48 Revista Filosofia Capital Vol. 5, (2010) - Edição Especial Novas Perspectivas Intelectuais e suas Interfaces Existenciais. ISSN 1982 6613 MORTE E VIDA NA CULTURA TRÁGICA DOS GREGOS DEATH AND LIFE IN THE CULTURE OF THE GREEK TRAGIC BITTENCOURT, Renato Nunes1 RESUMO O artigo versa sobre de que modo a weltschauung grega da denominada era “trágica” compreendia a existência como uma surpreendente confluência entre a vida e a morte, e de que maneira tal percepção servia como uma glorificação incondicional da existência. Morte e vida são instâncias indissociáveis, e ao compreenderem intrinsecamente essa dinâmica existencial, os antigos gregos, conforme as interpretações dos pesquisadores alcançaram uma jubilosa compreensão do valor da vida e da própria morte, evitando-se assim a imersão da antiga cultura grega numa espécie de pessimismo prático, decorrente da falta de sentido para a existência. Palavras-Chave: Nietzsche; Dionisíaco; Trágico; Helenismo; Morte; Vida. ABSTRACT The paper turns on of that way the weltschauung Greek of the called one was “tragic” understood the existence as a surprising confluence between the life and the death, and how such perception served as an unconditional glorification of the existence. Death and life are non-separable instances, and when understanding intrinsically this existencial dynamics, the old Greeks, as the interpretation of the researchers, had reached a jubilant understanding of the value of the life and the proper death, having prevented themselves thus the immersion of the old culture Greek in a species of practical pessimism, passing of the felt lack of for the existence. Keywords: Nietzsche; Dionysiac; Tragic; Helenism; Death; Life. 1 Doutor em Filosofia do PPGF-UFRJ. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, edição especial, vol. 5, 2010, p. 48-59. 49 Revista Filosofia Capital Vol. 5, (2010) - Edição Especial Novas Perspectivas Intelectuais e suas Interfaces Existenciais. ISSN 1982 6613 INTRODUÇÃO Mediante a perspectiva nietzschiana, podemos compreender por “cultura trágica dos gregos” o momento histórico-social no qual a antiga Hélade elabora as primeiras representações das tragédias, encontrando na obra de Ésquilo o primeiro grande expoente de tais criações. Todavia, a ideia de “trágico”, no âmbito dos antigos gregos, expressa uma experiência cultural e uma perspectiva valorativa que transcende as circunstâncias do âmbito puramente histórico-social, dizendo respeito assim a uma interpretação ética e estética da realidade na qual os antigos valores heróicos da Grécia arcaica de Homero e suas criações épicas (Ilíada e Odisséia) foram contestados, estabelecendo-se uma nova axiologia da existência, pautada não mais na adequação ao rígido modo de conduta apolíneo, sustentado pela glorificação da individualidade, mas na compreensão da vida como uma instância valorativa e existencial que perpassa a condição singular do homem. O elemento cultural que permite a formulação de uma consciência trágica entre os gregos antigos consistiu na assimilação dos rituais dionisíacos pela civilização apolínea, que sustentava a sua prática religiosa no panteão olímpico e no seu ideal de beleza, harmonia e serenidade, concretizando assim o espírito da justa-medida, associada imediatamente ao autoconhecimento dos próprios limites existenciais. Conforme argumenta Nietzsche, Esse endeusamento da individuação, quando pensado sobretudo como imperativo prescritivo, só conhece uma lei, o indivíduo, isto é, a observação das fronteiras do indivíduo, a medida no sentido helênico. Apolo, como divindade ética, exige dos seus a medida, e, para poder observá-la, o autoconhecimento (NIETZSCHE, O nascimento da Tragédia, § 4).2 Os primitivos cultos dionisíacos promoviam uma ruptura axiológica em relação a tais disposições, levando os seus seguidores a uma experiência vital na qual a individualidade e o apreço pelas convenções sociais eram abolidos. Como forma de se manter a ordem nas instituições culturais gregas, a valoração apolínea da existência se encontrou na necessidade de estabelecer uma progressiva inserção do dionisismo na Hélade, e dessa interação surgiu então a denominada “visão trágica de mundo”, na qual havia uma confluência de caracteres apolíneos e dionisíacos, e a criação da Tragédia Ática, a qual, de acordo com a interpretação nietzschiana, nada mais é do que a realização-mor de tal interatividade.3 Na cena trágica, não era mais o ideal de beleza apolínea que estava representada, mas a experiência dionisíaca da necessidade de se individuação e da necessidade de se vivenciar uma nova compreensão da existência, na qual a supressão da limitada vida pessoal seria um acontecimento digno de alegria, pois havia a certeza da eternidade da vida, para além da existência individualizada. A visão de mundo trágica, por conseguinte, ao mesmo tempo em que manteve a coesão das instituições gregas, também foi capaz de promover uma nova compreensão da existência e da condição individual humana, sem prejudicar o saudável ordenamento da vida cotidiana. O dionisismo “bárbaro”, destruidor, sendo adaptado pelo espírito apolíneo favorece a criação de uma ética trágica, na qual vida e morte se encontram intimamente 2 Cumpre destacar que a prédica apolínea da “justa medida” se perpetuaria ao longo do desenvolvimento ético da cultura grega na atividade filosófica de Aristóteles, o qual, na sua Ética a Nicômacos, II, 6, 1206 a-b, define a ação virtuosa como aquela que se mantém racionalmente equilibrada entre dois extremos viciosos, o excesso e a falta. 3 NIETZSCHE. O nascimento da Tragédia, § 1. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, edição especial, vol. 5, 2010, p. 48-59. 50 Revista Filosofia Capital Vol. 5, (2010) - Edição Especial Novas Perspectivas Intelectuais e suas Interfaces Existenciais. ISSN 1982 6613 entrelaçadas. Pensar a experiência dionisíaca é pensar a ideia de trágico, e mesmo nos seus elementos mais violentos, havia já tal ideia manifestada, seja em suas ações ou concepções valorativas. 4 A visão trágica de mundo e a intercessão entre Morte e Vida As cerimônias dionisíacas acompanham a ansiada chegada da primavera, sendo assim uma extensão desse período de grande fertilidade na natureza, preconizando sem maiores entraves a libertação desmesurada dos instintos sexuais recalcados pela normatividade social, como afirmação do ato gerador da vida e a constante renovação da existência. Dionísio, tal como Hesíodo já realçara, é aquele que traz muitas alegrias.5 Tais celebrações favoreciam o preenchimento do seio da natureza com novos seres vivos, em substituição aos caracteres mortos dos corpos, devorados pala terra em um processo simbolicamente antropofágico, onde essa substância orgânica se torna a 4 Ressalto que, apesar da pertinência filológica da interpretação de Gérard Lebrun em seu artigo “Quem era Dioniso?” acerca da transformação na obra de Nietzsche em relação ao conceito de “Dionísio”, o qual, na sua dita “primeira fase” intelectual (1868-1876) manifestaria uma forte carga semântica de cunho schopenhaueriano, encontrando então na “terceira fase”, isto é, as obras de maturidade (1882-1888), a sua delineação definitiva e propriamente “trágica”, livre de qualquer resquício schopenhaueriano e pessimista ao estilo romântico. Uma leitura atenta d’ O nascimento da Tragédia evidencia que Nietzsche, apesar da nítida influência do pensamento schopenhaueriano (em especial a partir d’ O Mundo como Vontade e como Representação), já demonstra uma emancipação axiológica em relação ao mesmo, estabelecendo uma compreensão trágica da existência destituída de valorações metafísicas/românticas/pessimistas, ainda que faça uso de conceitos afins. Por exemplo, a questão do “consolo metafísico” tal como apresentada no § 7 de O nascimento da Tragédia, apesar de possuir o termo “metafísico” em sua expressão conceitual, representa em verdade uma experiência existencial de caráter imanente, propriamente “trágica”, pois aquele que vivencia tal processo sagrado compreende que a vida individual, apesar de seu aniquilamento inexorável, se perpetua para além da configuração singular no seio da vida da natureza, na vida cósmica. 5 HESÍODO. Teogonia, v. 941. fonte nutriente de outros seres vivos, numa roda cósmica que faz girar o processo do existir e do perecer constante das inúmeras formas de vida manifestadas na terra. A vida se engendra na obscuridade e nas profundezas da terra, onde a semente morre e se destrói, para posteriormente eclodir com uma força alegre sobre a terra.6 O espírito dionisíaco imerge o indivíduo nas forças telúricas, dotadas de uma energia criadora cuja percepção humana, usualmente limitada, é incapaz de conceber na sua intensa plenitude. O núcleo vital da terra encontra expressão imediata no ventre materno, pois de ambos brota a expressão da vida em sua mais rica profusão, manifestando sempre o instante mágico da singularidade, pois todo vivente, ao se individualizar na configuração extensiva, representa sempre uma nova parcela da grande vida cósmica, que jamais repete uma organização vital. A terra é mãe comum que engendra, ilumina e recolhe de novo em seu seio os seres vivos.7 Para Nietzsche, a visão dionisíaca da existência nos faz ver que somos ditosos viventes, não como indivíduos, mas como o próprio uno vivente, com cujo gozo procriador estamos fundidos.8 Podemos então dizer que, na perspectiva dionisíaca, não haveria a “morte” propriamente dita, pois que todo tipo de forma de vida, ao perder as suas funções orgânicas, é apropriada pela natureza, que transforma então essa matéria em energia dinâmica a ser assimilada por outros corpos.9 A terra se nutre da matéria dos corpos devolvidos ao seu seio materno, 6 SANTIAGO-GUERVÓS. “Nos limites da linguagem: Nietzsche e a expressão vital da dança”, In: Cadernos Nietzsche n. 14, p.96. 7 MORENO, L. G. Nietzsche, p. 66. 8 NIETZSCHE. O nascimento da Tragédia, § 17. 9 Neste momento, podemos nos aproveitar pelas ideias abordadas por Kerényi em Dioniso, p. 177, segundo o qual a morte e a destruição da vida seriam parte da própria vida, refletindo assim a percepção global da epifania dionisíaca de que existe uma grande unidade entre todas as expressões da natureza, mesmo que biologicamente “mortas”. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, edição especial, vol. 5, 2010, p. 48-59. 51 Revista Filosofia Capital Vol. 5, (2010) - Edição Especial Novas Perspectivas Intelectuais e suas Interfaces Existenciais. ISSN 1982 6613 acolhendo-os mais uma vez para que, numa ocasião posterior, possam ser novamente desprendidos de seu núcleo unificador, proporcionando mais uma vez a instauração da configuração individual, até o momento em que a sua energia motriz venha a se dissipar. Ésquilo, nas Coéforas, apresenta a ideia axiologicamente dionisíaca de que o sangue sorvido pela terra é o nutriente de todos os seres, e a terra depois recebe deles de novo o gérmen fecundador, acontecimento esse misterioso, que pode ser entendido tanto como a energia vital que engendra um novo ser no ventre feminino, como também a matéria extensiva que é assimilada pelo grande organismo telúrico quando o corpo “morto” de um ser entra em contato com a terra.10 Por conseguinte, o rito dionisíaco revela ao ser humano a compreensão intuitiva de que o ciclo da vida engloba a morte. A experiência da dor, conseqüentemente, também não poderia ser vilipendiada, pois a vida individual surge através da vivência de dor da mãe, que simultaneamente ao seu padecimento expressa a alegria pelo nascimento do seu rebento, e essa experiência convergente de afetos díspares decorre da expressão dionisíaca da natureza, que faz da contradição a mais intensa expressão da vida. Conforme argumenta Nietzsche, (...). Pois somente nos mistérios dionisíacos, na psicologia do estado dionisíaco, expressa-se o fato fundamental do instinto helênico – sua “vontade de vida”. Que garantia o heleno para si com esses mistérios? A vida eterna, o eterno retorno da vida; o futuro, prometido e consagrado do passado; o triunfante Sim à vida, acima da morte e da mudança; a verdadeira vida, como continuação geral mediante a procriação, mediante os mistérios da sexualidade. Para os gregos, então, o símbolo sexual era o símbolo venerável em si, o autêntico sentido profundo no interior da antiga 10 ÉSQUILO. As Coéforas, vs. 81-82. religiosidade. Todo pormenor do ato da procriação, da gravidez, do nascimento, despertava os mais elevados e solenes sentimentos. Na doutrina dos mistérios a dor é santificada; as “dores da mulher no parto” santificavam a dor em geral – todo vir-a-ser e crescer, tudo o que garante o futuro implica a dor... Para que haja o eterno prazer da criação, para que a vontade de vida afirme eternamente a si própria, tem de haver também a “dor da mulher que pare” (NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, “O que devo aos antigos”, § 4). A “promessa na vida” que se revela como o sentido profundo do simbolismo das atividades dionisíacas encerra como significado uma bendição trágica da existência: a vida exuberante retorna e ressurge eternamente da destruição e da dor que ela própria inelutavelmente conjura, comenta Oswaldo Giacóia. 11 Toda expressão de vida decorre de uma fusão entre os estados de prazer e de dor, até mesmo o jubiloso ato de nascimento de um novo ser. O que o espírito dionisíaco exibia ao homem grego era o caráter sagrado da dor, pois somente a partir desta a vida se tornava possível, pois a efetivação de toda expressão de vida ocorre justamente mediante uma intensa experiência de choque. A mãe, ao conceber o filho, realiza um esforço extraordinário para lhe dar a luz, processo que para ela é um misto de dor e gozo, estados que caminham lado a lado na configuração imanente da existência. A mãe terrena, individual, é uma expressão singular da sagrada Mãe telúrica originária, que engendra os seus filhos na dicotomia de prazer-dor, vida-morte. Todo ventre de mulher é imagem da Mãe-Terra.12 A geração e o parto são versões microcósmicas de um ato exemplar 11 GIACÓIA JR., Oswaldo. Os Labirintos da Alma: Nietzsche a auto-supressão da moral, p. 187. 12 BACHOFEN, J. J. El Matriarcado, p. 37. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, edição especial, vol. 5, 2010, p. 48-59. 52 Revista Filosofia Capital Vol. 5, (2010) - Edição Especial Novas Perspectivas Intelectuais e suas Interfaces Existenciais. ISSN 1982 6613 realizado pela terra; a mãe humana não faz mais do que imitar e repetir esse ato primordial da aparição da vida no seio da terra.13 A semente deve ser enterrada para que um vegetal possa posteriormente florescer. Agregando no seu ventre o princípio vital, a potência materna da natureza faz o gérmen vivenciar uma metamorfose simbólica de vida-morte, pois que no momento em que a semente está contida nas suas entranhas, ela está metaforicamente morta, e torna a “viver” quando é devolvida para a natureza na sua nova configuração expressiva. Uma vez que a dor fora divinizada no dionisismo, também a morte o foi, pois ela não resulta na supressão da criatividade da vida, mas na sua mais bela continuidade, pois efetivamente não há dissociação entre morte e vida no núcleo plástico da natureza. Da mesma maneira que a experiência dionisíaca proporciona uma compreensão afirmativa da própria morte, retirando-lhe os seus traços pesarosos e tristonhos, ela também desfere um golpe fortíssimo contra as especulações metafísicas de um possível mundo pós-morte, pois que nada lhe é mais estranho do que a crença esperançosa numa dimensão transcendente, radicalmente separada desse mundo em que vivemos. Conforme os dizeres de Vernant e VidalNaquet, Plenitude do êxtase, do entusiasmo, da possessão, mas também bemaventurança do vinho, alegria da festa, prazer do amor, felicidade do cotidiano, Dionísio pode trazer tudo isso se os homens souberem acolhêlo, e as cidades, reconhecê-lo; assim como pode trazer infelicidade e destruição, se negado. Mas em nenhum dos casos ele vem para enunciar uma sorte melhor no Além. Ele não preconiza a fuga para fora do mundo, nem pretende trazer às almas, através de um modo de vida ascético, o acesso à imortalidade. Os homens 13 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano, p. 111. devem, pelo contrário, aceitar sua condição mortal, saber que não são nada diante das forças que transbordam de toda parte e que têm o poder de esmagá-los. Dionísio não faz exceção à regra. Seu fiel submete-se a ele como a uma força irracional que o ultrapassa e dele dispõe; o deus não tem contas a prestar; estranho a nossas normas, a nossos usos, a nossas preocupações, além do bem e do mal, supremamente suave ou supremamente terrível, ele brinca de fazer surgir à nossa volta e dentre de nós, as múltiplas figuras do Outro (VERNANT & VIDAL-NAQUET. Mito e Tragédia na Grécia Antiga, p. 359). 14 Nos ritos dionisíacos, legitimava-se a integração imediata entre as esferas do “eu” e do “outro”, circunstância que abolia qualquer diferenciação ontológica entre os seres. Existe apenas uma vida, que se manifesta necessariamente em indivíduos e que é a mesma em cada um deles. Conforme comenta Maffesoli, “ao transcender a si próprio, o indivíduo se agrega aos outros elementos contraditórios para formar um todo que, por seu turno, valoriza sua existência”.15 A multiplicidade dos indivíduos é um fenômeno de 14 Ressaltemos que Vernant apresenta uma variação dessa ideia em Mito e Religião na Grécia Antiga, p. 80, que reproduzo em decorrência da inserção de outras questões pertinentes ao tema tratado: “Plenitude do êxtase, do entusiasmo, da possessão, é certo, mas também felicidade do vinho, da festa, do teatro, prazeres de amor, exaltação da vida no que ela comporta de impetuoso e de imprevisto, alegria das máscaras e do travestimento, felicidade do cotidiano: Dioniso pode trazer tudo isso, se homens e cidade aceitarem reconhecê-lo. Mas em nenhum caso vem anunciar uma sorte melhor no além. Ele não preconiza a fuga para fora do mundo, não prega a renúncia nem pretende proporcionar às almas, por um tipo de vida ascético, o acesso à imortalidade. Ele atua para fazer surgirem, desde esta vida e neste mundo, em torno de nós e em nós, as múltiplas figuras do outro. Ele nos abre, nesta terra e no próprio âmbito da cidade, o caminho de uma evasão para uma desconcertante estranheza. Dioniso nos ensina ou nos obriga a tornar-nos o contrário daquilo que somos comumente.” 15 MAFFESOLI, Michel. A Sombra de Dioniso, p. 68. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, edição especial, vol. 5, 2010, p. 48-59. 53 Revista Filosofia Capital Vol. 5, (2010) - Edição Especial Novas Perspectivas Intelectuais e suas Interfaces Existenciais. ISSN 1982 6613 superfície sob o qual subsiste a unidade primordial de tudo o que vive.16 Uma prática dionisíaca que causava aversão entre os antigos gregos e ainda hoje choca muitos que se deparam diante do estudo dessa experiência religiosas reside na omofagia, prática ritual na qual o adepto consumia a carne em estado cru de outro ser vivo, seja a carne de um animal considerado sagrado ou mesmo a de outro ser humano. Aos olhos do homem “civilizado” tal procedimento certamente seria estigmatizado, mas se buscarmos compreender as motivações para tais procedimentos, calcados por uma perspectiva sagrada da existência, perceberemos uma motivação mística na omofagia dionisíaca, pois se considerava que a ingestão da carne fresca de um ser vivo geraria um estado de comunhão sagrada entre consumidor e consumido, de maneira que a energia vital deste fosse absorvida por aquele. Esse é o fundamento simbólico de toda celebração propriamente omofágica ou que leve ao consumo ritual da substância carnal de um animal ou do próprio ser humano. Os adeptos de Dionísio, para exercerem essa atividade assimiladora, se encontravam numa espécie de frenesi coletivo, cujo nível mais intenso se dava justamente na oportunidade de se consumir a carne sangrenta de outros seres vivos.17 Essa integração entre os viventes mediante a prática ritual omofágica somente poderia ocorrer através do êxtase místico concedido pelo espírito dionisíaco que tomava possessão da comunidade dos celebradores, destituídos dos rígidos pudores da individuação social.18 Comer a carne crua não era apenas um rito externo que visava chocar os não-iniciados um ou meio de obtenção de prazer gastronômico 16 BENCHIMOL, Márcio. Apolo e Dionísio. Arte, Filosofia e Cultura no primeiro Nietzsche, p. 32. 17 Um estudo de grande importância para o enriquecimento teórico do tema exposto é Antigos Cultos de Mistério, de Walter Burkert, principalmente o capítulo 4, p. 120. 18 EURÍPIDES. As Bacantes, vs. 971-992. mediante a satisfação do desejo pessoal de se ingerir carne fresca, interpretação absurdamente redutora da sacralidade do culto dionisíaco, conforme enfatizado por Alain Danielou.19 Esse é o momento em que a vida e a morte confluíam harmoniosamente, pois a carne dilacerada e consumida pela comunidade dionisíaca favoreceria a compreensão da unicidade vital que unia a todos eles, assim como a absorção de nutrientes poderosos para a continuidade da vida de celebração incondicional. Penetrar na esfera dionisíaca é, em todos os seus aspectos, uma busca incessante pela desmedida. A vivência dionisíaca une simultaneamente em seu culto divino a alegria primordial da existência, decorrente do retorno do homem ao estado de “extra-civilização”, e o furor báquico levava ao dilaceramento do próprio indivíduo, quando essa vitalidade dionisíaca assim o conduzia. Uma nascente primitiva de energia vital estilhaçava a crosta refinada da cultura urbana. Constrangido e atemorizado pelo quotidiano da vida normal, o homem pode aqui libertar-se de tudo o que o oprime e desenvolver o seu verdadeiro “eu”.20 Se porventura considerarmos que o exclusivo objetivo do culto dionisíaco era motivar a morte gratuita do seu praticante, estaremos reduzindo drasticamente o sentido originário dessa experiência, pois que o dionisismo, segundo Nietzsche, permitia a compreensão trágica da existência como uma intensa totalidade de vivências, muitas delas contraditórias entre 19 DANIÉLOU, Alain. Shiva e Dioniso, p. 150-151. Ressaltemos que nessa obra o autor empreende uma vigorosa análise comparativa entre o culto hindu ao deus Shiva e a celebração dionisíaca, considerando que esta última recebe marcantes influências do shivaísmo. Com efeito, as duas divindades expressam arquétipos similares: tanto Shiva como Dionísio representam, nas suas respectivas celebrações sagradas, a confluência entre vida e morte, criação e destruição, amizade e fúria. Ambos os cultos, em determinadas circunstâncias históricas, foram desprezadas pela ordem social, sectária da sobriedade e da normatividade de princípios morais da população. 20 BURKERT, W. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, p. 557. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, edição especial, vol. 5, 2010, p. 48-59. 54 Revista Filosofia Capital Vol. 5, (2010) - Edição Especial Novas Perspectivas Intelectuais e suas Interfaces Existenciais. ISSN 1982 6613 si, mas que, no grande núcleo engendrador da natureza, encontravam a sua extraordinária reconciliação.21 A vivência dionisíaca não compreendia a extinção da existência individual como um acontecimento digno de pesar, tampouco a própria vida como indigna de ser vivida, pois viver é celebrar continuamente essa fusão do humano com a natureza, mãe divina de todos os seres. Na perspectiva religiosa da vivência dionisíaca, esse culto, apesar dos seus excessos rituais, é testemunho do desmedido esforço da humanidade grega para romper violentamente a barreira que a separa do âmbito divino, libertando o indivíduo das suas próprias limitações. O culto dionisíaco proclamava dessa maneira a alegria incondicional pela vida, mesmo que esta, considerada enquanto expressão individual, porventura sucumbisse eventualmente no decorrer das suas práticas rituais, assim como pelo natural efeito transformador do tempo cronológico, que impõe o perecimento a tudo aquilo que existe. A prática dionisíaca levada a cabo pelas mênades era uma experiência eminentemente destrutiva para todo aquele que se aventurasse a tomar parte de tais rituais, mas esse aniquilamento da individualidade não se tornava uma condição limitadora do ímpeto avassalador da procissão báquica, pelo fato de que se manifestava entre a comunidade dos adoradores de Dionísio o amor pela natureza doadora de todas as provisões necessárias para a nutrição dos seus filhos. A morte nada mais seria do que a retorno do indivíduo àquele que seria em verdade o seu ponto de partida para a constituição de uma vida extensiva. Resistir a Dionísio é reprimir o que há de mais elementar na nossa própria natureza, e o castigo é o repentino e completo colapso das represas internas quando o elementar rompe a compulsão, fazendo desaparecer a civilização.22 Como o espírito dionisíaco requer a conciliação entre a esfera individual e a potência da natureza, relação rompida abruptamente pela ordem social, em muitas circunstâncias essa fusão somente poderia se concretizar através da morte propriamente dita do indivíduo, morte essa que favorecia o renascimento dessa pessoa no âmago da natureza. Nessas condições, a morte e a vida seriam, de acordo com a visão de mundo dionisíaca, eventos inexoravelmente complementares, ainda que essa complementaridade manifestasse necessariamente um constante conflito de forças em sua organização interna, que ocasionava em diversas ocasiões a dilaceração da individualidade. Contudo, era esse intenso choque de potências que concedia significado e valor para cada um desses pólos antagônicos da natureza. Como bem destacado por Eudoro de Souza, a vida não subsiste senão porque a morte existe.23 Por conseguinte, a vida somente possui o seu valor através da compreensão imediata da existência da morte, e vice-versa. Morrer não é desaparecer, mas se integrar no mundo, na terra, que insaciavelmente produz novas singularidades; tal é o começo da morte, mas esta, em definitivo, é a condição de nova vida. As manifestações e desaparecimentos inesperados de Dionísio refletem de certa forma o aparecimento e a ocultação da vida, isto é, a alternância da vida e da morte, e por fim, a sua unidade. Através das suas epifanias e ocultações, Dionísio revela o mistério – e a sacralidade – da conjugação entre a vida e a morte. Revelação da natureza religiosa, uma vez que é efetuada através da própria presença do deus.24 A intuição trágica levada a cabo pelo dionisismo evidenciava que para além da vida organicamente limitada (Bios) do indivíduo existe a vida infinita (Zoé), que 22 DODDS, E. R. Os Gregos e o Irracional, p. 274. SOUZA, Eudoro de. Dioniso em Creta, p. 68. 24 ELIADE, M. História das Crenças e das Idéias Religiosas, Tomo I, Vol. 2, p. 202. 23 21 NIETZSCHE, F. O nascimento da Tragédia, § 2. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, edição especial, vol. 5, 2010, p. 48-59. 55 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 jamais se extingue.25 O dionisíaco anseia pela vida intensiva, mágica, que não depende, necessariamente, de uma configuração orgânica, corporal e individual para se expressar, pois a sua vitalidade ontológica se expressa sempre de modo desmedido, para além dos limites da figuração. Para Vernant e Vidal-Naquet, Dionísio encarna não o domínio de si, a moderação, a consciência dos seus limites, mas a busca de uma loucura divina, de uma possessão extática, a nostalgia de um completo alheamento; não a estabilidade e a ordem, mas os prestígios de um tipo de magia, a evasão para um horizonte diferente; é um deus cuja figura inatingível, ainda que próxima, arrasta seus fieis pelos caminhos da alteridade e lhes dá acesso a uma experiência religiosa quase única no paganismo, um desterro radical de si mesmo (VERNANT & VIDALNAQUET. Mito e Tragédia na Grécia Antiga, p. 158). Conduzida pelo poder dionisíaco, a natureza fornece os seus encantos para aqueles que aceitam as suas dádivas ao se integrarem amorosamente aos seus braços, tal como Nietzsche a apresenta: Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares. De seus gestos fala o encantamento. Assim como agora os animais falam e a terra dá leite e mel, do interior do homem também soa algo de sobrenatural: ele se sente como um deus, ele próprio caminha agora tão 25 Ressaltemos que essa perspectiva é continuamente defendida por Kerényi no seu Dioniso, o culto dionisíaco como uma manifestação arquetípica de uma vida indestrutível. Além disso, Werner Jaeger também dedica importantes reflexões sobre o Zoé e o Bios na Paidéia, p. 967, considerando o primeiro conceito como o fenômeno natural da vida, enquanto o segundo é a vida considerada como unidade de vida individual, a que a morte põe termo, e também como subsistência. Vol. 5, (2010) - Edição Especial Novas Perspectivas Intelectuais e suas Interfaces Existenciais. extasiado e enlevado, como vira em sonho os deuses caminharem. O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte: a força artística de toda a natureza, para a deliciosa satisfação do Uno-primordial, revela-se aqui sob o frêmito da embriaguez (NIETZSCHE. O nascimento da Tragédia, § 1). Podemos constatar que, neste trecho, Nietzsche se utiliza de uma brilhante imagem euripidiana, tal como expressada pelo Mensageiro nas Bacantes, que narra ao altivo Penteu os prodígios realizados pelas mênades, pois que estas, conhecedoras dos mistérios de fertilidade da vida, são capazes de retirar da terra os seus maravilhosos benefícios maternos: Todas elas ornavam cuidadosamente / a fronte com coroas de folhas de hera / ou com belas flores silvestres; uma delas / bateu com o tirso numa rocha a fez jorrar / da mesma, num instante, um jato de água límpida; / outra, ferindo o chão com a sua varinha / viu esguichar da terra por obra do deus / uma fonte de vinho. As que sentiam falta / do alvo leite, esfregavam no solo os dedos / e o recolhiam de repente em abundância. / Do tirso recoberto de folhas de hera / pingava o mel mais doce. Ah! Meu senhor e rei! / Por que não estavas presente para ver o espetáculo? Gostarias sem dúvida de dirigir tu mesmo preces fervorosas ao deus que aqui blasfemas! (EURÍPIDES. As Bacantes, vs. 922-937). Tal como destacado por Nietzsche, a experiência dionisíaca pressupõe a embriaguez, mas não apenas a embriaguez fisiológica pelo vinho, e sim acima de tudo a embriaguez existencial pela vida, pela natureza e pela expansão contínua da força criativa de cada singularidade, pois nessa experiência a limitada individualidade adquire o caráter divino na própria natureza, tão pródiga em sua concessão de Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, edição especial, vol. 5, 2010, p. 48-59. 56 Revista Filosofia Capital Vol. 5, (2010) - Edição Especial Novas Perspectivas Intelectuais e suas Interfaces Existenciais. ISSN 1982 6613 dádivas.26 Ao comentar essa percepção nietzschiana da apoteose dionisíaca, Eugen Fink afirmará que A embriaguez é a torrente cósmica, um delírio báquico que destrói, despedaça e reabsorve todas as formas, que suprime tudo o que é finito e individual. É o grande ímpeto da vida (FINK, A Filosofia de Nietzsche, p. 25). O aniquilamento do indivíduo, na prática dionisíaca, não representaria, portanto, a sombria extinção da vida, mas a possibilidade de que as suas partes extensivas se reconfigurassem em novos modos de expressão através do processo de contínua transformação dos elementos da natureza. Conforme argumenta Walter Otto acerca do culto dionisíaco, Quando ele irrompe com o seu selvagem cortejo, volve o mundo primordial que desdenha todo limite e toda norma, pois lhes é anterior; mundo que não conhece hierarquia nem distinção dos sexos, pois, sendo vida entrelaçada com a morte, envolve e reúne a todos os seres, indiferentemente (OTTO, W. F. Teofania, p. 162). A matéria constituinte das coisas, portanto, é viva, sendo assim dotada de um poder divino imanente que lhe permite doar a energia criadora que proporciona o desenvolvimento e florescimento criativo de todos os seres. Eis o motivo pelo qual podemos dizer que morte e vida, no contexto do ritual dionisíaco, são duas instâncias plenamente interativas, pois que ambas dependem mutuamente uma da outra, a fim de que a existência como um todo possa se efetivar sem cisões. “Cada instante devora o precedente, cada nascimento é a morte de incontáveis seres, gerar, viver e morrer são uma unidade”, conforme afirma Nietzsche acerca desse mistério assimilador presente na potência dionisíaca da natureza.27 Este é o sentido primordial do culto dionisíaco, o de demonstrar a existência de um poderoso ciclo vital existente no processo de criação e destruição das inúmeras formas de vida contidas no seio da natureza. Tal como a sabedoria trágica de Heráclito expõe aos homens: “Este mundo, o mesmo de todos os seres, nenhum deus, nenhum homem o fez, mas era, é e será um fogo sempre vivo, acendendo-se em medidas e apagando-se em medidas”.28 A experiência trágica favorece a ampliação do enfoque valorativo daquele que se insere em sua dinâmica de forças em constante transformação, de maneira que tal pessoa compreende todas as coisas como intrinsecamente associadas, afirmando-as nas suas qualidades intrínsecas, mesmo que subjetivamente dolorosas. De acordo com a interpretação dos comentadores Mário Ferro e Manuel Tavares, Na visão trágica, vida e morte, ascensão e decadência formam um todo e, por isso, o sentimento trágico da vida não é recusa, mas aceitação do devir, adesão à morte e ao declínio. Declínio que não significa decadência ou destruição, mas um regresso ao fundo da vida do qual surgiram todas as coisas individualizadas (FERRO & TAVARES. Análise da obra A Origem da Tragédia de Nietzsche, p. 33). A morte, no culto dionisíaco, não é considerada como um acontecimento digno de tristeza e pesar, tampouco uma passagem condicional para um além-mundo, pois é um mecanismo necessário para a perpetuação da existência de todas as coisas, utilizado pela natureza matriz, para 27 26 NIETZSCHE, O nascimento da Tragédia, § 1. NIETZSCHE. Cinco Prefácios para cinco livros não escritos, “O Estado Grego”, p. 44-45. 28 HERÁCLITO. Fragmento DK 30. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, edição especial, vol. 5, 2010, p. 48-59. 57 Revista Filosofia Capital Vol. 5, (2010) - Edição Especial Novas Perspectivas Intelectuais e suas Interfaces Existenciais. ISSN 1982 6613 que a própria vida seja mantida. Dionisíaco, o cosmos aparece em si mesmo contraditório na natureza, que se compraz na alternância eterna da criação e da nadificação, contraditório no homem, que é e não é, porque nasce e morre, contraditório na divindade, que comparece na alegria da expansão vital e desaparece na dor da contração mortal. Senhor do duplo domínio da vida e da morte, Dionísio renasce continuamente de seu próprio aniquilamento para sempre recomeçar.29 Por conseguinte, a “cosmovisão” dionisíaca demonstra que, através da morte, apenas a existência individual é suprimida, mas o elemento configurador da vida permanece incólume. Na prática extensiva do rito dionisíaco, ocorria o esquartejamento de animais silvestres como forma de se repetir o cruento dilaceramento do menino Dionísio, mas na Tragédia Ática esse dilaceramento divino, tornado uma representação metafórica, ocorre a partir do sofrimento do herói e, por conseguinte, do próprio ser humano, que se fragmenta infinitamente na individuação. O sofrimento trágico demonstra a resistência da individualidade transfigurada através de sua imersão na natureza primordial, favorecendo assim, ao invés do aprisionamento da condição singular da vida, a sua mais poderosa libertação. Representando a luta e a vitória de Dionísio sobre o princípio extensivo da individuação, a tal ponto que todo herói deve ser compreendido como seu substituto ou sua máscara, a alegria que é proporcionada pela tragédia é o sentimento de que o limite da individualidade será abolido e a unidade originária restaurada.30 O canto sagrado emitido na encenação trágica revelava o valor supremo da vida, mesmo quando esta era violentamente suprimida na sua condição individualizada. A partir do espírito da música trágica, que transfigura a frágil condição subjetiva do ser humano, o aniquilamento do próprio indivíduo se tornava uma fonte de obtenção de um nível de alegria que brotava do íntimo de cada ser humano, jorrando intensamente para o mundo circundante. Penetrar nessa esfera sagrada na qual havia o entrelaçamento entre a dor divina e a fragmentação da vida na pluralidade individual representa para o grego trágico o desvelamento da realidade cósmica, livre de todas as ilusões da consciência fiada exclusivamente no âmbito da fria racionalidade. Imergir nessa dimensão arrebatadora da natureza era uma experiência que justificava toda a banalidade da vida corriqueira, pois que no momento da fusão entre o divino e o humano na experiência trágica, o homem grego se libertava de toda condição pessoal estabelecida. O seio da natureza soluça pelo seu despedaçamento em milhões de seres individualizados, aguardando ao retorno da unidade primordial.31 A separação entre o humano e a natureza, expressão sagrada do divino, não é eterna, pois na própria extinção da configuração individual ocorria novamente essa fusão entre o ser humano e a força da natureza. A individuação, portanto, proclamada pela esfera apolínea como a dádiva mais valorosa da condição humana, se torna apenas um elemento secundário na consciência trágica dos gregos. Porém, simultaneamente ao estado de dor gerado por essa individuação, ao mesmo tempo o espírito dionisíaco obtinha a grande alegria trágica, pois que as suas inúmeras representações personalizadas afirmavam o caráter glorioso da existência, mesmo sendo esta marcada pela dor crucial decorrente dessa ruptura com a fonte originária da vida. A crença numa dimensão puramente espiritual separada da natureza concreta, na qual haveria uma existência pessoal livre das condições intrínsecas da sensibilidade é 29 MELO E SOUZA, R. “Atualidade da Tragédia Grega”, In: Filosofia e Literatura: o Trágico, p. 122. 30 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade, p. 26. 31 NIETZSCHE. O nascimento da Tragédia, § 2. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, edição especial, vol. 5, 2010, p. 48-59. 58 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 um elemento absolutamente estranho ao sentido trágico da experiência dionisíaca, que estabelecia uma intensa percepção imanente da vida. Para Vernant e VidalNaquet, Nem no ritual, nem nas imagens, nem nas Bacantes, percebe-se a sombra de uma preocupação de salvação ou de imortalidade. Aqui, tudo se representa na existência presente. O desejo incontestável de uma liberação, de uma evasão para o além, não se exprime sob a forma de esperança de uma outra vida, mais feliz, depois da morte, mas na experiência, no seio da vida de uma outra dimensão, de uma abertura da condição humana para uma bem-aventurada alteridade (VERNANT & VIDAL-NAQUET, Mito e Tragédia na Grécia Antiga, p. 340). Enfim, na visão de mundo trágica nada há de postulados acerca de uma regra de conduta moral a ser seguida piedosamente pelo ser humano, como meio de se obter a salvação da alma diante do juízo divino. A experiência trágica dos gregos promove a afirmação incondicional da imanência da existência, fazendo desta o seu autêntico “culto sagrado” e celebração religiosa numa axiologia livre das normativas categorias morais de valores. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. de Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora da UNB, 1992. BACHOFEN, J. J. El Matriarcado – una investigación sobre la ginecocracia en el mundo antiguo según sua naturaleza religiosa y jurídica. Trad. de Maria del Mar Llinares Garcia. Madrid: Akal, 2007. BENCHIMOL, Márcio. Apolo e Dionísio. Arte, Filosofia e Cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002. BURKERT, Walter. Antigos Cultos de Vol. 5, (2010) - Edição Especial Novas Perspectivas Intelectuais e suas Interfaces Existenciais. Mistérios. 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