Artigo Completo

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A LITERATURA COMO FONTE PARA PESQUISAS SOBRE ESCOLA E
CULTURA ESCOLAR: POSSIBILIDADE DE ANÁLISE EM HISTÓRIA DA
EDUCAÇÃO
Rosana Sant’Ana de Morais
Colégio Militar de Campo Grande
[email protected]
RESUMO
Este texto tem como objetivo apresentar considerações sobre alguns modos de
representação da escola em contos e crônicas de autores do século XX na literatura
brasileira, a partir dos conceitos estudados na linha de pesquisa Escola, Cultura e
Disciplinas Escolares, do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMS. A escola,
nessa abordagem, é entendida o espaço formal de aprendizagem, o lugar em que a história
é construída em um determinado tempo e onde se conta essa história. Viñao Frago, Julia e
Pérez-Gómez, autores que pesquisam a cultura escolar, têm em comum o fato de
perceberem a escola como um lugar de produção e reprodução de cultura, com
características próprias no que se refere aos modos de pensar e de fazer, considerando em
suas pesquisas os tempos e os espaços escolares, os saberes e os sujeitos da escola e a
materialidade das práticas pedagógicas. Visto que tais práticas nem sempre estão
documentadas e arquivadas, as obras literárias tornam-se fontes importantes de pesquisa
nessa área. Essas obras, de maneira geral, apresentam muitos elementos da cultura de uma
determinada sociedade. No que se refere à cultura escolar, tais representações demonstram
o cotidiano das escolas e o comportamento dos indivíduos que as compõem. Quanto à
literatura, Lopes e Galvão (2001) apontam que “os autores não são somente testemunhas
de sua infância ou da idade adulta, mas são intérpretes sensíveis e apaixonados dos
processos familiares, escolares e sociais.” A partir desse referencial teórico, busca-se fazer
um exercício de análise, usando contos e crônicas de alguns autores brasileiros do séc. XX.
Essa opção foi pensada, porque esses gêneros textuais têm como fonte de inspiração
acontecimentos reais e retratam de maneira peculiar os modos de organização da escola.
Foram selecionados sete textos de cinco autores: Clarice Lispector, Leonardo Arroio,
Sérgio Porto, Fernando Sabino e Luis Fernando Veríssimo, escolhidos muito mais pela
temática que pelo autor ou época. São histórias sobre o comportamento de alunos e
professores em sala de aula, apresentadas de maneira bem humorada, como em “Santinho”
(VERÍSSIMO, 2001); ou mais intimista, como em “Os desastres de Sofia” (LISPECTOR,
1999); mas que representam de maneira sensível esse relacionamento tão particular, apesar
do ambiente social de mais de trinta pessoas em uma sala. Como resultados, identificam-se
traços comuns nas histórias e nas representações de escola narradas. Assim, foram
observadas algumas expressões da cultura escolar, em especial o modo de organização
(tempos e espaços escolares) de uma escola nova, que se reorganizava, e a
presença/influência das professoras primárias nas lembranças dos alunos.
PALAVRAS-CHAVE: Escola, cultura escolar, literatura.
Introdução
Este artigo é resultado de um estudo proposto pela disciplina “Escola na literatura”,
desenvolvida na linha de pesquisa Escola, Cultura e Disciplinas Escolares, do Programa de
Pós-Graduação em Educação da UFMS. Tal linha tem como proposta estudar a escola sob
o ponto de vista cultural, ou seja, utiliza a cultura escolar como categoria de análise e como
campo de investigação aos fatos históricos e sociológicos referentes à educação.
No campo sociológico educativo, as perspectivas que se abrem para a pesquisa
sobre escola versam sobre os contextos de socialização em seu interior; seus códigos
educacionais, a formação de professores e o desenvolvimento educacional, entendendo a
escola como espaço de formações culturais. Já na perspectiva histórica, os desafios são
trabalhar com novas metodologias, fazendo a história dos atores educativos e o reencontro
da experiência, dando “voz” aos sujeitos, os professores e alunos, em uma abordagem
textual; bem como a história das práticas escolares, das ideias pedagógicas e dos sistemas
educativos.
Desse modo, pesquisar a história da educação sob o ponto de vista da cultura torna
imprescindível o diálogo com outras áreas de conhecimento pois deve-se ter sempre vista a
noção de que não existe fenômeno educativo que não seja social e histórico. É nesse
contexto que está inserido este artigo, e sob esse ponto de vista objetiva tecer
considerações a respeito de alguns modos de representação da escola em contos e crônicas
de autores do século XX na literatura brasileira.
À guisa de introdução, faz-se necessária a apresentação de alguns autores cujas
ideias serão consideradas para o presente estudo. Segundo Raymond Williams a cultura é
parte ativa do processo social, que organiza os modos de produção e os valores da
sociedade, por isso mesmo, para defini-la, aponta como imprescindível levar em
consideração o contexto sócio-histórico de sua produção. Incorporam-se aí questões
relacionadas a processos íntimos, como a vida intelectual, a literatura e as artes, e também
aos processos gerais, diferentes modos de vida, a linguagem, a filosofia, entre outros.
Nesse sentido, é importante também a contribuição de Michel de Certeau, que teoriza a
cultura do homem ordinário (das pessoas comuns), ou o que é comum para o homem
através de suas práticas culturais. São práticas tidas como referência, tais como: as
instituições, as ideologias e os mitos, e que caracterizam as diferentes sociedades. Sendo
assim, cultura é o que a sociedade faz, sabe, consome, produz.
A escola, nessa abordagem, é entendida como produto e processo de uma
sociedade, o espaço formal de aprendizagem, o lugar em que a história é construída em um
determinado tempo e onde se conta essa história. Entender esse conceito é fundamental
para se debruçar em estudos que tenham por finalidade compreender a constituição das
práticas escolares.
São vários os autores que teorizam sobre o tema: Viñao Frago, Julia, Pérez Gómez,
dentre outros. Esses autores tem em comum o fato de perceberem a escola como um lugar
de produção e reprodução de cultura, com características próprias no que se refere aos
modos de pensar e de fazer, considerando em suas pesquisas os tempos e os espaços
escolares, os saberes e os sujeitos da escola e a materialidade das práticas pedagógicas.
Caminho difícil, visto que tais práticas nem sempre estão documentadas e arquivadas.
Dominique Julia (2001) fala em abrir a “caixa-preta” da escola para buscar entender o que
acontece nesse espaço tão particular. Ele explica a cultura escolar como um conjunto de
normas e práticas que definem, aquelas, condutas e saberes; e estas, a transmissão e a
incorporação de tais normas. Tanto uma quanto a outra, segundo ele, devem ser entendidas
de acordo com o contexto em que foram produzidas e sob qual finalidade.
Esse contexto varia segundo o tempo e sempre se relaciona aos sujeitos envolvidos
no fazer cotidiano da instituição. Antonio Viñao Frago (2000), numa direção bem próxima,
considera cultura escolar como um conjunto de ideias, princípios, critérios, normas e
práticas sedimentadas ao longo do tempo das instituições educativas. Ou seja, modos de
pensar e atuar. Assim sendo, todos os estudos que tem como chave de análise a cultura
escolar, veem a escola como uma instituição com características próprias e com um modo
de organização peculiar, que impõem modelos de referências de socialização incorporados
e legitimados por todos os seus atores.
Mas esse modelo não é estanque, principalmente porque os processos de
socialização são frequentemente reconfigurados, as relações entre os sujeitos são
modificadas, novas regras e novos modelos são estabelecidos e implantados, enfim, novos
tempos e novos espaços acabam por modificar o cotidiano escolar, mesmo que lentamente.
Como se dão essas mudanças e por quais caminhos é o que se busca explicar quando se
“entra” na escola e se analisa sua cultura.
A leitura de livros e artigos sobre as diferentes acepções de cultura e cultura
escolar, propiciam investigações sob vários pontos de vista dentro da escola: a análise dos
currículos, como forma de explicar os saberes e conhecimentos; os espaços e tempos nas
instituições escolares e a materialidade escolar (métodos de ensino, livro didático,
cadernos, anotações de alunos e professores, etc.).
No que diz respeito às fontes, nessa perspectiva de análise abrem-se algumas
possibilidades:
Tem havido um esforço, por exemplo, em sistematizar a discussão sobre
a utilização de determinadas fontes que, pouco a pouco, vêm sendo
incorporadas aos estudos, como a fotografia, a literatura, as estatísticas
escolares e até a legislação escolar, já tão utilizada anteriormente.
(LOPES e GALVÃO, 2001, p. 44)
Lopes e Galvão (2001) apontam que há uma grande dificuldade em se escrever uma
história da infância visto que não há registros escritos pelos pequenos sobre esse período
de sua vida. Há, no máximo, representações indiretas de adultos que escrevem suas
memórias da infância. Por esse motivo, busca-se cada vez mais pesquisar essa época tendo
como fonte as obras literárias.
Normalmente, tende-se a considerar que o texto literário é essencialmente estético e
não reflete a realidade. Levando em consideração, obviamente, os elementos da Literatura
(como elemento estético) e suas metodologias de análise, observa-se que há muito de
verdade nessa ficção, “os autores não são somente testemunhas de sua infância ou da idade
adulta, mas são intérpretes sensíveis e apaixonados dos processos familiares, escolares e
sociais.” (Lopes e Galvão, 2001, p.85).
Principalmente nos contos e crônicas, podem-se observar elementos do cotidiano
que, mesmo que inventados, partem de uma realidade possível. A partir dessa verificação,
o que pretendo, neste trabalho, é fazer uma análise de alguns contos e crônicas de autores
modernos, observando como se dá o relacionamento professor-aluno, em sala de aula, além
de averiguar outros elementos da cultura escolar dentro dos textos, tais como: o modo de
organização da escola e a participação da família.
Essas obras, de maneira geral, apresentam muitos elementos da cultura de uma
determinada sociedade, dentre eles, a do mundo infantil: brincadeiras, jogos, educação
formal e informal, etc. No que se refere à cultura escolar, tais representações demonstram o
cotidiano das escolas e o comportamento dos indivíduos que as compõem.
Foram selecionados sete textos de cinco autores: Clarice Lispector, Leonardo
Arroio, Sérgio Porto, Fernando Sabino e Luis Fernando Veríssimo, levando em
consideração as semelhanças entre elas no que diz respeito à temática e aos modos de
organização da escola, assim, foram privilegiados os textos que apresentaram um modelo
de escola mais recente, em que já se pode observar a formatação da escola moderna, ou
seja, escola como lugar, lócus arquitetônico, dotado de uma identidade sociocultural, com
espaços e tempos peculiares. São histórias sobre o comportamento de alunos e professores
em sala de aula, apresentadas de maneira bem humorada, como em “Santinho”, de Luis
Fernando Veríssimo; ou mais intimista, como em “Os desastres de Sofia”, de Clarice
Lispector; mas que representam de maneira sensível esse relacionamento tão particular,
apesar do ambiente social de mais de trinta pessoas em uma sala.
Os textos foram analisados buscando referências sobre dois elementos da cultura
escolar a saber: os espaços/tempos escolares e o predomínio das mulheres no ensino
primário.
... a escola é uma instituição da sociedade que possui suas próprias
formas de ação e de razão construídas no decorrer da sua história,
tomando por base os confrontos e os conflitos oriundos do choque entre
as determinações externas a ela e as suas tradições, as quais se refletem
na sua organização e sua gestão, nas suas práticas mais elementares e
cotidianas, nas salas de aula e nos pátios e corredores, em todo e qualquer
tempo, fracionado ou não. (SILVA, 2002, p.5)
Nesse sentido, pode-se dizer que existe uma cultura escolar formada, como define
Pérez Gómez, por “um cruzamento de culturas”, quais sejam, a cultura dos que gerenciam
e mantêm a escola e os pais, como um fator mais externo, e, participando ativamente das
atividades no ambiente escolar, professores e alunos; e que tais culturas “provocam
tensões, aberturas, restrições e contrastes na construção de significados.” (PÉREZ
GÓMEZ, 2001, p.12), pois, apesar dessas pessoas estarem inseridas num mesmo contexto
cultural, social, político e econômico, elas têm ou tiveram formações e experiências de
vida próprias, modos diferentes de interpretar esse meio e isso influencia tanto no fazer
pedagógico do professor quanto na aprendizagem do aluno, enfim, nas práticas e na
relação dos indivíduos dentro do espaço escolar, especialmente na sala de aula. Assim, é
importante destacar que as histórias são contadas sob o ponto de vista dos alunos.
Espaço/Tempo
Espaço e tempo constituem elementos-chave para a compreensão da cultura
escolar. Viñao-Frago (2000) considera que:
[...] esses lugares e tempos são determinados e determinam uns ou outros
modos de ensino e aprendizagem. [...] Em síntese, o espaço e o tempo
escolares não só conformam o clima e a cultura das instituições
educativas, mas também educam. (p. 99, tradução nossa)
Assim, todas as histórias escolhidas se dão em um prédio: a escola, espaço
destinado a aprender, onde a criança passa grande parte do tempo, dividida entre muito
estudo e um pouco de lazer. Normalmente, as figuras usadas para descrever os espaços
dentro das escolas indicam liberdade, diversão, brincadeiras, quando se retrata o recreio; e
adjetivos mais ásperos para a sala de aula, um claro indício da preferência dos alunos,
como se pode perceber em “Os desastres de Sofia”:
Eram quase dez horas da manhã, em breve soaria a sineta, do
recreio. Aquele colégio, alugado dentro de uns parques da cidade, tinha o
maior campo de recreio que eu já vi. Era tão bonito para mim quanto
seria para um esquilo ou um cavalo. Tinha árvores espalhadas, longas
descidas e subidas e estendida relva. Não acabava nunca. Tudo ali era
longe e grande, feito para pernas compridas de menina, com lugar para
montes de tijolo e madeira de origem ignorada, para moitas de azedas
begônias que nós comíamos, para sol e sombras onde as abelhas faziam
mel. Lá cabia um ar livre imenso. E tudo fora vivido por nós: já tínhamos
rolado de cada declive, intensamente cochichado atrás de cada monte de
tijolo, comido de várias flores e em todos os troncos havíamos a canivete
gravado datas, doces nomes feios e corações transpassados por flechas;
meninos e meninas ali faziam o seu mel. (LISPECTOR, 1999, p. 37)
Nunca havia percebido como era comprida a sala de aula; só
agora, ao lento passo do medo, eu via o seu tamanho real. Nem a minha
falta de tempo me deixara perceber até então como eram austeras e altas
as paredes; e duras, eu sentia a parede dura na palma da mão. Num
pesadelo, do qual sorrir fazia parte, eu mal acreditava poder alcançar o
âmbito da porta - de onde eu correria, ah como correria! a me refugiar no
meio de meus iguais, as crianças. (LISPECTOR, 1999, p. 39)
Identifica-se um lócus que sustenta seu funcionamento separando as pessoas em seus
papéis específicos, agrupando alunos em espaços controláveis como forma de realizar seu
trabalho de transmissão organizada de conhecimentos. Ao mesmo tempo, observa-se que
há também, nas memórias da narradora, o espaço da liberdade, próprio da cultura escolar
do aluno, o espaço/tempo do recreio, em que esse controle não é tão rigoroso e quase não é
possível. Esse tempo/espaço do recreio dos alunos é, aliás, uma das “caixas-pretas”
apontadas por Julia (1995) que ainda estão por ser desvendadas.
No que diz respeito ao tempo, os textos analisados neste trabalho datam da escola
“moderna”, do início do século XX, em que vários educadores procuraram introduzir
ideias e técnicas que tornassem o processo educativo mais eficiente e realizador para o
aluno, culminando em várias propostas de reforma, visando a tornar a escola mais
adequada aos novos tempos e às novas realidades. Esse movimento, conhecido
historicamente como Educação Nova ou Escola Nova, teve como uma das principais
contribuições a ideia do aluno como centro da aprendizagem e a valorização dos métodos
ativos.
O professor não podia mais ser aquele “todo-poderoso”, que era o único a falar, que
impunha castigos - inclusive físicos - aos alunos possuidores de alguma dificuldade de
aprendizagem ou considerados indisciplinados; mas sim, estimular uma maior participação
do aluno no aprendizado, valorizar o conhecimento de mundo trazido por cada criança e,
principalmente, ser o mediador entre o aluno e o conhecimento e não um mero transmissor.
Em “Vitor e seu irmão”, de Luis Fernando Veríssimo, a professora, com paciência, tenta
fazer isso:
Não era prevenção. A professora tinha o cuidado de tratar todos
os seus alunos da mesma maneira. Pelo menos se esforçava para isto.
Mas, com o Vitor, ela sempre estava com um pé atrás. O Vitinho era um
caso à parte.
_ Qual é a população do Brasil?
Um aluno levantou a mão e leu a resposta que estava no livro.
_Cento e vinte milhões.
O Vitor levantou a mão. A professora sentiu um vazio na barriga.
Lá vinha ele.
_ O que é Vitinho?
_ Cento e vinte e um milhões.
_ Por que Vitinho?
_ Minha mãe teve um filho esta semana.
Uma risadinha correu pela sala, mas o Vitor ficou sério. Estava
sempre sério.
_ Quantos filhos a sua mãe teve, Vitor?
_ Até agora?
_ Não, desta vez.
_ Um. Mas dos grandes.
Outra risadinha, como marola na superfície de um lago.
_ Então não são cento e vinte e um milhões. São cento e vinte
milhões e um.
E a professora escreveu o número no quadro-negro. Depois
apontou para o um no fim do número e disse:
_ Este aqui é o seu irmãozinho, Vitor. (VERÍSSIMO, 2001, p.18)
Interessante perceber como cada aluno recebe as informações repassadas pelo
professor de acordo com o seu conhecimento de mundo. Em salas heterogêneas, cada
indivíduo tem uma história de vida, uma experiência empírica que influenciará na sua
maneira de aprender e de interagir no grupo, de modo que não é possível dizer que um
aluno aprendeu a mesma coisa que o outro que assistiu a mesma aula, ou que um professor
apresentará o conteúdo exatamente da mesma forma em outra sala da mesma série.
Nessa nova abordagem de ensino, os professores têm que ter uma didática muito
bem planejada e buscar, a partir das indagações dos alunos ou assuntos da atualidade,
transmitir conhecimentos que extrapolem o conteúdo proposto no plano de aulas, como
vemos nos contos “Sementinhas” e “O pleito” de Luis Fernando Veríssimo:
_ Professora, sabe sexo explícito?
Pronto, pensou a professora. Chegou a hora. A turma não estava
na idade para educação sexual, mas quem sabe qual é a idade, hoje em
dia?
Professora, sabe sexo explícito?
_Eu já ouvi, Maurício. É sobre isso que nós vamos conversar
hoje. (VERÍSSIMO, 2001, p.33)
Como era época de eleição, a professora decidiu fazer um pleito
simulado na aula. (VERÍSSIMO, 2001, p.51)
Esses excertos focalizam, então, as práticas e os dispositivos de (re)invenção da
escola, instituída e sedimentada por determinadas práticas de ensino-aprendizagem e
determinados modelos pedagógicos, em tempos determinados, que foram percebidos pelos
autores dos contos e foram objetos de suas histórias.
Professores(as) Primários(as): Marcas para toda a Vida
Uma questão interessante, que salta aos olhos desde a primeria leitura das histórias,
principalmente as de humor, é que as lembranças se relacionam muito mais ao ensino
primário e, nesse contexto, às professoras. É recorrente a lembrança dos narradores sobre
sua infância na escola na figura do professor e da professora primários. Fica claro que o
mais marcante para eles foi a situação de sala de aula, vivida por duas peças-chave da
cultura escolar: professor e aluno.
Foi observado que são as histórias da infância que deixam mais recordações, boas
ou más, pois, nessa fase da vida, a criança tem uma relação mais profunda com seus
professores. Em “O filho da iniquidade”, de Leonardo Arroio, a relação entre Ernestinho e
D. Nazaré é de muita confiança e cumplicidade:
Olhava-me de certo modo, não escondendo a preferência que tinha por
mim. Geralmente os vinte alunos da sua classe, era eu quem melhor sabia
as lições. Gostava de estudar e dessa forma correspondia, dentro da
minha lógica infantil, àquela preferência de D. Nazaré. (...) D. Nazaré
gostava que eu fosse aplicado. (ARROIO, 1999, p.22).
Já em “Os Desastres de Sofia”, de Clarice Lispector, a narradora revela um
sentimento confuso de amor e ódio por seu professor:
Mas eu o exasperava tanto que se tornara doloroso para mim ser o objeto
de ódio daquele homem que de certo modo eu amava. Não amava como a
mulher que eu seria um dia, amava-o como uma criança que tenta
desastradamente proteger um adulto, com a cólera de quem ainda não foi
covarde e vê um homem forte de ombros tão curvos. Ele me irritava. De
noite, antes de dormir, ele me irritava. (LISPECTOR, 1999, p. 33).
E o mais importante: os alunos percebem os sentimentos do professor através de
suas atitudes. Eles também estão sempre avaliando seus professores e conseguem
identificar as tais marcas deixadas pela escola. Os narradores contam, dessa maneira, suas
histórias, na maioria das vezes com saudades e tirando suas próprias conclusões sobre esse
período, como se pode perceber nos trechos a seguir:
As duas histórias que eu contei não têm nenhuma importância. Mas olha
as cicatrizes. (VERÍSSIMO)
...E foi assim que no grande parque do colégio lentamente comecei a
aprender a ser amada, suportando o sacrifício de não merecer, apenas
para suavizar a dor de quem não ama. Não, esse foi somente um dos
motivos. É que os outros fazem outras histórias. (LISPECTOR)
Vim cumprir o castigo, vim inventar minhas histórias até o dia em que
Dona Margarida compreenda que cumpri minha obrigação. Então sim,
então poderei voltar feliz para o grupo escolar! (PORTO)
Sobretudo as professoras, mulheres, são as personagens mais presentes nas obras,
corroborando as abordagens históricas da História da Educação em que se percebe a
presença dominante das mulheres na escola primária.
A partir final do séc. XIX acontece o que se pode chamar de feminização do
ensino. O ofício de ensinar, principalmente no ensino primário passa a ser tarefa
essencialmente feminina, começando pela formação das professoras, sob a
responsabilidade das congregações religiosas.
Esse etos religioso se associa a aspectos da formação da mulher cunhados
pela cultura brasileira recém-saída da situação colonial, escravagista e,
associados, criam em regiões e situações diferentes tipos diferentes de
professoras e de práticas pedagógicas. Todas diferentes; todas muito
semelhantes. O exercício da profissão – ser professora – terá também
suas particularidades. Ser professora é diferente de ser professor. (LOPES
e GALVÃO, 2001, p.73).
Segundo Pessanha (2001), “o magistério primário é setor monopolizado pelas
mulheres desde a primeira República”. Além disso, havia sempre a ideia de associar-se a
professora à mãe, já que a escola também era considerada uma extensão da casa. Esse
pensamento ainda se mantém na escola moderna. Normalmente, quando se fala em escola
primária, a figura que se imagina é sempre da professora, feminina e maternal.
Nas obras estudadas, a lembrança dos alunos é sempre de uma professora. Em um
dos trechos de “Santinho”, de Luis Fernando Veríssimo, o narrador chama as professoras
de “pseudo-mães”, um traço evidente do que se está querendo mostrar:
Lembro-me com clareza de todas as minhas professoras, mas me
lembro de uma em particular.
(...)
Já outra professora quase destruiu para sempre qualquer
pretensão minha à originalidade literária.
(...)
Enfim, sobrevivi. No ginásio, todos os professores eram homens,
mas não lembro de nenhuma marca que algum deles tenha deixado. As
relações com as nossas pseudo-mães, no primário, eram muito mais
profundas. (VERÍSSIMO, 2001, p.13-15).
Mesmo quando há a descrição de um professor, como no conto de Clarice
Lispector, a impressão que se tem é que essa figura masculina fica um pouco deslocada,
fora de contexto, parece que está ali apenas por não ter conseguido algo melhor:
Qualquer um que tivesse sido seu trabalho anterior, ele o
abandonara, mudara de profissão, e passara pesadamente a ensinar no
curso primário: era tudo o que sabíamos dele.
O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos.
Em vez de nó na garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto
demais, óculos sem aro, um fio de ouro encimando o nariz grosso e
romano. E eu era atraída por ele, não amor, mas atraída pelo seu silêncio
e pela controlada impaciência que ele tinha em nos ensinar e que eu,
ofendida, adivinhara. Passei a me comportar mal na sala. Falava muito
alto, mexia com os colegas, interrompia a lição com piadinhas, até que
ele dizia, vermelho:
_Cale-se ou expulso a senhora da sala. (LISPECTOR, 2001,
p. 34)
O que se percebe é que, inclusive no que se refere à participação da família na
escola, a educação infantil é deixada sob a responsabilidade das mulheres. No conto
“Reunião de mães”, de Fernando Sabino, o pai se sente “constrangido”, por estar ali e por
não ter a mínima ideia sobre os assuntos abordados:
Na reunião de pais só havia mães. Eu me sentiria constrangido
em meio a tanta mulher, por mais simpáticas me parecessem, e acabaria
nem entrando – se não pudesse logo distinguir, espalhadas no auditório,
duas ou três presenças masculinas que partilhariam de ressabiado zelo
paterno.
Sentei-me numa das últimas filas, para não causar espécie à seleta
assembléia de progenitoras. Uma delas fazia tricô, e várias conversavam,
já confraternizadas de outras reuniões. O Padre-Diretor tomou assento à
mesa, cercado de professoras, e deu início à sessão.
(...)
O Padre-Diretor fazia considerações gerais sobre o uniforme de
gala a ser adotado. – A gravatinha é azul? – perguntou uma das mães. –
Meia três-quartos? – perguntou outra. – E o emblema no bolsinho? –
perguntou uma terceira. Outra ainda, à minha frente, quis saber se tinha
pesponto – mas sua pergunta não chegou a ser ouvida.
Invejei-lhe a desenvoltura. Tive vontade de perguntar também
alguma coisa, para tornar mais efetivo meu interesse de pai – mas temi
aquelas mães todas voltando a cabeça, curiosas e surpreendidas, ante uma
destoante voz de homem, meio gaguejante talvez de insegurança. Poderia
também não ser ouvido – e se isso me acontecesse eu sumiria na cadeira.
Além do mais, não me ocorria nada de mais prático para perguntar senão
o que vinha a ser pesponto. (SABINO, 1999, p. 9)
Desse modo, é possível identificar um elemento importante da cultura escolar, qual
seja o predomínio das mulheres na educação primária, seja das professoras ou das próprias
mães, nos textos literários analisados, ratificando estudos históricos nessa modalidade
educativa.
À guisa de conclusão
O presente trabalho não pretendeu fazer uma análise histórica minuciosa dos textos
literários escolhidos, tampouco relacionar questões de análise literária às “lembranças”
sobre escola que serviram de mote aos autores na construção de suas “histórias
inventadas”. Trata-se mais de um ensaio sobre a possibilidade de uso do texto literário
como fonte de pesquisa historiográfica, levando em conta que “a literatura é uma das
maneiras de expressar a vida através da linguagem”. (LOPES e GALVÃO, 2001, p.73)
Acredita-se ser possível encontrar outros elementos de cultura escolar ou, até
mesmo, aprofundar os apontados aqui, em uma leitura mais apurada dos textos, no entanto,
para os limites deste artigo, essa é somente uma das muitas leituras possíveis dos contos e
crônicas selecionados, tentando fazer um cruzamento dessas fontes com a cultura escolar e
seus elementos como categoria de análise em História da Educação.
Mais uma vez, destaca-se a importância e a validade da Literatura como fonte de
pesquisa histórica, pois os contos e crônicas prescindem de pesquisa histórica para serem
escritos, são muito mais inspirados pela vivência de seus autores.
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