Filosofia é um tipo de saber construído com palavras, ideias

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Artigo publicado:
BULHÕES, F.M. In Existência e Arte. São João Del-Rei, PET/UFSJ, 5 Edição.
DA PRÁTICA À TEORIA, DA TEORIA À PRÁTICA
(dedicado aos alunos e professores do Ensino Médio)
Profa. Dra. Fernanda Machado de Bulhões
Departamento de Filosofia/UFRN
RESUMO: A fim de contribuir mesmo indiretamente com a volta da filosofia nas
escolas do Ensino Médio, apresento aqui um breve artigo que trata da antiga e
recorrente questão que a meu ver determina e orienta o modo como se ensina e se
aprende o saber filosófico, a questão é: o que é filosofia? Várias são as respostas.
Farei aqui breves formulações sobre o tema ressaltando o parentesco entre filosofia,
ciência e arte.
Palavras-Chave: Filosofia. Ciência. Arte.
INTRODUÇÂO
Nós, seres humanos, uma das espécies de vida que existem na imensidão finita ou infinita - desse universo, somos os únicos que refletimos sobre a existência,
criando inúmeras teorias sobre as várias realidades que existem a nossa volta. Como
todos os seres vivos, nós nascemos e morre(re)mos, mas, diferentes dos demais,
perguntamos qual o sentido disso tudo? Tem algum sentido, ou não? Sem dúvida,
uma de nossas maiores idiossincrasias é procurar uma explicação tanto para o
universo quanto para nossa própria existência. Procuramos uma verdade maior que
nos oriente em nosso dia a dia, nesse sentido, somos todos filósofos: uns, bem mais,
outros, bem menos.
Embora a filosofia seja um saber que pode despertar grande interesse, não é
um saber fácil. A compreensão das questões metafísicas, fundamentais e insolúveis
que ela trata requer tempo e proximidade. Para entrar em seu universo é preciso
conhecer sua história, os filósofos, as principais teorias e, sobretudo, seu vocabulário
que é próprio e a princípio hermético e incompreensível para os não “iniciados”. Vários
são os fatores que dificultam a entrada no universo da filosofia, por isso, levando em
consideração que aqui no Brasil ela está voltando às escolas, é importante e oportuno
uma reflexão sobre seu ensino. Como apresentar a filosofia para jovens do Ensino
Médio? Sem entrar no aspecto metodológico, tratarei aqui de uma questão filosófica “o que é filosofia?” – que a meu ver é determinante no modo como se ensina o saber
filosófico, em todos os níveis acadêmicos, já que a maneira como se compreende a
filosofia é uma espécie de pano de fundo a partir do qual os diversos conteúdos
ganham sentido. Existem várias respostas à questão o que é filosofia. Neste breve
ensaio, escrito numa linguagem acessível aos iniciantes, trago comigo meu principal
“aliado”, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900).
2- Filosofia e ciência
A filosofia é um tipo de ciência situada entre as Ciências Humanas. Mas,
podemos também dizer que ela é a mãe de todas as ciências, já que seu nascimento
significou o nascimento do espírito científico. Com a filosofia nasceu o modo de pensar
racional-científico, um modo lógico, dedutivo, construído passo a passo, indo de
premissas às conclusões, seguindo o fio da causalidade.
Filosofia é ciência. De que tipo de ciência é a filosofia? Um antigo ditado
popular, muito citado por meu avô, dizia: “Filosofia é a ciência que com a qual ou sem
a qual o mundo resta tal e qual”. De acordo com essa definição, a filosofia é um tipo de
saber que não muda em nada o mundo. Com ou sem filosofia o mundo resta tal e
qual. Mas, que mundo é esse? O universo (a phýsis) ou o mundo dos homens?
Segundo meu avô, os dois. A filosofia não intervém na vida nem na dos homens,
menos ainda na da natureza.
Muito antes de existir esse ditado popular, Aristóteles já dizia que é próprio da
filosofia ser um conhecimento que não visa uma finalidade prática. O filósofo pensa
apenas por pensar, quer conhecer apenas para conhecer e não para usar esse
conhecimento adquirido. No entanto, vale ressaltar que, bem diferente de nossa
pragmática realidade moderna, para os antigos gregos, o fato de a filosofia não ter
uma utilidade prática é sinal de sua superioridade em relação às outras ciências, pois
significa que a investigação filosófica não está a serviço de algo externo ao próprio
pensamento. Se o que é útil é o que está a serviço de algo, então a filosofia é uma
ciência inútil, já que não tem uma finalidade fora dela própria. Não fazemos nada com
o pensamento filosófico a não ser pensar, aliás, podemos dizer que a prática da
filosofia é esse exercício teórico.
Nietzsche, em geral conhecido como crítico fervoroso da herança socráticaplatônica, concorda com Aristóteles ao valorizar o aspecto inútil da filosofia e ao
considerá-la superior às outras ciências, justamente porque “prefere o inútil ao útil”.
Para ambos os pensadores, a filosofia se interessa apenas pelo que é grandioso e
mais fundamental e, por isso mesmo, não pode ser utilizada ou aplicada à realidade
sensível e particular. Sobre esse aspecto, Nietzsche segue Aristóteles e inclusive cita
o “mestre”:
Aristóteles diz com razão: “Aquilo que Tales e Anaxágoras sabem será
chamado de insólito, assombroso, difícil, divino, mas inútil, porque eles não
se preocupavam minimamente com os bens terrenos”. Ao escolher e
discriminar assim o insólito, assombroso, difícil e divino, a filosofia marca o
limite que a separa da ciência, do mesmo modo que, ao preferir o inútil,
marca o limite que a separa da prudência. (NIETZSCHE, 1985, p.12).
3- Quem é o filósofo?
Se a filosofia é um saber inútil, quem é o filósofo? Como descrevê-lo? Provável
descrição: um homem velho, parado, sentado, calado, os olhos abertos, mas sem ver
nada a sua frente, um olhar absorto, como se estivesse ausente dessa nossa humana
realidade. Desligado do mundo ao seu redor, ele só fica pensando, pensando, sem
sair do lugar, e quando sai tem que ter muita atenção para não cair no buraco, como
ocorreu com o primeiro filósofo grego, Tales de Mileto, que vivia olhando o céu e as
estrelas tentando decifrar os enigmas do universo.
3.1- Nietzsche e a sua imagem do filósofo-artista
Nietzsche, em suas obras, nos proporciona um modo alternativo de pensar a
figura do filósofo e compreender o que é a filosofia. Grande crítico da vaidade e da
arrogância que caracteriza o que ele chama de os homens de ciência, entre os quais
se encontram os filósofos que acreditam na capacidade de a razão descobrir a
verdade escondida no âmago do ser, Nietzsche considera que os primeiros filósofos
gregos, também chamados de “filósofos arcaicos”, são os verdadeiros modelos do
autêntico filósofo. Eles nada tinham de apático, de parado, de insensível. Muito pelo
contrário, os primeiros filósofos gregos eram revolucionários, que ousaram pensar o
mundo de um modo completamente diferente e contra a tradição. Cada um por si
mesmo, rompendo com o pensamento mítico que até então predominava em todos os
lugares, buscou descobrir qual é a lógica ordenadora do Cosmo. E cada um
encontrou, sozinho, a sua própria e exclusiva verdade sobre o universo.
Profundo conhecedor da cultura, das artes e da língua grega, Nietzsche
considera que a filosofia quando surgiu na Grécia arcaica se revelou “na sua forma
mais pura e mais grandiosa” (NIETZSCHE, 1994, p. 83). Aí foram formulados os “tipos
principais do espírito filosófico” e os seus problemas fundamentais. Para ele, os
primeiros filósofos geniais e originais - Tales, Anaximandro, Heráclito, Parmênides,
Anaxágoras, Empédocles e Demócrito – expressam a exuberância e criatividade
dessa época áurea dos gregos, a época trágica (século VI e V a. C.). Por isso, diz ele,
se alguém quiser saber o que é a filosofia e quem é o filósofo não deve buscar
respostas na Ásia ou no Egito, nem na modernidade. É preciso voltar-se para os
primeiros pensadores gregos entre os quais a filosofia apareceu à altura que sempre
deve ter:
Os gregos souberam começar na altura própria, e ensinam mais
claramente do que qualquer povo a altura em que se deve começar a
filosofar. Não só na desgraça, como pensam aqueles que derivam a
filosofia do descontentamento. Mas antes na felicidade, na plena
maturidade viril, na alegria ardente de uma idade adulta, corajosa e
vitoriosa. Que os gregos tenham filosofado nesse momento (da sua
história) informa-nos tanto sobre o que é a filosofia e o que ela deve
ser como sobre os próprios gregos (NIETZSCHE, 1987, p.18).
Ou seja, em suas análises que estão presentes em seus escritos póstumos de
juventude, Nietzsche destaca o caráter livre, ousado e revolucionário dos primeiros
filósofos que questionavam os mitos cantados por Homero e Hesíodo1. Não eram
indiferentes ao mundo, frios e insensíveis, como se não corresse sangue em suas
veias ou, pior, como se não tivesse nem veias Para eles, diz Nietzsche, o pensamento
e a vida eram indissociáveis. Neles não existia separação entre teoria e prática. Viviam
como pensavam e pensavam como viviam. Neles, o pensamento constituía “um apoio
para a vida e não para o conhecimento erudito”. Nietzsche ressalta a personalidade
genial e intensa desses homens cheios de vida, de força, todos bastante orgulhosos,
certos e convictos de suas verdades.
De acordo com a interpretação presente em O nascimento da tragédia foi
somente a partir do “socratismo” que surgiu a figura do “homem teórico”, cuja fé no
poder da razão é tão excessiva que desvaloriza todos os impulsos não racionais,
principalmente, os impulsos estéticos. Nietzsche vê uma clara ruptura entre o
momento arcaico da filosofia e o período cujo começo é marcado pela figura de
Sócrates, o símbolo do homem teórico. Podemos dizer que essas duas imagens de
filósofos correspondem ao filósofo-artista e o filósofo-cientista.
Em A filosofia na
época trágica dos gregos, Nietzsche nos oferece uma imagem que ilustra bem essa
diferença, ele nos descreve dois viajantes diante de uma forte torrente de água. Para
ultrapassá-la, graças a seu talento criativo e versátil, o filósofo-artista salta
rapidamente sobre apoios frágeis, sobre as pedras que logo depois serão arrastas
pelas águas agitadas. O filósofo-cientista não salta, para sair do lugar precisa antes ter
a certeza de que seus passos pesados e prudentes encontrarão um chão estável e
sólido para pisar. Enquanto o pensamento intuitivo e imaginativo voa, o pensamento
calculador, científico, anda com a máxima cautela. Eis a cena:
1
“Pode-se apresentar estes filósofos arcaicos como aqueles para os quais a atmosfera e os costumes
gregos são uma cadeia e uma prisão: por isso eles se emancipam (combate de Heráclito contra Homero e
Hesíodo, de Pitágoras contra a secularização, de todos contra o mito, sobretudo Demócrito). (...) Um
conjunto de fenômenos contém todo esse espírito de reforma”. NIETZSCHE, 2001, p. 90.
Julga-se ver dois viajantes à beira de uma torrente agitada que
arrasta pedras consigo: um deles salta com leveza por cima dela,
servindo-se das pedras para se lançar à frente, mesmo que estas se
afundem bruscamente atrás dele. O outro se encontra desamparado
a cada momento, deve primeiro construir fundamentos que possam
sustentar seu passo pesado e prudente; às vezes, não consegue, e
então nenhum deus o ajuda a transpor a torrente. O que leva, pois, o
pensamento filosófico tão rapidamente ao seu fim? Distingue-se ele
do pensamento calculador só por percorrer mais rapidamente
grandes espaços? Não, porque lhe dá asas um poder estranho e
ilógico, a imaginação. Impelida por esta força, salta de possibilidade
em possibilidade, que se aceitam como certezas provisórias: aqui e
ali, chega mesmo a apanhar certezas em vôo (NIETZSCHE, 1985,
p.10-11).
Essa descrição dos dois viajantes à beira de uma forte torrente ilustra bem a
diferença entre o filósofo, impulsionado pela ilógica imaginação, que salta de
possibilidade em possibilidade, pois se sente confiante, forte e, sobretudo, leve e por
isso capaz de voar pelo vasto reino das possibilidades. Já o filósofo movido pela
razão, segue rígidos critérios metodológicos e se empenha na construção de
fundamentos sólidos capazes de sustentar seu passo prudente e pesado. Ele precisa
de segurança, vive a procura de verdades e certezas definitivas.
Essa metáfora mostra o parentesco do filósofo com a arte. Tal como os poetas,
ele tem uma sensibilidade apurada, uma intuição e imaginação aguçadas. De acordo
com Nietzsche, o grande problema que vem se perpetuando desde o socratismo é a
tendência a compreender o filósofo e a filosofia somente a partir da razão e da ciência.
A filosofia aparece como sendo séria, dura, seca, um saber abstrato, fechado em si
mesmo. Na contramão desse modelo excessivamente racional, Nietzsche apresenta
essa filosofia-estética que, em vez de querer enunciar verdades metafísicas, pretende
criar e multiplicar as possibilidades de perceber a vida.
Considerações finais
Considero que a filosofia é constituída tanto por seus traços científicos quanto
por seus traços estéticos. Ela é um tipo de saber lógico construído com palavras,
conceitos, ideias, argumentos, que procura refletir o mundo e a existência, mas, como
existe uma tendência do filósofo em ser dogmático, é preciso ter atenção aos limites
próprios da reflexão filosófica. A crença no poder da razão e da ciência de enunciar
verdades absolutas é problemática, pois pode tornar o homem um ser arrogante e
vaidoso que erra ao pretender reduzir a realidade às suas teorias, erra ao tentar
acabar com os mistérios da existência.
A filosofia é, sim, uma ciência, com seus temas e seu rigor conceitual, no
entanto ela só é capaz de elaborar teorias que só são verdadeiras para seus autores.
Em vez de revelar o necessário e universal, o que lhe é mais próprio é expandir as
possibilidades do pensamento, abrindo novas “perspectivas” que possibilitam ver o
horizonte mais amplo.
Enfim, quando questionados a respeito do valor da filosofia, nós professores e
nós alunos, podemos responder: o valor da filosofia está em criar sentido e beleza à
nossa humana, cotidiana e efêmera existência. Assim como a arte, a filosofia serve
para apurar o gosto, refinar os sentidos, desenvolver a “arte da nuance”, deixando a
vida mais rica em tonalidades, mais interessante. Nas palavras de Nietzsche: “O valor
da filosofia (...) não corresponde à esfera do conhecimento, mas à esfera da vida, a
vontade de existência usa a filosofia tendo por fim uma forma superior de existência”
(NIETZSCHE, 2001, p. 14).
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na época trágica dos gregos. Trad. Rubens Torres
Filho, in Os Pensadores, volume “Os Pré-socráticos”. 3. Ed. São Paulo, Ed. Abril S.A,
1985.
____________________. A filosofia na época trágica dos gregos. Trad. Maria Inês
Madeira de Andrade. Lisboa, Edições 70, 1987.
____________________ Les philosophes préplatoniciens. Apresentação e notas:
Paolo D’Iorio. Trad. Nathalie Fernand. Paris, Editions de Léclat, 1994.
____________________ “O último filósofo. Consideração sobre o conflito entre arte e
conhecimento (outono-inverno de 1872)”, In O livro do filósofo. Trad. Rubens Eduardo
Ferreira Frias. São Paulo, Centauro, 2001.
_____________________ O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo,
Companhia das Letras, 1992.
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. Rio de Janeiro, Rocco, 1985.
___________. “Arte, ciência, filosofia”. In Nietzsche e a polêmica sobre o Nascimento
da Tragédia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005.
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