Mortalidade por Doença Arterial Coronariana durante Epidemias de

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Internacional Journal of Cardiovascular Sciences. 2015;28(1):51-60
ARTIGO ORIGINAL
Mortalidade por Doença Arterial Coronariana durante Epidemias de Dengue
Mortality from Coronary Artery Disease during Dengue Epidemics
Marcio Lassance Martins de Oliveira1, Marco Antonio Mattos2, Marisa Santos3, Bernardo Rangel Tura1
Instituto Nacional de Cardiologia - Núcleo de Bioestatística e Bioinformática - Rio de Janeiro, RJ - Brasil
Instituto Nacional de Cardiologia / MS - Rio de Janeiro, RJ - Brasil
3
Instituto Nacional de Cardiologia - Núcleo de Avaliação de Tecnologias em Saúde - Rio de Janeiro, RJ - Brasil
1
2
Resumo
Fundamentos: A possibilidade de aumento da mortalidade por doença arterial coronariana (DAC) durante as
epidemias de dengue é frequentemente considerada para a criação de leitos cardiológicos extras.
Objetivo: Descrever uma possível associação entre a mortalidade por doença arterial coronariana e casos de
infecções pelo vírus da dengue no estado do Rio de Janeiro.
Métodos: Duas séries temporais foram construídas. A primeira de mortalidade por DAC incluiu 313 503 pacientes
entre janeiro de 1996 e dezembro de 2010. Os códigos de doenças utilizados foram todos aqueles de I20 a
I25 (CID-10). A segunda série incluiu 275 227 casos de dengue registrados entre janeiro de 1994 e dezembro de
2010. A metodologia de Box-Jenkins foi utilizada para a modelagem; para avaliar a associação foram usadas a
correlação cruzada e a análise de intervenção.
Resultados: A série temporal de mortalidade por DAC se encaixa melhor no modelo SARIMA (1,1,1) x (1,0,1)365,
com a sazonalidade anual refletida por aumento no número de casos nos meses de inverno. A análise de intervenção
mostrou ausência de influência de casos de dengue na mortalidade por DAC com coeficiente de correlação de 0,0018.
Conclusões: Não há correlação entre a mortalidade por DAC e o número de casos de dengue. A mortalidade por
DAC é mais elevada no inverno.
Palavras-chave: Estudos de séries temporais; Dengue; Doença das coronárias
Abstract (Full texts in English - www.onlineijcs.org)
Background: The possibility of increased mortality from coronary artery disease (CAD) during dengue epidemics is frequently
taken into account to create extra cardiologic beds.
Objective: Describe a possible association between the mortality from CAD and the reported cases of dengue virus infections in
the state of Rio de Janeiro.
Methods: Two time series were developed. The first series of CAD mortality comprised 313,503 patients between January 1996
and December 2010. The disease codes used were all from I20 to I25 (ICD-10). The second series comprised 275,227 cases of dengue
fever reported between January 1994 and December 2010. The Box-Jenkins methodology was employed for modeling the series; and
both cross correlation and intervention analysis were used to evaluate such association.
Results: The time series of CAD mortality best fits into the model SARIMA (1,1,1) x (1,0,1)365, where annual seasonality is reflected
by an increase in the number of cases in winter months. The intervention analysis showed absence of influence of cases of dengue
fever in CAD mortality with a correlation coefficient of 0.0018.
Conclusions: There is no correlation between CAD mortality and the number of dengue fever cases. CAD mortality is higher in
winter.
Keywords: Time series studies; Dengue; Coronary disease
Correspondência: Marcio Lassance Martins de Oliveira
Instituto Nacional de Cardiologia - Núcleo de Bioestatística e Bioinformática
Rua das Laranjeiras, 374 5º andar - Laranjeiras - 22240-006 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil
E-mail: [email protected]
DOI: 10.5935/2359-4802.20150008
Artigo recebido em 06/08/2014, aceito em 20/12/2014, revisado em 14/01/2015.
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Oliveira et al.
Mortalidade Cardiovascular em Epidemias de Dengue
Introdução
Dengue é definida como uma arbovirose causada pelo vírus
de mesmo nome e transmitida pelo mosquito do gênero
Aedes. Identificam-se, atualmente, quatro diferentes
sorotipos do vírus da dengue: DENV-1, DENV-2, DENV-3
e DENV-4, pertencentes à família flaviviridae, gênero
flavivirus1-3. Com maior incidência no sudeste asiático,
Índia e nos trópicos americanos, a dengue é classificada
pela Organização Mundial da Saúde como grande
ameaça à saúde mundial. Historicamente responsável
por epidemias restritas a países em desenvolvimento,
diz-se que, na realidade atual, percorre o mundo,
atingindo virtualmente todos os países de clima quente.
É considerada, pois, problema de saúde
pública, com grande impacto social e
ABREVIATURAS E
ACRÔNIMOS
econômico. A cada ano estima-se que
ocorram 50 a 100 milhões de novos casos
•CID-10 – Classificação
no mundo, dos quais 500 mil na sua
Internacional de Doenças e
forma grave.
Problemas Relacionados à
Saúde, 10ª edição
•DAC – Doença arterial
coronariana
•FAC – Função de
autocorrelação
•FACP – Função de
autocorrelação parcial
• OMS – Organização Mundial
da Saúde
•SESDEC – Secretaria de
Estado de Saúde e Defesa
Civil (atualmente denominada
Secretaria de Estado de
Saúde - SES)
•SIM – Sistema de
Informações sobre
Mortalidade
•SINAN – Sistema de
Informação de Agravos de
Notificação
Na literatura encontram-se poucos casos
sobre a associação entre mortalidade
cardiovascular e infecção pelo vírus da
dengue. Restringindo-se ainda essa
associação à doença arterial coronariana
(DAC), tais evidências se desvanecem
por completo. Vislumbram-se parcos
trabalhos relatando envolvimento
cardíaco direto em pacientes com
d e n g u e 4-7. T o d a v i a , d a d a a a l t a
prevalência da doença coronariana no
Brasil e a elevada incidência de dengue
no transcorrer de epidemias, há de se
inferir que a emergência da segunda terá
impacto na evolução da primeira.
Tendo como base tal raciocínio, criou-se
um preceito, quase dogmático,
entrementes não baseado em estudos epidemiológicos ou
de qualquer sorte, de que a mortalidade por doença
coronariana encontra-se elevada de forma espúria no
transcorrer de epidemias de dengue.
Tal fato se justifica pela premissa de que todo e qualquer
estado inflamatório agudo pode, em teoria, instabilizar
doença coronariana estável, quer por mudanças
anatômicas em placas ateroscleróticas quer por aumento
na demanda cardíaca frente a lesões fixas pré-existentes.
Infere-se, pois, que a mortalidade cardiovascular
encontrar-se-ia elevada nas épocas em que há significativo
aumento nos casos de dengue, doença que sabidamente
leva à síndrome de resposta inflamatória sistêmica3. Para
testar essa hipótese, foi confeccionado um estudo
ecológico com foco em modelagem de séries temporais,
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Artigo Original
a partir de dados extraídos do Sistema de Informações
sobre Mortalidade (SIM)8 e de dados gentilmente cedidos
aos autores pela Superintendência de Vigilância
Epidemiológica e Ambiental da Secretaria de Estado de
Saúde e Defesa Civil (SESDEC) do Rio de Janeiro. Como
objetivo secundário incluiu-se a descrição da série de
morte por doença coronariana entre janeiro de 1996 e
dezembro de 2010.
Métodos
O trabalho se constituiu de um estudo ecológico baseado
em duas séries históricas, englobando o período de 1996
a 2011. Fizeram parte do estudo as populações do estado
do Rio de Janeiro de ambos os sexos e >40 anos de idade.
Para esta pesquisa foram coletados dois conjuntos de
dados. O primeiro foi extraído do Sistema de Informações
sobre Mortalidade (SIM)8, referente à mortalidade por
DAC entre janeiro de 1996 e dezembro de 2010,
perfazendo um total de 15 anos. As causas de morte
foram definidas segundo CID-109, vigente desde 1996,
ano escolhido para início desta série. O segundo conjunto
de dados foi gentilmente cedido aos autores pela
Secretaria de Estado de Saúde através do Sistema de
Informação de Agravos de Notificação (SINAN) e foi
composto do número de notificações de dengue entre os
anos de janeiro de 1994 e dezembro de 2011. A opção por
este período se justifica pelo significativo aumento do
número de casos registrados a partir de 1996. Ressalta-se
que os dados utilizados são de domínio público e não
são identificados.
Seguiu-se à coleta dos dados, a modelagem e análise de
duas séries temporais, uma construída com os dados de
mortalidade por DAC e outra com casos notificados de
dengue. Por meio dessa análise, o comportamento das
séries é descrito, concernente a: tendência, ciclos e
variações sazonais, assim como a influência da segunda
série sobre a primeira.
Para modelagem e análise dos dados foi utilizado o
programa R, versão 2.15.11410.
Análise de séries temporais
Uma série temporal pode ser definida como um conjunto
de observações quantitativas de um determinado
fenômeno, distribuídas e ordenadas cronologicamente, em
um dado período de tempo. No caso dos estudos
populacionais, motivo primário desta análise, considera-se
o tempo como variável discreta.
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Artigo Original
Uma qualidade distintiva e intrínseca das séries
temporais reside na dependência serial das observações,
o que significa que cada observação é dependente das
anteriores. A essência e as propriedades dessa
dependência são essenciais para sua análise. O processo
organizado, lógico e sistemático de pesquisa construído
para expor de forma precisa e ao mesmo tempo
parcimoniosa os mecanismos geradores da série assim
como a influência sofrida por fatores externos são abaixo
descritos e arrogados aos estatísticos George Box e
Gwilym Jenkins. De nota, os métodos utilizados para
análise são apropriados apenas para sistemas de dados
discretos, em que observações ocorrem de forma
equidistante no tempo11.
Em geral, as séries temporais podem ser decompostas e
assim interpretadas como uma combinação dos seguintes
componentes:
1. Uma tendência ou movimento de longo prazo
2. As flutuações sobre a tendência, de maior ou menor
regularidade
3. Um ciclo determinístico (sazonalidade)
4. Um efeito residual, irregular ou aleatório
A tendência de uma série denota o comportamento da
série em torno de um valor médio. Se ela varia em torno
de um valor fixo, tem-se uma série estacionária; caso
contrário, a série poderá ser ascendente ou descendente,
conforme haja aumento ou decréscimo das médias. A
sazonalidade indica a repetição de um padrão em
intervalo fixo de tempo.
Se a previsão dos valores futuros de uma dada série
temporal pode ser feita de forma precisa, por uma função
matemática, tem-se uma série determinística. Neste caso
particular, dado um conjunto qualquer de observações,
tem-se que a observação subsequente será sempre igual
(precisão), não significando, logicamente, que ela seja
correta (acurada) – poder-se-ia encontrar sempre o
mesmo valor errado! Se, por outro lado, os valores são
descritos como a realização de um processo estocástico
(probabilístico), caracteriza-se a série como não
determinística ou estocástica. Desta forma, a série Zt, na
presente análise, será expressa, conforme abaixo
representada, por uma função de componentes
observáveis (tendência, sazonalidade) e de componente
aleatório:
Zt = f(Tt, St, et)
onde Tt é o componente de tendência; S t é o
componente de sazonalidade e e t o componente
aleatório)10-12.
Oliveira et al.
Mortalidade Cardiovascular em Epidemias de Dengue
Metodologia Box–Jenkins
O método escolhido para análise da série, conforme
descrito, implica o pressuposto da correlação temporal
entre cada termo da série e seus predecessores. Neste
cenário, a regressão linear de cada valor da série sobre
os seus valores passados constitui o ponto de partida de
todo o processo analítico.
Tal abordagem, pormenorizada no trabalho original de
George Box e Gwilym Jenkins10, marco no estudo de séries
temporais, envolve a inclusão da série em uma classe de
modelos denominada ARIMA (autorregressivo,
integrado e de médias móveis), a partir dos quais se
modelam dados temporalmente relacionados e se
proveem previsões11-13. A importância do trabalho de Box
e Jenkins, que posteriormente rendeu a esses modelos a
alcunha de “modelos Box-Jenkins” ou “modelagem
ARIMA”, é revisitada em áreas como economia, indústria
e ciências médicas14.
Análise de correlação cruzada
Na análise de correlação cruzada, presume-se que um
acontecimento excepcional, aqui denominado evento de
intervenção (casos notificados de dengue), poderia, de
algum modo, afetar a série em estudo (morte por DAC). Em
tais circunstâncias, utilizam-se modelos de função de
transferência, com o objetivo de se explorar, de forma
qualitativa e quantitativa, o impacto do efeito da intervenção.
A relação entre as duas séries de tempo é determinado pela
função de correlação cruzada. Essa função determina a
correlação entre duas séries em função do tempo.
Mortalidade por DAC
Construiu-se essa série temporal com dados diários das
mortes por doença coronariana, englobando o período
compreendido entre 1996 e 2011. Fizeram parte do estudo,
óbitos ocorridos no estado do Rio de Janeiro, de ambos
os sexos e com faixa etária >40 anos. As causas básicas de
morte - definidas conforme a Classificação Internacional
de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID)9 -,
seguem os códigos da 10ª edição. Os códigos referentes
às causas básicas dos óbitos selecionados no estudo
englobam síndromes coronarianas - CID 10: I20 a I25.
Os dados extraídos do SIM8 referentes à mortalidade
cardiovascular são originados da declaração de óbito,
preenchida pelo profissional médico que o atestou.
Utilizou-se para a modelagem da série a causa básica de
morte, definida conforme a Classificação Internacional
de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - CID 10ª
Revisão9 - como “doença ou lesão que iniciou a cadeia de
acontecimentos patológicos que conduziram diretamente à
morte ou as circunstâncias do acidente ou violência que
produziram a lesão fatal” 9.
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Mortalidade Cardiovascular em Epidemias de Dengue
Casos notificados de dengue
A série temporal de dengue foi construída a partir dos
dados gentilmente cedidos pelo SESDEC que contemplam
o número de casos notificados de dengue ao SINAN, por
dia, no estado do Rio de Janeiro. Para a construção da série,
aquelas notificações ocorridas em 29 de fevereiro foram
removidas. Todavia, a série de dengue, conforme descrição
por vir, é de difícil modelagem - a concentração dos casos
nos meses quentes do ano acrescidos à irregularidade na
ocorrência de epidemias a tornaria bastante laboriosa. Por
outro lado, sendo o foco deste estudo a influência das
epidemias de dengue na morte por doença coronariana
empregando a análise de intervenção, a modelagem da
série de dengue torna-se desnecessária.
Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(1):51-60
Artigo Original
uma média de 57,3±11,9 óbitos por dia. Para modelar a
série, foi necessário realização de uma diferenciação, a
fim de torná-la estacionária.
Série de DAC
Dando forma ao comportamento das séries temporais
abordadas, empregaram-se algumas técnicas gráficas. A
Figura 1 (abaixo e à esquerda) apresenta a mediana do
número total de casos por dia, do primeiro ao 365º dia,
durante os 15 anos da série, extraídos do boxplot diário.
Percebe-se que a série exibe sazonalidade anual, com
maior número de mortes ocorrendo nos meses de
inverno. O pico de mortalidade se dá em torno do 180o
ao 190º dia do ano, o que representa o início do inverno.
De nota, no Brasil, o inverno austral tem início com o
solstício de inverno - que ocorre por volta de 21 de junho
e termina em 23 de setembro com o equinócio de
primavera, ou seja, do 171o ao 263o dia do ano. O gráfico
de autocorrelação e a série temporal propriamente dita
também são vistos na Figura 1.
A série de mortalidade por doença coronariana englobou
5 475 dias, iniciando-se em 01 de janeiro de 1996 e
terminando em 31 de dezembro de 2010. O número total
de óbitos ocorridos neste período foi 313 503, perfazendo
Seguindo-se a diferenciação, os gráficos da função de
autocorrelação (FAC) e da função de autocorrelação
parcial (FACP) apontam para modelo ARIMA (1,1,1),
Resultados
Figura 1
Série temporal de morte por DAC
Acima: série temporal de morte por doença coronariana
Abaixo à esquerda, traçado das médias diárias extraídos do boxplot
Abaixo à direita: função de autocorrelação – lag em anos
DAC - doença arterial coronariana
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Artigo Original
conforme a Figura 2. Para análise da sazonalidade,
empregam-se a FAC e a FACP com lag de 365 dias
(Figura 3). O modelo sugerido pela análise dos correlogramas
é um SARMA (1,1) com sazonalidade anual. Em resumo, o
modelo que melhor se adequou, de forma parcimoniosa,
aos dados de morte por DAC foi um SARIMA (1,1,1) x
(1,0,1)365. A série exibe sazonalidade anual, com o número
maior de óbitos no inverno. Decompondo-a, há tendência
Oliveira et al.
Mortalidade Cardiovascular em Epidemias de Dengue
para redução do número de mortes por doença coronariana
até o ano 2000, a partir do qual se vê subsequente aumento
da taxa anual de mortalidade (Figura 4).
Aplicando-se o teste de Ljung-Box ao resíduo da série
decomposta, obtém-se valor de p=0,9216, o que mostra que
o modelo é adequado, excluindo-se a hipótese de dependência
temporal - o resíduo se assemelha ao ruído branco.
Figura 2
Função de autocorrelação (FAC) e de autocorrelação parcial da série de morte por DAC - lag em dias
DAC - doença arterial coronariana
Figura 3
Função de autocorrelação (FAC) e de autocorrelação parcial da série de morte por DAC - lag em 365 dias
DAC - doença arterial coronariana
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Mortalidade Cardiovascular em Epidemias de Dengue
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Artigo Original
Figura 4
Decomposição da série em componentes sazonais, tendência e aleatório
Série temporal de casos notificados de dengue
A série de dengue foi construída a partir de 6 205 casos
distribuídos de 01 de janeiro de 1994 a 31 de dezembro
de 2010. Observando-se a Figura 5 percebe-se que, dentro
do período de tempo estudado, surgem em 1995 os
primeiros casos notificados de dengue. A primeira
grande epidemia registrada, com cerca de 900 casos
notificados, ocorre em 1998 - nesse mesmo ano descrevese a grande expansão da doença em nível mundial. No
boxplot, construído com o número de casos de cada dia
do ano, contempla-se o comportamento da doença: a
quase totalidade dos casos ocorre nos meses mais
Figura 5
Série temporal de dengue
quentes do ano, de janeiro a maio, com pico no final de
fevereiro e início de março (Figura 6). Dessa forma, há
determinados meses do ano em que não se tem qualquer
notificação da doença, de forma que a série atinge a linha
de base.
Análise de intervenção
A análise de intervenção (Tabela 1) revela a ausência de
influência dos casos de dengue na série de morte por DAC.
Ao se considerar os valores de ajuste da série de morte
por DAC com e sem a influência da série de notificação
de casos de dengue, percebe-se pequena variação.
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Artigo Original
Oliveira et al.
Mortalidade Cardiovascular em Epidemias de Dengue
Figura 6
Boxplot dos casos notificados de dengue em cada um dos dias do ano
Tabela 1
Análise de intervenção
Série DAC (sem influência da dengue)
Erro-padrão
AR
MA
SAR
SMA
s2
log
likelihood
AIC
0,0558
-0,9423
-0,0980
0,0944
129,6
-21 081,58
42 171,16
0,0150
0,0064
0,2812
0,2722
Série DAC (com influência da dengue)
Erro-padrão
AR
MA
SAR
SMA
s2
log
likelihood
AIC
0,0553
-0,9415
-0,0995
0,0959
129,5
-21 081,08
42 172,17
0,0151
0,0065
0,2502
0,2421
AR - autorregressivo; MA - média móvel; SAR - autorregressivo sazonal; SMA - média móvel sazonal; AIC - Akaike information
criterion; s2 - variância ; DAC - doença arterial coronariana
Discussão
Manifestações cardiovasculares em pacientes com
dengue vêm historicamente sendo descritas desde a
década de 1960. A síndrome do choque relacionada à
dengue, com colapso cardiovascular e depressão
miocárdica, já era bem conhecida e pouco estudada. No
ano de 1972, Ivor Obeyesekere e Yvette Hermon 6
descreveram 10 casos de miocardite aguda causados por
arbovirus na cidade de Colombo, Sri Lanka (à época,
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Oliveira et al.
Mortalidade Cardiovascular em Epidemias de Dengue
Ceilão), especificamente os vírus da dengue e o vírus da
febre chikungunya. Nessa pormenorizada descrição
caso a caso, pacientes com alterações clínicas,
eletrocardiográficas e radiológicas que levaram ao
diagnóstico de miocardite, tiveram elevada titulação de
anticorpos específicos do arbovirus, afora história
pregressa de síndrome aguda febril6. De fato, tal relato
sugere potencial tropismo cardíaco do vírus da dengue,
em circunstâncias específicas.
Ainda no Sri Lanka, durante epidemia nos anos de
2004-2005, foi realizado estudo observacional de
133 indivíduos com dengue no Peradeniya Teaching
Hospital, localizado na província central de mesmo nome,
considerada pela saúde pública área endêmica. Em tal
levantamento, o envolvimento cardíaco, definido como
elevação de enzimas cardíacas, de nota a troponina e a
CK-MB como marcadores de injúria miocárdica e o
NT-proBNP como marcador de disfunção miocárdica,
ocorreu em até 20% dos casos (troponina T se elevou em
0,8%, CK-MB em 12,8% e NT-proBNP em 18,9%). Não
houve, na série descrita, casos de choque, assim como
não foi descrita história pregressa de doença cardíaca nos
pacientes estudados. Afora elevação de enzimas
cardíacas, especialmente aquelas que expressam necrose
miocárdica, têm-se ainda outras manifestações
consideradas atípicas, que abrangem distúrbios de ritmo
(bloqueios atrioventriculares, fibrilação atrial e disfunção
do nó sinusal), pericardite e miopericardite7.
Em oposição aos casos descritos de provável envolvimento
miocárdico pelo vírus, não foram encontradas referências
no que se refere às manifestações específicas de DAC em
pacientes com dengue. Não obstante a ocorrência de
epidemias cada vez mais acentuadas, a possibilidade de
tal correlação torna-se mais palpável15.
Dessa forma, o constructo teórico a ser testado baseou-se
na possibilidade de a dengue provocar síndrome
coronariana aguda, quer por ação direta nos sistema
imunológico-hemostático quer por desestabilização de
doença pré-existente. Uma terceira possibilidade, embora
menos provável, seria ação direta do vírus causando
arterite coronariana. De qualquer forma, tal associação,
até o momento, não foi descrita.
Para testar a hipótese de que as epidemias de dengue
associam-se ao aumento na mortalidade cardiovascular, foi
realizado um estudo ecológico com modelagem de séries
temporais (estudo exploratório). Para tal foram analisados
dados outrora coletados, uns disponíveis nos sites do
Datasus 8, outros gentilmente cedidos pela Secretaria
Estadual de Vigilância Sanitária, conforme informado.
Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(1):51-60
Artigo Original
Duas formas de resposta imune, que de certa forma
caminham por vias distintas, são passíveis de advir à
infecção pelo vírus da dengue. A primeira forma previne
a infecção e propicia a recuperação. A segunda,
relacionada à síndrome hemorrágica e à síndrome do
choque da dengue, é geralmente observada em
indivíduos com nova infecção. Nesse caso, os anticorpos
desenvolvidos na infecção de um sorotipo podem não
neutralizar a infecção causada por um segundo vírus, de
diferente sorotipo, paradoxalmente amplificando a
infecção. Indivíduos com síndrome hemorrágica e
síndrome do choque da dengue possuem macrófagos
maciçamente infectados, causando elevada viremia. Por
sua vez, os macrófagos ativados e destruídos por células
citotóxicas liberam tromboplastina e proteases ativadoras
do complemento, desencadeando fenômenos de
coagulação e lise celular17. Seria possível que tal cenário
propiciasse eventos que, em última análise, culminariam
com trombose coronariana ou ruptura de placa
aterosclerótica? A análise de intervenção aplicada às
séries temporais não confirmou associação entre
epidemias de dengue e mortalidade por doença
coronariana. Os parâmetros da série de mortalidade por
DAC, com ou sem influência da série de dengue, são
similares.
Ainda que não fosse objetivo primário do presente
trabalho, a modelagem e descrição da série temporal da
mortalidade por DAC no estado do Rio de Janeiro
descreveu peculiar comportamento no período estudado.
Certamente, a compreensão dos parâmetros descritores
ajudaria a compreender seus mecanismos geradores e,
em última análise, a planejar ações concretas e
coordenadas de saúde pública.
O primeiro comportamento digno de nota, a sazonalidade
anual, mostra pico de mortalidade nos meses de inverno,
a exemplo do que já fora descrito em outros países. Na
realidade, tais variações sazonais foram associadas tanto
à mortalidade de doença arterial coronariana quanto à
de doença cerebrovascular - na Inglaterra e no País de
Gales, o pico hibernal de mortalidade das doenças
cardiovasculares é responsável por 2 mil mortes
adicionais por ano18-20. De fato, a possibilidade de relação
entre temperatura e mortalidade por DAC também tem
suporte nos dados que associam aumento de mortalidade
à maior distância do equador, o que ocorre na Inglaterra,
Estados Unidos, Canadá e Austrália. Seguindo-se na
mesma direção, dados analisados de 1 474 hospitais
americanos no National Registry of Myocardial Infarction,
englobando o período de 1994 a 1996, revelaram aumento
de 53% na incidência de infarto agudo do miocárdio nos
meses de inverno em relação aos meses de verão21.
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Artigo Original
Oliveira et al.
Mortalidade Cardiovascular em Epidemias de Dengue
Um segundo comportamento não antecipado da série,
de maior relevância epidemiológica, deve-se à ausência,
dentro do período analisado entre 1996 e 2011, de
decréscimo da tendência de mortalidade. Por um lado,
poder-se-ia explicá-lo simplesmente pelo crescimento
populacional, especialmente de indivíduos com
idade >40 anos. Por outro lado, comportamento similar
já havia sido descrito nos Estados Unidos21. Dados
apresentados por instituições governamentais e publicados
pelo Comitê de Estatística da American Heart Association
(AHA) 22 apontam para a desaceleração na taxa de
decréscimo da mortalidade por DAC que, a princípio,
parecia estar em consonância ao próprio desenvolvimento
socioeconômico do país nas últimas três décadas. Esse
efeito que, ao que parece, está ocorrendo em diversos
países desenvolvidos tem levado a gastos com ações de
saúde direcionadas à prevenção primária, sobretudo no
controle dos fatores de risco já conhecidos. No Brasil, em
regiões com maior crescimento econômico como São Paulo
e Rio de Janeiro, um aumento da taxa de mortalidade
ocorreu posteriormente à década de 2000, em paralelo à
melhoria das condições de vida da população23. Novas
análises epidemiológicas serão necessárias no intuito de
descrever associações com as prevalências de fatores de
risco, notadamente tabagismo, diabetes e dislipidemia.
infere-se que os casos não notificados de dengue
incluiriam, na sua maioria, aqueles não diagnosticados,
possivelmente por serem pouco sintomáticos ou
assintomáticos. Seriam, pois, ocorrências com menor
potencial teórico de causar morte por causa cardiovascular.
Por outro lado, doenças que eventualmente possam ser
diagnosticadas e notificadas como dengue, a citar
leptospirose, febre amarela, leucemia, têm, teoricamente,
o potencial de desencadear doença coronariana instável.
Nesse âmbito, a aplicação de métodos epidemiológicos
de estudo podem nortear ações do SUS, tornando-as mais
efetivas e eficazes. Tentar-se-ia entender, por exemplo, a
piora nas taxas de mortalidade por cardiopatia isquêmica
nos países desenvolvidos como jogo de forças entre o
desenvolvimento social e tecnológico de um lado e do
maciço recrutamento de novos fumantes entre as
mulheres e jovens aliados à prevalência de diabéticos,
dislipidêmicos e “novos” sedentários.
Conclusões
Uma limitação que poderia ser sugerida, inerente à coleta
dos dados analisados, refere-se à qualidade na notificação
da dengue ao SINAN. Os casos não complicados de
dengue, pertencentes ao grupo de doenças do anexo (lista
de notificação compulsória - LNC) da Portaria GM/MS
nº 104 de 25/1/201124 (Portaria vigente à época da coleta
de dados, que foi revogada pelo art 14 da Portaria GM/MS
nº 1 271 de 6/6/2014), são notificados e registrados no
SINAN obedecendo às normas e rotinas estabelecidas
pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da
Saúde (MS)24. Por outro lado, as doenças de anexo II da
referida portaria (lista de notificação compulsória
imediata - LNCI) contemplam os casos de dengue com
complicações, síndrome do choque da dengue, febre
hemorrágica da dengue, óbito por dengue e casos de
infecção por DENV-4 ocorrido em regiões sem transmissão
endêmica por esse sorotipo, o que implica a imediata
notificação. Olhando-se com minúcia tal informação,
A metodologia aqui empregada testa a hipótese em nível
abrangente, pois os dados advêm de observações realizadas
de fenômenos determinados em uma população pertencente
a uma área geograficamente definida. Conhece-se o
número total de indivíduos expostos e o número total de
casos dentro de cada grupo, mas não se tem conhecimento
do número de casos expostos. O desenho de séries
temporais, amplamente utilizado na econometria e na
meteorologia, é aqui utilizado na análise da evolução da
taxa de mortalidade por DAC, ao longo de uma linha
temporal, avaliando o impacto de uma intervenção - casos
notificados de dengue. Uma limitação atribuída aos
estudos desse tipo se traduz na impossibilidade de se
transferir a estimativa de efeito ecológico, a associação das
variáveis quando existente, ao nível individual.
A análise das séries temporais não demonstrou associação
entre notificação de casos de dengue e morte por doença
coronariana. Entretanto, a análise da série de morte por
doença arterial coronariana mostra, de forma similar a
outros países do mundo, sazonalidade anual com maior
número de casos nos meses de inverno. Há ainda uma
tendência ao aumento no número de óbitos por doença
coronariana, inesperada para o padrão socioeconômico
do estado do Rio de Janeiro.
Agradecimentos
Ao Dr. Alexandre Otávio Chieppe, da Superintendência de
Vigilância Epidemiológica e Ambiental da Secretaria de Estado
de Saúde e Defesa Civil (SESDEC) do Rio de Janeiro, que
gentilmente cedeu para este estudo os dados de notificação de
dengue do estado do Rio de Janeiro.
Potencial Conflito de Interesses
Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.
Fontes de Financiamento
O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
Vinculação Acadêmica
Este artigo representa parte da dissertação de Mestrado de
Marcio Lassance Martins de Oliveira pela Fundação Oswaldo
Cruz.
59
60
Oliveira et al.
Mortalidade Cardiovascular em Epidemias de Dengue
Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(1):51-60
Artigo Original
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nº 104 de 25/1/2011. Define as terminologias adotadas em
legislação nacional, conforme o disposto no Regulamento
Sanitário Internacional 2005 (RSI 2005).
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