BIOENGENHARIA TECIDUAL USO DE CÉLULAS TRONCO NA PRÁTICA MÉDICA Antonio Carlos Campos de Carvalho A área emergente da bioengenharia médica visa a substituição terapêutica de estruturas multicelulares, teciduais ou equivalentes a órgãos. Ela pode ser qualificada de “Medicina Regenerativa”, pois visa o reparo de tecidos lesados ou degenerados por substitutos funcional e estruturalmente equivalentes. Ela abrange os processos que usam as células vivas autólogas, alogênicas ou xenogênicas como agentes terapêuticos. Um termo recentemente cunhado na área biomédica é “Biomimética”. O viés aplicativo da biomimética no domínio das ciências biomédicas dedica-se a reproduzir (ou mimetizar) estruturas ou processos similares aos que ocorrem nos organismos sadios, em casos em que estas estruturas e/ou processos apresentem deficiências ou lesões. Neste sentido, biomimética é um termo tão amplo que pode representar uma ação de restauração local (como um implante dentário com otimização da osteointegração), ou a indução de diferenciação de células tronco para produção de células tecidoespecíficas (por exemplo, para tecido cartilaginoso, ósseo, muscular, nervoso, etc.). Na Medicina Regenerativa, a biomimética usa moléculas e estruturas supramoleculares para induzir processos de regeneração mediados por células endógenas, ou combina o uso de células exógenas, mais freqüentemente manipuladas ex vivo ou cultivadas in vitro. Entretanto, várias tecnologias em medicina regenerativa necessitam ainda de validação em modelos animais, sobretudo porque a fisiopatologia das doenças degenerativas e a biologia das células tronco apresentam importantes lacunas de conhecimento. Tecidos altamente expostos ao estresse externo são intensamente regenerados, como o epitélio intestinal ou cutâneo, bem como tecidos caracterizados por alta taxa de renovação, como as células sangüíneas. Além disso, tecidos lesados por trauma, doença ou senescência podem ser eventualmente regenerados, quando necessário. A Medicina Regenerativa busca criar condições ideais para o reparo e a substituição de tecidos lesados, fornecendo elementos celulares, fatores de proliferação e diferenciação celular e estruturas supramoleculares que permitam aos tecidos restaurados uma adequada organização celular espacial e funcional bem como a sua integração sistêmica. O conjunto dessas ações representa a área da bioengenharia, compreendendo a engenharia celular e a biomimética. Muito embora o cultivo de células in vitro seja feito há muitos anos, a possibilidade de cultivar tecidos tridimensionais complexos é muito recente. Este tipo de processo requer conhecimentos científicos e técnicos de múltiplas áreas e uma interação estreita entre cientistas com distintas formações. A engenharia tecidual constitui uma área recente de pesquisa multidisciplinar e a definição mais ampla desta área incluiria entre seus objetivos o desenvolvimento e manipulação de implantes artificiais, de tecidos gerados em laboratório, e/ou de células ou moléculas capazes de substituir ou estimular funcionalmente partes defeituosas ou lesadas de nossos organismos. Dentre os objetivos futuros da área inclui-se a produção em laboratório de qualquer tipo de tecido humano – músculo, osso, sangue, tecido nervoso, fígado, pâncreas. A produção de tecidos e órgãos mais complexos, como coração, fígado e sistema nervoso, ainda estão em fase experimental, mas os recentes avanços no conhecimento da biologia básica e na manipulação de células tronco, tornam real esta possibilidade. De fato, as perspectivas científicas e tecnológicas abertas pela descoberta e manipulação das células tronco embrionárias e adultas humanas revolucionaram a engenharia tecidual, tornando praticamente ilimitadas as aplicações médicas deste recente campo do conhecimento. A célula tronco é um tipo especial de célula que possui as seguintes características básicas: é uma célula indiferenciada, capaz de se auto-regenerar, e de produzir um grande número de células diferenciadas funcionais. A célula tronco prototípica é o óvulo fertilizado, ou zigoto que é capaz de gerar todas as demais células de um organismo adulto, inclusive os gametas. Em 1981 dois grupos independentes conseguiram obter linhagens in vitro de células derivadas da massa celular interna de blastocistos de embriões de camundongos- células ES (embryonic stem cells). Estas células são pluripotentes, pois podem proliferar indefinidamente in vitro sem diferenciação, mas também podem diferenciar-se, se as condições de cultivo forem modificadas. As células ES podem também ser reintroduzidas em embriões de camundongos, dando origem a células em todos os tecidos do animal adulto, inclusive a células germinativas. O fato das ES se integrarem a todos os tecidos do animal adulto após sua reintrodução nos embriões revela que, potencialmente, elas podem se diferenciar in vitro em qualquer célula do organismo. A capacidade de direcionar este processo permitiria que a partir das células tronco embrionárias pudéssemos cultivar controladamente os mais diferentes tipos celulares, abrindo a possibilidade de construir in vitro, tecidos e órgãos, tornando viável a bio-engenharia tecidual. Este devaneio tornou-se mais real quando, em 1998, J. Thomson e colaboradores conseguiram imortalizar células ES de embriões humanos e quando células embrionárias germinativas humanas (EGembryonic germ cells), derivadas das células reprodutivas primordiais de fetos, foram estabilizadas por J. Gearhart e colaboradores. A disponibilidade de células ES e EG humanas abriu horizontes inimagináveis para a medicina, mas também gerou complexos problemas éticoreligiosos. No Brasil, até recentemente, o uso de células tronco embrionárias humanas (hESC) em pesquisa era proibido. Agora, temos uma lei que autoriza o uso destas células derivadas de embriões congelados há mais de três anos.. Desde a década de 60 se sabe que organismos adultos tem a capacidade de autoregenerar determinados tecidos como a pele, o epitélio intestinal e o sangue. No entanto, a noção de que vários tecidos e órgãos do corpo humano, como o fígado, músculo esquelético, pâncreas, e sistema nervoso, tem um estoque de células tronco, com uma capacidade limitada de regeneração tecidual após injúria, é mais recente. Ainda mais recente é a idéia de que as células tronco presentes nestes vários órgãos são não apenas multipotentes, no sentido de que podem gerar as células constitutivas daquele órgão específico, mas também pluripotentes, no sentido de que também podem gerar células de outros órgãos e tecidos. Foi esta presumida pluripotencialidade, agora tão debatida, que levou aos primeiros ensaios clínicos usando células adultas derivadas da medula óssea e recolocou a questão da utilização terapêutica das células tronco em bases totalmente novas. Não apenas nos vimos livres das questões ético-religiosas que cercam a utilização das células tronco embrionárias na medicina, mas também nos livramos dos problemas de rejeição imunológica ao podermos utilizar células tronco do próprio paciente adulto na regeneração de seus tecidos ou órgãos lesados. Os resultados destes ensaios clínicos, que em sua grande maioria foram conduzidos em pacientes cardíacos, tem sido encorajadores. Embora preliminares, os resultados apontam para uma melhor performance cardíaca em pacientes tratados com células. Ensaios multicêntricos grandes, especificamente desenhados para testar a eficácia das terapias com células de medula óssea estão sendo conduzidos mundialmente. Portanto, independentemente do(s) mecanismo(s) de ação, a terapia com células adultas poderá se mostrar eficaz no tratamento das doenças crônico-degenerativas. Dada a possibilidade de se obter quantidades manipuláveis em laboratório de células tronco adultas humanas pluripotentes de tecidos como a medula óssea, o sangue de cordão umbilical, o músculo esquelético, e até da polpa do dente e do tecido adiposo, é previsível o dia em que não haverá mais filas para transplantes de órgãos e nem a busca de doadores imunocompatíveis. Vislumbra-se também no horizonte a possibilidade de cura de lesões neurológicas, como lesões medulares e de doenças degenerativas (Parkinson, Alzheimer), os acidentes vasculares cerebrais e a insuficiência cardíaca pós-infarto, com a aplicação de terapias celulares baseadas no uso de bio-matrizes acopladas a células tronco e fatores de crescimento recombinantes. A importância crescente da Medicina Regenerativa se deve às modificações demográficas e sociais. O aumento progressivo da idade média das populações humanas gera a necessidade de garantir cada vez mais uma qualidade de vida compatível com um custo e uma carga social aceitáveis. Calcula-se que o número de habitantes de terceira idade (65-85 anos) triplicará nos próximos 50 anos, e o número de habitantes em senectude crescente (>85 anos) será multiplicado por seis. Por causa principalmente das doenças degenerativas, o segundo desses dois grupos consome vinte vezes mais recursos de assistência médica e duas vezes mais de internações hospitalares do que o primeiro. Por outro lado, as populações jovens, vivendo em regiões de alta densidade populacional, estão mais expostas a lesões traumáticas. Embora numericamente menos significativas, essas lesões tem um altíssimo custo social, gerando freqüentemente pessoas jovens debilitadas ou permanentemente incapacitadas para uma vida normal e produtiva. Em populações urbanas do Brasil, as lesões traumáticas são a primeira causa tanto da internação hospitalar quanto da morte na segunda e terceira décadas da vida dos jovens. Ambas as situações exigem terapias que possam preservar, melhorar, e/ou restaurar as funções teciduais. Contrastando com a produção de fármacos, antibióticos ou vacinas que podem ser usados indistintamente por um grande número de habitantes, a Medicina Regenerativa é individual, dirigida especificamente a cada um dos casos atendidos, no seu contexto particular. Trata-se portanto de uma medicina individualizada, cuja ação pode envolver duas etapas, independentes ou associadas: - a manipulação ex vivo de células do próprio paciente, sua expansão, diferenciação e integração potencial em estruturas ordenadas superiores, que serão re-introduzidas nas regiões lesadas e integradas no processo de regeneração (bioengenharia ou engenharia tecidual); - a introdução, nas regiões lesadas, de estruturas supramoleculares, semelhantes aos elementos de matriz extracelular e mediadores intercelulares associados, facilitando a mobilização, expansão e integração de populações de células regenerativas internas, fomentando o reparo de lesões ou de regeneração e renovação de tecidos degenerados (biomimética). Ao contrário dos períodos extremamente longos, necessários para a aprovação de novos fármacos, os tratamentos médicos baseados na regeneração mediada por células tem sido muito mais rápidos. Em parte, isto ocorre pela falta de uma regulamentação clara e formal sobre o assunto. As terapias celulares que usam células autólogas depois de manipulação exvivo mínima são considerados procedimentos seguros, obrigando-se nestes casos o processo a seguir apenas “boas normas laboratoriais”. Entretanto, quando as células sofrem uma maior manipulação in vitro ou usam biomateriais exógenos, é necessário observar os padrões de controle de qualidade, sendo a normatização deste controle um dos objetivos deste projeto. Inovações conceituais e tecnológicas representam o principal meio de desenvovimento da Bioengenharia Tecidual. Em contraste com as áreas de Biotecnologia Molecular e Genômica, os modelos de organização e expansão na área de Bioengenharia e Biomimética ainda não estão estabelecidos. Nos EUA, havia em 2001 67 companhias de biotecnologia com foco em engenharia tecidual. A idade média destas companhias é de apenas 9 anos, a maioria tendo sido criada no quinquênio 1991-95. Mais de 90% dos investimentos nessa área, que somaram na década de 90 mais de 3 bilhões de dólares, com um crescimento em 2000/2001 superior a 1,5 bilhões de dólares, são oriundos da área industrial privada. No entanto, a análise de perfil dos investimentos mostra que a área privada investe essencialmente em processos já estabelecidos, pouco arriscando em novos conceitos e tecnologias ainda por desenvolver. Cinco das maiores companhias americanas de engenharia tecidual têm como produto principal os substitutos de pele. Visando corrigir essa falta de visão prospectiva, as agências públicas federais dos EUA vem aumentando consideravelmente o seu esforço de investimento na área. No Brasil, a demanda para os procedimentos médicos de bioengenharia tecidual originase tanto na área hospitalar privada quanto em centros médicos públicos. Para a rede privada ela representa a possibilidade de oferecer um tratamento de alta complexidade a um público com alto poder aquisitivo e habituado às despesas envolvendo assistência e prevenção médicas. Para a rede pública, a demanda origina-se na obrigação de atender a procura crescente por tratamentos que dependem da disponibilidade de órgãos para transplantes e de resolver patologias crônicas complexas e lesões graves, que geram para a sociedade um custo extremamente elevado. Embora a perspectiva de uma medicina individualizada possa parecer irreal para um país com tantas dificuldades sócio-econômicas como o Brasil, é importante atentar para o crescente envelhecimento de nossa população e o elevadíssimo custo econômico das doenças crônico-degenerativas, que assolam especialmente a população de terceira idade. Some-se a isto o benefício social de uma melhor qualidade de vida para uma população cuja expectativa de vida é crescente, e vê-se que tanto do ponto de vista econômico quanto social, o investimento na medicina regenerativa individualizada é amplamente justificável. As perdas e prejuízos sócio-econômicos decorrentes de uma política nacional de saúde que não preveja investimentos em soluções de ciência e tecnologia, como as propostas neste projeto, e que não permita a nosso sistema de saúde público e privado disponibilizar para a população os benefícios dos avanços científico-tecnológicos das ciências biomédicas, serão infinitamente superiores aos investimentos necessários para dotar nosso país da competência necessária para disponibilizar estes serviços.