erga omnes

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O estatuto jurídico do embrião humano e a inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança Renata Braga Klevenhusen 1 Resumo: O presente artigo objetiva analisar os fundamentos da inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança diante da “coisificação” da vida humana embrionária. Para tanto, investigaremos as teorias científicas sobre o início da vida e o marco inicial adotado pela legislação brasileira para a tutela do concepto. Palavr as­chave: vida humana – embrião – concepto – inconstitucionalidade – células­tronco – pesquisas com seres humanos ­ biossegurança 1. A vida humana embrionária e o Supremo Tribunal Federal Vivemos um momento histórico, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) é chamado a se pronunciar sobre o conteúdo do direito à vida, expresso no caput do artigo 5º. da Constituição Federal, em razão da tramitação da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n°. 54) e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI n°. 3510). A ADPF n°. 54 foi movida pela Confederação dos Trabalhadores na Saúde – CNTS e objetiva que o STF declare inconstitucional, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, os artigos 124, 126 e 128, I e II do Código Penal como impeditivos da interrupção da gestação em caso de gravidez de feto anencefálico, reconhecendo o direito subjetivo da gestante em se submeter a tal procedimento. 1 Pós­Doutoranda no Instituto de Medicina Social da UERJ. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora da disciplina “Bioética e Biodireito” no Programa de Pós­Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá. Coordenadora­adjunta do Programa de Pós­graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá.
Já a ADI n°. 3510 2 objetiva impugnar a constitucionalidade do artigo 5 o . e parágrafos da Lei n° 11.105/2005, por violação do art. 1 o ., III da Constituição Federal, que permite a utilização de células­tronco embrionárias originárias de embriões excedentes das técnicas de reprodução assistida, desde que sejam embriões inviáveis 3 ou congelados há mais de 3 anos. No desenvolvimento da argumentação, sustenta­se que: a) a vida embrionária se inicia com a fecundação e que, a partir desse momento, se estaria diante de um ser humano; b) que a utilização de células­tronco adultas vem apresentando progressos significativos, ou até melhores do que com as células­tronco embrionárias; c) aponta que, em outros países, há específica proteção aos embriões, proibindo­se a utilização de células­tronco embrionárias. O STF convocou uma audiência pública para a oitiva de 22 especialistas sobre o início da vida humana, com o objetivo de obter dados para, segundo o ministro Carlos Ayres Brito, “formular de forma mais clara o que é vida, já que do ponto de vista técnico, não existe na Constituição um conceito claro de quando começa a vida” 4 . Os argumentos dos especialistas a favor do uso das células­tronco foram os seguintes: 1) “as células­tronco adultas não servem para o tratamento de doenças genéticas porque todas as células do corpo de um paciente doente apresentam o mesmo erro genético” 5 ; 2) academias de ciência de 66 países já se declararam a favor de tais pesquisas 6 ; 3) “pesquisar células­tronco embrionárias obtidas de embriões congelados não é resultado de um ato de aborto, porque o embrião congelado por si só não é vida, se não for transferido para o útero” 7 ; 4) “o pré embrião, até o décimo quarto dia, não apresenta as células do sistema nervoso central, o que poderia ser 2 O Ministro Carlos Ayres Britto, relator da referida ADIN, pretende incluir a ação na pauta de dezembro de 2007. Inciso XIII, do artigo 3 o . do Decreto 5.591/2005: “ aqueles com alaterações gneéticas comprovadas por diagnóstico pré­implantacional, conforme normas específicas estabelecidas pelos Ministério da Sáude, que tiveram seu desenvolvimento interrompido por ausência espontânea da clivagem após período superior a vinte e quatro horas a partir da fertilziação in vitro, ou com alterações morfológicas que comprometem o pleno desenvolvimento do embrião”. 4 Mayana Zatz, Pós­Doutora em Biologia Genética pela USP, presidente da Associação Brasileira de Distrofia Muscular e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano. apud Montenegro, Karla Bernardo. “Início da Vida” no STF. Disponível em :<http://www.ghente.org>. Acesso em 20 maio de 2007. 5 Ibidem. 6 Ibidem. 7 Patrícia Helena Lucas Pranke, farmacêutica, doutora pelo Centro de Genoma de Nova Iorque, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da PUC­RS e presidente do Instituto de Pesquisa com Célula­Tronco. apud Montenegro, Karla Bernardo. “Início da Vida” no STF. Disponível em <http://www.ghente.org>. Acesso em 20 maio de 2007.
3 comparado com o parâmetro utilizado para determinar a morte encefálica.” 8 ; 5) “DIU e pílula do dia seguinte são permitidos no Brasil, distribuídos pelo SUS e são procedimentos que impedem o desenvolvimento da gravidez dentro do corpo da mãe, mesmo assim não são condenados nem considerados uma forma de aborto” 9 ; 6) “Se não tivermos nossas células embrionárias, os brasileiros terão que procurar esse tipo fora do país” 10 ; 7) a vantagem da utilização de células­ tronco embrionárias é a sua plasticidade (capacidade de se transformar em mais de 220 tipos de células diferentes) 11 ; 8) Não são embriões criados especificamente para a pesquisa e sim, embriões que serão descartados 12 ; 9) “como a morte do ser humano é coincidente com a morte encefálica, então, se a morte coincide com o término da atividade do sistema nervoso é lícito supor o início da vida humana com o estabelecimento dos três folhetos embrionários, que segundo a Resolução 33/2006 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ocorre 14 dias após a fecundação” 13 . Já os especialistas contrários à utilização das células­tronco embrionárias sustentaram que: 1) "O embrião é um indivíduo, inclusive na sua primeira fase de desenvolvimento" 14 ; 2) “Somos humanos a partir do momento da fecundação e a dignidade humana está lá, intrínseca” 15 ; 3) "A mudança que passamos ao longo da vida é apenas funcional, e não genética” 16 ; 4) "O começo da vida está no início do início do processo e não no início do final, ou seja, temos que respeitar o ser humano a partir da fecundação. A sustentação desta afirmativa é biológica e o 8 Ibidem. Rosália Mendez Otero, professora titular de Biofísica e Fisiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apud Montenegro, Karla Bernardo. “Início da Vida” no STF. Disponível em :<http://www.ghente.org>. Acesso em 20 maio de 2007. 10 Dr. Ricardo Ribeiro dos Santos, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz/Bahia e coordenador científico do Hospital São Rafael, apud Montenegro, Karla Bernardo. “Início da Vida” no STF. Disponível em :< http://www.ghente.org>. Acesso em 20 maio de 2007. 11 Lygia V. Pereira, professora associada do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da USP, apud Montenegro, Karla Bernardo. “Início da Vida” no STF. Disponível em :<http://www.ghente.org>. Acesso em 20 maio de 2007. 12 Ibidem. 13 Luiz Eugênio de Moraes Mello, vice­presidente da Federação das Sociedades de Biologia Experimental e professor de Fisiologia da Unifesp, apud Montenegro, Karla Bernardo. “Início da Vida” no STF. Disponível em: < http://www.ghente.org>. Acesso em 20 maio de 2007. 14 Lenize Aparecida Martins, professora­adjunta do Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília (UnB), apud Montenegro, Karla Bernardo. “Início da Vida” no STF. Disponível em: <http://www.ghente.org>. Acesso em 20 maio de 2007. 15 Cláudia Maria de Castro Batista, professora­adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apud Montenegro, Karla Bernardo. “Início da Vida” no STF. Disponível em: <http://www.ghente.org>. Acesso em 20 maio de 2007. 16 Ibidem
9 argumento é racional" 17 ; 5) "Duas a três horas depois da fecundação, o embrião já se comunica com a mãe. Isto não é vida?” 18 ; 6) “tanto no homem como na mulher, temos experiências com células germinativas (já diferenciadas) que podem ser revertidas para células com características de células embrionárias, pluripotentes, que podem ser utilizadas na medicina regenerativa” 19 ; 7) “O êxito da aplicabilidade das células­tronco adultas nas várias especialidades médicas deve ser valorizado através da cooperação entre o pesquisador e o médico” 20 ; 8) “Após o quinto dia, se este embrião não for transferido para o útero da mãe, ele morre, mas o seu desenvolvimento até este dia é autônomo” 21 ; 9) “é importante que a comunidade científica una esforços para obter algo que traga desenvolvimento, mas que não agrida a vida humana” 22 ; 10) “Não é compreensível do ponto de vista ético, mesmo em nome do progresso da ciência, envolver o ser humano em uma pesquisa que precisará destruí­lo” 23 ; 11) “não seria respeitoso com a dignidade humana utilizar classificações didáticas para remanejar o marco inicial da vida de um ser humano e, a partir daí, passar a executar lesões físicas à sua estrutura, com a justificativa de que abaixo do período arbitrado já não haveria vida quando todas as evidências mostram o contrário” 24 ; 12) “É no mínimo contraditória a situação em que uns embriões são usados para pesquisas enquanto que outros são ofertados às condições para prosseguir no seu desenvolvimento” 25 ; 13) “Parece preferível deixar aos embriões pelo menos a possibilidade de completar o seu desenvolvimento através de seus genitores ou eventualmente por adoção” 26 ; 14) “Lembremos a metafísica dos costumes, de Emmanuel Kant, ‘a dignidade é o princípio moral que enuncia que a pessoa humana 17 Ibidem Lílian Piñero­Eça. Pesquisadora em biologia molecular da Universidade de Bauru e presidente do Instituto de Pesquisa com células­tronco (IPCTRON), apud Montenegro, Karla Bernardo. “Início da Vida” no STF. Disponível em: <http://www.ghente.org>. Acesso em 20 maio de 2007. 19 Alice Teixeira Ferreira, Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina (UNIFESPE/EPM), apud Montenegro, Karla Bernardo. “Início da Vida” no STF. Disponível em: <http://www.ghente.org>. Acesso em 20 maio de 2007. 18 20 Marcelo Vaccari Mazetti, da UNIFESF, apud Montenegro, Karla Bernardo. “Início da Vida” no STF. Disponível em: < http://www.ghente.org>. Acesso em 20 maio de 2007. 21 Elisabeth Kipman Cerqueira, médica especialista em ginecologia e obstretrícia, apud Montenegro, Karla Bernardo. “Início da Vida” no STF. Disponível em :<http://www.ghente.org>. Acesso em 20 maio de 2007. 22 Ibidem. 23 Rodolfo Acatauassú Nunes, mestre e doutor em Cirurgia Geral pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, apud Montenegro, Karla Bernardo “Início da Vida” no STF. Disponível em: <http://www.ghente.org>. Acesso em 20 Maio de 2007. 24 Ibidem. 25 Ibidem. 26 Ibidem.
não deve nunca ser tratada apenas como um meio, mas como um fim em si mesma” 27 ; 15) “O embrião humano não é um simples aglomerado de células porque o comportamento dele é completamente diferente do de outras células” 28 ; 16) “O cérebro se desenvolve porque o embrião se desenvolve. Não é a mãe que desenvolve o cérebro do feto” 29 . Por uma questão de delimitação temática, trataremos, neste trabalho, do objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade, ou seja, da proteção da vida embrionária ex utero. Vale ressaltar que já expusemos nosso posicionamento acerca da equiparação entre o embrião in utero e ex utero em outro trabalho 30 . Como se pode verificar, a discussão sobre as questões referentes à vida humana revela uma gama de informações conflitantes. Concordamos com Luís Roberto Barroso ao afirmar que não estamos“diante de matéria que possa figurar na categoria dos consensos mínimos” 31 A complexidade das questões aumenta na medida em que são incluídas, como elementos da discussão, culturas e ideologias que potencializam os resultados possíveis. Assim, cabe ao Direito concretizar “um mínimo ético” 32 e atender ao pluralismo moral, respeitando o ser humano além das crenças e moralidades 33 . Apesar do esforço doutrinário realizado por alguns estudiosos da matéria 34 , revelador da complexidade da temática e das possíveis soluções para o estatuto jurídico do embrião humano, o 27 Herbert Praxedes ­ professor emérito da Faculdade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa – UFF, apud Montenegro, Karla Bernardo. “Início da Vida” no STF. Disponível em: < http://www.ghente.org>. Acesso em 20 maio de 2007. 28 Dalton Luiz de Paula Ramos, professor de Bioética da Universidade de São Paulo, apud Montenegro, Karla Bernardo. “Início da Vida” no STF. Disponível em :<http://www.ghente.org>. Acesso em 20 maio de 2007. 29 Ibidem. 30 V. KLEVENHUSEN, Renata Braga. Projeto parental e o Estatuto Jurídico do Embrião Humano: limites e possibilidades das técnicas de reprodução assistida. In: KLEVENHUSEN, Renata Braga (coord.) Dir eitos Fundamentais e Novos Dir eitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 83­104. 31 BARROSO, Luís Roberto. Em defesa da vida digna: constitucionalidade e legitimidade das pesquisas com células­ tronco embrionárias. In: Nos limites da vida . Daniel Sarmento e Flávia Piovesan (coord.). Rio de JANEIRO: Lumen Júris, 2007, p.262. 32 MINAHIM, Maria Auxiliadora. Dir eito Penal e Biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 45. 33 Ibidem. 34 Há uma significativa produção científica sobre o tema: ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e Tutela civil do nascitur o. São Paulo: Saraiva, 2000; BARBOZA, Heloísa Helena. Proteção jurídica do embrião humano. In: Biotecnologia e suas implicações ético­jur ídicas. Carlos Maria Romeo Casabona e Juliane Fernandes Queiroz (coord.). Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 248­270; MEIRELLES, Jussara Maria Leal. A vida humana embr ionár ia e sua pr oteção jur ídica. Rio de Janeiro: Renovar, 2000; SILVA, Reinaldo Pereira e. Intr odução ao biodir eito. Investigações político­jur ídicas sobr e o Estatuto da Concepção Humana. São Paulo: LTr, 2002.
que se verifica, do ponto de vista normativo, é a regulamentação da aplicação do conhecimento científico sobre o embrião humano, antes mesmo de buscarmos definir qual tipo de proteção jurídica é merecedor. A postura “aparentemente” neutra do legislador revela , segundo Otero, que na omissão de qualquer disciplina normativa pelo Direito, há sempre um comprometimento político e axiológico 35 . Assim, o vazio jurídico deliberadamente projetado leva à “coisificação” do embrião humano. Esse comprometimento com a “coisificação” é observado no tratamento dado ao embrião humano na Lei de Biossegurança (Lei n°. 11.105/2005) pelos incisos I e II do art. 5 o. , os quais permitem a utilização de células­tronco de embriões inviáveis (inciso I) e de embriões congelados há 3 (três) anos ou mais (inciso II). Ora, antes mesmo de se determinar o tipo de proteção jurídica a ser conferido ao embrião humano, estamos, em atropelos, regulando a aplicação do conhecimento científico, revelando uma postura utilitarista. Segundo Otero, a gravidade da situação envolve uma “encruzilhada existencial”, pois a opção por um caminho pode levar o homem a assumir sua dignidade ou a se transformar em “coisa” 36 . A relação ética com o outro não pode ser uma relação técnica, pois, neste caso, “aquela relação desaparece como tal”. 37 A questão a ser tratada “não é tanto saber se, com o embrião humano, estamos lidando ou não com a espécie humana – pois isso é evidente –, mas nos perguntarmos se estamos lidando com um humano mais que com algo de humano” 38 . Assim, verificamos que o futuro pronunciamento do STF será dotado de um simbolismo especial, pois dirá, afinal, qual o tipo de proteção é merecedor o embrião humano ex utero. 2 A reprodução humana e o estatuto biológico do embrião humano 35 OTERO, Paulo. Per sonalidade e identidade pessoal e genética do ser humano: um per fil constitucional da Bioética. Coimbra: Almedina,1999, p. 27. 36 OTERO, P., op. cit, p. 13­14. 37 Idem. 38 BOURGUET, V., op. cit., p. 15.
Para o enfrentamento da temática, é importante considerarmos as alterações provocadas pelo conhecimento humano no estatuto biológico do embrião humano. Hoje, sabe­se que a reprodução humana faz­se pelo processo de fecundação interna, mediante a união do óvulo e do espermatozóide, a qual resultará na formação do embrião. Esse processo de reprodução natural foi profundamente alterado pelas técnicas de reprodução assistida, que possibilitaram a concepção extracorpórea. Tais técnicas trouxeram diversos benefícios, mas, por outro lado, levantaram sérios questionamentos, tal como o destino a ser dado aos embriões excedentários, entre outros. A análise dos marcos iniciais da vida humana permitirá desmitificar alguns posicionamentos que aparentam “verdades” e encobrem atitudes utilitaristas. 2.1. A concepção natural Ao penetrar no ovócito, o espermatozóide desencadeia a formação de um pronúcleo masculino, no interior do pronúcleo feminino, fazendo com que a sua cauda se degenere. Os pronúcleos, ao se contatarem, perdem a capa nuclear, o que leva à duplicação de seus DNAs. Nessa fase, ocorrem diversas transformações, passando o embrião a ter estrutura cromossômica própria, inclusive com a determinação do sexo e o desenvolvimento dos blastômeros. Ao progredir pela trompa uterina, o embrião sofre inúmeras transformações mitóticas, dividindo­se, cerca de trinta horas após a fertilização, em duas células, chamadas blastômeros. Ao chegar a cavidade uterina, o endométrio estará aumentado em espessura, permitindo a ocorrência do fenômeno da nidação, que ocorre entre o quarto e o quinto dia após a fecundação 39 , dando início à gestação. 39 Ao longo do período que vai da segunda à oitava semana, as células do trofoblasto começam a introduzir­se entre as células da mucosa uterina. Nessa fase, o blastocisto está totalmente inserido na mucosa uterina e, a partir daí, começarão a se desenvolver o sistema nervoso e os novos tecidos, e se iniciará a diferenciação dos órgãos e dos caracteres externos. É possível, nessa fase, a visualização do cérebro, dos membros, da orelha, do nariz e dos olhos do embrião. A partir da oitava semana até o final da vida intra­uterina, há o amadurecimento dos órgãos e dos tecidos. O embrião já possui quase completamente formados os aparelhos circulatório, respiratório, digestivo e urinário. Contudo, os tecidos nervosos e ósseos ainda estão imaturos, pois seu desenvolvimento vai prosseguir inclusive após o nascimento.
O processo relatado até então se refere à reprodução natural. Contudo, com a técnica de fertilização in vitro, as fases iniciais já podem ser realizadas fora do útero materno. É o que se passa a examinar. 2.2. A concepção medicamente assistida As variantes das técnicas de reprodução assistida são as seguintes: fertilização in vitro com transferência intratubária de embriões (Fivete), transferência intratubária de gametas (GIFT), transferência intratubária de ovócitos em estágio pronuclear (PROST) ou de zigotos (ZIFT), dentre outras. As técnicas de fertilização assistida podem ser divididas em dois grupos: a) técnicas invasivas, ocorrendo a fertilização no interior do organismo materno; e b) técnicas não­invasivas, ocorrendo a fertilização fora do organismo materno. A inseminação pode ser homóloga ou heteróloga. A primeira é a técnica mais antiga e consiste na inseminação da mulher com sêmen do marido ou companheiro, por meio da injeção do líquido seminal na cavidade uterina ou no canal cervical durante a fase fértil. Já na inseminação heteróloga, os gametas que se injetarão na mulher não pertencem ao marido ou companheiro, e sim a um doador anônimo. O primeiro registro histórico de fecundação extracorpórea é de 1944, quando os biólogos Rocky e Menken conseguiram extrair quatro embriões humanos de cem ovócitos fertilizados. Foi uma das primeiras técnicas de reprodução assistida, obtendo êxito, em 1978, com o nascimento de Louise Brown. O procedimento da fertilização in vitro apresenta diversas etapas, quais sejam: hiperestimulação ovariana e monitoração do crescimento folicular, coleta dos ovócitos, preparo do esperma, inseminação dos ovócitos, cultivo in vitro e transferência dos embriões. Cada ovócito será inseminado com cerca de 50 espermatozóides móveis por mililitro de meio contendo ovócito. Após a fertilização, a suspensão de ovócitos e espermatozóides será levada para uma estufa, onde permanecerá por um período mínimo de 12 horas e máximo de 18
horas. Em seguida, procede­se à avaliação, por meio de microscópio, dos indicadores da fertilização e da concepção, tais como a expulsão do segundo corpúsculo polar, o aparecimento dos pronúcleos masculino e feminino e a clivagem. Fertilizados ou não, os ovócitos serão transferidos para outra placa com maior concentração de soro, para complementação do meio, permanecendo na estufa para serem novamente examinados após 24 horas. Em seguida, far­se­á a transferência dos embriões em estágio de duas a oito células. A transferência de embriões para a cavidade uterina é limitada ao número de quatro, por determinação da Resolução n°. 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, objetivando a não­ ocorrência de gestações múltiplas ou até de risco para a gravidez. O processo de transferência dos embriões dá­se mediante a colocação dos mesmos em uma cânula, que será introduzida da cérvice até o fundo uterino, onde serão depositados. Após a cânula ser retirada, há exame por microscópio para a verificação da existência de algum embrião no aparelho. A referida Resolução não permite o descarte de embriões. O desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida levou à descoberta de técnicas mais aprimoradas, denominadas “técnicas de micromanipulação”. A micromanipulação consiste na facilitação do ingresso do espermatozóide no óvulo, pois apenas um irá ultrapassar a zona pelúcida. Essa técnica apresenta duas variantes: a) a inseminação subzonal, que consiste em inocular, por intermédio de uma micropipeta, determinada quantidade de espermatozóides, previamente selecionados, bem embaixo da zona pelúcida do chamado espaço perivitelino; b) a inseminação intracitoplasmática, que consiste na injeção de apenas um espermatozóide diretamente no citoplasma do óvulo. Outra técnica, chamada despelucidação, facilita o acesso do espermatozóide ao núcleo do ovócito por meio da perfuração da zona pelúcida. Atualmente, não há limite para o número de embriões a serem gerados pelas técnicas de fertilização in vitro, e, em geral, esse número é superior ao de embriões transferidos para o útero. Os embriões excedentes são criopreservados, e o tempo máximo de manutenção sob criopreservação é questão controvertida. Alguns sustentam que, após o decurso de determinado prazo, a utilização dos embriões pode gerar gravidez de alto risco, em razão das dificuldades que irão ocorrer durante o seu desenvolvimento. Outros entendem que o congelamento não afeta, necessariamente, o desenvolvimento do embrião, pois os embriões podem apresentar deficiência
para o desenvolvimento ou podem permanecer perfeitamente viáveis. Nesse sentido, foi noticiado o nascimento de um bebê sadio fruto de um embrião congelado há 13 anos 40 . 2.3 A concepção: marco biológico da individualização biogenética e da vida humana O desenvolvimento da Engenharia Genética proporcionou a técnica da fertilização fora do útero e, ao admitir­se que a vida se inicia com a concepção, afirma­se que, ainda que a concepção seja extracorpórea, há vida humana. Observa­se um certo consenso quanto à idéia de que a vida humana se inicia a partir da concepção 41 . Contudo, há quem sustente que somente após a nidação, ou seja, após a implantação do embrião no útero, é que existiria vida. A questão, que parece simples à primeira vista, torna­se mais complexa quando alguns países 42 adotam, como referencial normativo, determinados marcos científicos, levando à qualificação do embrião humano em razão do estágio de seu desenvolvimento e atribuindo­lhe níveis diferenciados de proteção jurídica, sustentando, inclusive, o apoio de academias de ciências de outros países. Segundo Luís Roberto Barroso, a pesquisa e terapia com células­tronco são apoiadas por academias de ciências de 63 países. 43 Mas, quem são os cientistas que fazem parte dessas academias? São cientistas que têm interesse pessoal na pesquisa com células­tronco embrionárias ou cientistas neutros neste processo, que partem de uma análise imparcial do próprio desenvolvimento embrionário? Não vejo como esse argumento pode legitimar a opção do legislador brasileiro. Pelo contrário, trata­se de mais um argumento para desconfiarmos da opção do legislador, que deve ter sofrido pressões : “Não podemos ficar de fora”. Tradicionalmente, o termo “embrião” designa tanto o ser após a concepção como o de oito meses de gestação. Já o termo “feto” é empregado para designar o “embrião” que apresenta os 40 PROJETO GHENTE. “Mulher tem bebê fr uto de embr ião congelado há 13 anos”. Disponível em: http://www.ghente.org. Acesso em 03 de novembro 2006. Fonte: Globo Online 41 Entre outros, MOORE, Keith L. Embr iologia. Trad. Bruno Alípio e outros. Rio de Janeiro: Ed. Interamericana, 1975, p. 12. 42 “É possível afirmar que conceitos, mesmo apoiados em bases substanciais, podem cumprir outras funções, inclusive a de servir para uma possível legitimação das idéias pela via científica e normativa”. MINAHIN, M. A., op. cit, p. 82. 43 BARROSO, op. cit. p. 250.
órgãos plenamente desenvolvidos. O termo “pré­embrião” designa o ovo com menos de duas semanas, percebendo­se, nessa designação, o caráter puramente utilitarista do termo, já que, por não se tratar de um embrião, mas de um estágio que antecederia essa condição (se possível), o embrião humano poderia ser alvo de manipulações e até de aniquilação 44 . Utilizar­se­á, neste trabalho, o termo “embrião” em virtude de sua maior abrangência e também por entendermos que não se deve qualificá­lo pela fase de seu desenvolvimento, visto que para a sua proteção pouco importa ter ele um ou vinte dias de existência. Desde o momento de sua concepção, intra ou extracorpórea, deve ser protegido pelo Direito. Ao admitirmos a concepção como marco da individualização humana, algumas considerações devem ser feitas. Após a fertilização do óvulo, decorrerá um período de cerca de 12 horas até a concepção. O fenômeno do encontro dos gametas masculino e feminino é denominado singamia (fertilização), e a fusão dos pronúcleos masculino e feminino é denominada cariogamia (concepção). Esses fenômenos são usualmente tratados como sinônimos, o que representa uma verdadeira incorreção 45 . Após a fecundação, há a formação da primeira célula de um novo ser, que contém o seu genoma, e as trilhões de células que compõem uma pessoa são formadas a partir de sucessivas divisões. A cada divisão, o genoma é copiado para as células filhas. Assim, cada célula contém uma cópia completa do nosso genoma, com exceção das chamadas células germinativas (óvulos e espermatozóides), que possuem uma unidade de cada cromossomo e são chamadas de células haplóides. Quando essas células haplóides se fundem na fecundação, forma­se a célula diplóide, que contém um novo genoma, composto de duas unidades de cada cromossomo. A diversidade na raça humana advém do próprio processo de fecundação, pois há a mistura dos códigos genéticos materno e paterno, gerando seres com genomas diferentes e com 44 Nesse sentido, SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. Imaculada concepção. São Paulo: USP, 1993, p. 83. O relatório sobre a experimentação no embrião (15/cnevc/95), de 4 de outubro de 1995, do Conselho Português de Ética para as Ciências da Vida, denomina erroneamente a fusão dos pronúcleos de singamia, mas afirma que a nova vida humana é marcada pela concepção, ou seja, pela fusão dos dois pronúcleos. Disponível em: < http://www.terravista.pt/enseada/1881/cnecv­vol5vl.htm>. Acesso em 12 jul. 2002.
45 algumas características mais parecidas com as do pai, ou com as da mãe, e outras não reconhecíveis, mas que estavam “invisíveis” no genoma dos ascendentes. Apesar da teoria da singamia ser considerada uma teoria concepcionista, a “verdadeira” concepção ocorre com a cariogamia, ou seja, com a individualização genética, pois, na fase da singamia, o zigoto é formado pelos códigos genéticos materno e paterno isoladamente. Para alguns, a individualidade humana ocorre a partir da singamia, ou seja, antes da concepção. Silva esclarece o conceito de concepção, indicando o equívoco ao se afirmar que no momento da singamia é que ocorreria a individualização do ser humano: Muito embora a teoria da singamia também participe das chamadas doutrinas “concepcionistas”, na teoria da cariogamia o conceito de “concepção” é bem mais específico, já que apenas reconhece o início da individualidade humana após a fusão dos pronúcleos masculino e feminino no interior do ovo [...] a teoria da cariogamia defende que desde a concepção, entendida como a fusão dos pronúcleos dos gametas masculino e feminino, o que já existe é um indivíduo humano em ato, isto é, um indivíduo humano dotado de potencialidade 46 . No estágio de pronúcleos, a célula ainda não possui uma identidade completa, ou seja, ainda não é um novo ser humano em ato, pois nessa fase é possível a troca dos pronúcleos por outros, gerando um ser diferente geneticamente. A partir do fenômeno da cariogamia, o embrião humano deve ser considerado uma “unidade individual”, pois o seu genoma, além de individual, é também unitário, ou seja, é idêntico em todas as fases do desenvolvimento humano, não apresentando qualquer tipo de transformação, responsável por autocomandar todo o processo de desenvolvimento, ou seja, a capacidade do embrião de produzir­se a si mesmo. Analisando as teorias sobre o início da vida humana, Mantovani aponta duas teses contrapostas: a tese do momento da fecundação e a tese das fases sucessivas 47 . Para a primeira tese, de natureza personalista, o início da vida humana ocorre com a concepção. Segundo Mantovani, esta tese se funda na 46 SILVA, Reinaldo Pereira e. Intr odução ao Biodir eito. Investigações político­jur ídicas sobr e o Estatuto da Concepção Humana. São Paulo: LTr, 2002, p. 15. 47 MANTOVANI, Fernando. Uso de gametas, embriões e fetos na pesquisa genética sobre cosméticos e produtos industriais In: CASABONA, Carlos Maria Romeo (org.). Biotecnologia, Direito e Bioética. Belo Horizonte: Del Rey e PUC Minas, 2002, p.187.
“racionalidade biológica”, porque a fusão dos gametas representa o verdadeiro e único “salto de qualidade”, que não se repete. Essa fusão gera uma nova e autônoma individualidade humana, que se desenvolve sem solução de continuidade e sem necessidade de sucessivos estímulos externos até o nascimento. Com uma imagem arquitetônica, o zigoto é, ao mesmo tempo, projetista, encarregado e construtor do novo ser humano. A mãe provê o ambiente de trabalho e o material necessário para a construção. É nessa tese que há mais garantia e mais fidelidade ao perfil de tutela global da vida humana desde suas primeiras manifestações; é fiel ao perfil do princípio da legalidade­ taxatividade, assegurando a certeza sobre o início do ser humano, o que se desvanece nas teses que o pospõem. Conclui­se que zigoto, blastocisto, pré­embrião e embrião indicam, convencional e descritivamente, somente fases diferentes do novo ser humano antes do nascimento; tal como recém­nascido, criança, menino, adolescente, adulto e velho indicam somente as diferentes fases da vida do homem depois do nascimento, sem nada acrescentar e nada deixar faltando à sua ‘humanidade” 48 . Para a segunda tese, o início da vida humana se dá em decorrência das fases sucessivas do seu desenvolvimento, tais como a nidação, a aparição da linha primitiva, suspensão da totipotencialidade, formação do sistema nervoso central ou a organogênese. Mantovani afirma que essa tese é criticada, pois é baseada em uma ideologia utilitarista e convencional: São elaboradas com a finalidade de criar uma fase em que o concebido é considerado uma “coisa” e, por isso, pode ser livremente instrumentalizado [...] Como “coisa”, o pré­embrião – termo inventado pelos “protetores” para indicar que o óvulo fecundado não é ser humano antes de completar duas semanas, reservando­se o termo “embrião” às fases sucessivas – é propriedade dos progenitores (tal como o sêmen masculino pertence ao homem e o óvulo feminino à mulher) ou propriedade de quem fecundou o pré­embrião in vitro. Há outra objeção às teses que protelam o início do ser humano: elas implicam a inevitável sucessão de datações posteriores, porque todo limite precedente está destinado a tornar­se sempre mais estreito diante das ilimitadas razões da pesquisa científica e da indústria. Assim, o longo período de quatorze dias já é objeto de prorrogação, por exemplo, no Canadá, Austrália, Reino Unido. Na lógica utilitarista, toda nova demanda de adiamento dificilmente poderá ser rechaçada” 49 . Segundo Mantovani, o critério da fecundação é o único com base ontológica, pois os demais se baseiam no modelo, já superado, de estágios separados da vida embrionária 50 . Enquadram­se, nessa tese, os defensores da “teoria do 14 o . dia” que sustentam que, antes da formação do embrião, existiria o estágio do chamado “pré­embrião”. Identificada em diversos 48 MANTOVANI, op. cit, p. 187­188. MANTOVANI, op. cit. p. 188­189. 50 MANTOVANI, op. cit, p. 189.
49 textos doutrinários e legais, como, por exemplo, o Informe Warnock sobre fertilização e embriologia , publicado no Reino Unido, em 1984, essa teoria se presta quase que exclusivamente às técnicas de reprodução assistida e manipulação de embriões humanos. Para seus adeptos, A somente é possível afirmar a individualidade após o 14 o . dia, pois, a partir desse marco, é impossível a formação de gêmeos monozigóticos, perdendo o embrião, neste estágio, a qualidade de totipotência e aparecendo a linha primitiva, como marco de um novo ser humano. Com o objetivo de se contrapor a essa teoria, Bourguet sustenta que: O uso dos termos “zigoto” (usualmente aplicado da fecundação às primeiras mitoses), o de blástula, gástrula, feto (aplicado quando os principais órgãos já estão constituídos [....]) tem apenas um valor de baliza para o observador e tampouco tem um alcance “ontológico”: não se trata de modo algum de, por meio desses termos, designar a emergência de um novo ser, mas de um simples balizamento “fenomenológico” em um mesmo indivíduo. 51 Verificamos que a Comissão Warnock utilizou um critério morfológico, privilegiando o esboço dos principais órgãos, quando o critério genético deveria ser considerado. O que parece pretender a comissão é adotar um critério de semelhança com o ser já nascido, para sustentar a noção de espécie humana. Contudo, essa noção “não é mais fundada pela ciência contemporânea na idéia de similitude morfológica (como na classificação lineana), mas na noção de interfecundidade, uma mesma espécie podendo ‘apresentar tipos morfológicos bem distintos’. Assim, um indivíduo pode pertencer à espécie humana sem possuir nenhuma propriedade morfológica adulta” 52 . 51 52 BOURGUET, V., op. cit, p. 54. Ibidem, p. 57.
As teorias denominadas como teses das fases sucessivas estão presentes, apenas, em tratados sobre clonagem, pesquisas com células­tronco embrionárias e reprodução assistida. Já o marco da concepção é uma unanimidade nos tratados sobre embriologia. 53 Sustenta­se, também, em favor da teoria do 14 o . dia que se a morte é definida pela legislação brasileira quando o sistema nervoso pára de funcionar, que a vida começaria com o início do funcionamento do sistema nervoso. Não, necessariamente, o marco do início da vida será o mesmo para o fim da vida. Segundo Luís Roberto Barroso, “É preciso admitir, no entanto, que inexiste consenso científico ou filosófico acerca do momento em que tem início a vida” 54 Há que se discordar dessa afirmação, uma vez que há um marco adotado ´pelo ordenamento jurídico brasileiro para proteção da vida humana e a discussão sobre os novos marcos sobre o início da vida humana não está presente nos tratados de embriologia. O que a Lei 11.105/2005 levanta é a questão da instrumentalização dos marcos biológicos de acordo com interesses de pesquisadores, marco esse, segundo nosso entendimento, delimitado claramente pelo legislador brasileiro, como se verá mais adiante. 3 Plur alismo e o Estado laico Os adeptos das pesquisas com células­tronco embrionárias costumam reduzir os argumentos contrários a este tipo de pesquisa, afirmando que sua fundamentação é baseada na doutrina da Igreja Católica. Visão que, além de reducionista, pois se fecha ao diálogo e ao pluralismo, parece sustentar que tudo aquilo que a igreja católica defende o Estado está proibido de sustentar. A Igreja Católica prega o respeito ao semelhante e, portanto, entende como pecado tirar a vida de outrem. Interessante como este comportamento, também, é tipificado pelo Código Penal como homicídio. Trata­se de uma adoção da ideologia da Igreja Católica pelo legislador? Deve­se ter o cuidado com a INTOLERÂNCIA. Vivemos em um estado laico e não podemos impor, em razão de crenças religiosas, determinados posicionamentos. Mas, devemos 53 Luis Roberto Barroso sustenta que o marco do 14 o . dia é adotado pelos teóricos da embriologia, posição, no mínimo, discutível BARROSO, op. cit, nota de rodapé no. 44.. 54 BARROSO, op. cit, p. 219.
ser prudentes na análise das argumentações, pois podemos chegar à mesma conclusão que a sustentada pela Igreja Católica com base em argumentos não religiosos. A intolerância daqueles que sustentam a pesquisa com células­tronco embrionárias é tão grande em relação a qualquer argumentação contrária, que eles acabam por adotar a postura de se negar a DIALOGAR e de se permitir ver além do que a simples fachada ideológica poderia estar tentando mostrar. Além disso, vários pesquisadores sustentam a viabilidade de maiores investimentos na linha de pesquisa de células­tronco adultas. Apesar da menor plasticidade, inúmeros pesquisadores vêm apresentando excelentes resultados com esse tipo de pesquisa 55 e alegam um boicote a investimentos nesta outra frente de pesquisa. Onde está o pluralismo diante das várias frentes de pesquisa? O que é mais perigoso neste jogo de verdades, vaidades e promessas de cura é a manipulação da informação, ou pior, a informação parcial. Somos levados a acreditar pela mídia e pelos pesquisadores que a clonagem terapêutica não envolve de forma alguma a destruição de uma vida humana e , também, que a pesquisa com células­tronco embrionárias só pode ser realizada com embriões que seriam descartados. Primeiro, a clonagem terapêutica envolve a criação de um embrião humano. Aqueles que . não consideram um embrião de 5 dias uma vida humana estão apresentando um dos posicionamentos e não uma verdade absoluta. Segundo, não há autorização no ordenamento jurídico brasileiro, nem na Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, para o descarte. Portanto, não se trata de um “material” que seria descartado, mas de embriões que foram gerados para fins de implementação de um projeto parental. Assim, só se justificaria a possibilidade de embriões excedentes, e mesmo assim é discutível, caso tais embriões fossem destinados a um projeto parental e não como estoque para pesquisas e terapias experimentais com células­tronco embrionárias. 55 Duas equipes (americana e japonesa) conseguiram criar células­tronco com as mesmas características de células embrionárias, a partir de uma célula de pele humana adulta. 20.11.2007. “Descober ta revolucionár ia nas pesquisas de células­tr onco”. Disponível em : http://jornalnacional.globo.com/Jornalismo/JN/0,,AA1662584­3586,00­ DESCOBERTA+REVOLUCIONARIA+NAS+PESQUISAS+DE+CELULASTRONCO.html. Acesso em 21 nov 2007.
Precisamos ser honestos com a sociedade, precisamos INFORMAR para que a escolha se faça de maneira livre e esclarecida, caso contrário, não haverá escolha e sim uma IMPOSIÇÃO. Afinal, segundo Luís Roberto Barroso, ... cabe à Constituição garantir o espaço próprio do pluralismo político, assegurando o funcionamento adequado dos mecanismos democráticos. A participação popular , os meios de comunicação social, a opinião pública, as demandas dos grupos de pressão e dos movimentos sociais imprimem à política e à legislação uma dinâmica própria e exigem representatividade e legitimidade do poder 56 Ora, seriam frutíferos esses mecanismos se eles não fossem levados apenas para uma das margens do rio. A mídia apenas divulga os sucessos das pesquisas e terapias com células­tronco embrionárias, confunde a opinião pública ao informar que, na clonagem terapêutica, não há a produção de embriões humanos e permite até que, diante desse quadro de credibilidade inabalável e acrítica, pessoas sejam enganadas por um médico em São Paulo que afirmava fazer um tratamento com “pó” de células­tronco embrionárias. Os mecanismos democráticos só cumprem a sua tarefa quando todas as “verdades” são conhecidas e quando o verdadeiro pluralismo é realizado. Quantos brasileiros assistiram a audiência pública convocada pelo STF? E mais, em que medida o STF foi instrumentalizado para decidir essa questão se ele apenas ouviu especialistas totalmente envolvidos com as duas frentes de pesquisa: pesquisas com células­tronco embrionárias e pesquisas com células­tronco adultas? O STF ouviu a opinião de embriologistas desvinculados de interesses pessoais e institucionais? Como acreditar que esse espaço de debate público ocorreu diante desse quadro? Como sustentar a legitimidade da razão pública, se apenas o parcial lhes foi apresentado? Segundo Luís Roberto Barroso As leis editadas pelo Congresso Nacional, por sua vez, expressam a vontade majoritária da sociedade em relação à disciplina da matéria que contém. Cabe ao Supremo Tribunal Federal o papel relevante e delicado de encontrar o ponto de equilíbrio entre (i) a determinação do sentido dos valores inscritos na Constituição e o (ii) respeito ao processo político majoritário 57 56 57 BARROSO, op. cit. p. 260. BARROSO, op. cit. p. 247.
Ressaltamos, mais uma vez, que as leis editadas pelo Congresso só expressam a vontade majoritária na medida em que há informação, e que o papel do STF é o de investigar e respeitar o marco presente no ordenamento jurídico brasileiro. 4 Autonomia sobr e a vida de outr em e a óptica do semelhante Para Luís Roberto Barroso Não se trata de pregar, naturalmente, um relativismo moral, mas de reconhecer a inadequação do dogmatismo onde a vida democrática exige pluralismo e diversidade. Em situações como essa, o papel do Estado deve ser o de assegurar o exercício da autonomia privada, de respeitar a valoração ética de cada um, sem a imposição externa de consulta imperativa.” 58 Nesse sentido, sustenta o referido autor que a lei de biossegurança respeita a autonomia privada e não obriga os genitores, apenas faculta a opção de “doar” (sic) os embriões para pesquisa . Ora, os genitores têm o poder de decidir sobre o destino do outro?. Isso faria parte do exercício do poder familiar? Ou eles estariam dispondo de uma coisa e, portanto, de um bem disponível, que faria parte de seu patrimônio? Afinal, a partir de qual premissa podemos sustentar essa autonomia? Verificamos que a própria lei, apesar de sua postura paradoxal, não permite a utilização de embriões humanos fora dos limites do art. 5 o . . Portanto, podemos concluir que não considera todo e qualquer embrião humano como “bem disponível”. Assim, como justificar a opção dos genitores? No filme “A ilha”, a empresa Emerick. comercializava órgãos e tecidos de clones. O interessante no filme é a forma como essa “comercialização” é apresentada. Em uma determinada cena, diante da fuga de dois clones, denominados, pelos empresários, como produtos, há a apresentação dos serviços da referida empresa. A mensagem que eles pretendem passar é a de saúde e dizem que o clone, chamado de agnata, que será produzido a partir de uma das células do corpo do contratante, permanecerá em estado vegetativo como um aglomerado de células. Mais a frente, o empresário relata confidencialmente a um agente contratado para capturar os clones foragidos que era impossível,do ponto de vista científico, manter a vitalidade dos órgãos sem o densenvolvimento dos embriões­clones gerados. 58 BARROSO, op. cit. p. 249.
Ou seja, no filme, passa­se a falsa impressão de que se está contratando uma coisa e não uma vida humana. Os contratantes não enxergam a sua humanidade em “um aglomerado de células”, o que facilita a contratação do serviço. Nesta sentido, podemos analisar, também, a presente questão sob a ótica apontada por Apel e Lorenz. Apel 59 sustenta que, em razão da amplitude espacial e temporal das ações humanas, torna­se difícil para o homem sentir­se emocionalmente atingido pelas conseqüências de suas ações. Nesse ponto, recorre­se à ilustração realizada por Lorenz 60 , sobre a comparação do homem paleolítico com um machado em punho e o piloto que transportou a bomba de Hiroshima. O manipulador do machado de mão ainda apresentava fortes instintos repressivos, pois ele tinha que se defrontar com seu adversário olho no olho, ou seja, ele via a sua condição de ser humano espelhada no seu adversário. Já a situação do piloto que transportou a bomba de Hiroshima é diferente, pois ele é preservado do encontro humano com o “inimigo”, afinal apenas apertou um botão, não vivenciando as conseqüências da liberação da bomba de forma sensitivo­emocional. Transportando para a questão presente, a dificuldade que possuímos em enxergar a humanidade do embrião extracorpóreo se deve ao fato de que, por estar nos estágios iniciais do seu desenvolvimento, o embrião não apresenta, do ponto de vista morfológico, semelhança com o ser humano já formado. Não negamos a natureza humana do embrião de 6 meses, mas temos dificuldade em ver a mesma humanidade em um embrião de 5 dias, pois, por uma representação morfológica, temos dificuldade em considerá­lo um semelhante. Não se nega a proteção da vida humana do embrião já implantado no útero materno e, portanto, não se pode admitir a existência de um salto qualitativo entre o embrião 61 pré­ implantatório e o embrião implantado, tendo em vista que as etapas de desenvolvimento sofridas inicialmente pelo embrião fora do útero materno são as mesmas que as do embrião dentro do útero. Assim, se há proteção do embrião implantado, por que tratar, de forma diferenciada, o mesmo embrião, apenas por estar em situação extracorpórea? 59 APEL, Karl­Otto. Estudos de Moral Moderna . Trad. de Benoro Dischinger Petrópolis: Vozes, 1994, p. 196. LORENZ, apud APEL, op. cit. p. 165­166. 61 O termo embrião é utilizado de forma genérica, podendo designar tanto o ser após a concepção como o de oito meses de gestação. Assim, utilizar­se­á neste trabalho o termo “embrião” em virtude de sua maior abrangência e também por não se considerar que se deva qualificar o embrião pela fase de seu desenvolvimento, visto que para sua proteção pouco importa o embrião ter um ou vinte dias de existência. Desde o momento da fusão dos pronúcleos, ele já deve ser considerado como pessoa.
60 Considerando os efeitos de uma tutela diferenciada, Minahim sustenta que: Com a permissão para a manipulação de embriões, passa a existir, no direito brasileiro, uma grave antinomia legislativa porque a destruição destes não é compatível com a incriminação do aborto. É bem verdade que se afirma (com argumentos estritamente formais) que, no primeiro caso, não há aborto porque não há gravidez, uma vez que os embriões estão fora do útero. Deve­se observar, porém, que ao proibir o aborto, protege­se a vida, e não o local onde ela se realiza. Assim, não é o ventre ou tubo de ensaio que devem ser determinantes da licitude da conduta, mas o bem jurídico por ela afetado. Se se descobrir, por exemplo, meios para gestação completa de uma criança fora do ventre materno, sua eliminação será lícita? [...] no caso dos pré­embriões, essa apropriação pode ser levada a cabo com mais tranqüilidade, porque os benefícios resultantes de sua destruição são objetivamente comprováveis; além do que a vítima até pode perder esta qualidade, por quem, não sendo considerada pessoa, embora esteja no mundo natural, não está no mundo jurídico. 62 À descontinuidade na categorização científica das fases do desenvolvimento embrionário corresponderá uma descontinuidade nas categorias éticas e jurídicas 63 . O resultado da fixação de marcos de proteção diferenciada do ser humano (nascimento com vida, nidação, situação extracropórea) leva a uma graduação da própria humanidade. Ingo Sarlet sustenta que a dignidade é uma qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser descartado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade 64 ” Para Sarlet, a dignidade não pode ser resumida a uma visão especista: De qualquer modo, o que se percebe [....] é que o reconhecimento da dignidade como valor próprio de cada pessoa não resulta, pelo menos não necessariamente (ou mesmo exclusivamente), em uma biologização da dignidade, no sentido de que esta seria como uma qualidade biológica e inata da natureza humana, geneticamente pré­programada [...] .. 65 Sustenta, ainda, o requerido autor que a dignidade da pessoa humana encontra­se de algum modo, ligada (também) à condição humana de cada indivíduo,mas não há como desconsiderar a necessária dimensão comunitária (ou social) desta mesma 62 MINAHIM, M. A., op. cit., p. 162­164. OLIVIERO, apud BOURGUET, V. , op. cit., p. 60 64 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: uma compreensão jurídico­ constitucional aberta e compatível com os desafios da biotecnologia. . In: Nos limites da vida . Daniel Sarmento e Flávia Piovesan (coord.). Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007, p.216. 65 SARLET, op. cit. p.220.
63 dignidade de cada pessoa e de todas as pessoas, justamente por serem todos reconhecidos como iguais em dignidade e direitos” 66 (p. 220) Há de se discordar da posição de Ingo Sarlet, pois devemos considerar que a pertença à espécie humana e, na esteira de Francis Fukuyama, o compartilhar de uma humanidade comum, seria o elemento gerador de uma primeira dimensão da dignidade, que não se resumiria, na sua toalidade, à pertença à espécie, mas que ali já estaria presente em ato e não em potência. Não consideramos que a concepção especista seja reducionsita ou vulnerável, pelo contrário, sustentar que a pertença à espécie humana não seja um bem a ser tutelado pelo Direito nos torna vulneráveis. Não advogamos a tese do reducionsimo da dignidade à humanidade compartilhada, mas, sim, a tese de que esse seja o seu marco inicial e que outras dimensões serão agregadas oportunamente. Não podemos confundir fins com meios. O objetivo de descobrir a cura de doenças é altamente defensável, mas não pode ser feito a qualquer custo. Caso contrário, legitimaríamos as experiências realizadas pelos médicos nos campos de concentração e os resultados que hoje partilhamos de suas experiências. Vejamos a posição de Luís Roberto Barroso a propósito da Lei de Biossegurança: Não se deve desprezar, todavia, o fato de se tratar de um ser humano em potencial. E muito embora possa permanecer indefinidamente como uma mera potencialidade, não deve ser instrumentalizado. O tratamento dado à matéria pela Lei 11.105/2005 supera, sem margem de controvérsia, esta objeção, haja vista que somente permite a utilização de embriões fecundados in vitro para fins reprodutivos e que não têm a possibilidade de se tornarem seres humanos, porque inviáveis ou não utilizados no processo de fertilziação 67 ” Trata­se de um jogo de palavras. Na verdade, estamos falando de instrumentalização da mesma forma. Por que a lei não admite a pesquisa com todo e qualquer embrião? Se não há dignidade a ser respeitada e,segundo o autor, vida humana a ser protegida, por que vedar a instrumentalização? Se o embrião humano ex utero não tem dignidade e, portanto, é coisa, deveria ser admitida a sua instrumentalização sem restrições. A conclusão que se chega é que a lei é paradoxal, pois objetivou atender a gregos e troianos e criou uma medusa legislativa. E, ainda, partindo da linha de respeito à dignidade, teríamos embriões detentores dessa dignidade e outros não. A questão é ontológica. É isso que temos que enfrentar: afinal, o que é o embrião humano 66 67 SARLET, op. cit. p.220. BARROSO, op. cit. p.254­255.
para o direito brasileiro. E não admitirmos a não atribuição dessa dignidade para tratá­lo como meio, quando nos interessar. A quem interessa a instrumentalização dos embriões? Aos pacientes tão somente?. O que deve ser dito é que a Lei de Biossegurança ora se vale do princípio da dignidade da humana para sustentar uma postura antiutilistarista, ora a utiliza para afirmar que os embriões objeto das pesquisas não a possuem. Nesse sentido, vejamos a posição de Luís Roberto Barroso: A lei brasileira não permite que sejam utilizadas células­tronco extraídas de embriões produzidos exclusivamente para pesquisas. Esse requisito tem uma conseqüência ético­jurídica importante: afastar a objeção antiutilistarista, apoiada no núcleo essencial do princípio da dignidade humana, segundo a qual a utilização de embriões em pesquisas significaria tratá­los como meios para a realização das finalidades de outrem” 68 E continua: Originalmente, a finalidade perseguida era a reprodução. Contudo, como a implantação não ocorreu, na há razões para que suas células não sejam utilizadas para promover a vida e a saúde de pessoas que sofrem de graves patologias” 69 Portanto, podemos concluir pela análise do posicionamento do referido autor que se a finalidade reprodução não foi alcançada, o que teria o condão de conferir ao embrião a total proteção e vedação contra o descarte, haveria permissão para sua instrumentalização.. Devemos analisar a natureza jurídica do embrião não de acordo com a sua finalidade, mas sim pela sua ótica ontológica, ou seja, o que ele é efetivamente. Trata­se, também, de discutir a própria legitimidade da geração de embriões em número superior ao necessário na reprodução medicamente assistida e a sua criopreservação, o que, por uma questão de delimitação temática, não será tratada. Contudo, podemos afirmar que a questão já vem sendo ventilada no projeto de lei sobre reprodução assistida (PL 1184/2003) que veda a produção de mais de 2 embriões e a criopreservação. 4A concepção no direito brasileiro Como apontado em outro item, a concepção pode ser realizada dentro ou fora do útero. Sem adentrarmos na questão da natureza jurídica do concepto, se há ou não atribuição de personalidade jurídica, e, portanto, se ele seria merecedor da atribuição da categoria de pessoa, o que ultrapassaria o objetivo desta trabalho, pois nos atemos a investigação, apenas, do marco biológico adotado pelo legislador brasileiro, verificaremos, pela análise da legislação brasileira, 68 69 BARROSO, op. cit. p. 256. BARROSO, op. cit. p. 257.
que houve a adoção do marco da concepção como momento inicial para a proteção do concebido. Vejamos. O artigo 4 o . do Código Civil de 1916 dispunha que: “A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Ou seja, a partir da concepção, e não do 5 o . dia ou da nidação, havia a proteção do concepto. Tal posicionamento foi mantido pelo Código Civil de 2002, ou seja, mais uma vez, o legislador adota o marco concepção. O Código Penal tipifica o crime de aborto nos seus artigos 124, 125, 126, 127 , punindo a interrupção da gestação e a conseqüente morte do concepto, exceto nos casos previstos no artigo 128. O bem jurídico protegido é a vida humana embrionária, desde o momento da concepção. A Lei n°. 8974/95, revogada pela Lei n°. 11.105/2005, dispunha no artigo 8 o . incisos III e IV: “Art. 8°. É vedado, nas atividades relacionadas a OGM: [...] III – a intervenção em material genético humano ‘in vivo’, exceto para o tratamento de defeitos genéticos, respeitando­se princípios éticos, tais como o princípio de beneficência, e com a aprovação prévia da CTNBio; IV – a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível:”. Tais condutas eram tipificadas, no artigo 13, incisos II e III, como crime, com a previsão de penas entre 2 e 20 anos. Vale ressaltar que a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servirem como material biológico disponível eram apenadas com reclusão de 6 a 20 anos, ou seja, a mesma pena prevista para o crime de homicídio. Já a nova Lei de Biossegurança, Lei n°. 11.105/2005, proíbe a utilização de embriões humanos em desacordo com o que dispõe o seu artigo 5 o, , prevendo pena de detenção de 1 a 3 anos e multa, ou seja, a mesma pena prevista para o crime de aborto provocado ou consentido (artigo 124 do Código Penal). Já ao proibir a prática da engenharia genética em células germinais humanas, zigotos humanos ou embriões humanos, a referida lei estabelece a pena de reclusão de
1 a 4, anos, e multa, ou seja, a mesma pena estabelecida para o agente que provoca aborto consentido. Sustenta Luís Roberto Barroso que“ As normas e categorias tradicionais do direito civil não se aplicam à fecundação extracorporal” 70 . Ora, se entendermos que apenas o legislador protege a vida humana embrionária em razão do marco concepção, e não do locus, in utero ou ex utero, é perfeitamente admissível sustentar que tais categorias se aplicam à fecundação extracorporal. Tanto é que o legislador trata no art. 1597 do CC de 2002 da categoria embriões excedentários, no sistema de presunção de paternidade. Não era uma realidade estranha ao legislador e se ele não distinguiu, o caminho é a equiparação. Para Barroso, a lei de biossegurança teria sido a responsável pela instituição de normas protetivas do embrião. Pensamos que o que a Lei de Biossegurança fez foi criar uma situação paradoxal do ponto de vista ontológico, pois, ao mesmo tempo em que autoriza a utilização de embriões inviáveis ou armazenados há 3 anos, proíbe a utilização de embriões que não estejam enquadrados nestes requisitos. Podemos extrair duas conclusões: a) o legislador protege a vida humana embrionária, desde a concepção, pouco importando se ex utero ou in utero, como se depreende da leitura dos artigos 24 e 25 da Lei n°. 11.105/2005; b) contraditoriamente, defende que o embrião armazenado há mais de 3 anos e o considerado inviável não seriam merecedores dessa tutela, o que nos leva a questionar se a proteção é conferida em razão da concepção ou da sua viabilidade. O inciso II do artigo 5 o . da Lei n°. 11.105/2005 nos leva a crer que, após 3 anos de criopreservação, o embrião humano é inviável, ou seja, há a presunção de sua inviabilidade. Não há, na literatura médica, nenhuma indicação de que, a partir de certo prazo, o embrião criopreservado necessariamente passe a ser inviável 71 . Ou seja, o legislador, para aumentar a oferta de embriões para pesquisa e terapia ou para dar um fim aos embriões criopreservados, elegeu um prazo sem qualquer embasamento científico, contrariando o próprio posicionamento da Lei n°. 11.105/2005, que não permite a utilização de todo e qualquer embrião, inclusive com 70 71 BARROSO, op. cit. p. 252. Quando já foi noticiada uma gestação com o nascimento de bebê sadio, fruto de embrião criopreservado há mais de 13 anos.
efeitos na esfera penal, protegendo, em regra, o embrião humano ex uterodesde a concepção da mesma forma que protege o embrião in utero. 5. Os embriões ex utero e a vedação de sua instrumentalização Para Barretto e Junges, “o debate sobre o embrião não deve ficar circunscrito à comunidade dos cientistas, juristas e aos representantes de organismos da sociedade, mas necessita incluir pensadores das áreas de ciências humanas, principalmente a filosofia e teologia, para que a perspectiva ética seja assegurada” 72 . Acompanhando a posição dos referidos autores, e apesar de sustentarmos que a vida humana se inicia com a concepção, podemos apontar para outra linha de argumentação, de natureza filosófica, que, partindo da idéia de pluralidade, não permitiria a instrumentalização da vida humana embrionária. Como podemos verificar, o debate no STF revelou posicionamentos distintos entre os especialistas, o que poderia nos conduzir à conclusão de que será impossível chegarmos a um consenso sobre o início da vida, ou seja, não podemos dizer quando a vida humana começa. A controvérsia em torno do início da vida humana nos mostra que não temos certeza de que a vida começa a partir do 5 o . dia, como também não podemos afirmar, de forma unânime, que se inicia com a concepção, apesar da adoção clara do marco da concepção pela legislação brasileira. Silva defende que “apenas a certeza de que existem seres humanos com diferentes graus de dignidade autorizaria, do ponto de vista jurídico, a manipulação do zigoto e das células decorrentes de sua clivagem. Caso contrário, a proteção que se lhes é deferida não pode distinguir­se daquela que é conferida a qualquer outro ser humano” 73 . Diante da divergência em torno do tipo de proteção a ser conferido ao embrião humano, devemos advogar em favor da vida. Kant sustenta que é justo e necessário “ver o ato de procriação como um ato pelo qual pusemos no mundo uma pessoa sem seu consentimento, empurrando­a nele de maneira 72 BARRETTO, Vicente de Paulo; JUNGES, José Roque. O embrião e o Supremo. O Globo, coluna Opinião, 19 maio 2007, p. 7. 73 SILVA, Reinaldo Pereira e., op. cit., p. 205.
arbitrária” 74 , o que nos leva a sermos responsáveis por ela. A análise das técnicas de reprodução assistida, sob a perspectiva da procriação, conduz à conclusão de que os usuários das técnicas de reprodução assistida são responsáveis pela vida humana gerada e que, portanto, os embriões humanos não são o resultado da aplicação de uma técnica, mas o fruto de um ato de procriação medicamente assistido. Para explorarmos o conceito de responsabilidade sob a perspectiva ética, recorreremos a contribuição de Hans Jonas. O pensamento de Jonas é um dos referenciais mais influentes no âmbito da ética aplicada na atualidade. A ética de Jonas parte do princípio de que o homem é o único ser que tem responsabilidade, pois apenas os seres humanos podem realizar escolhas conscientes, cabendo, portanto, às gerações atuais a obrigação moral de tornar possível a continuidade da vida e a sobrevivência das gerações futuras. Jonas entende que a ética atual, em qualquer de suas perspectivas, seja teleológica ou deontológica, não é capaz de encontrar uma resposta viável para a gravidade da situação contemporânea. O autor sustenta que as proposições éticas tradicionais valiam­se das seguintes premissas: a imutabilidade da condição humana, resultante da natureza do homem e das coisas, e a delimitação do alcance da ação humana e sua responsabilidade. Contemporaneamente, tais premissas foram alteradas para a mutabilidade da condição humana e a impossibilidade de delimitação do alcance da ação humana e de sua responsabilidade. Jonas propõe uma noção de responsabilidade direcionada a um futuro que não admite o limite da temporalidade do agente reparador do dano, pois o dano se caracteriza pela imprevisibilidade, diferentemente do que ocorria até então, quando “o bem e o mal com que a ação tinha de se preocupar permaneciam próximos do ato, tanto na própria práxis como no seu imediato raio de alcance, e não constituíam matéria de planejamento remoto” 75 . A moralidade anteriormente articulada considerava sempre como elementos a contemporaneidade, a proximidade e a previsibilidade. Mas, a introdução, em especial pela engenharia genética, de novos conhecimentos e de novas possibilidades tecnológicas que permitem alterações de tão diferentes escalas e com conseqüências imprevisíveis, mostrou a 74 75 KANT apud BOURGUET, V., op. cit., p. 162. JONAS, Hans. Ética, medicina e técnica. Trad. António Fernando Cascais. Lisboa: Vega, 1994, p. 34.
insuficiência da ética tradicional. Assim, Jonas redesenha o imperativo kantiano da seguinte forma: “age de tal maneira que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica” 76 . Hoje, o homem deixa o lugar de mero espectador e passa a ser o principal agente transformador, revelando a superação da concepção de natureza caracterizada pela intangibilidade da ordem natural. Para Jonas: Se a nova natureza do nosso agir requer uma nova ética da responsabilidade a longo prazo, coextensiva ao raio de alcance do nosso poder, requer também, e em nome dessa mesma responsabilidade, uma nova espécie de humildade – uma humildade que não é igual à que antes existia, ou seja, que já não o é em face da pequenez, mas antes em face da excessiva magnitude do nosso poder, que se traduz pelo excesso do nosso poder de agir face ao nosso poder de prever e ao nosso poder de avaliar e ajuizar. Em face das potencialidades para­escatológicas dos nossos processos tecnológicos, a ignorância das implicações últimas torna­se ela própria numa razão para que se faça uso 77 de comedimento responsável – à falta da própria sabedoria . O poder sobre a vida, a morte e a continuidade da humanidade sobre a Terra exigem um novo papel do saber na moral. Segundo Jonas: Sob tais circunstâncias, o saber torna­se um dever prioritário, mais além de tudo o que anteriormente lhe era exigido, e o saber deve ter a mesma magnitude da dimensão causal do nosso agir. Mas o fato de que ele realmente não possa ter a mesma magnitude, isto é, de que o saber previdente permaneça atrás do saber técnico que confere poder ao nosso agir, ganha, ele próprio, significado ético. O hiato entre a força da previsão e o poder do agir produz um novo problema ético. Reconhecer a ignorância torna­se, então, o outro lado da obrigação do saber, e com isso torna­se uma parte da ética que deve instruir o autocontrole, cada vez mais necessário, sobre o nosso excessivo poder. 78 . A partir do momento em que o ser humano passou a ser objeto da técnica, possibilitando ao homo faber “refabricar inventivamente o inventor e confeccionador de todo o resto”, esse poder “desafia o último esforço do pensamento ético, que antes nunca precisou visualizar 76 JONAS, H., op. cit. p. 63. JONAS, op. cit, p. 56­57. 78 JONAS, Hans. O princípio r esponsabilidade. Ensaio de uma ética par a a civilização tecnológica. Trad. por Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Editora PUC Rio, 2006, p. 41.
77 alternativas de escolha para o que se considerava serem as características definitivas da constituição humana”, incluídas o início e o fim da vida humana 79 . O poder sobre o início da vida humana nos confrontou com perspectivas que exigem a mais alta sabedoria “uma situação definitivamente impossível para o homem em geral, pois ele não possui essa sabedoria, e para o homem contemporâneo em particular, que até mesmo nega a existência de seu objeto, ou seja, a existência de valor absoluto e de verdade objetiva. Quanto mais necessitamos de sabedoria é quando menos acreditamos nela.” 80 . Quando estamos diante daquilo que caracteriza a essência do ser humano, mesmo que diante da controvérsia, ou melhor, em razão da controvérsia, “não deveríamos arriscar nada.” 81 , pois “para tomarmos uma decisão, deveríamos tratar como certo aquilo que é duvidoso, embora possível, desde que estejamos tratando de um determinado tipo de conseqüência. [...] Esse princípio para o tratamento da incerteza não tem propriamente nada de incerto em si e nos obriga incondicionalmente, isto é, não apenas como um mero conselho de prudência moral, mas como mandamento irrecusável, na medida em que assumimos a responsabilidade pelo que virá. Sob a óptica de tal responsabilidade, a prudência, virtude opcional em outras circunstâncias, torna­se o cerne do nosso agir moral” 82 . Para Jonas, o ato da procriação é a “origem genuína da responsabilidade”; “sua esfera de ação, com sua exigência contínua, é o lugar mais original de seu exercício.” 83 . Assim, ao considerarmos que os embriões em situação extracorpórea são fruto de um ato de procriação medicamente assistido, e não da simples aplicação de uma técnica, verificamos a incidência do princípio ético da responsabilidade, caracterizado por Jonas, no ato de procriação, como a “origem genuína da responsabilidade”. Se não respeitamos o princípio ético da responsabilidade em sua origem genuína, tudo o que se falou até então sobre a proteção do ser humano, em razão do simples fato de pertencer à espécie humana, torna­se fórmula vazia. 79 JONAS, op. cit., p. 57. JONAS, op. cit., p. 63. 81 JONAS, op. cit., p. 77. 82 JONAS, op. cit., p. 87. 83 JONAS, op. cit., p. 90.
80 7 Conclusão Verificamos que a legislação brasileira vem adotando a concepção para a tutela do concepto e que a tese da concepção é a única baseada em argumentos racionais. Contudo, apesar de haver um certo consenso na atribuição da concepção como marco inicial da vida humana, identificamos formas diferenciadas de proteção jurídica do embrião em razão das etapas de seu desenvolvimento e da sua localização, o que acarreta, em alguns casos, a sua coisificação. A ADI n°. 3510, ao impugnar a constitucionalidade do artigo 5o. da Lei n° 11.105/2005, trouxe a questão do início da vida para o âmbito da jurisdição constitucional. Julgamento que, certamente, será marcante na história do direito brasileiro. A Lei de Biossegurança, ao nosso ver, apresenta um tratamento paradoxal dado ao embrião ex utero, pois, ao mesmo tempo, que protege a vida humana embrionária, permite, em alguns casos, que os embriões sejam considerados material biológico disponível para pesquisa. Sustentamos que a questão que deve ser enfrentada, inicialmente, é o tipo de proteção jurídica a ser conferido ao embrião humano e não a regulamentação da utilização de embriões humanos em pesquisa. Mostramos certa preocupação com a instrumentalização do STF, a partir da audiência pública realizada, pois esse mecanismo seria frutífero se a verdadeira pluralidade tivesse sido contemplada e se todas as “verdades” tivessem sido reveladas. Demonstramos o perigo da manipulação da informação sobre a opinião pública, que transforma a sociedade em um fantoche de suas promessas, verdades e projetos. Apontamos que existe um certo consenso quanto à idéia de que a vida humana se inicia a partir da concepção, mais especificamente a partir do fenômeno da cariogamia, momento no qual o genoma humano se individualiza e passa a ser o responsável por autocomandar todo o processo de desenvolvimento, ou seja, a capacidade do embrião de produzir­se a si mesmo.Sustentamos
que o marco concepção não só é o adotado pelos tratados em embriologia, como, também, é o marco inicial presente no ordenamento jurídico brasileiro para proteção da vida humana. Sustentamos que um dos aspectos da questão enfrentada é a dificuldade que possuímos em enxergar a humanidade do embrião extracorpóreo, pois, por estar nos estágios iniciais do seu desenvolvimento, o embrião não apresenta, do ponto de vista morfológico, semelhança com o ser humano já formado. Assim, temos dificuldade em ver a nossa humanidade em um embrião de 5 dias, e, portanto,de compartilhar de uma humanidade comum. Além dessa linha de argumentação, apontamos para outra, de natureza filosófica, que, partindo da idéia de pluralidade, não permitiria a instrumentalização da vida humana embrionária. Partindo da constatação da divergência em torno do tipo de proteção a ser conferido ao embrião humano, sustentamos que, com base em Kant e Jonas, deveríamos advogar em favor da vida. Assim, partindo­se da natureza procriacional das técnicas de reprodução assistida, que geram vidas humanas, concluímos pela necessidade de proteção da vida humana extracorpórea, pois não podemos considerá­la apenas como o resultado objetivo da aplicação de uma técnica, sob pena de refutarmos a natureza e a dignidade humana ali presentes.A reprodução humana deve ser pautada pelo respeito aos princípios da dignidade humana e da paternidade responsável, pois o ato da procriação, ainda que medicamente assistido, é a causa da existência do outro e não um meio para salvar a vida do outro. Bibliografia ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000. APEL, Karl­Otto. Estudos de Moral Moderna. Trad. de Benoro Dischinger. Petrópolis: Vozes, 1994. BARBOZA, Heloísa Helena. Proteção jurídica do embrião humano. In: Biotecnologia e suas implicações ético­jurídicas. Carlos Maria Romeo Casabona e Juliane Fernandes Queiroz (coord.). Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 248­270. BARRETTO, Vicente de Paulo; JUNGES, José Roque. O embrião e o Supremo. O Globo, coluna Opinião, 19 maio 2007, p. 7.
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