REGRAS DA ARTE E DA POLÍTICA

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REGRAS DA ARTE E DA POLÍTICA:
O CASO DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA NOS 60
José Roberto Zan
Resumo: Com este texto pretende-se refletir sobre natureza dos conflitos simbólicos que
marcaram o campo da música popular brasileira nos anos 60. Nesses anos, palavras de ordem,
lemas e outras expressões inerentes à esfera política, eram reproduzidos por grupos que
representavam tendências artísticas em conflito. Se, de acordo com Bourdieu, as relações entre
as esferas política e artística são mediadas por campos relativamente autônomos, as posições
assumidas por músicos naquele período obedeciam a regras específicas; embora aparentemente
semelhantes às do campo político, tinham sentidos distintos.
Do início dos anos 30 até meados dos 50, os meios de comunicação ainda não
apresentavam, no Brasil, um nível de desenvolvimento e de organização sistêmica que permitisse
defini-los como indústria cultural. Sua capacidade integradora era bastante incipiente 1. Ao mesmo
tempo, em função da fraca industrialização e urbanização do país, ainda caracterizado por um
mercado interno pouco desenvolvido, não se podia reconhecer a existência de uma sociedade de
consumo, base social da cultura de massa2. Por essas razões, a cultura produzida industrialmente e
veiculada pelos meios de comunicação, que começava a se esboçar naqueles anos, diferenciava-se
da existente nos países avançados tanto em termos de organicidade, abrangência como função. Os
meios de comunicação de massa atuavam muito mais como elementos mediadores nas relações
entre o Estado e as massas urbanas do que como estruturas geradoras de uma cultura massificada
e integradora. Prevaleceu no Brasil, como em outros países da América Latina, o que MartínBarbero chamou de modelo populista de formação da cultura massiva3. Um modelo através do
qual realizou-se, no continente, a gerência da "crise de hegemonia, o parto da nacionalidade e a
entrada na modernidade"4. Nesses anos, o rádio foi o meio de maior expressão e a música popular,
a manifestação cultural que compunha a maior parte das programações radiofônicas.
A partir de meados dos 50, esse modelo entre em crise. Os auditórios das emissoras de
rádio, por exemplo, eram cada vez mais, ocupados pela população humilde dos subúrbios que
1
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 48.
a
LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura da massa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, 3 edição, p 55.
3
MARTÍN-BARBERO, Jesus. De los medios a las mediaciones: comunicación, cultura y hegemonia. Barcelona, G. Gilli S.ª, 1987, pp.
178-9.
2
1
buscavam contatos mais próximos com seus ídolos. Ao mesmo tempo, para garantir a audiência,
os programadores recorriam a atrações cada vez mais compatíveis com as expectativas desse
público, que se dividia entre aplausos, gritarias e vais, estimulado pelo clima de rivalidade entre
artistas e pelos próprios agentes do rádio. Para Goldfeder, as emissoras viam-se perante um
dilema: "agradar as massas e controlá-las concomitantemente, sem perder a capacidade de
penetração e legitimidade"5
Reações elitistas de uma classe média ascendente a partir do pós-guerra começaram a se
manifestar. Rótulos pejorativos atribuídos aos freqüentadores dos auditórios eram veiculados por
determinados órgãos de imprensa e algumas emissoras tomaram atitudes mais drásticas como a
separação entre o palco e a platéia, através de paredes de vidro, policiamento e a cobrança de
ingressos para selecionar o público.6
A entrada da televisão no Brasil, em 1950, representou uma alternativa para a classe
média. Esse novo meio, acessível, num primeiro momento, às camadas mais abastadas da
sociedade, veiculava programações consideradas de "bom gosto" e intelectualizadas. Nesse
contexto, aprofunda-se a segmentação do mercado fonográfico que se constituiu na base dos
conflitos simbólicos que marcaram o campo da música popular nos anos 60.
Acompanhando a tendência de massificação do rádio, definiu-se, a partir do final do anos
40, uma linha composta por gêneros como o bolero, a guarânia, o tango, o baião, a música
sertaneja, etc. Destacaram-se como compositores e intérpretes desse repertório Emilinha Borba,
Marlena, Dalva de Oliveira, Anísio Silva, Nelson Gonçalves, Ângela Maria, Cauby Peixoto, Luiz
Gonzaga, as duplas Jararaca e Ratinho, Cascatinha e Inhana, e muitos outros.
No mesmo período, formou-se um repertório voltado para uma nova boemia
intelectualizada que freqüentava bares e casas noturnas da zona sul do Rio de Janeiro, produzido
por compositores e intérpretes como Tito Madi, Dick Farney, Dóris Monteiro, Johnny Alf,
Antônio Maria, Lúcio Alves, e outros. Essa linha culminou na Bossa Nova, no final dos anos 50,
estilo que resultou da sintetização de elementos estilísticos do jazz, da música erudita e da música
popular urbana brasileira. Esse repertório traduziu, num certo momento, a utopia de um Brasil
moderno alimentada por um setor da classe média brasileira durante a vigência da política
desenvolvimentista do Governo JK.
No início dos anos 60, o país passou por um processo de radicalização política, associado
4
5
Idem.
GOLDFEDER, Miriam. Por trás das ondas da Rádio Nacional. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, p. 178.
2
à crise do populismo, que culminou no golpe de 64. O projeto nacional popular foi redefinido pela
ideologia nacional-desenvolvimentista do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e pela
política cultural do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE. Idéias como as de povo, nação,
libertação, revolução brasileira e identidade nacional, concebidas em momentos anteriores da
história brasileira, foram resignificadas a partir de referencias das esquerdas e ganharam
conotações "romântico-revolucionárias7”. Tais idéias orientaram tanto a prática política como a
produção cultural e artística de setores intelectuais de esquerda com forte inserção no meio
universitário. E a música popular traduziu esse ideário. A partir de 1962, compositores e
intérpretes ligados à Bossa Nova como Carlos Lyra, Sérgio Ricardo, Nara Leão, Geraldo Vandré,
Paulo Sérgio Valle, Marcos Valle, entre outros, optaram por um repertório marcado pelo
engajamento (canção de protesto), voltado principalmente para um público predominantemente
juvenil, de classe média e universitário. Aos poucos, o lirismo da Bossa Nova foi cedendo espaço
para o estilo épico das canções de protesto. Essa tendência da música popular, que ocorria
juntamente com outras manifestações artísticas, expressava não apenas a politização que atingia
amplos setores da vida social brasileira, como uma certa articulação entre as esferas da cultura e
da política no Brasil naqueles anos.
Ao mesmo tempo, o rock'n'roll, que entrou no mercado fonográfico brasileiro a partir de
meados dos anos 50 e conquistou a adesão de grande parte do público juvenil, vai indicar que a
formação da cultura de massa no Brasil entrava numa nova fase. Em setembro de 1965, foi ao ar,
pela TV-Record, o programa musical Jovem Guarda. Concebido pela empresa de publicidade
Magaldi, Maia & Prosperi, talvez tenha sido o maior empreedimento de marketing relacionado à
música popular brasileira até aquele momento. Animado pelo cantor e compositor Roberto Carlos,
acompanhado por seus amigos Erasmo Carlos e Wanderléia, o programa permaneceu em cartaz
até 1969 e consistiu num dos sinais mais importantes da consolidação do mercado de bens
simbólicos no Brasil8. De um modo geral, os músicos ligados à essa tendência eram de origem
interiorana e suburbana, e estavam distantes da politização do ambiente universitário. Voltado
para um público juvenil, o repertório desse segmento do mercado fonográfico brasileiro era
caracterizado por roques e baladas com letras ingênuas, românticas e, às vezes, com elementos de
humor e rebeldia adolescentes.
Esses segmentos do mercado fonográfico tiveram a TV como importante meio de
6
7
TINHORÃO, José Ramos. Do gamofone ao rádio e TV.São Paulo, Ática, 1981.
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV.RJ, Record, 2000.
3
divulgação nos anos 60. Além de inúmeros programas musicais de grande sucesso como O Fino
da Bossa, Bossaudade e Jovem Guarda na TV-Record, e Spot-Light-BO 65, a TV Tupi, iniciouse, a partir de 1965, o ciclo dos festivais de MPB em vários canais de televisão. Esses eventos
funcionaram, durante alguns anos, como vitrines de divulgação de música popular e, ao mesmo
tempo, como espaço de conflitos simbólicos.
A MPB em debate
Em maio de 1966, a Revista Civilização Brasileira publicou o resultado de um debate,
promovido pela própria revista, com jovens artistas e intelectuais sobre "a crise atual da música popular
brasileira"9. De um modo geral, a avaliação dos participantes era que a MPB vivia um impasse após o
golpe de 1964. A partir dessa constatação, foram feitos diagnósticos e esboçadas estratégias para a
superação da crise.
O crítico Flávio Macedo Soares, que abriu o debate, fez uma rápida avaliação das dificuldades
pelas quais passava a MPB. "Praticamente," - dizia ele - "podemos assinalar dois acontecimentos:
primeiro, a emergência de toda uma nova linha dentro da bossa-nova(...)[o autor refere-se à nova
geração de compositores que se projetou no início dos 60, direta ou indiretamente vinculados ao
movimento cepecista e à canção de protesto]; e logo em seguida, um fenômeno mais vasto, mais
complexo (também facilmente explicável) - a ampliação de todo um substrato da música popular que
tem recebido popularmente o nome de iê-iê-iê. Isto nos coloca face a uma nova conjuntura, a novos
problemas a resolver. Acho que o período atual é excepcionalmente difícil para a música popular
brasileira"10.
Para o crítico, o surgimento e o sucesso da Jovem Guarda deslocou o foco dos conflitos no
interior da música popular brasileira. Se antes de 65 ocorria uma certa polarização entre bossanovistas
fiéis ao estilo e músicos ligados à música popular engajada, com o advento do iê-iê-iê a oposição
desviou-se para a relação entre a MPB, comprometida com as tradições culturais nacionais e com as
condições sociais do povo brasileiro, e a música jovem "alienada", originária do rock.
Macedo Soares enfatizava ainda que a nova geração de compositores que se formou na fase
imediatamente posterior ao advento da bossa nova distanciava-se do projeto de produção de uma
8
ORTIZ, Renato. Op. Cit. P. 113.
"Que caminho seguir na música popular brasileira". Revista Civilização Brasileira, ano I, nº 7, maio de 1966, p. 375. O evento foi coordenado pelo
músico Airton Lima Barbosa e teve como debatedores Flávio Macedo Soares (crítico), Caetano Veloso (compositor), Nelson Lins de Barros (crítico
e compositor), José Carlos Capinam (poeta e compositor), Gustavo Dahal (cineasta), Nara Leão (cantora) e Ferreira Gullar (poeta e crítico).
9
4
cultura orgânica, que integrasse as diversas modalidades artísticas, que vigorou até 64, impulsionado
principalmente por instituições como o ISEB e o CPC. Segundo o crítico, tratava-se de uma proposta
no sentido de se "fazer uma universidade brasileira (universidade no sentido real da palavra), na qual
houvesse um entrosamento tanto no plano ideológico como no prático, com apoio de parte a parte."
Esse compromisso, segundo Macedo Soares, tinha se perdido. "Atualmente," - continua ele - "os
músicos da boa música popular brasileira estão, por uma série de razões, agindo e pesquisando
individualmente"11. Somando-se a essa desmobilização por parte dos artistas da MPB, o aparecimento
de um novo movimento musical representado pelo iê-iê-iê, cujos integrantes recorriam aos mais
diversos e eficazes procedimentos mercadológicos, acabava colocando a música popular brasileira em
dificuldades. A saída para o impasse estaria, na sua opinião, na retomada do projeto de construção da
"universidade brasileira", ou seja, de se redefinir uma estratégia de engajamento das artes em geral,
incluindo a música popular. "A partir do momento que houvesse isso, o conteúdo da arte produzida por
ela [a universidade] não poderia ter um caráter harmonizante e sim de aguçamento dos contrastes
sociais existentes. Num contexto capitalista, uma arte de progresso, de ação, deve ter como premissa
básica aguçar as contradições existentes e nunca conciliar o público ou dar ilusão de que ele não está
dividido"12.
Essa quase conclamação ao engajamento foi reforçada durante as discussões principalmente
pelo poeta Ferreira Gullar, que enfatizou a necessidade do artista assumir conscientemente a luta
cultural no país. Ele chamou a atenção para o fato de que o iê-iê-iê era um fenômeno relacionado com a
internacionalização da cultura, processo inevitável dentro do contexto do capitalismo contemporâneo.
Portanto, o estancamento desse processo não poderia se dar através do fechamento das fronteiras
nacionais aos produtos culturais estrangeiros mas somente pela "atitude crítica" frente a essa
produção;"...atitude crítica e de combate no mesmo nível que isso se coloca - quer dizer: combate
cultural"13.
Ao mesmo tempo em que os debatedores reafirmavam a perspectiva do engajamento artístico
do início da década, apontaram para a necessidade de atuarem com maior empenho no mercado e nos
meios de comunicação de massa. José Carlos Capinam e Nara Leão ressaltaram a necessidade dos
músicos ligados à MPB quebrarem as resistências em relação ao mercado e de assumirem posturas mais
agressivas com o objetivo de promoverem sua arte. Capinam fez críticas ao "comportamento pré10
Idem. p. 376
Idem. p. 376
Idem. p. 377
13
Idem. p. 384
11
12
5
capitalista da esquerda brasileira, que resiste à industrialização e vê o mercado como o grande sacrifício
de sua arte." Para conter a expansão do iê-iê-iê e da canção de massa (de Altemar Dutra, Orlando Dias
e outros), considerados por ele como "submúsica", Capinam afirmou que os músicos da MPB deveriam
se utilizar das máquinas de informação, promoção e vendas como faziam os músicos de sucesso. "Não
basta fazer música boa e esperar a recompensa e aceitação popular. A música popular brasileira deve
surgir agora reconhecendo a necessidade de organizar sua infra-estrutura e revitalizar sua linguagem em
intensa pesquisa de raízes e recursos contemporâneos da música"14. Nara Leão, na mesma linha,
comparou o empenho com que os músicos de iê-iê-iê e da canção de massa divulgavam seus trabalhos,
ao contrário dos de MPB. "Toda vez que vamos a um programa de rádio nossas músicas são tocadas.
Enquanto Roberto Carlos vai a todos os programas, todos os dias, o pessoal da música brasileira, talvez
por comodismo, não vai. Existe até certo preconceito - quando eu vou ao programa do Chacrinha os
bossanovistas me picham, eles acham que é `decadência' ir a este programa"15.
As observações de Capinam e Nara Leão apontavam para duas questões importantes: em
primeiro lugar, defendiam a necessidade de uma maior profissionalização do músico e em segundo
reconheciam o mercado como o verdadeiro espaço da música popular e, por conseqüência, estavam
conscientes de que qualquer projeto para ter eficácia deveria ser acompanhado de estratégias de
atuação definidas a partir das regras do mercado. Estavam reconhecendo que somente através de uma
inserção mais efetiva nos meios de comunicação, em pé de igualdade com os artistas de massa, os
músicos da MPB poderiam garantir a ampla divulgação da sua música. De certa maneira, a infraestrutura da qual falava Capinam seria posta à disposição desses compositores e intérpretes pela própria
televisão com a consolidação, a partir daquele mesmo ano, do esquema dos festivais de música popular
brasileira. Durante aproximadamente três anos, eles funcionaram, para a indústria do disco, como
importantes vitrines de novos talentos e de novos sucessos; e para alguns artistas da MPB, como
espaços de militância política e cultural. De fato, a partir desse ano, o universo da música popular se
converteu em palco marcado pela intensificação das lutas simbólicas polarizadas pelos adeptos da MPB
e do iê-iê-iê, sob os signos da viola e da guitarra elétrica.
Os Festivais
O ciclo dos grandes festivais televisivos nos anos 60 inicia-se com o "I Festival de Música
14
15
Idem. pp. 379-380
Idem. p. 383
6
Brasileira", promovido pela TV-Excelsior, em 1965, e idealizado pelo produtor Solano Ribeiro. É bom
lembrar que a Excelsior, além de ter ampliado sua estrutura de produção nos anos anteriores, tinha
adotado uma postura político-ideológica sintonizada com o nacionalismo vigente nos anos 60, tornando
explícita a intenção de se firmar como uma "televisão basicamente brasileira"16. Certamente, em função
dessas características da empresa, aquele evento definiu algumas tendências que iriam se consolidar nos
anos seguintes, ou seja: estreitou as relações entre música popular e televisão; estabeleceu as linhas
gerais do modelo que seria adotado pelos demais festivais que surgiriam nos anos seguintes,
promovidos por outras emissoras; e apontou para o predomínio quase absoluto da MPB, pós-bossa
nova, nos demais certames que se realizaram até o início dos anos 7017.
Com o sucesso da experiência da Excelsior, foram promovidos, em 1966, três certames desse
tipo: a TV Record, que contratou o produtor Solano Ribeiro, organizou o concorrido "Viva e o
Festival de Música Popular Brasileira", ou o "I Festival de MPB da TV Record"; a Excelsior realizou o
seu "II Festival Nacional de Música Popular", com apoio da Rhodia de da Revista Manchete; e a
Secretaria de Turismo do ex-Estado da Guanabara, em conjunto com a TV Globo, promoveu o "I
Festival Internacional da Canção". Tendo como um dos objetivos principais a promoção do turismo no
Rio de Janeiro, o FIC adotou o modelo do Festival de San Remo organizando duas seções: uma
primeira destinada a consagrar as melhores músicas nacionais e outra voltada para a escolha das
melhores internacionais. O primeiro prêmio oferecido pelos organizadores foi considerado um dos
melhores dentre os festivais e atraiu grande número de participantes18.
Desses três eventos, o que teve maior repercussão foi o festival da TV Record, realizado com
apoio da Revista Intervalo, da Abril Cultural, e patrocinado pelo Sabão Viva19. Foram inscritas 2.635
músicas das quais o juri selecionou 36 finalistas. O sucesso obtido pelo festival da Excelsior em 65,
quando saiu vencedora a canção "Arrastão", de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, explicam, dentre
outras razões, alguns fatos curiosos que refletem a importância que ganhou esse tipo de evento para os
artistas que passaram a identificá-lo como espaço privilegiado para a divulgação de seus trabalhos. O
compositor Zé Keti chegou a inscrever 20 canções, Vinícius de Moraes foi parceiro em quase 30 e
Geraldo Vandré entrou com 4 músicas novas. Além disso, certamente em função da temática da música
16
"A Excelsior era uma televisão eminentemente nacionalista, ela não tinha uma trilha sonora com música estrangeira, a trilha sonora da TV
Excelsior era só de músicas brasileiras, o `Brasil 60' [programa animado por Bibi Ferreira que permaneceu no ar por vários anos] só tinha coisas
brasileiras, era teatro brasileiro, cinema brasileiro, entrevista brasileira, música brasileira". (Entrevista de Álvaro Moya citada por COSTA, Alcir
Henrique da. "Rio e Excelsior: projetos fracassados?". In SIMÕES, Inimá F, Um país no ar. São Paulo, Brasiliense/FUNARTTE, 1986, p. 157).
17
Nesse Festival, a composição "Arrastão", de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, interpretada por Elis Regina, recebeu o primeiro prêmio. Foram
classificadas ainda em segundo e terceiro lugares, respectivamente, as canções "Valsa do amor que não vem", de Baden Powell e Vinícius de
Moraes, interpretada por Elizeth Cardoso, e "Eu só queria ser", de Vera Brasil, defendida por Claudete Soares.
18
TINHORÃO, José Ramos. Do Gramofone ao Rádio e TV, São Paulo, Ática, 1981, pp. 179-180-181.
7
vencedora do festival anterior, foram inscritas 9 músicas com o mesmo título, "O Jangadeiro"20. Podese dizer que todas as músicas selecionadas para as finais enquadravam-se no grande segmento de
mercado representado pela MPB. A participação do iê-iê-iê no festival restringia-se à presença de
Roberto Carlos, que interpretou a composição "Flor Maior", de Célio Borges Pereira.
O festival chegou ao final com um congraçamento entre os dois primeiros colocados. O juri
elegeu duas canções para o primeiro lugar: "Disparada", de Geraldo Vandré e Théo de Barros e "A
Banda" de Chico Buarque, que defendia a vitória da música concorrente. A TV Record dobrou o
primeiro prêmio (dez milhões de cruzeiros) e fez uma réplica do troféu (uma viola de ouro) para
contemplar os dois vencedores. Roberto Carlos não conseguiu classificar para as finais a música de
Borges Pereira, mas sua interpretação foi muito elogiada pelos críticos.
"A Banda", que havia sido defendida conjuntamente por Nara Leão e pelo próprio Chico, foi
lançada duplamente em compactos simples, com cada um dos intérpretes. Durante várias semanas
seguintes ao festival, permaneceram entre os cinco compactos mais vendidos21. A canção "Disparada",
interpretada no festival por Jair Rodrigues, foi também gravada pela dupla sertaneja Tonico e Tinoco e
teve boa aceitação pelo vasto público desse gênero musical.
Num balanço final do evento, o diretor de redação da Revista Intervalo declarou que o festival
"foi uma reavaliação do imenso potencial de nossa música mais autêntica; foi um congraçamento de
talentos em prol de um objetivo mais alto, o de elevar nossos padrões musicais; foi uma homenagem ao
público, que participou, e até torceu calorosamente por suas músicas favoritas; foi a confirmação
formal do talento criador de Geraldo Vandré, Theófilo de Barros Neto, Chico Buarque de Hollanda e
de outros valores que surgem; foi a comprovação de que nossa música, quando boa, não precisa temer
a tão decantada concorrência e o dumping da música importada"22.
Essa avaliação demonstra que os próprios agentes da indústria cultural pareciam reconhecer o
potencial de mercado representado pela música popular brasileira. Desse modo, o festival convertia-se
numa estrutura bastante favorável aos artistas da MPB viabilizando, para os mais engajados, a
estratégia de "combate cultural"23.
Em 1967, esses eventos atingiram o seu apogeu. No III Festival de Música Popular Brasileira
19
Revista Intervalo, ano IV, nº 189, p. 14
Revista Intervalo, ano IV, nºs 190, 191 e 193
21
De 10 de outubro a 26 de novembro de 1966, os compactos simples "A Banda", com Nara Leão; "Disparada", com Jair Rodrigues e "A
Banda", com Chico Buarque, permaneceram entre os cinco mais vendidos em São Paulo.(Pesquisa do IBOPE, divulgadas pela Revista Intervalo)
22
MÁDUAR, Alberto. "Saldos de um festival",.In Revista Intervalo, ano IV, nº 199, p. 17
23
O "II Festival de MPB", da TV Excelsior, premiou a canção "Porta-estandarte", de Geraldo Vandré e Fernado Lona, que foi classificada em
primeiro lugar, e revelou um novo compositor, Caetano Veloso, que teve sua música "Boa Palavra" classificada em quinto lugar. No I Festival
Internacional da Canção (FIC), na parte nacional, receberam o primeiro prêmio,os compositores Dori Caymmi e Nelson Motta, com a música
"Saveiros".
20
8
(ou o II Festival da TV Record), o número de canções inscritas foi superior a 3.000 e, com a inclusão
de recursos oferecidos pelo Governo do Estado e pela Prefeitura de São Paulo, os prêmios em dinheiro
chegaram a 52.000 cruzeiros novos, além dos troféus (violas de ouro e de prata)24. Os índices médios
de audiência, segundo pesquisas do IBOPE, foram de 50%25. Foi o certame que contou com a
participação mais calorosa do público que se dividiu em torcidas organizadas e exagerou nos aplausos e
nas vaias. As platéias, compostas predominantemente por estudantes universitários, não pouparam até
mesmo intérpretes da MPB. O caso de maior repercussão foi o de Sérgio Ricardo que, não
conseguindo cantar a sua composição "Beto Bom de Bola", quebrou o violão e atirou-o sobre o
público, sendo desclassificado26. A canção "Ponteio", de Edu Lobo, interpretada por ele mesmo e
Marília Medalha, foi a vencedora. Gilberto Gil com "Domingo no Parque" e Caetano Veloso com
"Alegria, Alegria", ficaram em 2º e 4º lugares, respectivamente, iniciando o Tropicalismo. E "Roda
Viva", de Chico Buarque, conquistou o 3º lugar.
No II Festival Internacional da Canção, nesse mesmo ano, representantes de 31 países
concorreram ao Galo de Ouro, através de 131 artistas. Das quase 3.500 composições nacionais
inscritas, 40 foram escolhidas27. As canções vencedoras foram: "Margarida", de Gutemberg
Guarabira(1º); "Travessia", de Milton Nascimento(2º) e "Carolina", de Chico Buarque(3º).
A essa altura, os festivais assumiam, de uma forma clara, o caráter de gigantescos eventos
promocionais em torno da música popular. Como bem definiu Ana Maria Bahiana, eram a "grande feira
de amostras da música brasileira de classe média e formação universitária28”. Além de mobilizarem
recursos de grande vulto, vindos tanto de empresas privadas como do poder público, atendiam aos
interesses de empresários ligados à produção de discos, televisão e indústria editorial. É muito pouco
provável que, nessas condições, os interesses econômicos não tivessem interferido na seleção das
músicas para o concurso a partir de um universo de mais de 2.000 canções inscritas. Além disso, os
prêmios oferecidos aos vencedores certamente funcionavam, pelo menos para uma parcela dos
concorrentes, como um incentivo a comporem músicas "para ganhar festival29”. Era possível perceber
24
CAMPOS, Augusto. Balanço da Bossa e outras Bossas, São Paulo, Perspectiva, 1986, pp. 126-127
Revista Veja, nº 14, 11/12/1968, p. 60. Entre 16 e 22 de outubro de 1967, o III Festival da TV Record ocupou o primeiro lugar entre os dez
programas de maior audiência em São Paulo, segundo pesquisas do IBOPE.(Revista Intervalo, ano V, nº 252.)
26
Foram ainda campeões de vaia desse festival: Hebe Camargo, que apesar de toda a sua popularidade como apresentadora de televisão, não
conseguiu terminar de cantar a música "Volta Amanhã"; Erasmo Carlos, que defendeu a sua composição "Capoeirada"; os conjuntos Beat Boys e
Mutantes, que acompanharam respectivamente Caetano Veloso e Gilberto Gil; e Ronnie Von, que interpretou a canção de Carlos Imperial, "Uma
dúzia de rosas", cantou entre vais e aplausos.(Revista Manchete, ano 15, nº 809, 21/10/1967, pp. 16-17-25-26, e Revista O Cruzeiro, ano XXXIX,
nº 58, 04/11/1967, pp. 5-6-7-8)
27
Revista Manchete, ano 15, nº 809, 21/10/1967, p. 22
28
BAHIANA, Ana Maria. "A `linha evolutiva' prossegue - a música dos universitários", In Anos 70: 1-Müsica Popular, Rio de Janeiro, Europa
Editora, 1979/80, p. 26
29
CAMPOS, Augusto, 1986, op. cit., p. 127
25
9
em muitas canções o emprego de procedimentos melódicos, harmônicos, rítmicos, temáticos e
interpretativos já consagrados30.
Com todo esse aparato, os festivais conseguiam mobilizar um público numerosíssimo que
acompanhava os concursos tanto nos teatros ou estádios, como através da televisão. Eles se
converteram, sem dúvida, no meio de divulgação mais eficiente e garantido já utilizado pela indústria da
música até então. Em sintonia com os interesses de outros ramos da indústria cultural ligados ao disco e
ao setor editorial, a televisão atuou no sentido de converter intérpretes e compositores populares em
ídolos de massa, criando uma espécie de "star-system" musical. A participação do público era
estimulada através da ação de rádios, jornais e revistas que montavam, como bem definiu Augusto de
Campos, um verdadeiro "plebiscito vivo". Na relação direta com os artistas, a vaia se transformou na
principal arma do público. Manifestação até certo ponto ritualizada, a vaia manifestava-se pelo menos
sob duas formas: a "vaia preconcebida" e a "vaia de desagrado". A primeira acontecia quando o público
já se dispunha a vaiar determinados artistas em função de uma posição político-ideológica.
Normalmente era promovida pelo segmento estudantil empenhado em atacar os artistas não alinhados
com a postura nacional-populista, por exemplo. A segunda, voltava-se contra certas composições
independentemente do intérprete31.
Porém, mesmo atuando na direção da homogeneização e da manipulação do público, os
meios envolvidos com a promoção dos festivais, nucleados pela televisão, ainda não apresentavam um
grau suficiente de integração para promover uma massificação mais profunda. Dessa forma, o espaço
dos festivais funcionava como uma espécie de caixa de ressonância dos processos políticos em curso no
país naquele período.
Em 1968, o festival da TV Record começou a perder fôlego e não conseguiu manter a mesma
audiência do ano anterior. De acordo com os dados do IBOPE, os índices caíram de 30%, no primeiro
dia, para 20% no segundo, 16% no terceiro e 17% no quarto. Além disso, os três discos com as 36
canções concorrentes encalharam nas pratileiras32. Entre aplausos e vaias, saíram vencedoras: "São São
Paulo", de Tom Zé (1º); "Memórias de Marta Saré", de Edu Lobo (2º); e "Divino Maravilhoso", de
Gilberto Gil (3º).
O III FIC foi o mais tumultuado. No encerramento da fase paulista, realizada no TUCA,
Caetano Veloso, sob forte vaia, fez um discurso emocionado enquanto defendia sua composição "É
30
MILLER, Sidney. "Os festivais no panorama da Música Popular Brasileira", In Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Editora Civilização
Brasileira, ano IV, nº 17, janeiro/fevereiro de 1968
31
CAMPOS, Augusto. 1986, op. cit., p. 128
32
Revista Veja, nº 14, 11/12/1968, p. 58
10
Proibido Proibir", acompanhado pelo conjunto Os Mutantes. Chegou a afirmar que ele e Gil estavam
participando do evento para "acabar com a estrutura de festival". Sérgio Ricardo, que tinha sido vaiado
no festival da Record do ano anterior, foi aplaudido ao cantar a canção "Dia da Graça". Mesmo com
uma parte da letra censurada, o público cantava em coro com a letra na mão. Vandré dispensou a
orquestra e cantou apenas com o violão, perante um público de mais de 20 000 pessoas, a canção que
se tornaria uma espécie de hino da revolução brasileira, "Caminhando", ou "Para não dizer que não falei
de flores", que ficou em 2º lugar. A primeira colocação coube à canção romântica "Sabiá", de Chico
Buarque e Tom Jobim. A radicalização das lutas sociais no ano de 1968 parecia se refletir no clima do
festival. A composição de Chico e Jobim, uma canção de exílio, parecia prever o fechamento político
que estava por vir. Em 13 de dezembro, o governo militar baixou o Ato Institucional no. 5, dando
início a um período de violenta repressão e instituindo a censura política.
No ano seguinte, com o declínio da TV Record e a ascensão da TV Globo, o grande
acontecimento musical do ano foi a IV FIC. Porém, realizado um mês após a inauguração da Rede
Globo de Televisão, o festival revelou claramente os efeitos dos novos padrões de gerenciamento de
empresas de comunicação no Brasil. Os organizadores do evento definiram, por exemplo, estratégias
para manter a manifestação das platéias dentro de determinados limites. Várias fileiras de cadeiras
próximas do placo foram ocupadas por câmeras para focalizarem os "20.000 cantores anônimos" que
vibrariam durante o espetáculo. Foram proibidas as torcidas com bandas organizadas e todos os objetos
que pudessem ser atirados nos músicos. Foi vetada também a divulgação prévia das canções
estrangeiras33. As encenações durante as apresentações das músicas também foram proibidas. Macalé e
Capinam planejavam, numa paródia aos sabiás que voavam durante a apresentação da música de Chico
Buarque e Tom Jobim no ano anterior, soltar morcegos durante a apresentação de "Gotham City", cuja
letra dizia, a uma certa altura, "Cuidado, há um morcego na porta principal/há um abismo na porta
principal". As grandes estrela consagradas nos festivais anteriores não participaram. Ou porque
estavam fora do país, como Chico Buarque, Cilberto Gil, Caetano Veloso e Edu Lobo, ou porque não
se interessaram. Segundo a revista Veja, "para conquistar essa vasta camada de público atualmente sem
ídolos, os compositores brasileiros terão a seu favor, além da organização que o coordenador de FIC
garante, a tradição de calma que reina nos festivais de música, apesar de todo o barulho da platéia: não
há contestadores"34. Desse modo, ao lado da censura, o avanço da racionalidade técnica da indústria
cultural que iriam disciplinar artistas e público nessa nova fase dos festivais.
33
34
Revista Veja, 1/10/1969, nº 56, p. 62
Revista Veja, 24/9/1969, nº 55, p. 59
11
De acordo com o lema definido pelo coordenador do festival, Augusto Marzagão - "quero
uma canção que seja cantada da Patagônia aos Urais" - a linha predominante das músicas concorrentes
foi a da "cantiga moderna", inaugurada por "Andança", de Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho
Tapajós, no festival anterior. A vencedora foi "Cantiga por Luciana", de Edmundo Souto e Paulinho
Tapajós, interpretada por Eva. Após o encerramento do certame, os maestros e músicos da vanguarda
paulista, Rogério Duprat, Júlio Medaglia e Damiano Cozzela, que tinham participado de festivais
especialmente ao lado dos tropicalistas, publicaram na revista Veja um manifesto irado contra a nova
tendência assumida pelo FIC, entitulado "Eis o funeral da canção", afirmando que o festival estava
nivelando por baixo o seu repertório, colocando-o no nível da pior música européia35.
Da frente ampla à frente única
Com o sucesso e a consolidação da Jovem Guarda em 1966, alguns disc-jockeys passaram a
combater a produção dos novos compositores e intérpretes da música jovem, definida por eles como
submúsica. As posições de alguns intelectuais e artistas com relação ao impasse da música popular
brasileira frente ao avanço do iê-iê-iê chegava aos meios de comunicação. A imprensa começava a
publicar matérias sobre essa polêmica, entrevistando artistas de ambos os lados, procurando, de certa
forma, estimular o conflito que, para os interesses das empresas envolvidas com os negócios da música
popular, poderia cumprir um papel mobilizador de público36. Porém, ao longo desse ano, as
hostilidades entre artistas integrantes das duas tendências não foram além de fofocas promovidas pela
imprensa.
Além disso, o impacto do festival de 66 acabou ofuscando a iniciativa da turma do iê-iê-iê de
promover o I Encontro Nacional da Jovem Guarda. Esse evento, que teve como patronos Roberto
Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia, tinha como objetivo revelar "novos valores" para a música
jovem37. Com a grande repercussão do Festival da MPB, a cobertura feita pelos meios de comunicação
ao evento da Jovem Guarda foi bastante tímida. A MPB começava a levar vantagem frente ao iê-iê-iê.
No final do ano, os vencedores do festival, provavelmente numa situação montada pela revista
Manchete, tentaram um golpe de misericórdia no iê-iê-iê. Num ato tipicamente militante, Chico
35
Revista Veja, 8/10/1969, nº 57, pp. 76-77
A Revista Intervalo publicou várias matérias sobre esse assunto, em 1966, como: "Erasmo Carlos denuncia panelinha da bossa nova"; "Elis
Regina revida a ofensiva da Jovem Guarda: esse tal de iê-iê-iê é ma droga!"; "Ari Toledo: cantor de iê-iê-iê parece boneco de mola". Revista
Intervalo, ano IV, nºs 165, 168 e 169
37
Concorreram cantores, conjuntos instrumentais e compositores de vários estados. As primeiras eliminatórias foram realizadas nas principais
capitais do país, transmitidas pelos canais de televisão locais. As finais ocorreram em São Paulo, em novembro de 1966. (Revista Intervalo, ano IV,
36
12
Buarque e Geraldo Vandré procuram aliciar o líder da Jovem Guarda para o campo da MPB. A
conversa entre eles e Roberto Carlos foi publicada pela revista com o título "A Frente Ampla da Jovem
Guarda38”. A conversa inicia-se com o pedido de Chico Buarque para que Roberto Carlos confirmasse
se realmente havia solicitado ajuda à Nara Leão para a escolha de um repertório de música popular
brasileira para um futuro disco. Durante a conversa, Roberto Carlos coloca-se o tempo todo na
defensiva demonstrando um extremo cuidado com suas respostas, um cuidado de quem sabe muito
bem os riscos que se corre ao jogar o jogo do mercado. Geraldo Vandré é mais direto e ataca: " - não
acha que o grande prestígio que tem, sua grande popularidade, colocado a serviço de música popular
brasileira, traria um grande benefício para ela? (...) Seria só uma questão de colocar a sua popularidade
a serviço da nossa canção." Roberto agradece os elogios mas afirma que embora viva de música não a
vê como um negócio. "A música é a música. Ela não deve ser feita para servir a outros interesses."
Vandré e Chico argumentam que mesmo assim ele ganha muito dinheiro com música. Roberto contraataca revelando que o cachê de Chico, após o festival, subira de 500 mil para três milhões e meio de
cruzeiros. Chico confirma, mas diz que não é a única coisa importante em música. Vandré diz que tinha
recebido pouco até aquele momento. Lamenta-se dizendo que sua vida não era das melhores e
subestima sua condição de músico profissional dizendo que tinha outra profissão - fiscal da SUNAB.
Chico fala do empate entre "A Banda" e "Disparada" no festival - "...o primeiro empate de dois caras
que jogam no mesmo time" - valorizando o fato de não haver disputa no interior da "frente"
representada pela MPB. Vandré insiste com Roberto Carlos reafirmando que "nesse time tem camisa
sobrando. É só você querer." Roberto se defende dizendo que, embora tivesse começado a carreira
cantando música brasileira, tinha se identificado com o iê-iê-iê e seu público. Finalmente, acaba
admitindo que fizera o pedido à Nara Leão sobre o repertório de um possível disco seu de MPB. Mas
esse disco nunca foi gravado.
No ano seguinte a situação começou a mudar. Com a saída de Horácio Berlinck da equipe de
produção do programa "O Fino da Bossa", legalmente o dono da marca, a TV Record foi obrigada a
mudar o nome do programa que passou a chamar-se simplesmente "O Fino". Enquanto o Jovem
Guarda conquistava elevados índices de audiência, os do programa de MPB declinavam. Em junho de
1967, "O Fino" saiu do ar. Ao mesmo tempo em que a emissora preparava um novo programa para
preencher o horário vago, compositores e intérpretes ligados à MPB, incluindo Elis Regina, Gilberto
Gil, Jair Rodrigues, Edu Lobo, o quarteto MPB4, Zé Keti, e outros, organizaram a famosa "passeata
nº 746, 10/12/1966, pp. 108-109-111)
38
Revista Manchete, ano 14, nº 746, 10/12/1966, pp. 108-109-111
13
contra as guitarras". Na noite de 18 de julho de 1967, o grupo de artistas se deslocou do Largo São
Francisco até o Teatro Paramount onde seria gravado o novo programa da TV Record, inicialmente
batizado de "Noite da Música Popular Brasileira". Tocando e cantando a música "A Banda" de Chico
Buarque, o grupo portava faixas com palavras de ordem contra o Iê-iê-iê sendo que numa delas lia-se:
"Frente Única, Música Popular Brasileira"39. Consta que a idéia da passeata foi estimulada pelo próprio
Paulo Machado de Carvalho Jr. com o intuito de acirrar a rivalidade entre os dois programas e com isso
mobilizar o público40. A suspeita tem uma certa plausividade, pois o diretor da TV Record acabou
rebatizando o recém-criado programa "Noite da Música Popular Brasileira" de "Frente Única". Porém,
se Paulo Machado de Carvalho encarava o movimento como uma estratégia de marketing, seus
integrantes tinham outro ponto de vista; acreditavam estar participando de um movimento político em
defesa da cultural brasileira. Geraldo Vandré, que compartilhava dessa opinião e chegou a se indispor
com o diretor da emissora, acusando-o de não dar o apoio necessário à Música Popular Brasileira,
acabou excluído do cast da TV Record41.
O acirramento dos conflitos simbólicos no campo da música popular dos anos 60 apresentava
uma certa analogia com o processo político vivido pelo país a partir de 64. Termos usados por
personagens ou facções políticos começavam a aparecer nos embates que se davam entre artistas
ligados a estilos ou movimentos de música popular. As expressões "Frente Ampla" e "Frente Única"
foram os casos mais típicos42. Porém, essa analogia é aparente. As relações entre as esferas política e
artística são mediadas por campos relativamente autônomos no interior dos as tomadas de posição
obedecem a regras específicas. Desse modo, mesmo que os agentes do campo artístico assumam
posições aparentemente semelhantes às do campo político, o sentido é outro. Como diz Bourdieu, "há
equivalências entre esses espaços autônomos que fazem com que a linguagem possa passar de um a
outro com sentidos aparentemente idênticos, mas realmente diferentes"43.
39
PAIANO, Enor. O Berimbau e o Som Universal: lutas culturais e indústria fonográfica nos anos 60, Dissertação de Mestrado, São Paulo,
ECA/USP, 1994, op. cit., p. 125. CASTRO, Ruy. Chega de Saudade, São Paulo, Companhia das Letras,1990, p. 405
40
CASTRO, Ruy. Op.cit, p. 405
41
Revista Intervalo, 20 a 26 de agosto de 1967, ano V, nº 241, p. 47
42
A expressão "Frente Ampla" foi usada para definir a articulação que Carlos Lacerda começou a organizar em 1966, reunindo importantes
lideranças políticas com o objetivo de "restabelecer a democracia no país". Para setores da esquerda, a Frente Ampla era duvidosa ma vez que
reunia políticos que tinham apoiado o golpe militar. Por essa razão, propunham a formação de uma "Frente Única" que reunisse forças políticas que
sempre resistiram ao golpe e que portanto compartilhavam de uma perspectiva política e ideológica comum.
43
BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia, Rio de Janeiro, Editora Marco Zero, 1983, p. 133
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Dados pessoais do autor
Nome: José Roberto Zan
Filiação institucional: Professor Assistente Doutor - MS 3, vinculado ao Departamento de Música
de Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.
Endereço: Rua Francisco de Barros Filho, 366, Barão Geraldo, Campinas - SP.
CEP: 13085-500
Telefone/Fax: (19)3289 0149
E-mail: [email protected]
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