CÉRBERO E O PORTEIRO ANÔNIMO Sérgio Roxo da Fonseca

Propaganda
CÉRBERO E O PORTEIRO ANÔNIMO
Sérgio Roxo da Fonseca
Cérbero, segundo a mitologia grega, é o porteiro do inferno. Tão honroso e tão
medonho que os autores divergem quanto a sua descrição. O portão do inferno tem entrada,
mas não tem saída. Ali está o Cérbero, para muitos, um cão com muitas cabeças, olhando para
todos os cantos daquelas trevas.
Duas pessoas conseguiram entrar e sair do inferno. Hércules e Orfeu.
Zeus queria ter certeza da monstruosidade de Cérbero. Mandou Hércules busca-lo no
inferno. Hércules arrastou Cérbero até Zeus que assim o conheceu e se encheu de
repugnância.
Outro foi Orfeu, que ao saber que a mulher amada tinha sido lançada no reino das
mortes, para lá foi com sua harpa, conseguindo emocionar até mesmo Cérbero com suas
rapsódias, de tal maneira que trouxe Eurídice de volta à vida, sob a condição de não olhar para
trás. Olhou. E Eurídice voltou irremediavelmente para o mundo dos mortos.
Num dia desses, da janela de minha casa, posta defronte do antigo Ginásio do Estado,
fiquei espiando, os estudantes passarem pelo portão em busca das chaves ocultas do ENEM.
Teria cabimento aproximar o ENEM com os reinos de Cérbero? Fiquei matutando. Tirando
algumas coincidências, com certeza que não. No passado, passei várias vezes pelo portão do
nosso Ginásio, do qual fui aluno. E toda vez que entrei e saí de lá não encontrei nenhum
Cérbero com três, seis ou nove cabeças a correr atrás dos meus calcanhares. De lá trouxe uma
Eurídice que nem olhou para trás e nem me deixou olhar para trás. Não tenho e nunca tive
nem a força de Hércules e nem muito menos a música de Orfeu. Mas entrei e sai pelos portões
sem muita dificuldade. Bem! Ali não estava o horrível Cérbero.
Mas essa cambalhota da memória tem cabida quando as saudades povoam os
caminhos andados, hoje sob o manto de um passado já esfumaçado, mas, ainda não tão
fervente como o inferno de Hades. O velho Ginásio e o ENEM dão no que pensar.
O diabo, com perdão da palavra, levou minha atenção para o funcionário anônimo que
tomava conta do portão do Ginásio que, como é sabido e consabido, deve ser fechado às
13,00, proibida a entrada de qualquer ser vivo ou mitológico durante as provas do ENEM. .
Ao se aproximar das 13,00 horas, o porteiro do nosso Ginásio transmitiu para todos
nós uma intensa e silenciosa emoção.
Toda aquela pequena multidão deitava seus olhos para aquele que trancaria a porta
do Ginásio como Cérbero fechava a porta do inferno. Porém muito ao contrário do horrendo
ser mitológico, o nosso porteiro anônimo, com o peito cheio de humanidade, passou a andar
de um lado para o outro, tentando enxergar para os lados da Igreja de São Benedito ou para os
cantos de Santa Úrsula para ver se algum Hércules, talvez um Orfeu, quem sabe um Dionísio
ou até mesmo uma Eurídice não despontassem correndo da esquina em busca da porta do
paraíso. O silêncio era grande.
Grande era a emoção de todos. Enorme era a preocupação do porteiro anônimo que
paternalmente conseguiu atender a todos aqueles afobados estudantes antes que cumprisse o
dever de cerrar as portas do inferno, perdão, do paraíso.
Ninguém bateu palmas com as mãos. Mas todos que ali estavam, emocionados com a
intensa solidariedade do porteiro anônimo, tiveram vontade de tomar uma caneta e escrever a
sua história, buscando no ar as suas raízes gregas.
Download