ENSINO E APRENDIZAGEM DA LEITURA E DA ESCRITA: PERSPECTIVAS DE ATUAÇÃO PEDAGÓGICA NA PARALISIA CEREBRAL Marco Antonio Melo Franco Departamento de Educação - Universidade Federal de Ouro Preto, MG, Brasil Email: [email protected] FAPEMIG Eixo: Alfabetização, Diversidade e Inclusão Resumo O estudo teve por objetivo investigar, analisar e intervir nas práticas pedagógicas, de leitura e escrita, desenvolvidas pela professora com uma criança paralisia cerebral no quarto ano do ensino fundamental I. A investigação teve como base a pesquisa-ação e ocorreu ao longo do ano letivo. Resultou na construção e reelaboração de estratégias que garantiram melhora no desempenho, ganho de autonomia e em um envolvimento maior da aluna nas atividades de leitura e escrita. Palavras-chave: práticas pedagógicas, inclusão, leitura e escrita. Abstract The research aimed to investigate, analyze and intervene in pedagogical practices of reading and writing, developed by the teacher with a cerebral palsy child in the fourth year of elementary school. The research was based on action-research and occurred throughout the year school. It resulted in the construction and re-elaboration of strategies that ensured improvement in performance and autonomy. In addition, greater involvement of the student in reading and writing activities. Key Words: Pedagogical Practices, Inclusion, Reading and Writing Introdução É possível identificar que os sistemas de ensino têm procurado se adequar às necessidades e demandas sociais que refletem o processo de inclusão e participação social de pessoas com alguma deficiência ou necessidade educacional específica. Entretanto, é necessário que as escolas estejam preparadas para receberem esses alunos que, muitas vezes, necessitarão de adaptações no processo de escolarização para que a aprendizagem e a inclusão escolar sejam efetivadas. Deste modo, para que a inclusão escolar ocorra, as escolas regulares, assim como seus profissionais precisam estar preparados para receber esses alunos, tanto com relação à estrutura física das instituições de ensino, quanto no que se refere à capacidade profissional dos educadores em participar ativamente do processo de ensino e de aprendizagem dos alunos. Partimos aqui, do pressuposto de que é preciso que os docentes tenham a oportunidade de formação e de adquirir experiências, tanto teóricas como práticas, para (re)conhecer seu aluno com deficiência como sujeito da aprendizagem e atuar de forma a garantir seu desenvolvimento e sua aprendizagem. Considerando esse contexto, o estudo aqui apresentado teve como objetivo acompanhar, analisar, e intervir nas práticas pedagógicas desenvolvidas por professores da escola regular do ensino fundamental I com crianças em contextos de inclusão. Particularmente, estaremos apresentando um recorte da investigação no que tange ao processo de leitura e de escrita de um criança com paralisia cerebral e as possíveis ações pedagógicas desenvolvidas no percurso da pesquisa. O foco da investigação foi no trabalho desenvolvido pela docente, na expectativa de encontrar práticas pedagógicas que promovam esse processo de aprendizagem e permitam responder à pergunta central: quais as práticas pedagógicas adotadas pelo professor que contribuem para o processo de aprendizagem de leitura e escrita de uma criança com paralisia cerebral do tipo hemiplegia à esquerda no ensino fundamental I, em escola regular? A leitura e a escrita foram escolhidas devido às dificuldades apresentadas pela criança nesse campo relacionadas às alterações neurológicas. Ela possui lesão no hemisfério cerebral direito e, além do aspecto motor, observamos que a dificuldade de organização visoespacial trazia muitos prejuízos para o processo de leitura e para a compreensão do texto. Outra justificativa para o desenvolvimento de tal estudo é o fato de existir uma restrita produção no campo teórico-metodológico que exponha o trabalho desenvolvido por professores com alunos com paralisia cerebral no que tange aos processos de leitura e de escrita. Em revisão bibliográfica sobre o tema nos GT’s de Alfabetização (GT10) e de Educação Especial (GT15) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), não foram encontrados trabalhos nos últimos 15 anos sobre o tema Paralisia Cerebral e Aquisição da Escrita ou Paralisia Cerebral, Leitura e Escrita. Isso nos aponta, de alguma forma, os limites e a escassez de investigação nessa área. Os artigos produzidos geralmente abordam outros aspectos das deficiências ou privilegiam o debate sobre as políticas públicas e não o fazer pedagógico. Essas constatações em muito contribuíram para o delineamento do estudo, que buscou analisar o processo de ensino desta criança, apreendendo práticas pedagógicas individualizadas que foram elaboradas com foco no ensino de leitura e escrita. Inclusão Escolar O crescente movimento de inclusão escolar surge como forma de romper com o paradigma até então predominante, um modelo cujo cerne é o ideal de padronização e de homogeneização do ensino e, por conseguinte, dos ensinados. A emergência de novas demandas sociais concomitantemente com as mudanças dos modelos socioeconômicos mundiais, bem como com o avanço do pensamento intelectual nas últimas duas décadas, colaboraram para o repensar do processo educacional e da necessidade de se construir novos modelos que atendam às demandas sociais de forma mais ampla (FRANCO, CARVALHO e GUERRA, 2010). O debate sobre a inclusão estabelece a importância do rompimento com o padrão educacional existente nas diversas sociedades, em que os processos de ensino pensados e praticados são quase exclusivamente para alunos que não têm deficiência ou algum transtorno de aprendizagem. Em outras palavras, para alunos que aprendem com facilidade. Quanto ao trabalho docente, especificamente, o que se observa é que poucas ainda são as práticas que de fato têm provocado mudanças significativas no processo de ensino aprendizagem desses alunos (SASSAKI, 2005; MANTOAN, 2005; MANTOAN e PRIETO, 2006). Para Rodrigues (2006) embora o discurso sobre inclusão tenha sido rapidamente absorvido pelos professores as suas práticas ainda têm se modificado de forma muito lenta. Um dos fatores que pode contribuir para esse fato está na necessidade de se considerar o aluno em suas particularidades, identificando suas potencialidades e limitações e agindo sobre elas, amenizando as dificuldades e estimulando as potencialidades. Deste modo, tarefas escolares realizadas com alunos de inclusão nas escolas comuns, até mesmo com alunos sem deficiência alguma, “muitas vezes necessitam de procedimentos diferenciados de ensino para que se garanta de alguma maneira, a sua aprendizagem e o seu desenvolvimento” (OLIVEIRA e LEITE, 2007, p. 518). Para Gomes (2012) as propostas de inclusão escolar devem ser assumidas como ações que refletirão em qualidade do ensino para todos os alunos que, por diferentes motivos, estão à margem do processo de escolarização, fadados ao fracasso e ao isolamento. A inclusão escolar também demarca a necessidade de o aluno ser considerado e valorizado em suas diferenças (AMARO, 2006). Para tanto, os profissionais da educação, ao trabalharem com alunos com deficiência, precisam fazer adaptações pedagógicas que permitam a eles permanecerem nas escolas e participarem desse contexto, assim como os demais alunos. A permanência do alunado se dá na concretização do processo de aprendizagem, no fornecimento de uma educação de qualidade. Essa consolidação se evidencia quando o trabalho desenvolvido pelos professores considera como relevante as necessidades desses discentes, já que o processo de ensino só é eficaz se houver o processo de aprendizagem. Nesse caso, para que esse último aconteça, é preciso enfatizar suas especificidades, fazendo com que esses sujeitos sejam compreendidos de forma integral e singular. Paralisia Cerebral Ao longo de anos, muitas definições de paralisia cerebral foram oferecidas. Em 1843, William John Little, cirurgião inglês, descreveu pela primeira vez a encefalopatia crônica da infância, ao estudar um grupo de 47 crianças com rigidez espástica. Em 1897, Freud, ao estudar a síndrome de Little, propõe o termo paralisia cerebral, que mais tarde foi detalhada por Phelps, ao se referir a um grupo de crianças com transtornos motores devido à lesão no sistema nervoso central (BLECK 1987, GAUZZI e FONSECA 2004, ROTTA 2002). Para Bleck 1987, paralisia cerebral pode ser definida como uma desordem não progressiva do movimento ou postura que se inicia na infância e é causada por um mau funcionamento ou dano no cérebro. Outra definição como sendo uma “(...) desordem do movimento secundária a uma lesão não progressiva do cérebro em desenvolvimento”, nos é dada por Braga (1995, p.9). São muitas as causas da paralisia cerebral e podem ser classificadas conforme a temporalidade da ocorrência como: pré-natal (antes do nascimento), perinatal (durante o nascimento) e pós-natal (depois do nascimento). Dentre os fatores de risco para lesões pré- natais temos as infecções intra-uterinas (rubéola, toxoplasmose, citomegalovirus), sofrimento fetal, entre outros que podem interferir no desenvolvimento normal do cérebro. Quanto aos fatores perinatais, consideramos a prematuridade, a anóxia durante o parto e a hiperbilirrubinemia grave. Já no período pós-natal, os principais fatores de risco ou as possíveis causas podem ser infecções no sistema nervoso central, acidentes vasculares cerebrais, anóxias, paradas cardiorespiratórias (BLECK 1987). Conforme Braga (1995), ao longo dos anos, tem-se observado o aprimoramento sobre o conhecimento etiológico, parâmetros de classificação e a definição conceitual de paralisia cerebral. O avanço tecnológico, como, por exemplo, o uso de imagens como mais um instrumento para definição de diagnóstico, também, em muito tem contribuído para esse aprimoramento. Leitura e Escrita Ao considerarmos que a alfabetização é um processo que tem muitas facetas a serem discutidas é importante pensar em aspectos que vão além dos métodos de ensino, é preciso discutir também outras questões que envolvem esse processo, como por exemplo: buscar soluções para as dificuldades das crianças em aprender a ler e escrever e a dos seus professores em ensina-las (MORTATTI, 2000). Além disso, podemos considerar que, tradicionalmente, a escola têm se organizado para atender às crianças que apresentam um desempenho adequado em seu processo de aprendizagem. Aquelas que demandam do corpo docente e das ações pedagógicas escolares um trabalho diferenciado, muitas vezes, acabam por serem negligenciadas em seu processo de aprendizagem (FRANCO; CARVALHO; GUERRA, 2010). Sabendo dessas condições de ensino e aprendizagem oferecidas pela escola, as quais estão distantes daquelas que seriam adequadas para o aprendizado das crianças, torna-se necessário construir um olhar mais cuidadoso sobre as dificuldades e necessidades apresentadas pelos alunos no processo de alfabetização. Essas dificuldades na aquisição do sistema escrita e nos processos de leitura devem ser revistas e melhor entendidas uma vez que o número de crianças com dificuldades para a aprendizagem, principalmente na língua escrita, tem sido um problema mundial, com estatísticas alarmantes. Tal fator vem sendo observado também em países mais desenvolvidos como é o caso dos Estados Unidos, onde estima-se que no mínimo 20 a 30% dos jovens estudantes têm dificuldades acima da média para a aprendizagem da leitura e escrita (ZORZI, 2004). O que acaba por reforçar a necessidade de se compreender a respeito dessas dificuldades e reverter os altos índices desse problema. Na tentativa de entender melhor sobre as dificuldades apresentadas pelos alunos, estudos atuais apontam que suas origens podem estar ligadas a fatores genéticos ou biológicos de origem orgânica, anatômica e funcionais, ou ligados aos fatores externos ou sociais, culturais, econômicos, entre outros. No caso do estudo aqui proposto, a paralisia cerebral aponta para desordens no campo orgânico como também para dificuldades no processo de interação social em função de lesões cerebrais em áreas que possam comprometer tal interação. Assim sendo, podemos dizer que, “na perspectiva neuropsicológica, as dificuldades de aprendizagem são entendidas como um conjunto de desordens sistêmicas e parciais da aprendizagem escolar que surgem como consequência de uma insuficiência funcional de um ou vários sistemas cerebrais” (SALLES; PARENTE; MACHADO, 2004, p.111). Sabendo que o sistema cerebral é composto por partes interligadas, qualquer alteração ou falha leva a consequências no processamento das informações e no aprendizado. Dessa forma, é possível perceber que as causas para os problemas enfrentados pelos alunos em fase de aquisição do sistema de leitura e de escrita são diversas e podem ter suas origens em déficits visuais e/ou auditivos, dificuldades na fala e linguagem, lesões cerebrais, fatores emocionais, familiares e sociais, professores com atitudes pouco estimulantes, inadequação de programas escolares entre outros. Entretanto a escola diante dessas evidências e dos problemas que emerge nesse campo nem sempre os enfrenta o que acaba por resultar em fracasso ou baixo aproveitamento escolar provocando sérias consequências na aprendizagem do aluno. Para Lima (2009), os processos de aquisição da leitura e da escrita são de natureza biológica e cultural, suas apropriações se dão pela genética humana, função simbólica e memória, e pela experiência adquirida pelos sujeitos. Isso significa que, para a aquisição da leitura e a escrita, são necessários fatores intrínsecos e extrínsecos aos sujeitos, no caso, aspectos de ordem biológica e cultural. Segundo Rojo (2009, p. 75) “ler envolve diversos procedimentos e capacidades – perceptuais, motoras, cognitivas, afetivas, sociais, discursivas, linguísticas – todas dependentes da situação e das finalidades de leitura”. Para a autora, a leitura envolve outras capacidades biológicas e culturais, tais como: capacidades lógicas; capacidades de ativação, reconhecimento e resgate de conhecimento armazenado na memória e capacidades de interação social. Também é necessário que o sujeito consiga compreender o que está sendo lido, pois apenas a decodificação não é satisfatória para consolidar o processo de leitura, porque a leitura “é um ato de cognição, de compreensão, que envolve conhecimento de mundo, conhecimento de práticas sociais e conhecimentos linguísticos” (ROJO, 2009, p. 77). Para Lima (2009) se não há o entendimento do que está escrito, não é possível ter leitura. Para que haja o entendimento, vários componentes do cérebro precisam funcionar juntos, pois a compreensão é produzida por diferentes áreas cerebrais. São várias as partes do cérebro que precisam ser mobilizadas para que a pessoa leia. Além da mobilização, é necessário que se formem redes neurais estáveis, de forma a criar novas memórias. (...) As redes neurais são formadas a partir da interação da pessoa com o sistema da escrita e com os produtos culturais de escrita, dependem do ensino dos comportamentos de leitura, além da realização de atividades que desenvolvam no cérebro os processos necessários para a compreensão do significado (LIMA, 2009, p. 07). A leitura e escrita, demandam diferentes funções cerebrais para a sua efetivação, sendo que algumas delas se realizam, primordialmente, pelo hemisfério cerebral esquerdo. Por outro lado, a prosódia, que se localiza no hemisfério cerebral direito, por exemplo, é uma das dimensões mais importantes para o uso e assimilação da escrita (LIMA, 2010). Dessa forma, o trabalho do professor com o aluno que tem lesões no hemisfério direito e que tem a área da prosódia prejudicada, ou mesmo áreas responsáveis por noções visoespaciais precisa ser diferenciado, de forma a criar práticas pedagógicas para que esse aluno tenha condições de trabalhar com a leitura e a escrita de forma mais eficaz. Aspectos metodológicos O estudo realizado adotou uma abordagem qualitativa. De acordo com Santos Filho & Gamboa (1995) e Bortoni-Ricardo (2008), a pesquisa qualitativa privilegia o entendimento da verdade como relativa e subjetiva e o entendimento da realidade como socialmente construída, compreendendo o homem como sujeito e ator dessa construção, e produto da interação. Como modelo de investigação adotamos a pesquisa-ação uma vez que ela se caracteriza pelo uso de técnicas que evidenciam as mudanças da prática ao longo do processo investigativo (Tripp, 2005). Entendemos, assim como Thiollent (2011), que a pesquisa-ação consiste na elucidação de problemas de cunho social e técnico e de relevância científica que conta com diferentes atores interessados na resolução dos problemas identificados em contextos específicos. No caso da inclusão escolar e particularmente, dessa investigação, a pesquisa-ação contribui para uma ação articulada entre os diferentes saberes como forma de promover mudanças significativas nas práticas convencionais de ensino, bem como na formação do profissional da educação em contextos de atuação. Salientamos que o estudo foi realizado ao longo do ano letivo com inserções semanais do pesquisador no campo pesquisado. Participantes A investigação foi realizada em escola pública na cidade de Ouro Preto, no estado de Minas Gerais (Brasil). A seleção dos participantes seguiu os seguintes critérios: crianças com paralisia cerebral matriculadas nos anos iniciais do ensino regular possuir diagnótico médico que comprove o comprometimento no caso da escola a mesma deverá ser pública no caso dos professores participam aqueles envolvidos diretamente com o processo de ensino da criança selecionada. Foi selecionada uma criança com paralisia cerebral com hemiplegia à esquerda. Isso significa que ela possui lesão cerebral em áreas motoras no hemisfério direito do cérebro. Possui 10 anos de idade e encontra-se cursando o 4º ano do ensino fundamental I. Será aqui tratadas pelas siglas de V. como forma de preservar sua identidade. No aspecto cognitivo a criança apresentava dificuldades com interpretação textual, organização espacial, organização textual, cálculo matemático, dificuldade em sustentar o foco atencional, entre outros. Foi selecionada também a professora que acompanhava diretamente o processo de ensino e de aprendizagem dessa criança. A aluna V. diante das atividades de leitura e escrita: atuações da professora Observamos uma grande dificuldade na compreensão textual e acreditamos que ela acontece em decorrência da não sustentação da atenção e também por outro fator observado nas aulas, que é a dificuldade em armazenar na memória um número maior de informações, além das dificuldades visuo-espaciais. Tendemos em compreender que esses fatores estão imbricados e que não seria possível dissociá-los atribuindo a responsabilidade a um ou a outro separadamente. Tanto as habilidades visoespaciais quanto a atenção e a capacidade de memorizar e operar com as informações são fatores importantes para a compreensão da leitura. A aluna decodifica com facilidade, mas não consegue compreender o que foi decodificado. Salles e Parente (2002, 2006) e Lima (2009) ao discutirem sobre as rotas de leitura, nos fornecem elementos para pensarmos sobre a diferença entre os processos de leitura e os de interpretação. Para as autoras, esses processos se diferem, uma vez que envolvem aspectos cognitivos diferentes. Para Lima (2009), ler significa compreender. A decodificação faz parte do ato de ler, mas a leitura não se restringe a ela. A leitura requer comportamentos de interação do leitor com o texto. Ao ler, deve-se explorar o conteúdo, compreendê-lo e formar conceitos. No caso dessa criança, podemos identificar que o seu processo de leitura ainda se encontra incipiente. Embora seja fluente na leitura percebemos que o foco maior é dado ao aspecto de decodificação, cabendo assim, ao professor, intervir para o seu desenvolvimento. Outro fator que acreditamos interferir na compreensão textual, além da atenção e da memória, é a organização gráfica do texto. Ao aplicarmos um teste de reprodução gráfica utilizando desenhos de figuras geométricas, identificamos a capacidade de reprodução da figura do circulo, porém ao reproduzir o quadrado as distorções gráficas começaram a se evidenciarem. Ao reproduzir o losango e uma figura um pouco mais complexa as distorções foram bastante evidentes. Em muito, os seus desenhos se distanciaram dos modelos iniciais. Diante desse resultado passamos a observar, na sala de aula, a sua organização geral, bem como a organização no papel, tanto para escrever quanto para ler, fazer cópias e montar cálculos. A desorganizaçào era evidente. Ao observarmos a leitura, identificamos que, ao ler, ela se perdia na sequência horizontal do texto. Quando as linhas dos textos encontravam-se com espaçamentos simples, por exemplo, era difícil para a aluna ler com fluência, pois ela se “perdia”, não conseguindo ler fluentemente, comprometendo assim, a compreensão. Quando as letras dos textos apresentavam fontes pequenas, a aluna também tinha problemas em ler e compreender as palavras. Textos longos são de difícil assimilação, tanto pelo tempo dedicado à leitura quanto pelas informações que ela apresentava dificuldade para reter na memória de curto prazo durante a leitura. Desse modo, as intervenções, junto à professora, foram feitas no sentido de fragmentar a leitura em trechos menores, utilizar o dedo e o lapis como apoio para seguir a sequência de palavras, usar folhas brancas para encobrir as partes do texto a serem lidas posteriormente, e ler por etapas, parágrafo por parágrafo. Todas essas ações e intervenções propostas em sala de aula, relacionadas à organização espacial, partiram do pressuposto de que havia uma dificuldade visuoespacial e visuoconstrutiva em função da lesão cerebral apresentada pela criança, observada no protocolo aplicado e nas interações e atividades em sala de aula. Outra situação que identificamos e que entendemos ser importante analisar diz respeito a uma atividade na qual a professora solicita à turma a produção de um texto a partir de histórias em quadrinhos. A aluna recebeu orientações particulares da professora, que perguntava para ela o que estava entendendo em cada quadrinho; depois, a professora fazia um resumo oral do que a aluna havia dito sobre o texto e, no final, ela produzia a história. O que nos chamou a atenção foi que a aluna se colocou como integrante do texto e desenvolveu a história a partir de uma perspectiva bastante particular. Essa situação se repetiu em outros momentos e observamos que, em algumas vezes, ela compreendia melhor o texto quando se tornava personagem dele ou quando se identificava, de alguma forma, com o mesmo. Um outro exemplo interessante a esse respeito se refere à realização de uma receita culinária. Foi perguntado à aluna qual ingrediente do texto trabalhado não poderia ser batido no liquidificador e ela disse: “a banana não pode ser batida no liquidificador, eu não gosto de banana batida na vitamina”. Tal comportamento nos fez questionar sobre a existência e permanência de um pensamento egocêntrico. Embora a criança estivesse com 11 anos e esse tipo de pensamento não seja mais esperado, nessa faixa etária, é sabido que, em função da lesão cerebral e de áreas cognitivas que ela possa comprometer, tal comportamento pode emergir em várias situações e a permanência do pensamento egocêntrico pode persistir por muitos anos. Não temos elementos para afirmar com certeza sobre esse aspecto, mas, caso ele, de fato, se confirme, pode-se configurar em um possível fator que também contribuiria para a dificuldade de compreensão da leitura e que merece melhor investigação por profissionais competentes para tal. Em relação à produção textual, foi observado que a aluna demonstrava um cansaço exaustivo ao escrever textos, imprimindo um ritmo diferente ao dos seus colegas. Atividades de cópias, como outras relacionadas ao ato motor da escrita, consomem bastante a energia da aluna e a deixam muito cansada. Entendemos que o processo de aprendizagem da escrita, embora dependa de algum ato mecânico, se dá no campo cognitivo. Porém, ao falarmos de crianças com paralisia cerebral, devemos salientar que o funcionamento inadequado dos movimentos motores levam o sujeito com essa alteração a um gasto energético por vezes exaustivo. É fundamental que tal característica seja considerada no processo de escolarização uma vez que interfere diretamente no processo de aprendizagem. Nesses casos, a economia de escrita é a estratégia pedagógica mais indicada. Isso pode diminuir o desgaste do indivíduo e promover sua aprendizagem de forma mais qualificada. Considerando esse aspect, as intervençòes junto à professor trouxeram resultados positivos e de certa forma, garantiram melhor desempenho da criança. No quadro, a seguir, são apresentadas as dificuldades da aluna V. com relação aos conteúdos de leitura e escrita, juntamente com as práticas elaboradas pela professora para amenizá-las e os resultados advindos das práticas. Dificuldades Compreensão textual – lentidão de processamento. Práticas Pedagógicas Prioridade para o trabalho com textos curtos; Leituras por etapas: parágrafo por parágrafo e com explicações extras e repetitivas, além do fornecimento de questões direcionadas ao assunto do texto; Após as Práticas Consegue compreender o que é lido ou dito nos textos e atividades, mesmo que gradualmente. Maior tempo para a realização da compreensão dos textos e atividades; Orientações individualizadas na carteira; Criação de situações do cotidiano da aluna nas explicações textuais; Na interpretação de gráficos – trabalhar com um mesmo modelo inúmeras vezes; O trabalho com textos simples e que a aluna consegue compreender; Uso de imagens para facilitar a compreensão de textos; Separação de comandos. Dificuldade com a escrita – lentidão de movimento. Economia de escrita - entrega de cópias de textos e atividades prontas, para que a aluna não se canse apenas copiando do quadro (quando a cópia não é o objetivo primordial da tarefa); Sem a necessidade de copiar, a aluna se dedica a outras tarefas da aula, como fazer leituras. Fazer o ditado das palavras para a aluna; Ou, quando há o ditado, a aluna copia com mais rapidez. Pedir uma pessoa para fazer a cópia para a aluna, enquanto ela vai ditando. Desvio de atenção distratores. É oferecido descanso à aluna; Mudanças do foco de atenção, oferecendo jogos e atividades pelo qual ela se interessa. Memória Leitura em voz alta; Explicações repetitivas; Depois de algum tempo, com descanso e com o foco da atenção em outro contexto, a aluna consegue retomar a atividade anterior. Consegue armazenar na memória algumas informações do texto e das atividades por maior tempo. Quadro 7- Práticas Pedagógicas de Leitura e Escrita e seus Resultados – aluna V. Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, foi possível perceber que a professora alterava as suas práticas pedagógicas para lidar de forma mais adequada com o processo de aprendizagem da aluna. Na compreensão textual, por exemplo, a professora passou a identificar que apenas uma leitura silenciosa não era o bastante para que sua aluna V. interpretasse o que foi lido, era preciso algo mais. Assim, ela percebeu que a compreensão textual não se dava por diferentes motivos, tais como: o tamanho longo dos textos; a proximidade das linhas dos textos que confundiam a aluna conforme ela realizava a leitura; a dificuldade de inferir sobre os sentidos do conteúdo do texto e de relacionar as informações entre os parágrafos; a dificuldade em manter o foco atencional e se dispersar com os diferentes distratores na sala de aula; entre outros. Podemos perceber que devido às dificuldades da criança, comentadas anteriormente, a professora criou várias estratégias. São estratégias que facilitaram a compreensão textual da aluna, como: a priorização de textos curtos; a leitura por etapas, parágrafo por parágrafo, e com o auxílio de questões que direcionam a aluna ao texto; a disponibilização do tempo necessário para que a aluna faça a interpretação; o uso do contexto da aluna para o entendimento dos textos trabalhados; o trabalho repetitivo das informações explícitas nos textos; o uso de imagens que acionam o sentido da visão, para possibilitar maior compreensão; entre outras. Foi possível observar ainda, que em relação à lentidão de escrita, dificuldade atencional, de memoria de curto prazo, visomotoras e visocontrutivas as estratégias pedagógicas também foram reelaboradas. Ao compreender as demandas da criança a professora procurou reorganizar o trabalho pedagógico. No caso, foram adotadas a economia de escrita com a diminição do volume de cópias do quadro. Várias atividades chegavam prontas evitando aasim, o desgaste motor da cópia. Para a leitura os textos foram reorganizados e redimensionados. A leitura em voz alta foi adotada como forma de contribuir para melhor fixação do texto. Ela também interferiu na qualidade da atenção auxiliando a criança a sustentar o foco por mais tempo. A reorganização espacial dos textos também foi fator de melhoria do desempenho cognitivo da criança, bem como de sua participação nas atividades e na dinâmica da sala de aula. Entendemos que todas as práticas citadas acima desenvolvidas pela professora ao longo do ano letivo foram sendo reelaboradas como consequência do seu aprendizado e aquisição de conhecimentos. Outro fator que também colaborou em seu aprimoramento profissional foi a sua abertura ao novo, ao trabalho de intervenção que estava sendo realizado em sua sala, pois a professora não só estava disposta a transformar suas práticas, como também procurou novos conhecimentos a partir das interlocuções com o pesquisador. Considerações finais O presente trabalho entende que a ação docente, as estratégias de ensino, geralmente desenvolvidas pelos professores, em muito têm se distanciado das necessidades educacionais manifestadas pelas crianças com deficiência. Muitas dessas crianças têm apenas ocupado espaços físicos em sala de aula. Compreender as necessidades e demandas desses alunos é primordial para se pensar as ações pedagógicas adequadas ao seu processo e etapa de desenvolvimento e aprendizagem. Podemos inferir que possibilitar a participação dos diferentes como diferentes é um reforçador dos ideais de cidadania e de respeito às diversidades. Quando os docentes começam a introduzir em suas práticas outras práticas não permitidas ou não cultuadas no santuário escolar provocam deslocamentos importantes e evidenciam a possibilidade das interações funcionais (Trilla, 2006). Entendemos aqui que a compreensão do diagnóstico e a construção de uma estrutura de ensino com base nessa compreensão e com vistas à promoção da aprendizagem, considerando a especificidade do caso, pode promover um salto de qualidade na relação ensino-aprendizagem. Por conseguinte, poderemos ter docentes mais qualificados para a atuação pedagógica (Nóvoa, 2009) e crianças com deficiências sendo compreendidas na sua diferença e não na sua igualdade ou na busca de sua normalidade. A sensação que se tem é que, embora o que a educação possa oferecer ao sujeito seja mostrar-lhe o que é capaz de transformar e não somente reproduzir, o que de fato se vê é que os modelos tradicionais de ensino têm se preocupado muito mais com a reprodução e a perpetuação desses modelos (Esteves & Montemór, 2011). Nesse sentido, a investigação aqui apresentada nos abre possibilidades de compreender o fenômeno da inclusão em uma outra perspectiva. Perspectiva essa que considera o contexto escolar, o fazer pedagógico o cotidiano do docente e do aluno, bem como os saberes externos e aqueles produzidos in loco. Referências Bibliográficas AMARO, Deigles G.. Educação inclusiva, aprendizagem e cotidiano escolar. 1ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006. (Coleção psicologia e educação/ dirigida por Lino de Macedo). BLECK, E.E. Orthopedic management in cerebral palsy. Oxford: Blackwell Scientific, 1987. BRAGA, L.W. Cognição e paralisia cerebral: Piaget e Vygotsky em questão: Salvador: Sarah Letras, 1995. BORTONI–RICARDO, Stella M.. O professor pesquisador: introdução à pesquisa qualitativa. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. ESTEVES, Patrícia E. do C. C., MONTEMÓR, Hilda A. de S. M.. Uma proposta de educação não-formal: o Espaço da Criança Anália Franco. Educação em Revista (Marilia)12 (2), 2011, p.109-134. FRANCO, Marco A. M.; CARVALHO, Alysson M.; GUERRA, Leonor B.. 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