A LITERATURA COMO FONTE PARA PESQUISAS SOBRE ESCOLA E CULTURA ESCOLAR: POSSIBILIDADE DE ANÁLISE EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Rosana Sant’Ana de Morais Colégio Militar de Campo Grande [email protected] RESUMO Este texto tem como objetivo apresentar considerações sobre alguns modos de representação da escola em contos e crônicas de autores do século XX na literatura brasileira, a partir dos conceitos estudados na linha de pesquisa Escola, Cultura e Disciplinas Escolares, do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMS. A escola, nessa abordagem, é entendida o espaço formal de aprendizagem, o lugar em que a história é construída em um determinado tempo e onde se conta essa história. Viñao Frago, Julia e Pérez-Gómez, autores que pesquisam a cultura escolar, têm em comum o fato de perceberem a escola como um lugar de produção e reprodução de cultura, com características próprias no que se refere aos modos de pensar e de fazer, considerando em suas pesquisas os tempos e os espaços escolares, os saberes e os sujeitos da escola e a materialidade das práticas pedagógicas. Visto que tais práticas nem sempre estão documentadas e arquivadas, as obras literárias tornam-se fontes importantes de pesquisa nessa área. Essas obras, de maneira geral, apresentam muitos elementos da cultura de uma determinada sociedade. No que se refere à cultura escolar, tais representações demonstram o cotidiano das escolas e o comportamento dos indivíduos que as compõem. Quanto à literatura, Lopes e Galvão (2001) apontam que “os autores não são somente testemunhas de sua infância ou da idade adulta, mas são intérpretes sensíveis e apaixonados dos processos familiares, escolares e sociais.” A partir desse referencial teórico, busca-se fazer um exercício de análise, usando contos e crônicas de alguns autores brasileiros do séc. XX. Essa opção foi pensada, porque esses gêneros textuais têm como fonte de inspiração acontecimentos reais e retratam de maneira peculiar os modos de organização da escola. Foram selecionados sete textos de cinco autores: Clarice Lispector, Leonardo Arroio, Sérgio Porto, Fernando Sabino e Luis Fernando Veríssimo, escolhidos muito mais pela temática que pelo autor ou época. São histórias sobre o comportamento de alunos e professores em sala de aula, apresentadas de maneira bem humorada, como em “Santinho” (VERÍSSIMO, 2001); ou mais intimista, como em “Os desastres de Sofia” (LISPECTOR, 1999); mas que representam de maneira sensível esse relacionamento tão particular, apesar do ambiente social de mais de trinta pessoas em uma sala. Como resultados, identificam-se traços comuns nas histórias e nas representações de escola narradas. Assim, foram observadas algumas expressões da cultura escolar, em especial o modo de organização (tempos e espaços escolares) de uma escola nova, que se reorganizava, e a presença/influência das professoras primárias nas lembranças dos alunos. PALAVRAS-CHAVE: Escola, cultura escolar, literatura. Introdução Este artigo é resultado de um estudo proposto pela disciplina “Escola na literatura”, desenvolvida na linha de pesquisa Escola, Cultura e Disciplinas Escolares, do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMS. Tal linha tem como proposta estudar a escola sob o ponto de vista cultural, ou seja, utiliza a cultura escolar como categoria de análise e como campo de investigação aos fatos históricos e sociológicos referentes à educação. No campo sociológico educativo, as perspectivas que se abrem para a pesquisa sobre escola versam sobre os contextos de socialização em seu interior; seus códigos educacionais, a formação de professores e o desenvolvimento educacional, entendendo a escola como espaço de formações culturais. Já na perspectiva histórica, os desafios são trabalhar com novas metodologias, fazendo a história dos atores educativos e o reencontro da experiência, dando “voz” aos sujeitos, os professores e alunos, em uma abordagem textual; bem como a história das práticas escolares, das ideias pedagógicas e dos sistemas educativos. Desse modo, pesquisar a história da educação sob o ponto de vista da cultura torna imprescindível o diálogo com outras áreas de conhecimento pois deve-se ter sempre vista a noção de que não existe fenômeno educativo que não seja social e histórico. É nesse contexto que está inserido este artigo, e sob esse ponto de vista objetiva tecer considerações a respeito de alguns modos de representação da escola em contos e crônicas de autores do século XX na literatura brasileira. À guisa de introdução, faz-se necessária a apresentação de alguns autores cujas ideias serão consideradas para o presente estudo. Segundo Raymond Williams a cultura é parte ativa do processo social, que organiza os modos de produção e os valores da sociedade, por isso mesmo, para defini-la, aponta como imprescindível levar em consideração o contexto sócio-histórico de sua produção. Incorporam-se aí questões relacionadas a processos íntimos, como a vida intelectual, a literatura e as artes, e também aos processos gerais, diferentes modos de vida, a linguagem, a filosofia, entre outros. Nesse sentido, é importante também a contribuição de Michel de Certeau, que teoriza a cultura do homem ordinário (das pessoas comuns), ou o que é comum para o homem através de suas práticas culturais. São práticas tidas como referência, tais como: as instituições, as ideologias e os mitos, e que caracterizam as diferentes sociedades. Sendo assim, cultura é o que a sociedade faz, sabe, consome, produz. A escola, nessa abordagem, é entendida como produto e processo de uma sociedade, o espaço formal de aprendizagem, o lugar em que a história é construída em um determinado tempo e onde se conta essa história. Entender esse conceito é fundamental para se debruçar em estudos que tenham por finalidade compreender a constituição das práticas escolares. São vários os autores que teorizam sobre o tema: Viñao Frago, Julia, Pérez Gómez, dentre outros. Esses autores tem em comum o fato de perceberem a escola como um lugar de produção e reprodução de cultura, com características próprias no que se refere aos modos de pensar e de fazer, considerando em suas pesquisas os tempos e os espaços escolares, os saberes e os sujeitos da escola e a materialidade das práticas pedagógicas. Caminho difícil, visto que tais práticas nem sempre estão documentadas e arquivadas. Dominique Julia (2001) fala em abrir a “caixa-preta” da escola para buscar entender o que acontece nesse espaço tão particular. Ele explica a cultura escolar como um conjunto de normas e práticas que definem, aquelas, condutas e saberes; e estas, a transmissão e a incorporação de tais normas. Tanto uma quanto a outra, segundo ele, devem ser entendidas de acordo com o contexto em que foram produzidas e sob qual finalidade. Esse contexto varia segundo o tempo e sempre se relaciona aos sujeitos envolvidos no fazer cotidiano da instituição. Antonio Viñao Frago (2000), numa direção bem próxima, considera cultura escolar como um conjunto de ideias, princípios, critérios, normas e práticas sedimentadas ao longo do tempo das instituições educativas. Ou seja, modos de pensar e atuar. Assim sendo, todos os estudos que tem como chave de análise a cultura escolar, veem a escola como uma instituição com características próprias e com um modo de organização peculiar, que impõem modelos de referências de socialização incorporados e legitimados por todos os seus atores. Mas esse modelo não é estanque, principalmente porque os processos de socialização são frequentemente reconfigurados, as relações entre os sujeitos são modificadas, novas regras e novos modelos são estabelecidos e implantados, enfim, novos tempos e novos espaços acabam por modificar o cotidiano escolar, mesmo que lentamente. Como se dão essas mudanças e por quais caminhos é o que se busca explicar quando se “entra” na escola e se analisa sua cultura. A leitura de livros e artigos sobre as diferentes acepções de cultura e cultura escolar, propiciam investigações sob vários pontos de vista dentro da escola: a análise dos currículos, como forma de explicar os saberes e conhecimentos; os espaços e tempos nas instituições escolares e a materialidade escolar (métodos de ensino, livro didático, cadernos, anotações de alunos e professores, etc.). No que diz respeito às fontes, nessa perspectiva de análise abrem-se algumas possibilidades: Tem havido um esforço, por exemplo, em sistematizar a discussão sobre a utilização de determinadas fontes que, pouco a pouco, vêm sendo incorporadas aos estudos, como a fotografia, a literatura, as estatísticas escolares e até a legislação escolar, já tão utilizada anteriormente. (LOPES e GALVÃO, 2001, p. 44) Lopes e Galvão (2001) apontam que há uma grande dificuldade em se escrever uma história da infância visto que não há registros escritos pelos pequenos sobre esse período de sua vida. Há, no máximo, representações indiretas de adultos que escrevem suas memórias da infância. Por esse motivo, busca-se cada vez mais pesquisar essa época tendo como fonte as obras literárias. Normalmente, tende-se a considerar que o texto literário é essencialmente estético e não reflete a realidade. Levando em consideração, obviamente, os elementos da Literatura (como elemento estético) e suas metodologias de análise, observa-se que há muito de verdade nessa ficção, “os autores não são somente testemunhas de sua infância ou da idade adulta, mas são intérpretes sensíveis e apaixonados dos processos familiares, escolares e sociais.” (Lopes e Galvão, 2001, p.85). Principalmente nos contos e crônicas, podem-se observar elementos do cotidiano que, mesmo que inventados, partem de uma realidade possível. A partir dessa verificação, o que pretendo, neste trabalho, é fazer uma análise de alguns contos e crônicas de autores modernos, observando como se dá o relacionamento professor-aluno, em sala de aula, além de averiguar outros elementos da cultura escolar dentro dos textos, tais como: o modo de organização da escola e a participação da família. Essas obras, de maneira geral, apresentam muitos elementos da cultura de uma determinada sociedade, dentre eles, a do mundo infantil: brincadeiras, jogos, educação formal e informal, etc. No que se refere à cultura escolar, tais representações demonstram o cotidiano das escolas e o comportamento dos indivíduos que as compõem. Foram selecionados sete textos de cinco autores: Clarice Lispector, Leonardo Arroio, Sérgio Porto, Fernando Sabino e Luis Fernando Veríssimo, levando em consideração as semelhanças entre elas no que diz respeito à temática e aos modos de organização da escola, assim, foram privilegiados os textos que apresentaram um modelo de escola mais recente, em que já se pode observar a formatação da escola moderna, ou seja, escola como lugar, lócus arquitetônico, dotado de uma identidade sociocultural, com espaços e tempos peculiares. São histórias sobre o comportamento de alunos e professores em sala de aula, apresentadas de maneira bem humorada, como em “Santinho”, de Luis Fernando Veríssimo; ou mais intimista, como em “Os desastres de Sofia”, de Clarice Lispector; mas que representam de maneira sensível esse relacionamento tão particular, apesar do ambiente social de mais de trinta pessoas em uma sala. Os textos foram analisados buscando referências sobre dois elementos da cultura escolar a saber: os espaços/tempos escolares e o predomínio das mulheres no ensino primário. ... a escola é uma instituição da sociedade que possui suas próprias formas de ação e de razão construídas no decorrer da sua história, tomando por base os confrontos e os conflitos oriundos do choque entre as determinações externas a ela e as suas tradições, as quais se refletem na sua organização e sua gestão, nas suas práticas mais elementares e cotidianas, nas salas de aula e nos pátios e corredores, em todo e qualquer tempo, fracionado ou não. (SILVA, 2002, p.5) Nesse sentido, pode-se dizer que existe uma cultura escolar formada, como define Pérez Gómez, por “um cruzamento de culturas”, quais sejam, a cultura dos que gerenciam e mantêm a escola e os pais, como um fator mais externo, e, participando ativamente das atividades no ambiente escolar, professores e alunos; e que tais culturas “provocam tensões, aberturas, restrições e contrastes na construção de significados.” (PÉREZ GÓMEZ, 2001, p.12), pois, apesar dessas pessoas estarem inseridas num mesmo contexto cultural, social, político e econômico, elas têm ou tiveram formações e experiências de vida próprias, modos diferentes de interpretar esse meio e isso influencia tanto no fazer pedagógico do professor quanto na aprendizagem do aluno, enfim, nas práticas e na relação dos indivíduos dentro do espaço escolar, especialmente na sala de aula. Assim, é importante destacar que as histórias são contadas sob o ponto de vista dos alunos. Espaço/Tempo Espaço e tempo constituem elementos-chave para a compreensão da cultura escolar. Viñao-Frago (2000) considera que: [...] esses lugares e tempos são determinados e determinam uns ou outros modos de ensino e aprendizagem. [...] Em síntese, o espaço e o tempo escolares não só conformam o clima e a cultura das instituições educativas, mas também educam. (p. 99, tradução nossa) Assim, todas as histórias escolhidas se dão em um prédio: a escola, espaço destinado a aprender, onde a criança passa grande parte do tempo, dividida entre muito estudo e um pouco de lazer. Normalmente, as figuras usadas para descrever os espaços dentro das escolas indicam liberdade, diversão, brincadeiras, quando se retrata o recreio; e adjetivos mais ásperos para a sala de aula, um claro indício da preferência dos alunos, como se pode perceber em “Os desastres de Sofia”: Eram quase dez horas da manhã, em breve soaria a sineta, do recreio. Aquele colégio, alugado dentro de uns parques da cidade, tinha o maior campo de recreio que eu já vi. Era tão bonito para mim quanto seria para um esquilo ou um cavalo. Tinha árvores espalhadas, longas descidas e subidas e estendida relva. Não acabava nunca. Tudo ali era longe e grande, feito para pernas compridas de menina, com lugar para montes de tijolo e madeira de origem ignorada, para moitas de azedas begônias que nós comíamos, para sol e sombras onde as abelhas faziam mel. Lá cabia um ar livre imenso. E tudo fora vivido por nós: já tínhamos rolado de cada declive, intensamente cochichado atrás de cada monte de tijolo, comido de várias flores e em todos os troncos havíamos a canivete gravado datas, doces nomes feios e corações transpassados por flechas; meninos e meninas ali faziam o seu mel. (LISPECTOR, 1999, p. 37) Nunca havia percebido como era comprida a sala de aula; só agora, ao lento passo do medo, eu via o seu tamanho real. Nem a minha falta de tempo me deixara perceber até então como eram austeras e altas as paredes; e duras, eu sentia a parede dura na palma da mão. Num pesadelo, do qual sorrir fazia parte, eu mal acreditava poder alcançar o âmbito da porta - de onde eu correria, ah como correria! a me refugiar no meio de meus iguais, as crianças. (LISPECTOR, 1999, p. 39) Identifica-se um lócus que sustenta seu funcionamento separando as pessoas em seus papéis específicos, agrupando alunos em espaços controláveis como forma de realizar seu trabalho de transmissão organizada de conhecimentos. Ao mesmo tempo, observa-se que há também, nas memórias da narradora, o espaço da liberdade, próprio da cultura escolar do aluno, o espaço/tempo do recreio, em que esse controle não é tão rigoroso e quase não é possível. Esse tempo/espaço do recreio dos alunos é, aliás, uma das “caixas-pretas” apontadas por Julia (1995) que ainda estão por ser desvendadas. No que diz respeito ao tempo, os textos analisados neste trabalho datam da escola “moderna”, do início do século XX, em que vários educadores procuraram introduzir ideias e técnicas que tornassem o processo educativo mais eficiente e realizador para o aluno, culminando em várias propostas de reforma, visando a tornar a escola mais adequada aos novos tempos e às novas realidades. Esse movimento, conhecido historicamente como Educação Nova ou Escola Nova, teve como uma das principais contribuições a ideia do aluno como centro da aprendizagem e a valorização dos métodos ativos. O professor não podia mais ser aquele “todo-poderoso”, que era o único a falar, que impunha castigos - inclusive físicos - aos alunos possuidores de alguma dificuldade de aprendizagem ou considerados indisciplinados; mas sim, estimular uma maior participação do aluno no aprendizado, valorizar o conhecimento de mundo trazido por cada criança e, principalmente, ser o mediador entre o aluno e o conhecimento e não um mero transmissor. Em “Vitor e seu irmão”, de Luis Fernando Veríssimo, a professora, com paciência, tenta fazer isso: Não era prevenção. A professora tinha o cuidado de tratar todos os seus alunos da mesma maneira. Pelo menos se esforçava para isto. Mas, com o Vitor, ela sempre estava com um pé atrás. O Vitinho era um caso à parte. _ Qual é a população do Brasil? Um aluno levantou a mão e leu a resposta que estava no livro. _Cento e vinte milhões. O Vitor levantou a mão. A professora sentiu um vazio na barriga. Lá vinha ele. _ O que é Vitinho? _ Cento e vinte e um milhões. _ Por que Vitinho? _ Minha mãe teve um filho esta semana. Uma risadinha correu pela sala, mas o Vitor ficou sério. Estava sempre sério. _ Quantos filhos a sua mãe teve, Vitor? _ Até agora? _ Não, desta vez. _ Um. Mas dos grandes. Outra risadinha, como marola na superfície de um lago. _ Então não são cento e vinte e um milhões. São cento e vinte milhões e um. E a professora escreveu o número no quadro-negro. Depois apontou para o um no fim do número e disse: _ Este aqui é o seu irmãozinho, Vitor. (VERÍSSIMO, 2001, p.18) Interessante perceber como cada aluno recebe as informações repassadas pelo professor de acordo com o seu conhecimento de mundo. Em salas heterogêneas, cada indivíduo tem uma história de vida, uma experiência empírica que influenciará na sua maneira de aprender e de interagir no grupo, de modo que não é possível dizer que um aluno aprendeu a mesma coisa que o outro que assistiu a mesma aula, ou que um professor apresentará o conteúdo exatamente da mesma forma em outra sala da mesma série. Nessa nova abordagem de ensino, os professores têm que ter uma didática muito bem planejada e buscar, a partir das indagações dos alunos ou assuntos da atualidade, transmitir conhecimentos que extrapolem o conteúdo proposto no plano de aulas, como vemos nos contos “Sementinhas” e “O pleito” de Luis Fernando Veríssimo: _ Professora, sabe sexo explícito? Pronto, pensou a professora. Chegou a hora. A turma não estava na idade para educação sexual, mas quem sabe qual é a idade, hoje em dia? Professora, sabe sexo explícito? _Eu já ouvi, Maurício. É sobre isso que nós vamos conversar hoje. (VERÍSSIMO, 2001, p.33) Como era época de eleição, a professora decidiu fazer um pleito simulado na aula. (VERÍSSIMO, 2001, p.51) Esses excertos focalizam, então, as práticas e os dispositivos de (re)invenção da escola, instituída e sedimentada por determinadas práticas de ensino-aprendizagem e determinados modelos pedagógicos, em tempos determinados, que foram percebidos pelos autores dos contos e foram objetos de suas histórias. Professores(as) Primários(as): Marcas para toda a Vida Uma questão interessante, que salta aos olhos desde a primeria leitura das histórias, principalmente as de humor, é que as lembranças se relacionam muito mais ao ensino primário e, nesse contexto, às professoras. É recorrente a lembrança dos narradores sobre sua infância na escola na figura do professor e da professora primários. Fica claro que o mais marcante para eles foi a situação de sala de aula, vivida por duas peças-chave da cultura escolar: professor e aluno. Foi observado que são as histórias da infância que deixam mais recordações, boas ou más, pois, nessa fase da vida, a criança tem uma relação mais profunda com seus professores. Em “O filho da iniquidade”, de Leonardo Arroio, a relação entre Ernestinho e D. Nazaré é de muita confiança e cumplicidade: Olhava-me de certo modo, não escondendo a preferência que tinha por mim. Geralmente os vinte alunos da sua classe, era eu quem melhor sabia as lições. Gostava de estudar e dessa forma correspondia, dentro da minha lógica infantil, àquela preferência de D. Nazaré. (...) D. Nazaré gostava que eu fosse aplicado. (ARROIO, 1999, p.22). Já em “Os Desastres de Sofia”, de Clarice Lispector, a narradora revela um sentimento confuso de amor e ódio por seu professor: Mas eu o exasperava tanto que se tornara doloroso para mim ser o objeto de ódio daquele homem que de certo modo eu amava. Não amava como a mulher que eu seria um dia, amava-o como uma criança que tenta desastradamente proteger um adulto, com a cólera de quem ainda não foi covarde e vê um homem forte de ombros tão curvos. Ele me irritava. De noite, antes de dormir, ele me irritava. (LISPECTOR, 1999, p. 33). E o mais importante: os alunos percebem os sentimentos do professor através de suas atitudes. Eles também estão sempre avaliando seus professores e conseguem identificar as tais marcas deixadas pela escola. Os narradores contam, dessa maneira, suas histórias, na maioria das vezes com saudades e tirando suas próprias conclusões sobre esse período, como se pode perceber nos trechos a seguir: As duas histórias que eu contei não têm nenhuma importância. Mas olha as cicatrizes. (VERÍSSIMO) ...E foi assim que no grande parque do colégio lentamente comecei a aprender a ser amada, suportando o sacrifício de não merecer, apenas para suavizar a dor de quem não ama. Não, esse foi somente um dos motivos. É que os outros fazem outras histórias. (LISPECTOR) Vim cumprir o castigo, vim inventar minhas histórias até o dia em que Dona Margarida compreenda que cumpri minha obrigação. Então sim, então poderei voltar feliz para o grupo escolar! (PORTO) Sobretudo as professoras, mulheres, são as personagens mais presentes nas obras, corroborando as abordagens históricas da História da Educação em que se percebe a presença dominante das mulheres na escola primária. A partir final do séc. XIX acontece o que se pode chamar de feminização do ensino. O ofício de ensinar, principalmente no ensino primário passa a ser tarefa essencialmente feminina, começando pela formação das professoras, sob a responsabilidade das congregações religiosas. Esse etos religioso se associa a aspectos da formação da mulher cunhados pela cultura brasileira recém-saída da situação colonial, escravagista e, associados, criam em regiões e situações diferentes tipos diferentes de professoras e de práticas pedagógicas. Todas diferentes; todas muito semelhantes. O exercício da profissão – ser professora – terá também suas particularidades. Ser professora é diferente de ser professor. (LOPES e GALVÃO, 2001, p.73). Segundo Pessanha (2001), “o magistério primário é setor monopolizado pelas mulheres desde a primeira República”. Além disso, havia sempre a ideia de associar-se a professora à mãe, já que a escola também era considerada uma extensão da casa. Esse pensamento ainda se mantém na escola moderna. Normalmente, quando se fala em escola primária, a figura que se imagina é sempre da professora, feminina e maternal. Nas obras estudadas, a lembrança dos alunos é sempre de uma professora. Em um dos trechos de “Santinho”, de Luis Fernando Veríssimo, o narrador chama as professoras de “pseudo-mães”, um traço evidente do que se está querendo mostrar: Lembro-me com clareza de todas as minhas professoras, mas me lembro de uma em particular. (...) Já outra professora quase destruiu para sempre qualquer pretensão minha à originalidade literária. (...) Enfim, sobrevivi. No ginásio, todos os professores eram homens, mas não lembro de nenhuma marca que algum deles tenha deixado. As relações com as nossas pseudo-mães, no primário, eram muito mais profundas. (VERÍSSIMO, 2001, p.13-15). Mesmo quando há a descrição de um professor, como no conto de Clarice Lispector, a impressão que se tem é que essa figura masculina fica um pouco deslocada, fora de contexto, parece que está ali apenas por não ter conseguido algo melhor: Qualquer um que tivesse sido seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de profissão, e passara pesadamente a ensinar no curso primário: era tudo o que sabíamos dele. O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos. Em vez de nó na garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, um fio de ouro encimando o nariz grosso e romano. E eu era atraída por ele, não amor, mas atraída pelo seu silêncio e pela controlada impaciência que ele tinha em nos ensinar e que eu, ofendida, adivinhara. Passei a me comportar mal na sala. Falava muito alto, mexia com os colegas, interrompia a lição com piadinhas, até que ele dizia, vermelho: _Cale-se ou expulso a senhora da sala. (LISPECTOR, 2001, p. 34) O que se percebe é que, inclusive no que se refere à participação da família na escola, a educação infantil é deixada sob a responsabilidade das mulheres. No conto “Reunião de mães”, de Fernando Sabino, o pai se sente “constrangido”, por estar ali e por não ter a mínima ideia sobre os assuntos abordados: Na reunião de pais só havia mães. Eu me sentiria constrangido em meio a tanta mulher, por mais simpáticas me parecessem, e acabaria nem entrando – se não pudesse logo distinguir, espalhadas no auditório, duas ou três presenças masculinas que partilhariam de ressabiado zelo paterno. Sentei-me numa das últimas filas, para não causar espécie à seleta assembléia de progenitoras. Uma delas fazia tricô, e várias conversavam, já confraternizadas de outras reuniões. O Padre-Diretor tomou assento à mesa, cercado de professoras, e deu início à sessão. (...) O Padre-Diretor fazia considerações gerais sobre o uniforme de gala a ser adotado. – A gravatinha é azul? – perguntou uma das mães. – Meia três-quartos? – perguntou outra. – E o emblema no bolsinho? – perguntou uma terceira. Outra ainda, à minha frente, quis saber se tinha pesponto – mas sua pergunta não chegou a ser ouvida. Invejei-lhe a desenvoltura. Tive vontade de perguntar também alguma coisa, para tornar mais efetivo meu interesse de pai – mas temi aquelas mães todas voltando a cabeça, curiosas e surpreendidas, ante uma destoante voz de homem, meio gaguejante talvez de insegurança. Poderia também não ser ouvido – e se isso me acontecesse eu sumiria na cadeira. Além do mais, não me ocorria nada de mais prático para perguntar senão o que vinha a ser pesponto. (SABINO, 1999, p. 9) Desse modo, é possível identificar um elemento importante da cultura escolar, qual seja o predomínio das mulheres na educação primária, seja das professoras ou das próprias mães, nos textos literários analisados, ratificando estudos históricos nessa modalidade educativa. À guisa de conclusão O presente trabalho não pretendeu fazer uma análise histórica minuciosa dos textos literários escolhidos, tampouco relacionar questões de análise literária às “lembranças” sobre escola que serviram de mote aos autores na construção de suas “histórias inventadas”. Trata-se mais de um ensaio sobre a possibilidade de uso do texto literário como fonte de pesquisa historiográfica, levando em conta que “a literatura é uma das maneiras de expressar a vida através da linguagem”. (LOPES e GALVÃO, 2001, p.73) Acredita-se ser possível encontrar outros elementos de cultura escolar ou, até mesmo, aprofundar os apontados aqui, em uma leitura mais apurada dos textos, no entanto, para os limites deste artigo, essa é somente uma das muitas leituras possíveis dos contos e crônicas selecionados, tentando fazer um cruzamento dessas fontes com a cultura escolar e seus elementos como categoria de análise em História da Educação. Mais uma vez, destaca-se a importância e a validade da Literatura como fonte de pesquisa histórica, pois os contos e crônicas prescindem de pesquisa histórica para serem escritos, são muito mais inspirados pela vivência de seus autores. REFERÊNCIAS ARROIO, Leonardo. O Filho da Iniquidade. (In: Vários Autores. Histórias de Professores e Alunos – seleção de contos e dados biográficos de Manuel da Cunha Pereira. São Paulo: Scipione, 1999.) CERTEAU, M. (1984). A invenção do cotidiano (v.1 – Artes de Fazer). 4. ed. Tradução: Ephraim Ferreira Alves. 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