ARANHA, Maria Lucia de Arruda. Filosofando, introdução à Filosofia

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ARANHA, Maria Lucia de Arruda. Filosofando, introdução à Filosofia. 2ª edição revista e atualizada.
São Paulo: Editora Moderna, 1993.
CAPÍTULO 8 - O QUE É FILOSOFIA?
O que pretendo sob o título de Filosofia, como fim e campo das minhas elaborações, sei-o,
naturalmente. E contudo não o sei... Qual o pensador para quem, na sua vida de filósofo, a
filosofia deixou de ser um enigma?... Só os pensadores secundários que, na verdade, não
se podem chamar filósofos, estão contentes com as suas definições. (Husserl)
A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo. (Merleau-Ponty)
1 - Introdução
Lembremos a figura de Sócrates. Viveu em Atenas no século V a.C. Dizem que era um homem
feio, mas, quando falava, era dono de estranho fascínio. Procurado pelos jovens, passava horas discutindo
na praça pública. Interpelava os transeuntes, dizendo-se ignorante, e fazia perguntas aos que julgavam
entender determinado assunto colocava o interlocutor em tal situação que não havia saída senão
reconhecer a própria ignorância. Com isso Sócrates conseguiu rancorosos inimigos. Mas também alguns
discípulos.
O interessante e que na segunda parte do seu método", que se seguia à destruição da ilusão do
conhecimento, nem sempre se chegava de fato a uma conclusão efetiva. Sabemos disso não pelo próprio
Sócrates, que nunca escreveu, mas por seus discípulos, sobretudo Platão e Xenofonte (ver o texto
complementar II deste capítulo: "Ciência e missão de Sócrates"). Afinal, acusado de corromper a mocidade
e desconhecer os deuses da Cidade, Sócrates foi condenado à morte. (Ver referências ao método de
Sócrates ,na Primeira Parte do Capítulo 10 Teoria do conhecimento.)
A partir do que foi dito, podemos fazer algumas observações:

Sócrates não está em seu "gabinete" contemplando "o próprio umbigo", e sim na praça pública.

A relação estabelecida com as pessoas não é puramente intelectual nem alheia às emoções.

Seu conhecimento não é livresco, mas vivo e em processo de se fazer; o conteúdo é a experiência
cotidiana.

Guia-se pelo princípio de que nada sabe e, desta perplexidade primeira, inicia a interrogação e o
questionamento do que é familiar.

Ao criticar o saber dogmático, não quer com isso dizer que ele próprio é detentor de um saber.
Desperta as consciências adormecidas, mas não se considera um "farol" que ilumina; o caminho
novo deve ser construído pela discussão, que é intersubjetiva, e pela busca criativa das soluções.

Portanto, Sócrates é "subversivo" porque "desnorteia", perturba a "ordem" do conhecer e do fazer
e, portanto, deve morrer.
Se fizermos um paralelo entre Sócrates e a própria filosofia, chegaremos à conclusão de que o lugar
da filosofia é na praça pública, daí a sua vocação política. Por ser alteradora da ordem, perturba,
incomoda e é sempre "expulsa da cidade", mesmo quando as pessoas se riem do filósofo ou o consideram
"inútil". Por via das dúvidas, o amordaçam, cortam o "mal" pela raiz e até retiram a filosofia dos cursos
secundários... Mas há outras formas de "matar" a filosofia: quando a tornamos pensamento dogmático e
discurso do poder, ou, ainda, quando cinicamente reabilitamos Sócrates morto, já que então se tornou
inofensivo.
2. A atitude filosófica
Entre os antigos gregos predominava inicialmente a consciência mítica, cuja maior expressão se
encontra nos poemas de Homero e Hesíodo, conforme já vimos no capítulo anterior.
Quando se dá a passagem da consciência mítica para a racional, aparecem os primeiros sábios,
sophos, como se diz em grego. Um deles, chamado Pitágoras (séc. VI a.C.), que também era matemático,
usou pela primeira vez a palavra filosofia (philos-sophia), que significa "amor à sabedoria". É bom observar
que a própria etimologia mostra que a filosofia não é puro logos, pura razão: ela é a procura amorosa da
verdade.
O trabalho filosófico é essencialmente teórico. Mas isso não significa que a filosofia esteja à
margem do mundo, nem que ela constitua um corpo de doutrina ou um saber acabado, com determinado
conteúdo, ou que seja um conjunto de conhecimentos estabelecidos de uma vez por todas.
Para Platão, a primeira virtude do filósofo é admirar-se. A admiração é a condição de onde deriva a
capacidade de problematizar, o que marca a filosofia não como posse da verdade, mas como sua busca.
Para Kant filósofo alemão do século XVIII, "não há filosofia que se possa aprender; só se pode aprender a
filosofar". Isto significa que a filosofia é, sobretudo, uma atitude, um pensar permanente. É um
conhecimento instituinte, no sentido de que questiona o saber instituído.
Portanto, a teoria do filósofo não constitui um saber abstrato, O próprio tecido do seu pensar é a
trama dos acontecimentos, é o cotidiano. Por isso a filosofia se encontra no seio mesmo da história. No
entanto, está mergulhada no mundo e fora dele: eis o paradoxo enfrentado pelo filósofo. Isso significa que
o filósofo inicia a caminhada a partir dos problemas da existência, mas precisa se afastar deles para
melhor compreendê-los, retornando depois a fim de dar subsídios para as mudanças.
3. A filosofia e a ciência
No seu começo, a ciência estava ligada à filosofia, sendo o filósofo o sábio que refletia sobre todos
os setores da indagação humana. Nesse sentido, os filósofos Tales e Pitágoras eram também geômetras,
e Aristóteles escreveu sobre física e astronomia.
Na ordem do saber estipulada por Platão, o homem começa a conhecer pela forma imperfeita da
opinião (doxa), depois passa ao grau mais avançado da ciência (episteme), para só então ser capaz de
atingir o nível mais alto do saber filosófico.
A partir do século XVII, a revolução metodológica iniciada por Galileu promove a autonomia da
ciência e o seu desligamento da filosofia. Pouco a pouco, desse período até o século XX, aparecem as
chamadas ciências particulares - física, astronomia, química. biologia, psicologia, sociologia etc. -,
delimitando um campo especifico de pesquisa.
Na verdade, o que estava ocorrendo era o nascimento da ciência, como a entendemos
modernamente. Com a fragmentação do saber, cada ciência se ocupa de um objeto especifico: à física
cabe investigar o movimento dos corpos; à biologia, a natureza dos seres vivos; à química, as
transformações substanciais, e assim por diante. Além da delimitação do objeto da ciência, se acrescenta
o aperfeiçoamento do método científico, fundado sobretudo na experimentação e matematização. (ver
Capítulos 14 e 15).
O confronto dos resultados e a sua verificabilidade permitem uniformidade de conclusões e,
portanto, certa objetividade. As afirmações da ciência são chamadas juízos de realidade, já que de uma
forma ou de outra pretendem mostrar como os fenômenos ocorrem, quais as suas relações e,
consequentemente, como prevê-los.
A primeira questão que nos assalta é imaginar o que resta à filosofia se ao longo do tempo foi
"esvaziada" do seu conteúdo pelo aparecimento das ciências particulares, tornadas independentes. Ainda
mais que, no século XX, até as questões referentes ao homem passam a reivindicar o estatuto de
cientificidade, representado pela procura do método das ciências humanas.
Ora, a filosofia continua tratando da mesma realidade apropriada pelas ciências. Apenas que as
ciências se especializam e observam "recortes" do real, enquanto a filosofia jamais renuncia a considerar o
seu objeto do ponto de vista da totalidade. A visão da filosofia é de conjunto, ou seja, o problema tratado
nunca é examinado de modo parcial, mas sempre sob a perspectiva de conjunto, relacionando cada
aspecto com os outros do contexto em que está inserido.
Se a ciência tende cada vez mais para a especialização, a filosofia, no sentido inverso, quer
superar a fragmentação do real, para que o homem seja resgatado na sua integridade de e não sucumba
à alienação do saber parcelado. Por isso a filosofia tem uma função de interdisciplinaridade,
estabelecendo o elo entre as diversas formas do saber e do agir.
O trabalho da filosofia sob esse aspecto é importante e, sem negar o papel do especialista nem o
valor da técnica que deriva desse saber, é preciso reconhecer que o saber especializado, sem a devida
visão de conjunto, leva à exaltação do "discurso competente” (ver Capítulos 5 e 11) e às consequentes
formas de dominação.
A filosofia ainda se distingue da ciência pelo modo como aborda seu objeto: em todos os setores
do conhecimento e da ação, a filosofia está presente como reflexão crítica a respeito dos fundamentos
desse conhecimento e desse agir. Então, por exemplo, se a física ou a química se denominam ciências e
usam determinado método, não é da alçada do próprio físico ou do químico saber o que é ciência, o que
distingue esse conhecimento de outros, o que é método, qual a sua validade, e assim por diante. Eles até
podem dedicar-se a esses assuntos, mas, quando o fazem, passam a se colocar questões filosóficas. O
mesmo acontece com o psicólogo ao usar, por exemplo, o conceito de homem livre. Indagar sobre o que é
a liberdade é fazer filosofia.
Mudando o enfoque: e se a questão for o comércio, ou a fábrica? A partir da análise das relações
sociais resultantes da divisão do trabalho, podemos questionar sobre o conceito subjacente de homem
que se encontra nas relações estabelecidas socialmente.
Portanto, a filosofia não faz juízos de realidade, como a ciência, mas juízos de valor. O filósofo
parte da experiência vivida do homem trabalhando na linha de montagem, repetindo sempre o mesmo
gesto, e vai além dessa constatação. Não vê apenas como é, mas como deveria ser. Julga o valor da
ação, sai em busca do significado dela. Filosofar é dar sentido à experiência.
4. O processo do filosofar
4.1 - A filosofia de vida
Como seria o caminhar do filósofo? Na medida em que somos seres racionais e sensíveis, estamos
sempre dando sentido às coisas. Ao "filosofar" espontâneo do homem comum, costumamos chamar
filosofia de vida.
No Capítulo 5 (Ideologia), quando nos referimos à passagem do senso comum para o bom senso,
identificamos esse último à filosofia de vida. Enquanto o senso comum é fragmentário, incoerente, preso a
preconceitos e dogmático, o bom senso supõe a capacidade de organização que dá certa autonomia ao
homem que analisa sua experiência de vida cotidiana.
Como veremos adiante, enquanto o homem comum faz sua filosofia de vida, o filósofo
propriamente dito é um especialista. Mas o especialista filósofo é diferente dos outros especialistas (como
o físico ou o matemático). Por exemplo, quando observamos o estudioso de trigonometria, podemos bem
pensar que grande parte dos homens não precisa se ocupar com esse assunto. No entanto, o mesmo não
acontece com o objeto de estudo do filósofo, cujo interesse se estende a qualquer homem.
Segundo Gramsci, "não se pode pensar em nenhum homem que não seja também filósofo, que
não pense, precisamente porque pensar é próprio do homem como tal". Isso significa que as questões
filosóficas fazem parte do cotidiano de todos nós. Se o filósofo da educação investiga os fundamentos da
pedagogia, o homem comum também se preocupa em escolher critérios - não importa que sejam pouco
rigorosos - a fim de decidir sobre as medidas a serem tomadas na educação de seus filhos.
Estamos diante de diferentes filosofias de vida quando preferimos morar em casa e não em
apartamento, quando deixamos o emprego bem pago por outro não tão bem remunerado, porém mais
atraente, ou quando escolhemos o colégio onde estudar. Há valores que entram em jogo aí. Se escolho
um "colégio fraco para passar de ano e ter tempo para passear", ou se, ao contrário, prefiro um "colégio
forte para me preparar para o vestibular", ou, ainda dentro dessa última opção, "um bom colégio para ter
um contato melhor com o mundo da cultura e abrir as possibilidades de autoconhecimento", é preciso
reconhecer que existem critérios bem diferentes fundamentando tais decisões.
É por isso que consideramos tão importante a introdução do estudo de filosofia nas escolas de 2º
grau. Não propriamente para preparar futuros prováveis filósofos especialistas, mas a fim de dar alguns
subsídios para o aprimoramento da reflexão filosófica inerente a qualquer ser humano. Nesse sentido, o
ensino da filosofia deveria se estender a todos os cursos e não só às classes de ciências humanas.
4.2 - A filosofia propriamente dita
A filosofia propriamente dita tem condições de surgir no momento em que o pensar é posto em
causa, tornando-se objeto de reflexão. Mas não qualquer reflexão. Como vimos, o homem comum, no
cotidiano da vida, é levado a momentos de parada, a fim de retomar o significado de seus atos e
pensamentos, e nessa hora é solicitado a refletir. Entretanto, ainda não é filosofia rigorosa o que ele faz.
Examinemos a palavra reflexão: quando vemos nossa imagem refletida no espelho, há um
"desdobramento", pois estamos aqui e estamos lá; no reflexo da luz, ela vai até o espelho e retorna;
reflectere, em latim, significa "fazer retroceder", "voltar atrás". Portanto, refletir é retomar o próprio
pensamento, pensar o já pensado, voltar para si mesmo e colocar em questão o que já se conhece.
É ainda Gramsci quem diz: "o filósofo profissional ou técnico não só "pensa" com maior rigor lógico, com
maior coerência, com maior espírito de sistema do que os outros homens, mas conhece toda a história do
pensamento, sabe explicar o desenvolvimento que o pensamento teve até ele e é capaz de retomar os
problemas a partir do ponto em que se encontram, depois de terem sofrido as mais variadas tentativas de
solução1." Segundo o professor flermeval Saviani, a reflexão filosófica é radical, rigorosa e de conjunto.
Interpretaremos esses tópicos:
 Radical: a palavra latina radix, radicis significa "raiz", e no sentido figurado, "fundamento, base".
Portanto, a filosofia é radical não no sentido corriqueiro de ser inflexível (nesse caso seria a antifilosofia!), mas enquanto busca explicitar os conceitos fundamentais usados em todos os campos
do pensar e do agir. Por exemplo, a filosofia das ciências examina os pressupostos do saber
científico, do mesmo modo que, diante da decisão de um vereador em aprovar determinado
projeto, a filosofia política investiga as "raízes" (os princípios políticos) que orientam sua ação.
 Rigorosa: enquanto a "filosofia de vida" não leva as conclusões até as últimas conseqüências e
nem sempre é capaz de examinar os fundamentos delas, o filósofo deve dispor de um método
claramente explicitado a fim de proceder com rigor, garantindo a coerência e o exercício da crítica.
Mesmo porque o filósofo não faz afirmações apenas, precisa justificá-las com argumentos. Para
tanto usa de linguagem rigorosa, que evita as ambiguidades das expressões cotidianas e lhe
permite discutir com outros filósofos a partir de conceitos claramente definidos. É por isso que o
filósofo sempre "inventa conceitos", ou cria expressões novas (quanto fizeram isto os gregos)) ou
altera e especifica o sentido de palavras usuais.
 De conjunto: enquanto as ciências são particulares, porque abordam "recortes" da realidade e se
distinguem de outras formas de conhecimento, e a ação humana se expressa nas mais variadas
formas (técnica, magia, arte, política etc.), a filosofia é globalizante, porque examina os problemas
sob a perspectiva de conjunto, relacionando os diversos aspectos entre si. Nesse sentido, além de
considerarmos que o objeto da filosofia é tudo (porque nada escapa a seu interesse), completamos
que a filosofia visa ao todo, à totalidade. Daí a função de interdisciplinaridade da filosofia,
estabelecendo o elo entre as diversas formas de saber e agir humanos.
A maneira pela qual se faz rigorosamente a reflexão filosófica varia conforme a orientação do filósofo e
as tendências históricas decorrentes da situação vivida pelos homens em sua ação sobre o mundo.
5. Qual é a "utilidade" da filosofia?
Para responder à questão, precisamos saber primeiro o que entendemos por utilidade. Eis o
primeiro impasse. Vivemos num mundo em que a visão das pessoas está marcada pela busca dos
resultados imediatos do conhecimento. Então, é considerada importante a pesquisa do biólogo na busca
da cura do câncer; ou o estudo de matemática no 2º grau porque "entra no vestibular"; e constantemente
o estudante se pergunta: "Para que vou estudar isto, se não usarei na minha profissão?"
Seguindo essa linha de pensamento, a filosofia seria realmente "inútil": não serve para nenhuma
alteração imediata de ordem pragmática. Neste ponto, ela é semelhante à arte. Se perguntarmos qual é a
finalidade de uma obra de arte, veremos que ela tem um fim em si mesma e, nesse sentido, é "inútil".
Entretanto, não ter utilidade imediata não significa ser desnecessário. A filosofia é necessária.
5.1 - Onde está a necessidade da filosofia?
Está no fato de que, por meio da reflexão (aquele desdobrar-se, lembra-se?), a filosofia permite ao
homem ter mais de uma dimensão, além da que é dada pelo agir imediato no qual o "homem prático" se
encontra mergulhado.
É a filosofia que dá o distanciamento para a avaliação dos fundamentos dos atos humanos e dos
fins a que eles se destinam; reúne o pensamento fragmentado da ciência e o reconstrói na sua unidade;
retoma a ação pulverizada no tempo e procura compreendê-la.
Portanto, a filosofia é a possibilidade da transcendência humana, ou seja, a capacidade que só o
homem tem de superar a situação dada e não-escolhida. Pela transcendência, o homem surge como ser
de projeto, capaz de liberdade e de construir o seu destino.
O distanciamento é justamente o que provoca a aproximação maior do homem com a vida.
Whitehead, lógico e matemático britânico contemporâneo, disse que "a função da razão é promover a arte
1
A. Gramsci, Obras escolhidas, p. 44. Dermeval Saviani, Educação brasileira. estrutura e sistema, p. 68.
da vida". A filosofia recupera o processo perdido no imobilismo das coisas feitas (mortas porque já
ultrapassadas). A filosofia impede a estagnação.
Por isso, o filosofar sempre se confronta com o poder, e sua investigação não fica alheia à ética e à
política.
É o que afirma o historiador da filosofia François Châtelet: "Desde que há Estado - da cidade grega
às burocracias contemporâneas -, a idéia de verdade sempre se voltou, finalmente, para o lado dos
poderes (ou foi recuperada por eles, como testemunha, por exemplo, a evolução do pensamento francês
do século XVIII ao século XIX). Por conseguinte, a contribuição especifica da filosofia que se coloca ao
serviço da liberdade, de todas as liberdades, é a de minar, pelas análises que ela opera e pelas ações que
desencadeia, as instituições repressivas e simplificadoras: quer se trate da ciência, do ensino, da
tradução, da pesquisa, da medicina, da família, da polícia, do fato carcerário, dos sistemas burocráticos, o
que importa é fazer aparecer a máscara, deslocá-la, arrancá-la... "2
A filosofia é, portanto, a crítica da ideologia, enquanto forma ilusória de conhecimento que visa a
manutenção de privilégios (ver Capítulo 5 - Ideologia). Atentando para a etimologia do vocábulo grego
correspondente à verdade (a-létheia, a-lethetiein, 'desnudar"), vemos que a verdade é pôr a nu aquilo que
estava escondido, e aí reside a vocação do filósofo: o desvelamento do que está encoberto pelo costume,
pelo convencional, pelo poder.
Finalmente, a filosofia exige coragem. Filosofar não é um exercício puramente intelectual. Descobrir
a verdade é ter a coragem de enfrentar as formas estagnadas do poder que tentam manter o status quo é
aceitar o desafio da mudança. Saber para transformar.
Lembremos que Sócrates foi aquele que enfrentou com coragem o desafio máximo da morte.
6. Filosofia: nem dogmatismo. nem ceticismo
Vimos, no Capítulo 3 (O que é conhecimento), que o ceticismo é uma posição filosófica que conclui
pela impossibilidade do conhecimento, quer na forma moderada de suspensão provisória do juízo, quer na
radical recusa em formular qualquer conclusão.
No outro extremo, existe o dogmatismo, segundo o qual o filósofo se considera de posse de
certezas e de verdades absolutas e indubitáveis.
Enquanto o dogmático se apega à certeza de uma doutrina, o cético conclui pela impossibilidade
de toda certeza e, nesse sentido, considera inútil a busca que não leva a lugar nenhum.
Comparando as duas posições antagônicas, podemos perceber que elas têm em comum a visão
imobilista do mundo: o dogmático atinge uma certeza e nela permanece; o cético anseia pela certeza e
decide que ela é inalcançável.
Mas a filosofia é movimento, pois o mundo é movimento. A certeza e sua negação são apenas dois
momentos (a tese e a antítese) que serão superados pela síntese, a qual, por sua vez, será nova tese, e
assim por diante. A filosofia é a procura da verdade, não a sua posse, como disse Jaspers, filósofo alemão
contemporâneo, concluindo que "fazer filosofia é estar a caminho; as perguntas em filosofia são mais
essenciais que as respostas e cada resposta transforma-se numa nova pergunta".
TEXTOS COMPLEMENTARES
1 - A filosofia no mundo
Mas como se põe o mundo em relação com a filosofia? Há cátedras de filosofia nas universidades.
Atualmente, representam uma posição embaraçosa. Por força da tradição, a filosofia é polidamente
respeitada, mas, no fundo, objeto de desprezo. A opinião corrente é a de que a filosofia nada tem a dizer e
carece de qualquer utilidade prática. É nomeada em público, mas - existirá realmente? Sua existência se
prova, quando menos, pelas medidas de defesa a que dá lugar.
A oposição se traduz em fórmulas como: a filosofia é demasiado complexa; não a compreendo; está além
de meu alcance: não tenho vocação para ela; e, portanto, não me diz respeito. Ora, isso equivale a dizer: é
inútil o interesse pelas questões fundamentais da vida; cabe abster-se de pensar no plano geral para
mergulhar, através de trabalho consciencioso, num capítulo qualquer de atividade prática ou intelectual;
quanto ao resto, bastará ter "opiniões" e contentar-se com elas.
2
F. Châtelet. Históra ria da Filosofia; Idéias, doutrinas, v. gp p.39.
A polêmica torna-se encarniçada. Um instinto vital, ignorado de si mesmo, odeia a filosofia. Ela é perigosa.
Se eu a compreendesse, teria de alterar minha vida, Adquiriria outro estado de espírito, veria as coisas a
uma claridade insólita, teria de rever meus juízos. Melhor é não pensar filosoficamente.
E surgem os detratores, que desejam substituir a obsoleta filosofia por algo de novo e totalmente diverso.
Ela é desprezada como produto final e vendas de uma teologia falida. A insensatez das proposições dos
filósofos é ironizada. E a filosofia vê-se denunciada como instrumento servil de poderes políticos e outros.
Muitos políticos vêem facilitado seu nefasto trabalho pela ausência da filosofia. Massas e funcionários são
mais fáceis de manipular quando não pensam, mas tão-somente usam de uma inteligência de rebanho. É
preciso impedir que os homens se tornem sensatos. Mais vale, portanto, que a filosofia seja vista como
algo entediante. Oxalá desaparecessem as cátedras de filosofia. Quanto mais vaidades se ensinem,
menos estarão os homens arriscados a se deixar tocar pela luz da filosofia.
Assim, a filosofia se vê rodeada de inimigos, a maioria dos quais não tem consciência dessa condição. A
auto-complacência burguesa, os convencionalismos, o hábito de considerar o bem-estar material como
razão suficiente de vida, o hábito de só apreciar a ciência em função de sua utilidade técnica, o ilimitado
desejo de poder, a bonomia dos políticos, o fanatismo das ideologias, a aspiração a um nome literário tudo isto proclama a anti-filosofia. E os homens não o percebem porque não se dão conta do que estão
fazendo. E permanecem inconscientes de que a anti-filosofia é uma filosofia, embora pervertida, que, se
aprofundada, engendraria sua
própria aniquilação.
O problema crucial é o seguinte: a filosofia aspira à verdade total, que o mundo não quer. A filosofia é,
portanto, perturbadora da paz.
E a verdade o que será? A filosofia busca a verdade nas múltiplas significações do ser - verdadeiro
segundo os modos do abrangente. Busca, mas não possui o significado e substância da verdade única.
Para nós, a verdade não é estática e definitiva, mas movimento incessante, que penetra no infinito.
No mundo, a verdade está em conflito perpétuo. A filosofia leva esse conflito ao extremo, porém o despe
de violência. Em suas relações com tudo quanto existe, o filósofo vê a verdade revelar-se a seus olhos,
graças ao intercâmbio com outros pensadores e ao processo que o torna transparente a si mesmo.
Quem se dedica à filosofia põe-se à procura do homem, escuta o que ele diz, observa o que ele faz e se
interessa por sua palavra e ação, desejoso de partilhar, com seus concidadãos, do destino comum da
humanidade. Eis por que a filosofia não se transforma em credo. Está em contínua pugna consigo mesma.
(Karl Jaspers. Introdução ao Pensamento Filosófico. p. 138)
II - Ciência e missão de Sócrates
Ora, certa vez, indo a Delfos3, (Querofonte) arriscou esta consulta ao oráculo - repito, senhores: não vos
amotineis - ele perguntou se havia alguém mais sábio que eu; respondeu a Pítia 4 que não havia ninguém
mais sábio. Para testemunhar isso, tendes ai o irmão dele, porque ele já morreu.
Examinai por que vos conto eu esse fato; é para explicar a procedência da calúnia. Quando soube daquele
oráculo, pus-me a refletir assim: "Que quererá dizer o deus? Que sentido oculto pôs na resposta? Eu cá
não tenho consciência de ser nem muito sábio nem pouco: que quererá ele, então, significar declarandome o mais sábio? Naturalmente, não está mentindo, porque isto lhe é impossível". Por longo tempo fiquei
nessa incerteza sobre o sentido: por fim, muito contra meu gosto, decidi-me por uma investigação, que
passo a expor. Fui ter com um dos que passam por sábios, porquanto, se havia lugar, era ali que, para
rebater o oráculo, mostraria ao deus: "Eis aqui um mais sábio que eu. quando tu disseste que eu o era!"
Submeti a exame essa pessoa - é escusado dizer o seu nome; era um dos políticos. Eis, Atenienses, a
impressão que me ficou do exame e da conversa que tive com ele: achei que ele passava por sábio aos
olhos de muita gente, principalmente aos seus próprios, mas não o era. Meti-me, então, a explicar-lhe que
3
4
Em Delfos, havia um templo onde Apolo dava oráculos, predizendo o futuro.
Pítia - Assim se chamava a sacerdotisa do templo de Delfos, que formulava os oráculos (N.T.).
supunha ser sábio. mas não o era. A conseqüência foi tornar-me odiado dele e de muitos dos
circunstantes.
Ao retirar-me, ia concluindo de mim para comigo: "Mais sábio do que esse homem eu sou, é bem provável
que nenhum de nós saiba nada de bom, as ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu. se
não sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um nadinha mais sábio que ele exatamente em não
supor que saiba o que não sei". Daí fui ter com outro, um dos que passam por ainda mais sábios e tive a
mesmíssima impressão; também ali me tornei odiado dele e de muitos outros.
Depois disso, não parei, embora sentisse, com mágoa e apreensões, que me ia tornando odiado; não
obstante, parecia-me imperioso dar a máxima importância
ao serviço do deus. Cumpria-me, portanto, para averiguar o sentido do oráculo, ir ter com todos os que
passavam por senhores de algum saber. (...)
Além disso, os moços que espontaneamente me acompanham - e são os que dispõem de mais tempo, os
das famílias mais ricas - sentem prazer em ouvir o exame dos homens: eles próprios imitam-me muitas
vezes; nessas ocasiões. metem-se a interrogar os outros: suponho que descobrem uma multidão de
pessoas que supõem saber alguma coisa, mas pouco sabem, quiçá nada. Em conseqüência, os que eles
examinam se exasperam contra mim e não contra si mesmos e propalam que existe um tal Sócrates, um
grande miserável, que corrompe a mocidade.
(Platão, Defesa de Sócrates, Col. Os pensadores. São Paulo. Abril Cultural, 1972, p. 14.)
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