51 Internacional Journal of Cardiovascular Sciences. 2015;28(1):51-60 ARTIGO ORIGINAL Mortalidade por Doença Arterial Coronariana durante Epidemias de Dengue Mortality from Coronary Artery Disease during Dengue Epidemics Marcio Lassance Martins de Oliveira1, Marco Antonio Mattos2, Marisa Santos3, Bernardo Rangel Tura1 Instituto Nacional de Cardiologia - Núcleo de Bioestatística e Bioinformática - Rio de Janeiro, RJ - Brasil Instituto Nacional de Cardiologia / MS - Rio de Janeiro, RJ - Brasil 3 Instituto Nacional de Cardiologia - Núcleo de Avaliação de Tecnologias em Saúde - Rio de Janeiro, RJ - Brasil 1 2 Resumo Fundamentos: A possibilidade de aumento da mortalidade por doença arterial coronariana (DAC) durante as epidemias de dengue é frequentemente considerada para a criação de leitos cardiológicos extras. Objetivo: Descrever uma possível associação entre a mortalidade por doença arterial coronariana e casos de infecções pelo vírus da dengue no estado do Rio de Janeiro. Métodos: Duas séries temporais foram construídas. A primeira de mortalidade por DAC incluiu 313 503 pacientes entre janeiro de 1996 e dezembro de 2010. Os códigos de doenças utilizados foram todos aqueles de I20 a I25 (CID-10). A segunda série incluiu 275 227 casos de dengue registrados entre janeiro de 1994 e dezembro de 2010. A metodologia de Box-Jenkins foi utilizada para a modelagem; para avaliar a associação foram usadas a correlação cruzada e a análise de intervenção. Resultados: A série temporal de mortalidade por DAC se encaixa melhor no modelo SARIMA (1,1,1) x (1,0,1)365, com a sazonalidade anual refletida por aumento no número de casos nos meses de inverno. A análise de intervenção mostrou ausência de influência de casos de dengue na mortalidade por DAC com coeficiente de correlação de 0,0018. Conclusões: Não há correlação entre a mortalidade por DAC e o número de casos de dengue. A mortalidade por DAC é mais elevada no inverno. Palavras-chave: Estudos de séries temporais; Dengue; Doença das coronárias Abstract (Full texts in English - www.onlineijcs.org) Background: The possibility of increased mortality from coronary artery disease (CAD) during dengue epidemics is frequently taken into account to create extra cardiologic beds. Objective: Describe a possible association between the mortality from CAD and the reported cases of dengue virus infections in the state of Rio de Janeiro. Methods: Two time series were developed. The first series of CAD mortality comprised 313,503 patients between January 1996 and December 2010. The disease codes used were all from I20 to I25 (ICD-10). The second series comprised 275,227 cases of dengue fever reported between January 1994 and December 2010. The Box-Jenkins methodology was employed for modeling the series; and both cross correlation and intervention analysis were used to evaluate such association. Results: The time series of CAD mortality best fits into the model SARIMA (1,1,1) x (1,0,1)365, where annual seasonality is reflected by an increase in the number of cases in winter months. The intervention analysis showed absence of influence of cases of dengue fever in CAD mortality with a correlation coefficient of 0.0018. Conclusions: There is no correlation between CAD mortality and the number of dengue fever cases. CAD mortality is higher in winter. Keywords: Time series studies; Dengue; Coronary disease Correspondência: Marcio Lassance Martins de Oliveira Instituto Nacional de Cardiologia - Núcleo de Bioestatística e Bioinformática Rua das Laranjeiras, 374 5º andar - Laranjeiras - 22240-006 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil E-mail: [email protected] DOI: 10.5935/2359-4802.20150008 Artigo recebido em 06/08/2014, aceito em 20/12/2014, revisado em 14/01/2015. 52 Oliveira et al. Mortalidade Cardiovascular em Epidemias de Dengue Introdução Dengue é definida como uma arbovirose causada pelo vírus de mesmo nome e transmitida pelo mosquito do gênero Aedes. Identificam-se, atualmente, quatro diferentes sorotipos do vírus da dengue: DENV-1, DENV-2, DENV-3 e DENV-4, pertencentes à família flaviviridae, gênero flavivirus1-3. Com maior incidência no sudeste asiático, Índia e nos trópicos americanos, a dengue é classificada pela Organização Mundial da Saúde como grande ameaça à saúde mundial. Historicamente responsável por epidemias restritas a países em desenvolvimento, diz-se que, na realidade atual, percorre o mundo, atingindo virtualmente todos os países de clima quente. É considerada, pois, problema de saúde pública, com grande impacto social e ABREVIATURAS E ACRÔNIMOS econômico. A cada ano estima-se que ocorram 50 a 100 milhões de novos casos •CID-10 – Classificação no mundo, dos quais 500 mil na sua Internacional de Doenças e forma grave. Problemas Relacionados à Saúde, 10ª edição •DAC – Doença arterial coronariana •FAC – Função de autocorrelação •FACP – Função de autocorrelação parcial • OMS – Organização Mundial da Saúde •SESDEC – Secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil (atualmente denominada Secretaria de Estado de Saúde - SES) •SIM – Sistema de Informações sobre Mortalidade •SINAN – Sistema de Informação de Agravos de Notificação Na literatura encontram-se poucos casos sobre a associação entre mortalidade cardiovascular e infecção pelo vírus da dengue. Restringindo-se ainda essa associação à doença arterial coronariana (DAC), tais evidências se desvanecem por completo. Vislumbram-se parcos trabalhos relatando envolvimento cardíaco direto em pacientes com d e n g u e 4-7. T o d a v i a , d a d a a a l t a prevalência da doença coronariana no Brasil e a elevada incidência de dengue no transcorrer de epidemias, há de se inferir que a emergência da segunda terá impacto na evolução da primeira. Tendo como base tal raciocínio, criou-se um preceito, quase dogmático, entrementes não baseado em estudos epidemiológicos ou de qualquer sorte, de que a mortalidade por doença coronariana encontra-se elevada de forma espúria no transcorrer de epidemias de dengue. Tal fato se justifica pela premissa de que todo e qualquer estado inflamatório agudo pode, em teoria, instabilizar doença coronariana estável, quer por mudanças anatômicas em placas ateroscleróticas quer por aumento na demanda cardíaca frente a lesões fixas pré-existentes. Infere-se, pois, que a mortalidade cardiovascular encontrar-se-ia elevada nas épocas em que há significativo aumento nos casos de dengue, doença que sabidamente leva à síndrome de resposta inflamatória sistêmica3. Para testar essa hipótese, foi confeccionado um estudo ecológico com foco em modelagem de séries temporais, Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(1):51-60 Artigo Original a partir de dados extraídos do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM)8 e de dados gentilmente cedidos aos autores pela Superintendência de Vigilância Epidemiológica e Ambiental da Secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil (SESDEC) do Rio de Janeiro. Como objetivo secundário incluiu-se a descrição da série de morte por doença coronariana entre janeiro de 1996 e dezembro de 2010. Métodos O trabalho se constituiu de um estudo ecológico baseado em duas séries históricas, englobando o período de 1996 a 2011. Fizeram parte do estudo as populações do estado do Rio de Janeiro de ambos os sexos e >40 anos de idade. Para esta pesquisa foram coletados dois conjuntos de dados. O primeiro foi extraído do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM)8, referente à mortalidade por DAC entre janeiro de 1996 e dezembro de 2010, perfazendo um total de 15 anos. As causas de morte foram definidas segundo CID-109, vigente desde 1996, ano escolhido para início desta série. O segundo conjunto de dados foi gentilmente cedido aos autores pela Secretaria de Estado de Saúde através do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) e foi composto do número de notificações de dengue entre os anos de janeiro de 1994 e dezembro de 2011. A opção por este período se justifica pelo significativo aumento do número de casos registrados a partir de 1996. Ressalta-se que os dados utilizados são de domínio público e não são identificados. Seguiu-se à coleta dos dados, a modelagem e análise de duas séries temporais, uma construída com os dados de mortalidade por DAC e outra com casos notificados de dengue. Por meio dessa análise, o comportamento das séries é descrito, concernente a: tendência, ciclos e variações sazonais, assim como a influência da segunda série sobre a primeira. Para modelagem e análise dos dados foi utilizado o programa R, versão 2.15.11410. Análise de séries temporais Uma série temporal pode ser definida como um conjunto de observações quantitativas de um determinado fenômeno, distribuídas e ordenadas cronologicamente, em um dado período de tempo. No caso dos estudos populacionais, motivo primário desta análise, considera-se o tempo como variável discreta. Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(1):51-60 Artigo Original Uma qualidade distintiva e intrínseca das séries temporais reside na dependência serial das observações, o que significa que cada observação é dependente das anteriores. A essência e as propriedades dessa dependência são essenciais para sua análise. O processo organizado, lógico e sistemático de pesquisa construído para expor de forma precisa e ao mesmo tempo parcimoniosa os mecanismos geradores da série assim como a influência sofrida por fatores externos são abaixo descritos e arrogados aos estatísticos George Box e Gwilym Jenkins. De nota, os métodos utilizados para análise são apropriados apenas para sistemas de dados discretos, em que observações ocorrem de forma equidistante no tempo11. Em geral, as séries temporais podem ser decompostas e assim interpretadas como uma combinação dos seguintes componentes: 1. Uma tendência ou movimento de longo prazo 2. As flutuações sobre a tendência, de maior ou menor regularidade 3. Um ciclo determinístico (sazonalidade) 4. Um efeito residual, irregular ou aleatório A tendência de uma série denota o comportamento da série em torno de um valor médio. Se ela varia em torno de um valor fixo, tem-se uma série estacionária; caso contrário, a série poderá ser ascendente ou descendente, conforme haja aumento ou decréscimo das médias. A sazonalidade indica a repetição de um padrão em intervalo fixo de tempo. Se a previsão dos valores futuros de uma dada série temporal pode ser feita de forma precisa, por uma função matemática, tem-se uma série determinística. Neste caso particular, dado um conjunto qualquer de observações, tem-se que a observação subsequente será sempre igual (precisão), não significando, logicamente, que ela seja correta (acurada) – poder-se-ia encontrar sempre o mesmo valor errado! Se, por outro lado, os valores são descritos como a realização de um processo estocástico (probabilístico), caracteriza-se a série como não determinística ou estocástica. Desta forma, a série Zt, na presente análise, será expressa, conforme abaixo representada, por uma função de componentes observáveis (tendência, sazonalidade) e de componente aleatório: Zt = f(Tt, St, et) onde Tt é o componente de tendência; S t é o componente de sazonalidade e e t o componente aleatório)10-12. Oliveira et al. Mortalidade Cardiovascular em Epidemias de Dengue Metodologia Box–Jenkins O método escolhido para análise da série, conforme descrito, implica o pressuposto da correlação temporal entre cada termo da série e seus predecessores. Neste cenário, a regressão linear de cada valor da série sobre os seus valores passados constitui o ponto de partida de todo o processo analítico. Tal abordagem, pormenorizada no trabalho original de George Box e Gwilym Jenkins10, marco no estudo de séries temporais, envolve a inclusão da série em uma classe de modelos denominada ARIMA (autorregressivo, integrado e de médias móveis), a partir dos quais se modelam dados temporalmente relacionados e se proveem previsões11-13. A importância do trabalho de Box e Jenkins, que posteriormente rendeu a esses modelos a alcunha de “modelos Box-Jenkins” ou “modelagem ARIMA”, é revisitada em áreas como economia, indústria e ciências médicas14. Análise de correlação cruzada Na análise de correlação cruzada, presume-se que um acontecimento excepcional, aqui denominado evento de intervenção (casos notificados de dengue), poderia, de algum modo, afetar a série em estudo (morte por DAC). Em tais circunstâncias, utilizam-se modelos de função de transferência, com o objetivo de se explorar, de forma qualitativa e quantitativa, o impacto do efeito da intervenção. A relação entre as duas séries de tempo é determinado pela função de correlação cruzada. Essa função determina a correlação entre duas séries em função do tempo. Mortalidade por DAC Construiu-se essa série temporal com dados diários das mortes por doença coronariana, englobando o período compreendido entre 1996 e 2011. Fizeram parte do estudo, óbitos ocorridos no estado do Rio de Janeiro, de ambos os sexos e com faixa etária >40 anos. As causas básicas de morte - definidas conforme a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID)9 -, seguem os códigos da 10ª edição. Os códigos referentes às causas básicas dos óbitos selecionados no estudo englobam síndromes coronarianas - CID 10: I20 a I25. Os dados extraídos do SIM8 referentes à mortalidade cardiovascular são originados da declaração de óbito, preenchida pelo profissional médico que o atestou. Utilizou-se para a modelagem da série a causa básica de morte, definida conforme a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - CID 10ª Revisão9 - como “doença ou lesão que iniciou a cadeia de acontecimentos patológicos que conduziram diretamente à morte ou as circunstâncias do acidente ou violência que produziram a lesão fatal” 9. 53 54 Oliveira et al. Mortalidade Cardiovascular em Epidemias de Dengue Casos notificados de dengue A série temporal de dengue foi construída a partir dos dados gentilmente cedidos pelo SESDEC que contemplam o número de casos notificados de dengue ao SINAN, por dia, no estado do Rio de Janeiro. Para a construção da série, aquelas notificações ocorridas em 29 de fevereiro foram removidas. Todavia, a série de dengue, conforme descrição por vir, é de difícil modelagem - a concentração dos casos nos meses quentes do ano acrescidos à irregularidade na ocorrência de epidemias a tornaria bastante laboriosa. Por outro lado, sendo o foco deste estudo a influência das epidemias de dengue na morte por doença coronariana empregando a análise de intervenção, a modelagem da série de dengue torna-se desnecessária. Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(1):51-60 Artigo Original uma média de 57,3±11,9 óbitos por dia. Para modelar a série, foi necessário realização de uma diferenciação, a fim de torná-la estacionária. Série de DAC Dando forma ao comportamento das séries temporais abordadas, empregaram-se algumas técnicas gráficas. A Figura 1 (abaixo e à esquerda) apresenta a mediana do número total de casos por dia, do primeiro ao 365º dia, durante os 15 anos da série, extraídos do boxplot diário. Percebe-se que a série exibe sazonalidade anual, com maior número de mortes ocorrendo nos meses de inverno. O pico de mortalidade se dá em torno do 180o ao 190º dia do ano, o que representa o início do inverno. De nota, no Brasil, o inverno austral tem início com o solstício de inverno - que ocorre por volta de 21 de junho e termina em 23 de setembro com o equinócio de primavera, ou seja, do 171o ao 263o dia do ano. O gráfico de autocorrelação e a série temporal propriamente dita também são vistos na Figura 1. A série de mortalidade por doença coronariana englobou 5 475 dias, iniciando-se em 01 de janeiro de 1996 e terminando em 31 de dezembro de 2010. O número total de óbitos ocorridos neste período foi 313 503, perfazendo Seguindo-se a diferenciação, os gráficos da função de autocorrelação (FAC) e da função de autocorrelação parcial (FACP) apontam para modelo ARIMA (1,1,1), Resultados Figura 1 Série temporal de morte por DAC Acima: série temporal de morte por doença coronariana Abaixo à esquerda, traçado das médias diárias extraídos do boxplot Abaixo à direita: função de autocorrelação – lag em anos DAC - doença arterial coronariana Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(1):51-60 Artigo Original conforme a Figura 2. Para análise da sazonalidade, empregam-se a FAC e a FACP com lag de 365 dias (Figura 3). O modelo sugerido pela análise dos correlogramas é um SARMA (1,1) com sazonalidade anual. Em resumo, o modelo que melhor se adequou, de forma parcimoniosa, aos dados de morte por DAC foi um SARIMA (1,1,1) x (1,0,1)365. A série exibe sazonalidade anual, com o número maior de óbitos no inverno. Decompondo-a, há tendência Oliveira et al. Mortalidade Cardiovascular em Epidemias de Dengue para redução do número de mortes por doença coronariana até o ano 2000, a partir do qual se vê subsequente aumento da taxa anual de mortalidade (Figura 4). Aplicando-se o teste de Ljung-Box ao resíduo da série decomposta, obtém-se valor de p=0,9216, o que mostra que o modelo é adequado, excluindo-se a hipótese de dependência temporal - o resíduo se assemelha ao ruído branco. Figura 2 Função de autocorrelação (FAC) e de autocorrelação parcial da série de morte por DAC - lag em dias DAC - doença arterial coronariana Figura 3 Função de autocorrelação (FAC) e de autocorrelação parcial da série de morte por DAC - lag em 365 dias DAC - doença arterial coronariana 55 56 Oliveira et al. Mortalidade Cardiovascular em Epidemias de Dengue Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(1):51-60 Artigo Original Figura 4 Decomposição da série em componentes sazonais, tendência e aleatório Série temporal de casos notificados de dengue A série de dengue foi construída a partir de 6 205 casos distribuídos de 01 de janeiro de 1994 a 31 de dezembro de 2010. Observando-se a Figura 5 percebe-se que, dentro do período de tempo estudado, surgem em 1995 os primeiros casos notificados de dengue. A primeira grande epidemia registrada, com cerca de 900 casos notificados, ocorre em 1998 - nesse mesmo ano descrevese a grande expansão da doença em nível mundial. No boxplot, construído com o número de casos de cada dia do ano, contempla-se o comportamento da doença: a quase totalidade dos casos ocorre nos meses mais Figura 5 Série temporal de dengue quentes do ano, de janeiro a maio, com pico no final de fevereiro e início de março (Figura 6). Dessa forma, há determinados meses do ano em que não se tem qualquer notificação da doença, de forma que a série atinge a linha de base. Análise de intervenção A análise de intervenção (Tabela 1) revela a ausência de influência dos casos de dengue na série de morte por DAC. Ao se considerar os valores de ajuste da série de morte por DAC com e sem a influência da série de notificação de casos de dengue, percebe-se pequena variação. Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(1):51-60 Artigo Original Oliveira et al. Mortalidade Cardiovascular em Epidemias de Dengue Figura 6 Boxplot dos casos notificados de dengue em cada um dos dias do ano Tabela 1 Análise de intervenção Série DAC (sem influência da dengue) Erro-padrão AR MA SAR SMA s2 log likelihood AIC 0,0558 -0,9423 -0,0980 0,0944 129,6 -21 081,58 42 171,16 0,0150 0,0064 0,2812 0,2722 Série DAC (com influência da dengue) Erro-padrão AR MA SAR SMA s2 log likelihood AIC 0,0553 -0,9415 -0,0995 0,0959 129,5 -21 081,08 42 172,17 0,0151 0,0065 0,2502 0,2421 AR - autorregressivo; MA - média móvel; SAR - autorregressivo sazonal; SMA - média móvel sazonal; AIC - Akaike information criterion; s2 - variância ; DAC - doença arterial coronariana Discussão Manifestações cardiovasculares em pacientes com dengue vêm historicamente sendo descritas desde a década de 1960. A síndrome do choque relacionada à dengue, com colapso cardiovascular e depressão miocárdica, já era bem conhecida e pouco estudada. No ano de 1972, Ivor Obeyesekere e Yvette Hermon 6 descreveram 10 casos de miocardite aguda causados por arbovirus na cidade de Colombo, Sri Lanka (à época, 57 58 Oliveira et al. Mortalidade Cardiovascular em Epidemias de Dengue Ceilão), especificamente os vírus da dengue e o vírus da febre chikungunya. Nessa pormenorizada descrição caso a caso, pacientes com alterações clínicas, eletrocardiográficas e radiológicas que levaram ao diagnóstico de miocardite, tiveram elevada titulação de anticorpos específicos do arbovirus, afora história pregressa de síndrome aguda febril6. De fato, tal relato sugere potencial tropismo cardíaco do vírus da dengue, em circunstâncias específicas. Ainda no Sri Lanka, durante epidemia nos anos de 2004-2005, foi realizado estudo observacional de 133 indivíduos com dengue no Peradeniya Teaching Hospital, localizado na província central de mesmo nome, considerada pela saúde pública área endêmica. Em tal levantamento, o envolvimento cardíaco, definido como elevação de enzimas cardíacas, de nota a troponina e a CK-MB como marcadores de injúria miocárdica e o NT-proBNP como marcador de disfunção miocárdica, ocorreu em até 20% dos casos (troponina T se elevou em 0,8%, CK-MB em 12,8% e NT-proBNP em 18,9%). Não houve, na série descrita, casos de choque, assim como não foi descrita história pregressa de doença cardíaca nos pacientes estudados. Afora elevação de enzimas cardíacas, especialmente aquelas que expressam necrose miocárdica, têm-se ainda outras manifestações consideradas atípicas, que abrangem distúrbios de ritmo (bloqueios atrioventriculares, fibrilação atrial e disfunção do nó sinusal), pericardite e miopericardite7. Em oposição aos casos descritos de provável envolvimento miocárdico pelo vírus, não foram encontradas referências no que se refere às manifestações específicas de DAC em pacientes com dengue. Não obstante a ocorrência de epidemias cada vez mais acentuadas, a possibilidade de tal correlação torna-se mais palpável15. Dessa forma, o constructo teórico a ser testado baseou-se na possibilidade de a dengue provocar síndrome coronariana aguda, quer por ação direta nos sistema imunológico-hemostático quer por desestabilização de doença pré-existente. Uma terceira possibilidade, embora menos provável, seria ação direta do vírus causando arterite coronariana. De qualquer forma, tal associação, até o momento, não foi descrita. Para testar a hipótese de que as epidemias de dengue associam-se ao aumento na mortalidade cardiovascular, foi realizado um estudo ecológico com modelagem de séries temporais (estudo exploratório). Para tal foram analisados dados outrora coletados, uns disponíveis nos sites do Datasus 8, outros gentilmente cedidos pela Secretaria Estadual de Vigilância Sanitária, conforme informado. Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(1):51-60 Artigo Original Duas formas de resposta imune, que de certa forma caminham por vias distintas, são passíveis de advir à infecção pelo vírus da dengue. A primeira forma previne a infecção e propicia a recuperação. A segunda, relacionada à síndrome hemorrágica e à síndrome do choque da dengue, é geralmente observada em indivíduos com nova infecção. Nesse caso, os anticorpos desenvolvidos na infecção de um sorotipo podem não neutralizar a infecção causada por um segundo vírus, de diferente sorotipo, paradoxalmente amplificando a infecção. Indivíduos com síndrome hemorrágica e síndrome do choque da dengue possuem macrófagos maciçamente infectados, causando elevada viremia. Por sua vez, os macrófagos ativados e destruídos por células citotóxicas liberam tromboplastina e proteases ativadoras do complemento, desencadeando fenômenos de coagulação e lise celular17. Seria possível que tal cenário propiciasse eventos que, em última análise, culminariam com trombose coronariana ou ruptura de placa aterosclerótica? A análise de intervenção aplicada às séries temporais não confirmou associação entre epidemias de dengue e mortalidade por doença coronariana. Os parâmetros da série de mortalidade por DAC, com ou sem influência da série de dengue, são similares. Ainda que não fosse objetivo primário do presente trabalho, a modelagem e descrição da série temporal da mortalidade por DAC no estado do Rio de Janeiro descreveu peculiar comportamento no período estudado. Certamente, a compreensão dos parâmetros descritores ajudaria a compreender seus mecanismos geradores e, em última análise, a planejar ações concretas e coordenadas de saúde pública. O primeiro comportamento digno de nota, a sazonalidade anual, mostra pico de mortalidade nos meses de inverno, a exemplo do que já fora descrito em outros países. Na realidade, tais variações sazonais foram associadas tanto à mortalidade de doença arterial coronariana quanto à de doença cerebrovascular - na Inglaterra e no País de Gales, o pico hibernal de mortalidade das doenças cardiovasculares é responsável por 2 mil mortes adicionais por ano18-20. De fato, a possibilidade de relação entre temperatura e mortalidade por DAC também tem suporte nos dados que associam aumento de mortalidade à maior distância do equador, o que ocorre na Inglaterra, Estados Unidos, Canadá e Austrália. Seguindo-se na mesma direção, dados analisados de 1 474 hospitais americanos no National Registry of Myocardial Infarction, englobando o período de 1994 a 1996, revelaram aumento de 53% na incidência de infarto agudo do miocárdio nos meses de inverno em relação aos meses de verão21. Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(1):51-60 Artigo Original Oliveira et al. Mortalidade Cardiovascular em Epidemias de Dengue Um segundo comportamento não antecipado da série, de maior relevância epidemiológica, deve-se à ausência, dentro do período analisado entre 1996 e 2011, de decréscimo da tendência de mortalidade. Por um lado, poder-se-ia explicá-lo simplesmente pelo crescimento populacional, especialmente de indivíduos com idade >40 anos. Por outro lado, comportamento similar já havia sido descrito nos Estados Unidos21. Dados apresentados por instituições governamentais e publicados pelo Comitê de Estatística da American Heart Association (AHA) 22 apontam para a desaceleração na taxa de decréscimo da mortalidade por DAC que, a princípio, parecia estar em consonância ao próprio desenvolvimento socioeconômico do país nas últimas três décadas. Esse efeito que, ao que parece, está ocorrendo em diversos países desenvolvidos tem levado a gastos com ações de saúde direcionadas à prevenção primária, sobretudo no controle dos fatores de risco já conhecidos. No Brasil, em regiões com maior crescimento econômico como São Paulo e Rio de Janeiro, um aumento da taxa de mortalidade ocorreu posteriormente à década de 2000, em paralelo à melhoria das condições de vida da população23. Novas análises epidemiológicas serão necessárias no intuito de descrever associações com as prevalências de fatores de risco, notadamente tabagismo, diabetes e dislipidemia. infere-se que os casos não notificados de dengue incluiriam, na sua maioria, aqueles não diagnosticados, possivelmente por serem pouco sintomáticos ou assintomáticos. Seriam, pois, ocorrências com menor potencial teórico de causar morte por causa cardiovascular. Por outro lado, doenças que eventualmente possam ser diagnosticadas e notificadas como dengue, a citar leptospirose, febre amarela, leucemia, têm, teoricamente, o potencial de desencadear doença coronariana instável. Nesse âmbito, a aplicação de métodos epidemiológicos de estudo podem nortear ações do SUS, tornando-as mais efetivas e eficazes. Tentar-se-ia entender, por exemplo, a piora nas taxas de mortalidade por cardiopatia isquêmica nos países desenvolvidos como jogo de forças entre o desenvolvimento social e tecnológico de um lado e do maciço recrutamento de novos fumantes entre as mulheres e jovens aliados à prevalência de diabéticos, dislipidêmicos e “novos” sedentários. Conclusões Uma limitação que poderia ser sugerida, inerente à coleta dos dados analisados, refere-se à qualidade na notificação da dengue ao SINAN. Os casos não complicados de dengue, pertencentes ao grupo de doenças do anexo (lista de notificação compulsória - LNC) da Portaria GM/MS nº 104 de 25/1/201124 (Portaria vigente à época da coleta de dados, que foi revogada pelo art 14 da Portaria GM/MS nº 1 271 de 6/6/2014), são notificados e registrados no SINAN obedecendo às normas e rotinas estabelecidas pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (MS)24. Por outro lado, as doenças de anexo II da referida portaria (lista de notificação compulsória imediata - LNCI) contemplam os casos de dengue com complicações, síndrome do choque da dengue, febre hemorrágica da dengue, óbito por dengue e casos de infecção por DENV-4 ocorrido em regiões sem transmissão endêmica por esse sorotipo, o que implica a imediata notificação. Olhando-se com minúcia tal informação, A metodologia aqui empregada testa a hipótese em nível abrangente, pois os dados advêm de observações realizadas de fenômenos determinados em uma população pertencente a uma área geograficamente definida. Conhece-se o número total de indivíduos expostos e o número total de casos dentro de cada grupo, mas não se tem conhecimento do número de casos expostos. O desenho de séries temporais, amplamente utilizado na econometria e na meteorologia, é aqui utilizado na análise da evolução da taxa de mortalidade por DAC, ao longo de uma linha temporal, avaliando o impacto de uma intervenção - casos notificados de dengue. Uma limitação atribuída aos estudos desse tipo se traduz na impossibilidade de se transferir a estimativa de efeito ecológico, a associação das variáveis quando existente, ao nível individual. A análise das séries temporais não demonstrou associação entre notificação de casos de dengue e morte por doença coronariana. Entretanto, a análise da série de morte por doença arterial coronariana mostra, de forma similar a outros países do mundo, sazonalidade anual com maior número de casos nos meses de inverno. Há ainda uma tendência ao aumento no número de óbitos por doença coronariana, inesperada para o padrão socioeconômico do estado do Rio de Janeiro. Agradecimentos Ao Dr. Alexandre Otávio Chieppe, da Superintendência de Vigilância Epidemiológica e Ambiental da Secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil (SESDEC) do Rio de Janeiro, que gentilmente cedeu para este estudo os dados de notificação de dengue do estado do Rio de Janeiro. Potencial Conflito de Interesses Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes. Fontes de Financiamento O presente estudo não teve fontes de financiamento externas. Vinculação Acadêmica Este artigo representa parte da dissertação de Mestrado de Marcio Lassance Martins de Oliveira pela Fundação Oswaldo Cruz. 59 60 Oliveira et al. Mortalidade Cardiovascular em Epidemias de Dengue Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(1):51-60 Artigo Original Referências 1. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Diretoria Técnica de Gestão. Dengue: diagnóstico e manejo clínico - adulto e criança. 4a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. 2. Beserra EB, Freitas EM, Souza JT, Fernandes CRM, Santos KD. Ciclo de vida de Aedes (Stegomyia) aegypti (Diptera, Culicidae) em águas com diferentes características. Iheringia, Sér. Zool., Porto Alegre. 2009;99(3):281-5. 3. Verdeal JCR, Costa Filho R, Vanzillotta C, Macedo GL, Bozza FA, Toscano L, et al. Recomendações para o manejo de pacientes com formas graves de dengue. Rev Bras Ter Intens. 2011;23(2):125-33. 4. Wichmann D, Kularatne S, Ehrhardt S, Wijesinghe S, Brattig NW, Abel W, et al. Cardiac involvement in dengue virus infections during the 2004/2005 dengue fever season in Sri Lanka. Southeast Asian J Trop Med Public Health. 2009;40(4):727-30. 5. Gupta VK, Gadpayle AK. Subclinical cardiac involvement in dengue haemorrhagic fever. JIACM. 2010;11(2):107-11. 6. Obeyesekere I, Hermon Y. Myocarditis and cardiomyopathy after arbovirus infections (dengue and chikungunya fever). Br Heart J. 1972;34(8):821-7. 7. Gulati S, Maheshwari A. Atypical manifestations of dengue. Trop Med Int Health. 2007;12(9):1087-95. 8. Brasil. Ministério da Saúde. Datasus [Internet]. Sistema de informações sobre mortalidade – Estatísticas vitais. [acesso em 2012 nov. 13]. Disponível em: <http://www2.datasus.gov.br/ DATASUS/index.php> 9. Organização Mundial da Saúde. CID-10: Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. 10ª revisão e atualização de 2007. v 2. São Paulo: EDUSP; 2012. 10. R Development Core Team. R: a language and environment for statistical computing. Vienna, Austria: R Foundation for Statistical Computing; 2013. Available from: <http://www.R-project.org> 11. Box GEP, Jenkins GC, Reinsel GC. Time series analysis: forecasting and control. Wiley series in probability and statistics. 4th ed. New Jersey: John Wiley & Sons; 2008. 12. 1Ljung GM, Box GEP. On a measure of lack of fit in time series models. Biometrika. 1978;65(2):297-303. 13. Pierce DA. Data revisions with moving average seasonal adjustment procedures. Journal of Econometrics. 1980;14(1):95-114. 14. Box GEP, Tiao GC. Intervention analysis with applications to economic and environmental problems. J Am Stat Ass. 1975;70(349):70-9. 15. World Health Organization. ICD-10: International statistical classification of diseases and related health problems. 10th revision. 2nd ed. v.2. São Paulo: EDUSP; 2012. 16. Teixeira MG, Costa MC, Barreto F, Barreto ML. Dengue: twenty-five years since reemergence in Brazil. Cad Saude Publica. 2009;25(supl. 1):S7-18. 17. Souza LJ. Dengue - diagnóstico, tratamento e prevenção. 2a ed. São Paulo: Rubio; 2008. 18. Pell JP, Cobbe SM. Seasonal variations in coronary heart disease. QJM. 1999;92(12):689-96. 19. Fleck A. Latitude and ischaemic heart disease. Lancet. 1989;1(8638):613. 20. Weerasinghe DP, MacIntyre CR, Rubin GL. Seasonality of coronary artery deaths in New South Wales, Australia. Heart. 2002;88(1):30-4. 21. Spencer FA, Goldberg RJ, Becker RC, Gore JM. Seasonal distribution of acute myocardial infarction in the second National Registry of Myocardial Infarction. J Am Coll Cardiol. 1998;31(6):1226-33. 22. Roger VL, Go AS, Lloyd-Jones DM, Benjamin EJ, Berry JD, Borden WB, et al; American Heart Association Statistics Committee and Stroke Statistics Subcommittee. Heart disease and stroke statistics - 2012 update: a report from the American Heart Association. Circulation. 2012;125(1):e2-220. Erratum in: Circulation. 2012;125(22):e1002. 23. Tura BR, Silva NAS, Pereira BB. Associação entre renda per capita e mortalidade por doença cardiovascular. Rev SOCERJ. 2006;19(3):215-8. 24. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria GM/MS nº 104 de 25/1/2011. Define as terminologias adotadas em legislação nacional, conforme o disposto no Regulamento Sanitário Internacional 2005 (RSI 2005).