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A Natureza Humana:
Obsoleta ou Civilizada?
DANIEL SERRÃO*
Resumo
Ensaio expositivo e interpretativo das perguntas sobre a natureza humana e das respostas
que o pensamento moderno, em Merlin Donald e outros, vai dando. A perspetiva fisicalista,
neurobiológica, é analisada a partir de Joseph LeDoux, e outros, comentando as suas teses
principais. É dada ênfase particular à evolução das capacidades da mente humana na transição da cultura mimética para a cultura oral, a criação mítica e o advento da escrita e das
outras formas de cultura exterior simbólica. Na crítica ao monismo fisicalista é discutido o
que se pode entender por qualia e de que modo este entendimento justifica a aceitação de um
“hiato explicativo” como o pensam Urbano Sidoncha e outros autores. É abordada a relação
entre Pensamento e Linguagem a partir de Lev Vygotsky.
Considerando a ética como um qualia procura-se fixar, empiricamente, a diferença entre ética
e eticidade como contraponto à diferença entre autoconsciência e consciência cognitiva.
Como proposta final é apresentada uma pergunta radical e oferecida uma temerária resposta
sobre o possível conhecimento total da natureza humana.
Palavras-chave : autoconsciência, consciência, ética, palavra, qualia
Abstract
Expository and interpretive essay of the questions on human nature and the responses that
modern thought, in Merlin Donald et al., has been producing. The physicalist, neurobiological
perspective is analysed as from Joseph LeDoux et al., by commenting on his main theses.
Particular emphasis is given to the evolution of the human mind’s capacities in the transition
from the mimetic culture to the oral culture, the mythical creation and the advent of writing
and the other forms of external symbolic culture. In the critique of the physicalist monism,
one discusses what can be understood by qualia and how this understanding justifies the
acceptance of an ‘explanatory hiatus’ such as Urbano Sidoncha and other authors think.
The relationship between Thought and Language, as from Lev Vygotsky, is addressed.
Considering ethics as a qualia, one tries to establish, in an empirical way, the difference
between ethics and ethicity in contrast to the difference between self-consciousness and
cognitive consciousness. As a final proposition, an extreme question is raised and a daring
answer is put forward on the possible full knowledge of human nature.
Keywords : awareness, consciousness, ethics, qualia, word
* Instituto de Bioética. Universidade Católica Portuguesa.
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Fasc. 3
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1. Introdução
A
interrogação do subtítulo não é, hoje, despicienda ou banal.
Nas quase quinhentas páginas do livro no qual Harold W. Baillie e
Timothy K. Casey1 reuniram catorze contribuições de especialistas
em ciências humanas e sociais, é discutido o cerne da questão de uma
futura natureza humana já que a atual parece estar a ficar obsoleta.
E Elkhonon Goldberg2 desenvolve o conceito de mente civilizada
como a marca da natureza humana atual.
Mas é Merlin Donald3,4 quem explica a evolutividade da natureza do
Homem e caracteriza a relação das capacidades cognitivas cerebrais com
a forma como a natureza humana se constrói e se manifesta, no tempo.
Num registo mais neurobiológico que antropológico, Joseph LeDoux5
considera que a natureza humana, who we are, é uma simples (?) consequência da forma como os neurónios, em especial os do neocórtex, criam as
suas redes de intercomunicação sináptica.
Da análise crítica das propostas abrangentes destes autores, Goldberg,
M. Donald e LeDoux, das contribuições colecionadas em Harold W. Baillie
e Timothy K. Casey6 e de um leque alargado, mas não exaustivo, de bibliografia mais recente, neurobiológica, antropológica e filosófica, pretendo
propor uma síntese conceptual e abrir a via para uma continuada reflexão
acerca de um futurível “Humanus”.
Terei presentes, nesta difícil e ambiciosa tarefa de escrita, a contribuição singular do último Damásio,7 do génio de Vygotsky8 e de uma
1. BAILLIE, Harold W. & CASEY, Timothy K. – Is Human Nature Obsolete? Genetics,
Bioengineering, and the Future of the Human Condition. Cambridge, Massachusetts: The MIT
Press, 2005.
2. GOLDBERG, Elkhonon – The Executive Brain. Frontal Lobes and the Civilized Mind.
Oxford: Oxford University Press, 2001.
3. DONALD, Merlin – Origins of Modern Mind. Three Stages in the Evolution of Culture and
Cognition. Cambridge, Mas.: Harvard University Press, 1991.
4. DONALD, Merlin – A Mind so Rare. The Evolution of Human Consciousness. New York /
London: W. W. Norton & Company, 2001.
5. LEDOUX, Joseph – Synaptic Self. How Our Brains Become Who We Are. London:
Penguin Books, 2003.
6. Cf. BAILLIE, Harold W. & CASEY, Timothy K. – Is Human Nature Obsolete? Genetics,
Bioengineering, and the Future of the Human Condition, ed. cit.
7. DAMÁSIO, António – O livro da Consciência. A construção do cérebro consciente. Lisboa:
Círculo de Leitores, 2010.
8. VYGOTSKY, Lev – Pensamento e Linguagem. Lisboa: Relógio d’Água, 2007.
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A Natureza Humana: Obsoleta ou Civilizada?
recente publicação de Hipólito-Reis,9 na qual reconheço uma originalidade
surpreendente quando desmonta os meandros escondidos e complexos da
natureza humana.
E a vigorosa e, por vezes, comovente, “confissão” de Christof Koch10
sobre os fundamentos da sua posição como um reducionista romântico,
“saddened by the loss of my religious belief”.
Não posso escamotear aos leitores deste ensaio que a maior dificuldade na abordagem da questão da natureza humana é, rigorosamente,
linguística; e está toda concentrada na palavra que se escreve e no significado que, por essa palavra, lhe está a atribuir aquele que a escreve e a usa
na flexão linguística.
Esta dificuldade, já de si tremenda, agrava-se quando se vai usar uma
palavra que foi “inventada” numa outra convenção linguística que não a
da língua portuguesa.
Porque, nesta circunstância, a versão linguística é impossível sem que
se “invente” uma palavra nova na língua portuguesa na qual se deposite o
sentido que nela está contido na convenção linguística original.
Por exemplo, mind e self, palavras que circulam facilmente nos textos
de língua inglesa, são de dificílima tradução para português e sempre obrigarão a uma divagação semântica, se eu escrever “mente” por mind e “eu”
por self.
Acresce, finalmente, mais uma dificuldade.
Tratar da natureza humana é abrir a questão corpo-mente
(body-mind), debate antigo da Filosofia, debate moderno da Neuroética,
para cujo desenvolvimento não dispomos de uma metodologia tranquilamente adequada.
Urbano Mestre Sidoncha11 aborda com profundidade reflexiva a
questão metodológica recorrendo ao conceito de “hiato explicativo” que
mais à frente desenvolverei, e que foi proposto por J. Levine em 1999 como
uma possível saída metodológica.
9. HIPÓLITO-REIS, C. – Da Noite se faz o Dia. Lisboa: Âncora Editora, 2012.
10. KOCH, Christof – Consciousness. Confessions of a Romantic Reductionist. London:
The MIT Press, 2012, p. 28.
11. SiDONCHA, Urbano Mestre – Do Empírico ao Transcendental. A consciência e o
problema mente/corpo, entre o materialismo reducionista e a fenomenologia de Husserl. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. É uma Dissertação de Doutoramento na qual o Autor,
com notável desenvoltura e grande qualidade expositiva, propõe uma nova forma, muito
husserliana de discutir a relação do corpo com a mente (para ele, Espírito) assim sintetizada
“Sou Corpo porque ele é Órgão do Espírito”.
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J. Manuel Curado12 que ao problema “duro” da consciência tem
dedicado muita reflexão, afirma que “Os elos de causalidade entre o
cérebro e a experiência subjetiva escapam-nos por completo. Ninguém faz
a mínima ideia de por que razão o cérebro dá origem ao que sentimos
quando poderia não dar origem a mais nada; ninguém faz também a
mínima ideia de como é que o que sentimos influencia realidades biológicas e físicas”. Noutro trabalho publicado em 2007,13 Curado propõe uma
solução que, nas suas palavras, é a seguinte: “O problema duro é um malentendido do edifício do conhecimento disponível à data em que essa sequência é expressa… É possível concluir que o problema duro não expressa
uma arquitetura do próprio real mas, apenas, uma arquitetura provisória
do estado do conhecimento humano. Expressando a mesma ideia de outro
modo, o problema duro é uma ficção racional”. Não o acompanho em
absoluto, a menos que consideremos que todas as questões postas pelas
neurociências e pela teoria da mente são ficções racionais.
E Engelhardt Jr., já em 1973,14 quando as neurociências estavam a
dar os primeiros passos no que viria a ser o crescimento explosivo dos
conhecimentos científicos sobre a estrutura e a funcionalidade cerebral,
abordou o problema Mind-Body como uma relação categorial, e não como
uma questão de causalidade.
12. CURADO, Manuel – “Os desafios das Ciências da Mente”. Revista Portuguesa de
Bioética. Suplemento n.º 11 (junho de 2011), pp. S-127 / S-174. Neste trabalho apresentado
num Seminário intitulado “Natureza e Ética”, este autor faz uma ampla discussão sobre os
contornos do debate cérebro/mente na psicologia moderna e nas ciências cognitivas e apela
para “uma reflexão ética constante”. Na publicação referida, Alfredo Diniz, que à questão
da neuroética e da ética das neurociências tem dedicado particular atenção, escreve sobre a
questão da liberdade humana mostrando, com cuidadosa argumentação, que não é possível
afirmar que o conhecimento da funcionalidade cerebral elimina a liberdade dos humanos.
13. CURADO, Manuel – Luz misteriosa. A Consciência no mundo físico. Famalicão: Quasi,
2007. É um livro de difícil leitura pela riqueza e diversidade da informação que Curado
mobiliza para a sua brilhante argumentação. Noutro trabalho – Alfredo Diniz; Manuel
Curado (orgs.), O Choque de Thomas Reid e a Origem do Problema Difícil da Consciência.
Mente, self e consciência. Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia da Universidade
Católica Portuguesa, 2007 – a propósito das obras de Thomas Reid, um filósofo inglês da
segunda metade do século XVIII, Curado mostra como é antiga a questão das relações entre
o corpo e a mente e afirma que “a análise de Reid sobre a consciência ainda não foi ultrapassada”. Para a teoria da mente de Reid, os qualia, de que trataremos mais adiante, serão
propriedades secundárias que resistem a uma análise “funcionalista” e significam que corpo
e mente são incomensuráveis, porque a sensação não é explicada pela perceção. Curado
retira desta postura de Reid consequências da maior importância para uma análise rigorosa
da relação cérebro/mente.
14. ENGELHARDT Jr., H. Tristram – Mind-Body: a Categorial Relation. The Hague: Martinus
Nijhoff, 1973.
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A Natureza Humana: Obsoleta ou Civilizada?
Divido este ensaio em duas partes, uma expositiva e a outra
conclusiva.
A primeira parte, intitulada “As perguntas e as respostas”, procurará
situar a questão da natureza humana nas controvérsias científicas, antropológicas e éticas e apresentará o que muitos neurocientistas, psicólogos
e filósofos pensam, hoje, sobre a natureza humana, no presente e o que
imaginam para o futuro.
Na “Conclusão” será exposto um juízo pessoal sobre a pergunta mais
radical e a resposta mais temerária.
2. As perguntas e as respostas
Abordando a questão da natureza humana, a primeira pergunta será
esta: o que é, hoje, o Homem. Antes de perguntar quem é.
Pergunta antiga que acompanha o viver dos humanos desde que, na
conceção evolutiva de Merlin Donald,15 foi atingido o patamar da cultura
comunicacional mimética e, depois, o da oralidade.
Com efeito, esta primeira transição separou, na linha evolutiva dos
primatas, o Homo dos outros primatas, os quais evoluíram nestes 6 a
8 milhões de anos para as diversas e numerosas espécies de primatas nãohumanos hoje identificadas. O Homo, porém, evoluiu no mesmo período
temporal, adaptou-se, sobreviveu, mas é uma só espécie, cujos membros
proveem, diretamente, ao que parece, do H. erectus (dois milhões de
anos).
Donald reconhece a dificuldade de entender esta transição da cultura
episódica para a cultura mimética. Nas suas palavras, “Erectus também
cooperava em caçadas sazonais, migrava para longas distâncias, usava o
fogo, cozinhava e tinha um cérebro que evoluiu até oitenta por cento do
volume do cérebro humano moderno. Que tipo de mente e de cultura pôde
ser responsável por tudo isto?”
Ou seja, pergunto eu, como era o Homem arcaico que emergiu deste
salto qualitativo e logo ocupou o que é, hoje, o grande espaço euroasiático?
Seguramente não falava.
Parece difícil imaginar como comunicavam e cooperavam os seres
humanos sem linguagem, tão “viciados” estamos em usar, para tudo, a
palavra como representação simbólica da cognição.
15. Cf. Donald, Merlin – Origins of Modern Mind. Three Stages in the Evolution of Culture
and Cognition, ed. cit.
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Mas um estudo de Lane16 realizado em surdos-mudos iletrados
provou, como refere Donald, “que eles tinham plena consciência e eram
capazes de compreender e evocar acontecimentos com grande precisão.
Portanto as suas memórias episódicas estavam intactas e a consciência
não estava afetada. A sua tendência para inventar gestos e mímicas, no
momento, de uma forma muito criativa, para comunicar os seus pensamentos, demonstra que possuem excelente capacidade de comunicação
intencional”.
Claro que não pode comparar-se o cérebro de um surdo-mudo atual
com o cérebro de um erectus mudo; mas as capacidades criativas de ferramentas e de organização social, tanto quanto podemos avaliar (certamente
por defeito), pelos achados arqueológicos, indicam um desempenho
cognitivo e de interpretação mental que “forçou” a comunicação entre
o indivíduo e o grupo social, por mimesis; à falta, na época, de melhor
instrumento comunicacional.
A capacidade mimética na síntese rigorosa de Donald “baseia-se
na possibilidade de produzir atos representacionais conscientes, auto
iniciados que são intencionais mas não linguísticos”.
O Homem mimético terá sido a primeira forma de ser Homem: um
corpo animal vivo que conhece o mundo sentindo-o, por meio dos seus
órgãos sensoriais e sensitivos, e que comunica aos outros o que sente com
intencionalidade comunicacional.
Sem linguagem – mas com pensamento.
Esta forma de ser Homem, embora permitisse o sucesso desta espécie
triunfante, não se estabilizou e continuou a evoluir.
Como acentua Donald, “A evolução dos humanos não produziu
apenas um cérebro maior, uma memória mais vasta, um léxico ou mecanismos especiais de articulação da fala; evoluíram também novos sistemas
de representação da realidade. Durante este processo, os nossos mecanismos de representação perceberam, de alguma maneira, a utilidade dos
símbolos e inventámo-los completamente; nenhum ambiente simbólico os
precedeu”.
Para mim, como tenho referido em publicações anteriores, a questão
mais difícil de elucidar é a invenção da palavra portadora de um sentido.
16. LANE, H – When the Mind Hears. New York: Random House, 1984 (citado em DONALD,
Merlin – Origins of Modern Mind. Three Stages in the Evolution of Culture and Cognition,
ed. cit.). Poderá dizer-se que estes surdos-mudos que nunca ouviram uma palavra e muito
menos a viram escrita, pensavam e inventavam um sistema de comunicação com os outros,
não linguístico.
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Nas suas aprofundadas investigações sobre a relação entre a palavra
e o conceito, Vygotsky17 acentua que, na criança, a palavra ensinada é
usada para identificar objetos – função nominativa – e para caraterizar o
seu sentido – função significante; o que é uma distinção importante e nos
ajuda a compreender como a palavra vai servir, a partir da adolescência,
para exprimir conceitos abstratos.
Mas Vygotsky não aborda nunca a emergência ou invenção da palavra
na filogénese da espécie.
Como surge no tempo a primeira palavra e, nela, a funcionalidade
representativa?
Diz que “o conceito não vive em condições de isolamento, que não é
uma formação estática congelada, mas uma formação que aparece sempre
num processo de pensamento vital e complexo. Um conceito preenche
sempre certa função ao nível da comunicação, do raciocínio, da compreensão ou da resolução de problemas”.
Com este suporte proponho (tenho proposto) uma teoria18 para tentar
entender a emergência nos seres humanos da palavra.
Enuncio, assim, os pressupostos da teoria de forma sintética:
– A protopalavra só poderia ser um monossílabo gutural, uma vocalização.
Com efeito, nesta fase de evolução do maciço facial a laringe, por
onde passa o ar expirado produzindo o som, é muito alta em relação ao
bordo posterior da língua e o ar sai pela boca aberta sem participação
modulatória de lábios, dentes e língua; que irão, futuramente, atuar sobre
o ar expirado e fazer aparecer as consoantes.
Seria, portanto, uma das cinco vogais, cuja modulação fonética era
apenas de intensidade, duração, altura e ritmo sequencial.
– A palavra não fazia falta para garantir a sobrevivência dos indivíduos e do grupo, pois tudo indica que não foi necessária durante os dois
milhões de anos em que o erectus persistiu. Como refere Robin Dunbar,19
“espalhou-se por todo o Velho Mundo, a partir da sua África natal, para
17. Cf. VYGOTSKY, Lev – Pensamento e Linguagem, ed. cit.
18. É uma teoria tranquilamente apresentada porque ela é, rigorosamente, indemonstrável. Com efeito, ninguém pôde assistir, estar presente, quando um ser humano inventou e
gritou a primeira palavra, a protopalavra, a palavra que jamais tinha sido ouvida por outro
ser humano.
19. DUNBAR, Robin – A História do Homem. Uma nova história da evolução da humanidade. Lisboa: Quetzal Editores, 2006.
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leste até ao nordeste da China, para a região que haveria de se tornar nas
ilhas do arquipélago indonésio e para o norte da Europa”.
– Não sendo, então, a palavra necessária nem para a comunicação
de situações concretas percecionadas, nem para garantir a sobrevivência,
ela não está dependente de nenhuma pressão exterior exercida sobre o ser
humano. Não é, portanto, uma reação, mas é, antes, uma invenção.
Assumindo como válidos estes pressupostos, a questão não se coloca
ao nível do “como surgiu a palavra”, mas sim a um nível diferente que é o
de “porque surgiu a palavra”.
Começo aqui a enunciar a teoria.
Não se destinando a palavra a facilitar qualquer resolução ou decisão
do viver prático e quotidiano, de umas centenas de seres humanos agrupados socialmente, ela deverá ter sido inventada não para ser usada na
caracterização de situações sociais concretas, mas para representar um
acontecimento individual abstrato.
A minha proposta é que esse “acontecimento individual abstrato”
tenha sido a intuição da individuação pessoal.
Iluminada a consciência percetiva por este fulgor que não provinha
do estímulo de nenhum órgão sensorial ou sensitivo, o H. erectus emitiu
um som vocálico e gritou para o grupo social – EU.
Pela primeira vez, uma vocalização exprimia, para os outros, o
sentido do exercício do que, posteriormente, se tem designado por inteligência interior a que chamarei “autoconsciência embrionária”.
Como terá acontecido esta iluminação interior, que imagino súbita
e sem nenhum antecedente a provocá-la ou a prepará-la? Não podemos
senão conjeturar.
Por ela o erectus é, agora, sapiens, o que sabe que é um próprio, um
EU.
A conjetura mais plausível (será?) é a de que um homem, ainda sem
palavra, claro, tenha logrado, ao olhar com particular atenção reflexiva
para outro homem, viu-o – mas sentiu-o como diferente.
No viver quotidiano, os membros destes grupos sociais de povos
“ainda sem palavra” eram todos iguais, não tinham, obviamente, nome
próprio; a comunicação mimética era uma atividade grupal e coletiva.
Nasciam, cresciam e morriam sempre como componentes anónimos do
grupo. Morrer seria “só não ser visto”, na expressão de Pessoa, aplicada
à moderna sociedade de indiferença. Mas, nesse tempo recuado, o grupo
humano era, por natureza, uma sociedade de indiferença e nela morrer
seria só não ser visto.
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Terá acontecido, um dia, que um neandertal ou um cro-magnon
reparou no corpo morto de um seu igual e descobriu-se diferente dele;
então, assinalou esta descoberta – que foi, nele, o exercício do pensamento
abstrato primitivo – e grunhiu para si e para os outros – EU, inventando a
proto palavra.
Mera conjetura, reconheço. Para mim, verosímil.
2.1. Além da palavra
Mas, por esta via ou por outra, a emergência da palavra marca a
possibilidade de uma nova intencionalidade expressiva e alarga a nossa
teoria da mente.
O cérebro humano passa a possibilitar a “criação” de conteúdos
mentais abstratos internos, representados para o exterior por um veículo
sonoro que é a palavra.
Quando esta evolução aconteceu, o controlo cerebral das vocalizações laríngeas, importantíssimas na comunicação mimética, estava
já muito aperfeiçoado e bem associado à mimese facial. Como acentua
Donald20 a mimese “é ainda mais eficiente que a linguagem na difusão de
certos tipos de conhecimento; por exemplo, é ainda a melhor na modelação de papéis sociais, na comunicação de emoções e na transmissão de
capacidades rudimentares… teve os seus sucessos pragmáticos no fabrico
de ferramentas, e nas atividades socialmente coordenadas como a caça, a
manutenção de um lar sazonal e o uso do fogo… foi uma adaptação estável
e bem-sucedida, uma estratégia de sobrevivência para os hominídeos que
durou mais de um milhão de anos”.
Mas, não servia para transmitir uma ideia abstrata, acrescento.
Uma ideia tão abstrata como esta de cada um se descobrir a si
próprio como um próprio, um EU, que se confronta com o mundo e com
os outros.
Este acontecimento seminal, que foi a invenção da palavra significante, vai mudar, radicalmente, a forma como o sapiens se vê a si próprio e
a forma como organiza a relação com o outro – e com os outros do grupo
no qual está inserido.
Até este momento, a evolução dos humanos, principalmente corporal,
era comandada pelos estímulos externos, muitos dos quais induziam
20. Cf. DONALD, Merlin – Origins of Modern Mind. Three Stages in the Evolution of Culture
and Cognition, ed. cit.
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mutações genéticas, fazendo aparecer genes que garantiam o sucesso
adaptativo.
Mas a partir da possibilidade de representar, por palavras, conteúdos
mentais, abriu-se ao Homem, agora um sapiens sapiens, que sabe que sabe
e sabe quem sabe, uma nova forma de ser e de estar no mundo, direi um
ethos específico.
Sabemos, hoje, que o trabalho cerebral executado sobre as perceções
sensoriais, antes do nascimento e, principalmente, depois do nascimento
e da entrada relacional no mundo, estimula a produção de neurónios, em
especial corticais, fazendo crescer o cérebro numa caixa craniana que
se deixa distender e crescer até que as fontanelas anterior e posterior se
encerrem pela ossificação definitiva da calote craniana.
A palavra e, depois, a linguagem e, finalmente, a escrita, a par de
outras representações exteriores simbólicas das criações mentais, tudo
isto tornou possível a criação de toda uma cultura simbólica exterior que
é, hoje, o habitat específico dos humanos.
Como escreve Donald na última página do seu livro,21 “As nossas
mentes funcionam em vários níveis representacionais, filogeneticamente
novos, nenhum dos quais está disponível aos outros animais. Atuamos em
coletividades cognitivas, em simbiose com sistemas externos de memória.
À medida que desenvolvemos novas configurações simbólicas externas e
novas modalidades, reconstruímos a nossa própria arquitetura mental de
uma forma não trivial.”
Esta situação que é a do homem moderno, criador incessante de
cultura exterior simbólica, potenciada pelo ímpeto criativo da Ciência,
não tem, infelizmente, um “correlato” genético pelo que a cria humana
nada conhece do que configura a forma atual de se ser homem. Por isso,
é “obrigada” a adquirir ferramentas específicas para que possa adquirir
tudo (o que é impossível) ou muito (o que é difícil) ou o necessário, para
sobreviver, entre o que está depositado na chamada memória exterior e
conservado em suportes imperecíveis.
Como assinala Donald22, pode hoje adiantar-se o conceito de collectivity of mind, de uma inteligência coletiva.
Como se atingiu esta forma de ser e de estar do Homem no mundo?
A emergência da oralidade referida ao eu pessoal abriu a inesgotável
via de invenção mítica: o homem concreto, ao perceber-se como um certo
elemento do mundo natural, elaborou mentalmente conceitos abstratos
21. Cf. Ibid.
22. Cf. DONALD, Merlin – A Mind so rare. The Evolution of Human Consciousness, ed. cit.
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sobre este espaço, onde se encontrou situado, sobre a matéria que o constituía, sólida, gasosa ou líquida, e sobre a relação do seu eu pessoal com
todos os outros objetos intramundanos – vegetais, animais, ou outras
pessoas. Como diz, algo poeticamente, David Abram,23 a perceção de que há
um mundo mais do que humano, e de que o nosso corpo é parte intrínseca
desse mundo, é a matéria essencial da qual se alimenta a invenção mítica
– como mostram os conteúdos dos mitos fundacionais dos atuais povos
“ainda sem escrita” que Abram, cuidadosamente, estudou.
Os mitos são, portanto, as histórias inventadas pela inteligência
humana em crescente e constante desenvolvimento; em cerca de cem mil
anos e um pouco por toda a terra já habitada pelo sapiens, com relevo para
os povos do Oriente Médio, desenvolveram-se milhares de civilizações
míticas diferenciadas pelo conteúdo das narrativas míticas transmitidas
oralmente de geração em geração.
A palavra, ao ser transferida para um suporte físico exterior, a escrita,
criou uma nova função cerebral até então inexistente e não geneticamente
codificada.
A aprendizagem da leitura provoca no cérebro humano a criação de
novas redes neuronais sinápticas que não existirão nunca no analfabeto;
e, por estas novas estruturas cerebrais, se irá desenvolver a inteligência
formal.
É claro que o analfabeto pensa, interpreta o mundo à sua volta e
decide. Inventa outras simbolizações do pensamento, como, por exemplo,
a pintura (pictogramas), mas a capacidade de comunicar sentidos, em
especial abstratos, do instrumento expressivo pintura, é, reconhecidamente, muito inferior à da palavra escrita.
É este novo cérebro humano que vai ser o agente de toda a cultura
exterior simbólica na qual a ciência assume uma indiscutível liderança.
A intercomunicabilidade dos conteúdos desta cultura configura
o homem moderno como parte de uma mente coletiva dotada de uma
memória exterior muito mais poderosa e rica que a nossa memória de
longa duração; ela está acima das pessoas individuais e está disponível de
forma permanente e quase ilimitada.
A essa mente coletiva, constantemente alimentada pelos conteúdos
das criações das mentes individuais, cada um só acede a uma minúscula
parcela no tempo que lhe é concedido para viver.
23. ABRAM, David – A Magia do Sensível. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009.
(Tradução de: The Spell of the Sensuous. Perception and Language in a More-Than-Human
World. New York: Vintage Books, 1998.)
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Neste tempo de vida, que é o nosso tempo individual, o Homem é,
hoje, um cérebro no qual se articula uma perceção do mundo, individual
e subjetiva, com o conhecimento da representação exterior simbólica
produzida por outros cérebros humanos, depositada em suportes quase
imperecíveis e constitui como que uma mente coletiva universal.
2.2. Será esta uma resposta possível à pergunta colocada
– O que é hoje o Homem?
Mas é uma resposta consistente?
Nas suas linhas gerais que apresentei, embora de forma pouco sistemática, ficou subjacente uma forte valorização do cérebro humano como
o órgão que constrói a identidade humana e uma relativa desvalorização
de informação codificada no genoma.
Esta informação seria instrumental para a constituição do cérebroestrutura, mas a ação do mundo exterior sobre este cérebro-estrutura,
mediada pelos equipamentos sensoriais é que forjaria a identidade de cada
um. Seríamos todos iguais no genoma e todos diferentes no epigenoma.
Sendo a mente coletiva o mais poderoso componente do epigenoma.
Descobertas científicas recentes24 apontam para a possibilidade
de o genoma mudar algumas sequências génicas, alterando o cérebro-estrutura. A raridade deste evento e a sua relação com alterações neuropsíquicas indica que ele é pouco relevante como mecanismo de geração da
identidade.
O determinismo genético – que chegou a cunhar a afirmação de que
cada homem é como é pelos seus genes – é um paradigma esgotado, particularmente no que se refere ao encéfalo humano.25
Esta conceção da natureza humana como um cérebro inteligente
em linha com uma inteligência coletiva é vista por Merlin Donald como o
“triunfo da autoconsciência”.
Mas o que deve entender-se por autoconsciência humana (consciousness ou self-consciousness, na língua inglesa)?
Os neurocientistas usam esta palavra quando estão a referir-se à consciência como perceção consciente, ou cognição, resultante do exercício
24. GAGE, Fred H. & MUOTRI, Alysson R. – “What makes each brain unique”. Scientific
American 306(3) (2012), pp. 20-25.
25. Ver STROHMAN, Richard C. – “5. Genetic determinism as a failing paradigm in Biology
and Medicine: Implications for health and wellness”. In: New Frontiers for Research, Practice
and Policy. Edited by Margaret Scneider Jamner & Daniel Stockls. Los Angeles: University of
California Press, 2000.
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sensorial; tenho consciência do objeto exterior que os meus olhos estão a
ver, a mesa onde trabalho, as palavras que escrevo.
Mas não é isto que é a autoconsciência.
Pessoa26 situa muito bem o problema central da autoconsciência
nestes versos: “De quem é o olhar / que espreita por meus olhos? / Quando
penso que vejo / quem continua vendo / enquanto estou pensando?”.
Não é fácil traçar os contornos do conceito representado pela palavra
autoconsciência.
Tenho dito – usando a metáfora da Física Teórica – que a autoconsciência é o campo onde acontecem as perceções sensoriais, mas não é
a cognição consciente dessas perceções, nem é a atribuição de sentido
emocional e racional ao que é conscientemente percebido.
Ver, sabemos todos, é função orgânica com um claro suporte neurobiológico.
Dar sentidos à imagem visual e memorizá-los é uma atividade cerebral
já em grande parte elucidada pela neurobiologia, tornando obsoleta a
designação de alma sensitiva para o que é atividade cerebral.
A questão em aberto é quem vê, na pergunta angustiada de Pessoa e
nas interpelações filosóficas desde Heraclito até hoje, passando pela quase
sombria reflexão heideggeriana sobre o ser como expressão da natureza
do homem no tempo.
A dificuldade em encontrar uma boa resposta para o quem é que a
resposta terá de ser um conceito totalmente abstrato.
Para ele proponho a palavra autoconsciência, certamente imperfeita
porque do que se trata é de uma intuição que cada um recebe (ou não?)
– com a descoberta que a protopalavra EU (in) definiu para a comunicação ao próprio e aos outros.
À pergunta – quem sou eu? – responderei: sou autoconsciência.
2.3. O correlato estrutural
Não faltam tentativas de localização cerebral do que chamo autoconsciência, mas sempre sucede que os autores estão a chamar consciousness à consciência percetiva, interopercetiva.
Sirva de exemplo o muito louvado livro de Sandra Blakeslee e
Matthew Blakeslee.27
26. PESSOA, F. – Poesias. 4.ª edição. Lisboa: Ática Limitada, 1952.
27. BLAKESLEE, Sandra & BLAKESLEE, Matthew – The Body Has a Mind of Its Own. New
York: Random House Trade Paperbacks, 2007.
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Usando a importante descoberta dos neurónios em espelho, descobertos pelo neurologista italiano Rizzolatti, os autores afirmam que
“when you perceive the actions and emotions of others you use many of
the same neural mechanisms as when you produce those same actions
and emotions. This is the bridge between first-person and third-person
agency”.
Ou seja, para reconhecer e compreender os outros cada um precisa
de se mapear a si próprio, de mapear o seu próprio corpo.
Este mapeamento corporal, no qual Damásio28 também insiste, seria,
para estes autores, a autoconsciência, como um simples produto da interocepção; e a ínsula frontal direita seria a região cerebral onde se articulam o estado do corpo com o estado da mente e desta união resulta
a inteligência emocional como expressão da autoconsciência. Como se
pode inferir deste breve resumo, do que os Blakeslee estão a tratar é de
consciência cognitiva extra e intraceptiva. Jean-Pierre Changeux,29 um
neurologista consagrado que escreveu com Paul Ricœur30 um texto de
aprofundada reflexão sobre a funcionalidade cerebral como suporte do
pensamento, desenvolveu um conceito novo que designa por “espaço de
trabalho” numa publicação, com dois colaboradores, de 1998. Este espaço
de trabalho é neuronal, puramente neuronal.
No esquema simplificado da sua teoria, J.-P. Changeux propõe uma
associação horizontal dos neurónios de axónio longo do córtex, em especial
pré-frontal dorso-lateral, com os do córtex pré-motores, temporais superiores, parietais inferiores, singulares anteriores e posteriores e ainda com
estruturas mais profundas; e uma associação descendente do conjunto do
córtex cerebral com os neurónios talâmicos.
Esta arquitetura do espaço de trabalho neuronal, com relevo para as
várias regiões ativáveis do lobo frontal, tem sido confirmada por ressonância magnética nuclear funcional.
Mas o que estes estudos mostram é que o espaço de trabalho é o território por onde passam as perceções sensoriais para serem valorizadas e
memorizadas e evocadas. Mas não a perceção du moi, como autoconsciência.
28. Cf. DAMÁSIO, António – O livro da Consciência. A construção do cérebro consciente,
ed. cit.
29. CHANGEUX, Jean-Pierre – L’Homme de Vérité. Paris: Editions Odile Jacob, 2002.
30. CHANGEUX, Jean-Pierre & RICŒUR, Paul – Ce qui nous fait penser. La Nature et la Règle.
Paris: Editions Odile Jacob, 1998.
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J.-P. Changeux faz, num capítulo isolado, uma ampla discussão
sobre a palavra com apoio nos autores que já referi e comentei, mas não
coloca a questão da protopalavra e da transição da cultura mimética para
a cultura oral e mítica; que é, a meu ver, onde se situa, pela primeira vez,
na história evolutiva do Homem, a possível origem da autoconsciência.
Não como consciência percetiva dos objetos do mundo exterior, mas como
a perceção de quem tem a perceção de objetos virtuais interiores, inventados por intuição, e promove a sua comunicação por símbolos.31
Uma última questão se impõe nesta tentativa de caraterizar a natureza
do homem moderno que é a da invenção do conceito que se procura representar pela palavra ética, referindo-o ao tempo atual. Afirmando que o
Homem é um animal ético.
Sem nenhuma pretensão de ser original direi que o conceito representado pela palavra “ética” é, para mim, o melhor exemplo de um qualia.
Por esta palavra um filósofo tão lúcido e crítico como Nagel afirma
que os qualia são sempre internos, emergem das nossas experiências
mentais e, portanto, não são compatíveis com qualquer abordagem
objetiva, científica, realizada na terceira pessoa, como: ele teve esta ou
aquela experiência mental. Como escreveu, recentemente, C. Koch – “to
have an experience means to have qualia, and the qualia of an experience
are what specifies that experience and makes it different from other experiences”.
Sidoncha32 afirma que “acreditar nos qualia é aceitar uma teoria não
fisicalista da mente” porque, continua, “os qualia são, afinal, a diferença
entre a dimensão qualitativa das nossas experiências de consciência e
as explicações fisio-funcionalistas da mente, impedindo-as de atingir o
objetivo da autossuficiência em termos explicativos”.
Nesta questão, Sidoncha acha que há qualiófilos e qualiófobos.
Para os primeiros, os qualia são aspetos qualitativos experimentados – e,
nesta medida, fenoménicos – pela pessoa e só por ela conhecidos; para os
segundos, são propriedades não relacionais, privadas, mas que podem ser
objetiváveis na perspetiva de terceira pessoa.
31. J.-P. Changeux aborda a questão do símbolo e da sua significância afirmando que
a variabilidade da organização do cérebro, dependente, como está, das ações epigenéticas,
contrasta com a proposta de uma partilha de significâncias comuns, ou mesmo universais,
como se espera de um símbolo oral ou escrito no interior de uma mesma convenção
linguística.
32. Cf. SIDONCHA, Urbano Mestre – Do Empírico ao Transcendental. A consciência e o
problema mente/corpo, entre o materialismo reducionista e a fenomenologia de Husserl, ed. cit.
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Como me assumo qualiófilo, avanço aqui que a palavra ética pretende
comunicar uma experiência mental que é rigorosamente incomunicável,
porque há um “hiato explicativo” entre experiência mental e correlato
corporal cerebral.
O qualia que a palavra ética pretende caraterizar (sem sucesso) é
uma experienciação mental que terá acontecido num estranho período de
expansão das capacidades mentais de habitantes de um certo território, a
Hélade, e que originou a invenção de palavras novas para representarem
conteúdos mentais abstratos.
Assim foi com logos, pathos, chronos… e ethos.
Com todo o respeito pelos especialistas da língua grega antiga escrita
e pelo seu esforço para decifrarem as experiências mentais que motivaram
estas invenções linguísticas, a minha convicção é esta: quando um ser
humano descobriu, na sua intimidade pessoal, que conseguia avaliar e
valorizar a sua forma particular de ser e de estar no mundo, porque era
logos, gerador de chronos e sujeito a pathos, pronunciou pela primeira vez
o fonema ethos que depois grafou.
Admitindo – e eu admito, para parte das experiências mentais,
incluindo alguns qualia – que é possível dar-lhes alguma objetividade na
perspetiva de terceira pessoa, direi que os seres humanos exprimem este
qualia, na forma como decidem viver, escolhendo o que lhes é favorável e
agradável e evitando o que lhes causa repulsa ou prejuízo.
O qualia “ética” torna-se, de certa forma, reconhecível ou objetivável
nas decisões comportamentais humanas. Na perspetiva de terceira pessoa,
a palavra adequada para este fim não é ética, mas sim, eticidade. Não é o
qualia, mas a qualidade, que é suscetível de ser objetivado.
A ética, como qualia, é, então, a forma particular de ser e de estar
do Homem no mundo que o capacita para decidir comportamentos após
ponderação mental do que, para si, é bom ou mau. No plano estritamente
individual.
O Homem é, portanto, um animal ético, porque tem um cérebro por
meio do qual pode atribuir qualidades às perceções. Não esquecendo,
também aqui, que há um “hiato explicativo” entre a reconhecida ativação
de áreas cerebrais, incluindo a ação de neuropeptídeos, e a experiência
mental interior de agrado ou desgosto.
Os trabalhos científicos e filosóficos dedicados à Ética são incontáveis; desde há uns vinte e seis ou mais séculos que são presentes, em
todas as culturas, reflexões sobre ética.
Mas do que tratam é de eticidade individual e social; não de ética
como qualia mas de eticidade como qualidade. A ética, em Aristóteles, é
eticidade explicada a Nicómaco.
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Damásio,33 direta ou indiretamente, aponta nos seus livros, artigos
e entrevistas para um “fisicalismo” das experiências mentais mesmo nas
áreas relacionadas com a ética (por vezes referida como moral) e com a
religião (na verdade, com a religiosidade dos humanos).
No artigo citado do American Journal of Bioethics, Damásio é mais
assertivo que em qualquer outro texto dos que conheço. Transcrevo
(tradução minha):
Acredito que a ética começou como uma das primeiras e mais gloriosas
criações da inteligência humana, tal como se manifesta nos simples
comportamentos humanos, nas convenções sociais, nas regras morais,
no sentido de justiça e nas leis básicas.
A ética é um projeto em desenvolvimento (ongoing) e as principais
forças que estão por detrás dele são o conhecimento, a racionalidade
e uma combinação de ambas que é designada por sabedoria (wisdom),
atuando numa cultura.
Mas também acredito, contudo, que por detrás das origens da ética na
história humana estiveram fenómenos automáticos e geneticamente
herdados a que chamamos emoções com os seus correspondentes sentimentos (feelings).
Também sugiro que a modulação cultural e a prática atual da ética,
tal como a conhecemos hoje, continua a exigir, em cada indivíduo, um
componente emocional.
Que fique claro que não estou a reduzir a ética às emoções, mesmo
nas versões civilizadas de David Hume ou Adam Smith (reducionistas). Tanto quanto podemos ver, avaliando o espetáculo da evolução
biológica, a natureza parece ser moralmente indiferente e portanto é
improvável que tenha sido o marco para o comportamento ético.
Estou apenas a dizer que o trabalho duro de examinar os factos e de
refletir sobre eles, que culminou, e continua a culminar, na formulação
de regras éticas, em leis e em sistemas de justiça, tem alguns inícios
distantes em certos tipos de emoções. E também digo que a modulação
sociocultural destas emoções, durante o desenvolvimento individual,
bem como a prática de comportamentos éticos em adultos, requereu
e continua a requerer a integridade do aparelho emocional cerebral.
Transcrevi todos estes parágrafos que são a síntese final do artigo para que
não restem dúvidas de que Damásio se refere à eticidade social e comunitária e não à ética como qualia individual.
33. Ver artigo de 2007 – DAMÁSIO, António – “Neuroscience and Ethics: Intersections”.
The American Journal of Bioethics, 7(1) (2007) , pp. 3-7.
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Claro que a eticidade, como norma do relacionamento humano
com os outros e com o mundo natural vivo ou inerte, é uma capacidade
cerebral.
Dunbar34 publicou recentemente, conclusões da sua equipa de investigação sobre a relação entre a dimensão numérica da rede social da pessoa
e a dimensão volumétrica do córtex pré-frontal supraorbitário, o cérebro
executivo de Goldberg.35 Tal como tinha sido observado em primatas, em
1992, os resultados no Homem mostram que a dimensão da rede social
de cada indivíduo está linearmente relacionada com o volume neural do
córtex frontal supraorbitário, o que dá suporte à conceção de que o número
de neurónios em áreas definidas aumenta, após o nascimento, de acordo
com os estímulos que a ele chegam do exterior via órgãos sensoriais.
No caso da região pré-frontal supraorbitária, cuja função é receber
informação das outras regiões e depois dirigir a sua ativação, os investigadores mostraram que não era apenas o número das pessoas do grupo
social envolvente, mas era, de facto, a capacidade do hemisfério direito
de conhecer, nessa rede de indivíduos, os seus estados mentais – conhecimentos, emoções, crenças – que podem ser diferentes dos nossos, como
sujeitos observadores. Esta interação é transmitida ao córtex frontal
supraorbitário que, por passar a ter um maior leque de opções decisórias,
vai aumentar a sua dimensão por recrutamento de novos neurónios no
pool de células neurais estaminais residentes.
É nesta relação entre o indivíduo e o grupo social que a eticidade faz
sentido porque é ela que possibilita um intercâmbio ativo de indivíduos
numa comunidade social estável e pacífica.
3. Conclusão
Em síntese final das perguntas e respostas que fui referindo ao longo
do texto, arbitrariamente, entre centenas de perguntas possíveis e milhares
de respostas, relevo que o Homem tem muitas naturezas que são complementares; no sentido do princípio da complementaridade de Niels Bohr:
todas são verdadeiras, porque todas são consequência lógica, rigorosa, das
metodologias usadas para as conhecer.
34. DUNBAR, R. I. M. [et al.] – “Social laughter is correlated with an elevated pain
threshold”. Proceedings of the Royal Society B. 279(1731) (22 de março de 2012), pp. 1161-1167.
35. Cf. GOLDBERG, Elkhonon – The Executive Brain. Frontal Lobes and the Civilized Mind,
ed. cit.
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Parece que todas essas naturezas se reúnem e todas formam a
Natureza humana total. Mas esta, só a autoconsciência a conhece e de
uma forma incomunicável, por ser um qualia em vez de ser uma natura
naturans, um algo que possa “dar-de-si”, no sentido que Lain Entralgo36
atribui a Zubiri.
É esta uma conclusão que promove uma insatisfação intelectual
naqueles que não assumem que uma só metodologia de observação possa
descrever o todo emergente – que é sempre mais do que a adição ou justaposição das partes. E também nos que não colocam a sua esperança nas
múltiplas equações que um dia transformarão o Caos em Cosmos.
4. Proposta final
O que escrevi é uma pequena amostra do muito que existe publicado
sobre o conceito de natureza humana.
Dei ênfase aos dados das neurociências modernas porque muitos
autores “acreditam” que será um mais perfeito e mais completo conhecimento do modo como trabalha este maravilhoso equipamento biológico
– que é um cérebro humano – que permitirá caraterizar, de uma vez por
todas, a natureza do Homem.
Atrevo-me, para encerrar, a apresentar a pergunta mais radical e a
resposta mais temerária, como anunciei.
A pergunta é esta, na sua radicalidade.
Na complexa natureza do Homem há algum componente que não
será nunca compreendido pela inteligência humana?
A resposta, temerária, que proponho é: não há.
Análise da pergunta.
O componente que é considerado como não compreendido pela
inteligência humana – e que é, como tentei mostrar, aquele onde radica a
especificidade humana, por todos reconhecida, – é o pensamento abstrato
e a sua projeção para fora do corpo biológico, sob forma objetiva (v.g. a
palavra), mas simbólica. Este veículo da ideia abstrata sinaliza-a, representa-a, mas não é a ideia. A esta, em si própria, como emergência, não
temos meios para a conhecer e o uso de um signo para a representar é
uma via sempre imperfeita. Mas não temos outra, por agora.
Não temos, mas vamos ter, no futuro.
É inegável que a encefalização progressiva dos humanos, medida em
ciclos de milénios, dá aos seres humanos deste milénio muito mais capa-
36. ENTRALGO, Pedro Lain – O que é o Homem. Lisboa: Editorial Notícias, 2002.
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cidades que no primeiro milénio d. C. e nos milénios anteriores históricos
e pré-históricos. O que hoje é impossível – pensar o pensamento abstrato,
compreender a autoconsciência – acontecerá e será um desempenho
cerebral. Não do cérebro atual, mas do neocérebro que se irá constituindo
no tempo – muito ou pouco tempo, não sei.
Mas sei – ou julgo saber, por uma intuição sem fundamento – que esta
possibilidade já se verificou uma vez e de tão grandiosa dividiu o tempo
histórico num antes e num depois.
Aconteceu em terras banhadas pelo rio Jordão, habitadas por um
povo inquieto e expectante que aguardava um acontecimento que fosse
o sinal que, verdadeiramente, identificasse a natureza autêntica dos
humanos, da sua origem e do seu destino.
Na verdade, o povo hebreu vivia representado num livro, ainda
incompleto e a aguardar uma esperada conclusão.
Yeshua, um jovem judeu gerado de uma forma estranha, abre um dia
o Livro inconcluso e afirma, com tranquila simplicidade, que ele próprio é
a conclusão anunciada e esperada pelo seu Povo.37
Noutra ocasião, porque lhe perguntaram quem era, usou a metáfora
do pai para responder “Eu e o pai somos um”.38
Esta afirmação, e outras do mesmo teor, levam-me a esta interpretação/convicção: Yeshua, verdadeiro homem, integrado na cultura
37. Esta afirmação de Yeshua (depois chamado o Cristo) parece não ter provocado
grande entusiamo entre os outros hebreus presentes na Sinagoga de Nazaré naquele dia de
Shabbat; e até o quiseram deitar pelo monte abaixo (Lc 4,18).
38. Na narrativa de João, o debate dos hebreus contemporâneos sobre a natureza de
Yeshua ocupa um espaço considerável. ALMEIDA, Bernardo Corrêa d’ – A vida numa palavra.
Uma nova leitura do Evangelho de S. João. Porto: Universidade Católica Editora, 2012 – num
notabilíssimo comentário ao 4.º Evangelho, comenta que, no prólogo poético, o Logos é o
Princípio e é também o Enviado, numa unidade total, como luz verdadeira que ilumina todo
o homem.
SUMARES, Manuel – “Acerca de uma tese Ricœuriana. O Propósitio”. Revista Portuguesa
de Filosofia, 46(1) (1990), pp. 25-142. – comenta a tese Ricœuriana: “Se há apenas um logos,
o Logos de Cristo não me exige, enquanto filósofo, outra coisa senão um mais inteiro e mais
perfeito trabalho da razão; não mais que a razão, mas a razão inteira”, afirmando “malograda a sua tentativa de colocar o logos de Cristo num plano privilegiado relativamente ao
logos grego”.
Frei Bernardo Corrêa d’Almeida considera, contudo, que o logos joanino e o logos grecoromano resultam de “duas tradições distintas”. Este, o greco-romano, “era a razão, a luz,
o poder que permitia conhecer a unidade do uno e do múltiplo, da harmonia e da desarmonia, da razão e da não-razão, da mónade e da díade… O Logos-Jesus, glorificado em Deus,
permite àqueles que o acolhem passar da ignorância à compreensão, da dispersão à unidade,
da morte à vida de Deus”.
O logos greco-romano responde à pergunta – o que é? – o Logos-Jesus responderá à
pergunta – Como é? –, em especial à pergunta como é ser em relação com Deus.
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hebraica do seu tempo, teve a possibilidade – única, até ao momento, de
compreender a sua autoconsciência como “espaço virtual” ou “campo” do
Espírito absoluto e absolutamente desencarnado.
Quando disse o que disse, quando falou afirmando que os outros que
o ouviam não podiam, ainda, compreender as suas palavras, estava a usar
o seu cérebro de uma forma que aos outros cérebros não era possível.
Em linguagem atual e para considerar que o Logos de Yeshua era
natural e não exige mais do que “a razão inteira” direi que foram usadas
novas sinapses (Joseph LeDoux) e constituído um campo de trabalho
(J.-P. Changeaux) com outras capacidades e, principalmente, um outro
cérebro executivo (E. Goldberg) de uma invulgar capacidade. Yeshua terá
logrado – como, não sei – preencher o mind-body gap, terá ultrapassado
o “hiato explicativo”, terá assumido este qualia numa qualidade pessoal
comunicável – mesmo que tivesse de usar a narrativa metafórica e a
estrutura linguística da palavra disponível. Mas haverá melhor forma de
exprimir o qualia do amor aos outros do que a história do filho pródigo
e de um proprietário rural de gado e de terras de lavoura, narrada para
ser entendida pelos membros de uma sociedade agropastoril? Ou o
qualia da dignidade humana expresso na história do samaritano que
ajuda o desvalido, uma parábola que Ramiro Délio Borges de Meneses39
tem submetido a exaustiva hermenêutica em dezenas de publicações?
A minha temerária resposta de que não há nenhum componente
da natureza do homem que a inteligência humana não venha, um dia, a
compreender, fundamenta-se no sentido sempre ascendente da evolução
das nossas capacidades cerebrais e na esperança de que esta evolução
culmine na capacidade de compreender a autoconsciência e de a reconhecer como o Espírito que dá vida ao viver atual, especificamente
humano, e a dará no outro viver, o da “vida do mundo que há de vir”.
Em nós, o espírito (para mim o mesmo que autoconsciência) é um
qualia não comunicável.
Em Yeshua, o Espírito (autoconsciência) revelou-se lhe comunicável,
como Amor ao outro, e foi comunicado.
Por isto, quando o seu cérebro, abandonado por já desnecessário,
ficou quase incapaz de servir de meio para continuar a comunicar aos
homens, as últimas palavras ditas foram as que se deviam esperar: está
tudo concluído, resta-me entregar o espírito ao Espírito.
39. MENESES, Ramiro Délio Borges de – O Desvalido no Caminho. Santa Maria da Feira:
Edições Passionistas, 2008. Cito esta, por todas as numerosas publicações deste Autor sobre
este tópico, porque ela se relaciona, especificamente, com a eticidade do acolhimento da
pessoa doente pelo médico, na figuração de um samaritano.
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