados” (CD, IV/1 §59, pp. 351ss). Para uma avaliação mais crítica, cf. Cornelius Van Til, Christianity and
Barthianism, pp. 90-113.
74
CD, IV/1 §63, p. 766.
75
CD, IV/3 §69, p. 165ss. “Ele dá ênfase especial à idéia da vitória de Cristo sobre os adversários demoníacos da
humanidade, tanto pessoais como cósmicos”. Sobre isso, ver Donald G. Bloesch, Jesus is Victor! Karl Barth’s doctrine of
salvation (Nashville, Tennesse: Abingdon, 1976), pp. 24ss., 41ss.
76
CD, IV/1 §58, p. 124.
77
CD, II/1 §25, p. 152.
19
Em Jesus, Deus desce até a criatura, enquanto que esta é elevada para dentro da bem-aventurança e
unidade da vida em Jesus. Mas Barth inverte a posição tradicional. A humilhação é associada com a
natureza divina de Cristo, a exaltação com a natureza humana. A permuta significa que ele reconhece
que o aspecto vital da expiação é a auto-doação de Deus, não o recebimento de pagamento por parte de
Deus. Jesus não é um pagamento substituto.78 Na auto-doação de Deus vemos a verdadeira divindade, e
no Jesus triunfante as criaturas são exaltadas para a comunhão com Deus.79 Jesus é aquele através do
qual a obra de Deus é feita para conosco e em nós. Como ele é aquele que, em rejeição e eleição,
executa a decisão de Deus, é através dele e nele que nós morremos e somos ressuscitados. A velha
pessoa é destruída, e a nova é erguida.80 Apenas neste sentido, Jesus é nosso “substituto”, ou
“representante”, significando “aquele que toma o lugar”. Jesus assume de modo ativo e pleno o lugar
em que estamos e deveríamos estar. Nós procuramos continuamente escapar desse lugar. Ele
permanece até o fim. Uma vez que Jesus morre por nós, nós sofremos e morremos nele e com ele.81
6.5. Predestinação – O modo como Barth relaciona a doutrina da predestinação com sua cristologia é
especialmente esclarecedor.82 No início de sua discussão na Kirchliche Dogmatik, lamenta que precise
se afastar muito mais do que nos volumes anteriores, da tradição teológica recebida de Agostinho,
Lutero e Calvino.83
Barth aceitou o conceito da dupla predestinação. Mas este vocábulo não significa, para ele, que
algumas pessoas foram escolhidas para a salvação e outras para condenação; refere-se, em vez disso, a
Cristo, que ao mesmo tempo representa a escolha e a rejeição do homem. O destino sofrido por Cristo
reflete um processo intra-trinitário, no qual Deus escolhe o Filho e nele, a raça humana, e que ele
rejeita o Filho e permite que Ele se submeta à morte a fim de que pudesse ser ressuscitado para a glória
78
Ainda assim, “por toda parte ele revela afinidades com a concepção de satisfação de Anselmo: Cristo suportou a
penalidade do pecado da humanidade em todo o seu ser, humano e divino; ambos concorreram para tornar eficaz a obra de
Cristo. Há um cunho jurídico na afirmação de que: ‘Portanto, ele sofreu por todos os homens o que todos os homens tinham
de sofrer: seu fim como agentes do mal; sua ruína como inimigos de Deus; sua eliminação em virtude da superioridade do
direito divino sobre seu erro’ (CD, IV/1 §61, p. 552-553). Barth declara ainda que Jesus Cristo ‘não carregou somente a
inimizade do homem contra a graça de Deus, revelando-a em toda a sua profundidade. Ele carregou também o fardo muito
maior da justa ira de Deus contra aqueles que eram inimigos de sua graça, a ira que tinha de ser descarregada sobre nós’
(II/1 §26, p. 152). ‘Em seu próprio Verbo feito carne, Deus ouve que sua justiça foi satisfeita, que as conseqüências do
pecado humano foram carregadas e expiadas e que, portanto, elas foram extirpadas do homem – o homem pelo qual Jesus
Cristo intercedeu’ (II/1 §30, p. 403)”. cf. H. D. McDonald, “Modelos de expiação na Teologia Reformada” em Donald
McKim (ed.). Grandes temas da tradição reformada, p. 109.
79
cf. CD, IV/1-2.
80
G. C. Berkouwer, The Triumph of Grace in the theology of Karl Barth (London: The Paternoster Press, 1956), p. 317.
81
Para uma crítica das tensões na doutrina da reconciliação bartiana, cf. Gerhard O. Forde, “A obra de Cristo” em Carl E.
Braaten & Robert W. Jenson (ed.), Dogmática Cristã vol. 2 (São Leopoldo: Sinodal & IEPG, 1995), pp. 83-85: “Em seu
desejo de superar a teologia antropocêntrica do século XIX e sua expiação ‘subjetiva’, Barth corre o risco de remover a
expiação completamente da esfera humana. (...) Barth penetra com a razão no acontecimento da revelação e descobre que
antinomias supostamente resolvidas pela vida, morte e ressurreição de Jesus foram colocadas e superadas ‘já’, ou de modo
transcendente, em Deus. Tudo está antecipado e estabelecido na decisão de Deus de eleger, de ser conhecido como um Deus
de graça. Criação, queda e redenção são simplesmente a explicitação, no tempo, dessa decisão. O resultado disso é que
nunca se está inteiramente certo se o acontecimento histórico da cruz é vitória efetiva ou apenas a revelação ou
manifestação da vitória eterna de Deus. Barth evidentemente gostaria de evitar essa alternativa e quer de algum modo dizer
ambas as coisas. Se a decisão de Deus consiste em fazer-se conhecido como um Deus da graça, então a vitória já está
assegurada por essa decisão prévia, mas ao mesmo tempo só pode ser implementada sendo feita historicamente, tornando a
decisão conhecida na vitória histórica de Jesus. A decisão consiste em fazê-lo. Disso resulta uma certa oscilação na doutrina
de Barth, em que se diz primeiro uma coisa e depois a outra”.
82
CD, II/2 §§32-35, pp. 1-563.
83
A. D. R. Polman, Barth (Recife: Cruzada de Literatura Evangélica do Brasil, 1969), p. 40.
20
eterna. A predestinação é, pois, uma decisão eterna feita por Deus, significando que os homens – todos
os homens – são eleitos, enquanto que o próprio Deus, na forma do Filho, toma sobre si mesmo a
condenação.
Esta medida determinou a estrutura de toda a teologia sistemática de Barth. Seu sistema, em suas palavras, é um
supralapsariano modificado [CD, II/2, §33, pp. 127-145]: em toda eternidade, Deus escolheu juntar, em Cristo, a
divindade às criaturas caídas; por isto ele escolheu que deveria haver criaturas e escolheu permitir que elas caíssem.
E o sistema de Barth tem, como cerne, sua doutrina notória da preexistência do homem Jesus Cristo: o evento em
que Deus e algo diferente de Deus existem é a vida de Jesus Cristo, e toda a história temporal é conseqüência deste
evento.84
Isto significa, segundo a interpretação de Barth, que o relato do Novo Testamento referente a Cristo
Jesus não é por si só mensagem de salvação, mas apenas uma referência a – ou imagem de – algo que
teve lugar na esfera eterna como processo dentro da divindade. Ele encara a morte e a ressurreição de
Jesus como uma analogia à uma ação que ocorreu na eternidade, de Deus rejeitar e escolher o Filho. À
luz desta interpretação, a vida terrena de Jesus, em sua maior parte, é relegada a uma posição
secundária. A rejeição de Cristo por parte de Deus Pai não é tornada clara até o momento de sua morte,
enquanto que a ressurreição retrata sua eleição eterna.85
A dificuldade é que esta posição conduz ao universalismo, porque a única diferença entre aqueles que
estão na igreja e aqueles que estão fora é que a igreja sabe da sua eleição e o mundo não. Em outras
palavras, a decisão relativa à eleição de indivíduos simplesmente é removida da inescrutabilidade da
predeterminação soberana para a inescrutabilidade do chamado soberano.86 Barth nunca afirmou uma
total restauração da criação original ou ideal (apokatastasis panton), mas a conseqüência lógica de sua
posição é que a rejeição de Deus pelo homem não é uma coisa séria, porque a eleição do homem por
Deus cancela a escolha do homem. Sua resposta é que Deus não é obrigado a escolher ninguém. Nem o
é obrigado escolher a todos. Barth quis evitar ambas as posições porque, em seu entendimento, são
abstrações que não transmitem a mensagem de Cristo, sendo simples conseqüências formais, sem
conteúdo material. Seu entendimento da eleição é atraente, confortável, mas não trata honestamente os
textos bíblicos que afirmam a perdição eterna e a responsabilidade real do homem. Conforme diz
Berkouwer, “na teologia de Barth o triunfo da graça relativiza a seriedade da decisão do ser humano,
assim como o kerigma é ameaçado de tornar-se uma simples anunciação sem nenhuma exortação
vital”.87
Barth difere radicalmente de Calvino. Este recusava decididamente submeter os dogmas da religião cristã a um
esquema particular – algo que os seus seguidores logo esqueceram. Calvino sempre começava com a questão sobre
que dados a Escritura oferecia concernentes ao assunto em questão. Nunca inferia um dogma de outro. A profunda
consciência de que a revelação divina é mesmo a revelação de Deus impedia-o de toda interpretação a priori. Barth
não lê cuidadosamente e pacientemente todos os dados bíblicos a respeito da predestinação, para depois tirar uma
conclusão. Todos os dados são logo submetidos ao seu esquema cristonomístico.88
84
cf. Robert W. Jenson, “O Espírito Santo” em Carl E. Braaten & Robert W. Jenson (ed.), Dogmática Cristã vol. 2, pp.
150-151.
85
cf. C. F. H. Henry, Fronteiras na teologia moderna, p. 62: “[Diferente dos] eruditos da Heilsgeschichte [que] insistiam na
revelação histórica, procurando situar as manifestações divinas na própria linha temporal dos acontecimentos sagrados...
Barth absorveu a história no escopo dos decretos de Deus e procurou esvaziá-la de qualquer conteúdo de revelação, situando
a justificação na criação e contemplando todos os homens como compreendidos na eleição no homem Jesus”.
86
CD, II/2, §§32-34.
87
G. C. Berkouwer, The Triumph of Grace in the Theology of Karl Barth, p. 279.
88
A. D. R. Polman, Barth, p. 41. Este autor ainda diz: “A doutrina da predestinação segundo Barth fica de pé ou cai com a
suposição de que Jesus Cristo é o sujeito e o objeto da eleição. Todavia, na Escritura não lemos que Jesus é o sujeito da
eleição”. cf. também Cornelius Van Til, Barth’s Christology (Philadelphia, PA: Presbiterian and Reformed, 1962), pp. 1214, 24-27.
21
Comparando-se o entendimento da predestinação em Barth com várias posições sustentadas na história
da igreja antiga, descobre-se que sua posição é inusitada: contém tanto tendências docéticas como
nestorianas. É docética na medida em que sugere ser a mensagem do evangelho apenas ilustração de
um evangelho intratrinitário, de natureza exclusivamente divina, e é nestoriana na medida em que a
humanidade de Cristo nunca é identificada com sua divindade, mas é concebida apenas como analogia
dela. Ou – expressando de outra maneira – o histórico (o testemunho do Novo Testamentário acerca de
Cristo), que Barth encara com muita seriedade, é considerada como possuindo significado apenas
enquanto expressa o que ele denomina de o evento intemporal dentro da divindade, o modo como o Pai
trata com o Filho.89
AVALIAÇÃO E CONCLUSÃO
As qualidades da teologia de Barth podem ser assim sumariadas:90
1. Sua doutrina da Trindade é basicamente ortodoxa, assim como sua defesa do nascimento
virginal, sua ênfase no papel do Espírito Santo, suas percepções do uso da linguagem e de uma
hermenêutica cristológica (CD, I/2 §21, p. 722ss.). Realmente, sua concepção inteira
firmemente trinitariana e cristológica é um corretivo contra as aberrações antropológicas e
eclesiológicas das heresias dominantes em seu tempo;
2. Mesmo sua rejeição da teologia natural tem seu valor – ainda que ele não tenha feito uma
distinção clara entre teologia natural e revelação natural;
3. Ele também enfatizou a realidade objetiva da obra completa de Cristo em sua morte e
ressurreição e na natureza vitoriosa de sua obra por nós;
4. Suas retratações irônicas devem ser notadas – por exemplo, seu abandono do “totalmente outro”
como idolatria (CD, IV/1 §59, p. 186), o fato de ter relegado o conceito de paradoxo ao campo
do demoníaco (CD, IV/3 §69, p. 178; cf. IV/2 §64, p. 348) e sua descoberta do supremo
farisaísmo no desespero de Kierkegaard (cf. CD, IV/1 §58, 62-63, pp. 150, 689, 741).
Além disto, sua vida foi marcada por reverência e humildade. Mas, ainda assim, Bromiley lembra:
“reverência, é claro, não é nenhum substituto para a verdade; mas a verdade não é honrada sem
reverência. Conseqüentemente, nós podemos respeitar estas qualidades na teologia de Barth, as quais
deveríamos seguir até mesmo em nossas críticas, e as quais deveríamos desejar ardentemente para todo
empenho teológico”.91
89
cf. Bengt Hägglund, História da Teologia, pp. 347-348.
cf. G. W. Bromiley, “Karl Barth” em Philip E. Hughes (ed.). Creative minds in contemporary theology, pp. 55-59. Entre
aqueles que o viram mais positivamente estão: G. C. Berkouwer, E. J. Carnell, Colin Brown, Bernard Ramm, Klass Runia,
G. W. Bromiley, J. I. Packer, George Ladd, Carl F. H. Henry, F. F. Bruce, Donald Bloesch e Klaus Bockmuehl.
91
cf. G. W. Bromiley, “Karl Barth” em Philip E. Hughes (ed.). Creative minds in contemporary theology, pp. 59. cf.
também Harold O. J. Brown, “A opção conservadora” em Stanley Gundry (ed.), Teologia Contemporânea, pp. 343-344:
“Karl Barth, cuja posição teológica fundamental está fora de harmonia com o evangelicalismo bíblico, é um caso típico.
Poucos daqueles que conheciam o homem ou suas obras, que tinham consciência da sua humildade pessoal e da sua
disposição para dar um testemunho simples do Senhor Jesus Cristo como seu Salvador, poderiam negar que revelava muitas
evidências de uma fé salvadora. Mesmo assim, seu método teológico, bem como o sistema que construiu, embora
certamente sejam a produtividade teológica mais impressionante desde Calvino, deixou de fazer qualquer impressão
permanente sobre o restante do mundo teológico ou de seus colegas não-teológicos. Pior ainda, muitos daqueles que foram
seus alunos adotaram posições que discordavam radicalmente com aquela que o próprio Barth adotou. (...) Uma teologia
defeituosa talvez não destrua a fé salvadora de um indivíduo, nem seu relacionamento pessoal com Cristo; mas fará com
que seja difícil ou impossível para ele transmitir ou ensinar as verdades da fé para aqueles que o sucedem. Muita coisa que é
chamada teologia moderna ou contemporânea é somente uma reação, tomando sua força da ortodoxia ‘morta’ à qual se
opõe. Tão logo pareça vitoriosa, morre, ou é transformada nalguma coisa que é ainda menos reconhecível como ensino
cristão. A ortodoxia, por contraste, por mais ressequida e desagradável que venha a ser ao paladar, sustenta, apesar disto, as
90
22
As principais objeções a Barth podem ser assim resumidas:92
1. Seu tratamento da Escritura é, de muitas formas, a parte mais fraca e desapontadora da Church
Dogmatics inteira, e suas defesas contra o subjetivismo são muito fracas;93
2. Sua compreensão de que verdades transcendentais não podem ser expressas em categorias
racionais realiza o que nega – expressa uma verdade transcendental em categorias racionais;
3. Sua negação da revelação geral não é bíblica;
4. Sua doutrina da predestinação tem recebido várias críticas por causa de seu esquema
supralapsariano “modificado”, e, principalmente, por sua negação de uma eleição individual,
soberana e graciosa;
5. Em estreita ligação com este último tópico, seu universalismo cristológico parece tornar vaga a
seriedade da resposta humana, e na mesma medida, a pregação corre o risco de tornar-se um
mero aviso feito pela igreja ao mundo, despido da urgência de reconciliação com Deus.94
6. Ao expor Gênesis 1 a 3 ele introduz um conceito dúbio e não-bíblico, “saga”, e, por isto, em sua
teologia, há um lugar bem pequeno para uma queda real (CD, IV/1 §57);
Estas fraquezas permeiam o edifício teológico bartiano porque ele continuou a trabalhar com a
distinção kantiana entre historie e geschichte (heils geschichte), da qual nunca conseguiu se livrar, por
mais que condenasse o racionalismo e dependência filosófica daqueles que o antecederam e o
seguiram. Por isto, ele podia fazer declarações objetivas de certas doutrinas centrais (escolhidas
aparentemente de forma arbitrária), enquanto se afastava de outras doutrinas cristãs importantes. Em
suma, uma forte tendência fideísta permeia todo o esforço teológico de Barth, colocando em risco o
testemunho cristão e acabando com qualquer possibilidade de apologética. Ademais, se não existem
pontes inteligíveis ligando a teologia com a filosofia ou com as outras áreas do saber, de que maneira a
fé cristã pode ser algo mais do que esoterismo para aqueles que estão fora da esfera de influência
cristã?
Barth foi grandemente responsável pelo renovado interesse em Lutero e Calvino, mas ele (assim como
Brunner) incorreu em outro erro, o de reinterpretar os ensinos dos reformadores segundo seus próprios
pressupostos, fazendo os reformadores dizerem mais do que eles ensinaram, inclusive distorcendo o
pensamento deles – além de os colocarem em oposição aos seus herdeiros, os puritanos.95 Mesmo
verdades fundamentais e salvíficas da revelação bíblica. Logo, continuamente volta à vida, mesmo após seus encontros mais
humilhantes com a dúvida, a indiferença, a hipocrisia, e a descrença”.
92
cf. G. W. Bromiley, “Karl Barth” em Philip E. Hughes (ed.), Creative minds in contemporary theology (Grand Rapids,
Michigan: Eerdmans, 1966), pp. 51-55: Entre os evangélicos que o viram mais negativamente estão: Cornelius van Til (que
o acusou de ser um “cripto-liberal”), Gordon Clark, John Gerstner, R. C. Sproul, Norman Geisler (que o acusaram de
irracionalismo teológico), Charles Ryrie, Francis Schaeffer, Harold Brown e John W. Montgomery. É interessante notar que
Barth não respondeu a perguntas feitas a ele por Gordon Clark, Fred Klooster e Cornelius Van Til, sobre tópicos
controvertidos de sua teologia. cf. Jürgen Fangmeier & Hinrich Stoevesandt (ed.), Karl Barth; Letters 1961-1966 (Grand
Rapids, Michigan: Eerdmans, 1981), pp 342-343. cf. também sua resposta magoada e algo irônica a Geoffrey Bromiley, pp.
7-8, nesta mesma obra. Para outras críticas, especialmente por parte de teólogos e filósofos reformados holandeses, cf.
Cornelius Van Til, Christianity and Barthianism, pp. 117-200.
93
cf. G. W. Bromiley, Historical Theology: an introduction (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1978), pp. 420-421.
94
cf. Donald Bloesch, “Karl Barth: Appreciation and reservations” em Donald McKim (ed) How Karl Barth changed my
mind, p. 128. cf. também G. W. Bromiley, Historical Theology: an introduction, p. 437.
95
cf. Bernard Ramm, “A Teologia de Schleiermacher a Barth e Bultmann” em Stanley Gundry (ed.), Teologia
Contemporânea, pp. 36-40. É interessante notar que Barth, mesmo reafirmando lealdade primária a Calvino e à tradição
reformada, geralmente tomava o lado de Lutero em questões específicas, geralmente ligadas ao método teológico,
principalmente pelo caráter paradoxal (ou dialético) da teologia do reformador alemão. Para este aspecto específico da
teologia de Lutero, cf. Timothy George, Teologia dos reformadores (São Paulo: Vida Nova, 1993), pp. 63-74.
23
usando os reformadores e confissões de fé da reforma, as conclusões a que ele chegou são opostas à
posição reformada clássica.
Barth nunca quis fundar uma nova escola teológica, mas seus discípulos não foram tão cuidadosos
quanto ele, em seu contínuo repúdio ao liberalismo. Infelizmente, teólogos (entre outros, Dale Moody,
Clark Pinnock, G. C. Berkouwer), denominações (a PCUSA, a United Methodist Church) e instituições
(a Universidade Livre de Amsterdã [Holanda], o Seminário Teológico Fuller [EUA], alguns seminários
da Southern Baptist Convention [EUA],) que abraçaram as premissas de sua teologia não
permaneceram conservadores por muito tempo. Retornaram para o mesmo “Egito”, do qual, com tanto
custo, ele se retirou. Estes se tornaram um triste epitáfio das fraquezas teológicas de Barth.
Uma área aberta para futura pesquisa refere-se à entrada e influência no Brasil dos vários sistemas
teológicos europeus, notadamente de Barth (já algo mitigada), Bonhoeffer, Bultmann e Tillich, trazida
por uma outra geração de missionários estrangeiros, em meados da década de 1960.96 Richard Shaull
(1917-2002) é um caso paradigmático na IPB. Numa coletânea de ensaios em sua homenagem, ele foi
elogiado por ter rompido com a teologia (retratada de forma caricata) que os primeiros missionários
presbiterianos trouxeram ao Brasil (notadamente Charles Hodge e A. H. Strong), e ter introduzido já
em cursos de graduação a leitura de teólogos neo-ortodoxos.97 Entre os batistas (CBB), metodistas
(IMB) e luteranos (IELCB) a mesma influência estrangeira nesta mudança teológica também pode ser
notada.
Então, usando as palavras de Barth com uma ênfase um pouco diferente, nos entristecemos em
discordar dele, contudo somos compelidos a isto em obediência às Escrituras.
Não negamos os grandes méritos desse teólogo suíço. Sua incansável luta contra o neoprotestantismo, em todas as
suas diversas formas, e contra o catolicismo romano não é estéril. Sua franca confissão acerca da Trindade Santa,
da Deidade de Jesus Cristo, da absoluta corrupção do homem e da justificação somente pela fé tem fortalecido o
coração de milhares de crentes no mundo inteiro. Seu poderoso apelo para que se passe radicalmente do sujeito
para o objeto, da colocação do homem piedoso no centro para a focalização de Deus somente, sua passagem de
experiências piedosas para a autorizada Palavra de Deus, tem sido uma bênção indizível para todas as igrejas. Em
muitos países um novo estímulo, para o estudo da Bíblia deve-se-lhe atribuir, e através de sua obra questões
exegéticas e dogmáticas passaram a ser alvo de muito maior interesse. Muitas igrejas aprenderam de novo com ele
o que significa ser igreja de Jesus Cristo, igreja que pode e deve ouvir exclusivamente a Palavra do seu Rei e
Senhor. (...) Alegremente reconhecemos tudo isso com gratidão. Mas apesar disso não se pode negar que esse
pujante pensador submete constantemente a revelação de Deus na Santa Escritura às suas próprias teorias [como
em sua discussão sobre a Escritura, a predestinação e a criação]. (...) Em todo o seu pensamento falta-lhe aquela
submissão à revelação da Escritura que encontramos de modo excepcional no teólogo não menor do que ele,
Calvino. Isso é fatal no terreno santo dos mistérios de Deus. Tudo quanto se desvia da revelação divina exarada na
Bíblia ou a diminui não tem valor no reino vindouro de Cristo, e deve ser rejeitado com implacável firmeza pela
igreja de Cristo. Só uma teologia obediente à Bíblia pode atravessar séculos. A teologia bíblica de Calvino, pois,
ainda viverá na igreja de Cristo muito depois que o poderoso sistema de Barth tiver passado à história.98
96
Esta terceira geração não é mencionada, por exemplo, em Carlos Caldas Filho, O último missionário (São Paulo: Mundo
Cristão, 2001), pp. 35-45.
97
cf. Carlos Cunha & José Bittencourt Filho (ed.), De dentro do furacão: Richard Shaull e os primórdios da Teologia da
Libertação (São Paulo: Sagarana; CEDI; CLAI, 1985), especialmente pp. 19-48. cf. também a nota de falecimento, por
Antônio Gouvêa de Mendonça, na Revista Teológica [do Seminário Presbiteriano do Sul] Volume 62, no. 54 (JulhoDezembro 2002), pp. 121-124.
98
A. D. R. Polman, Barth, pp. 77-78.
Download