A RELAÇÃO ENTRE O ANTROPÓLOGO E AS POLÍTICAS INDIGENISTAS DO ESTADO NO BRASIL, NO CANADÁ, E NA AUSTRÁLIA. Stephen Grant Baines1 Resumo Examinam-se as maneiras em que os/as antropólogos/as que realizam pesquisas junto a povos indígenas em três Estados nacionais apresentam sua relação com o Estado, sobretudo no que se trata de políticas indigenistas. Desde o crescimento de movimentos políticos indígenas a partir da década de 1970, a globalização de políticas econômicas por meio de acordos transnacionais que atingem diretamente os territórios indígenas, e a consolidação de direitos internacionais sobre povos indígenas e tradicionais, reformas constitucionais e políticas de pluralismo cultural, o papel do/a antropólogo/a vem mudando de forma acelerada. De intermediários e porta-vozes entre povos indígenas e representantes de Estados e empresas nos anos 1960 e 70, o papel do/a antropólogo/a passou a ser de assessor/a, consultor/a e colaborador/a, além de pesquisador/a. Analisase o papel do/a antropólogo/a no contexto de três Estados nacionais diferentes de colonização europeia, de forma comparativa, ressaltando tanto processos globais quanto processos locais que interagem em contextos nacionais diversos. Comparam-se as maneiras em que os antropólogos/as apresentam seus papéis em relação ao Estado. No Canadá muitos/as antropólogos/as afirmam a dificuldade de admitir a existência de um estilo propriamente canadense de etnologia indígena, ou mesmo de antropologia, tão forte é a presença da antropologia americana (com influências também da Grã-Bretanha e da França). Na Austrália, uma influência predominantemente americana e britânica na antropologia caracteriza a maneira em que os etnólogos apresentam seu trabalho com a presença de uma ambiguidade entre o/a etnólogo/a como membro/a da nação australiana e como pesquisador/a comprometido/a com o destino dos povos indígenas com quem trabalha. No Brasil, existe uma identificação entre o papel do antropólogo no processo de construção do Estado nacional (PEIRANO, 1991; RAMOS, 1990), e um estilo de etnologia designada pelos praticantes como engajado ou ativista (MELATTI, 1984; RAMOS, 1990). Palavras-chave: antropologia; políticas indigenistas; Estados nacionais; contextos nacionais. 1 Professor Associado 4, Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília (UnB); Pesquisador 1A do CNPq. Introdução Examinam-se as maneiras em que os/as antropólogos/as que realizam pesquisas junto a povos indígenas em três Estados nacionais apresentam sua relação com o Estado, sobretudo no que se trata de políticas indigenistas. Desde o crescimento de movimentos políticos indígenas a partir da década de 1970, a globalização de políticas econômicas por meio de acordos transnacionais que atingem diretamente os territórios indígenas, e a consolidação de direitos internacionais sobre povos indígenas e tradicionais, reformas constitucionais e políticas de pluralismo cultural, o papel do/a antropólogo/a vem mudando de forma acelerada. De intermediários e porta-vozes entre povos indígenas e representantes de Estados e empresas nos anos 1960 e 70, o papel do/a antropólogo/a passou a ser de assessor/a, consultor/a e colaborador/a, além de pesquisador/a. Analisase o papel do/a antropólogo/a no contexto de três Estados nacionais de colonização europeia (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988, 1998) de forma comparativa, ressaltando tanto processos globais quanto processos locais que interagem em contextos nacionais diversos. Comparam-se as maneiras em que os/as antropólogos/as apresentam seus papéis em relação ao Estado. Apesar de óbvias diferenças em suas histórias e culturas, os estilos de antropologia que se fazem no Brasil, no Canadá e na Austrália podem ser considerados “periféricos”, no sentido dado por Roberto Cardoso de Oliveira, distintos dos “países de centro, i.é. aqueles países onde a Antropologia, enquanto disciplina científica e acadêmica havia originalmente surgido e consolidado [...] os Estados Unidos, a Inglaterra e a França” (1988, p. 144). Para abordar a etnologia indígena nestes três países é imprescindível examinar a antropologia dentro do seu contexto histórico em cada Estado nacional e a partir das representações que os/as antropólogos/as que realizam pesquisas com povos indígenas apresentam sobre o trabalho do/a antropólogo/a. Ao refletir sobre o estilo de etnologia indígena que se faz no Brasil, Alcida Ramos constata que "o enfoque privilegiado da etnologia brasileira em relações interétnicas é [...] relacionado a um interesse social e um contexto histórico específico” (1990, p. 453). A autora também argumenta que este enfoque “é associado a uma atitude de compromisso político para a defesa dos direitos dos povos pesquisados” (1990, p. 453). Ao tentar caracterizar o ethos etnológico brasileiro, Ramos cita Mariza Peirano, que relaciona “o estilo particular de antropologia que se pratica no Brasil às raízes do movimento modernista da década de 1920 e ao esforço para construir uma nação brasileira. A responsabilidade dos intelectuais era de construir uma identidade nacional baseada no que era „nativo‟” (RAMOS, 1990, p. 455). Ao se dirigir, em artigo sobre o estilo de etnologia que se faz no Brasil, a leitores/as norte-americanos/as, Ramos apresenta os mundos antropológicos em tradições anglo-americana e latina, lembrando também que, no Brasil, “a condição de colonizado moldou o estilo de pensamento social específico da inteligência brasileira” (1990, p. 456). A mesma autora acrescenta que, “a hegemonia de ideias, atitudes, e modas euro-americanas que direta ou indiretamente invadem as mentes da população de países como o Brasil, que, neste aspecto, não é diferente de outras nações latinoamericanas”, o que conduz “à reação contra isso na forma de uma postura crítica em relação a coisas hegemônicas [...] muitas vezes, porém nem sempre, de inspiração marxista, o que teve o efeito de um afastamento do estilo positivista das ciências sociais norte-americanas e britânicas” (1990, p. 456). Ramos enfatiza que, apesar do seu "sabor próprio", a antropologia que se faz no Brasil é de nível internacional, “Falamos a língua franca da teoria antropológica, mantendo o nosso sotaque forte e distinto” (1990 , p. 456). Sugere, também, esta autora “a possibilidade de que a natureza do trabalho acadêmico no Brasil permita maior liberdade de ação que no ambiente antropológico do mundo anglo-saxão” (1990, p. 455). Em contraste com a antropologia no Brasil que foi implantada nas universidades em um período histórico que coincidia com esforços por parte dos intelectuais do país de construir uma nação brasileira, na Austrália, desde a implantação de antropologia como uma disciplina acadêmica na Universidade de Sydney em 1926, por A. R. RadcliffeBrown, até a década de 1970, os antropólogos que trabalhavam na Austrália viam a disciplina como uma extensão da antropologia britânica, o que reflete a maneira em que pensavam a respeito do país. Comenta Trood (1990, p. 89) que quando se criou a Commonwealth da Austrália em 1901, seus líderes políticos não consideravam seriamente a possibilidade de seguir uma política de relações exteriores independente da Grã-Bretanha, e cita o primeiro ministro da nova nação, Edmund Barton para quem “a política de relações exteriores (australiana) é do domínio do Império (britânico)”, o que Trood afirma ser o consenso da maioria dos australianos daquela época. Durante várias décadas, a Austrália definia seu lugar em assuntos internacionais com referência ao status do seu país como parte do Império Britânico mais do que como um país autônomo e independente dentro do sistema internacional, uma situação muito diferente daquela do Brasil e em que não cabia uma ideologia de construção de uma nação independente. Na primeira metade do século XX, a antropologia que se fazia na Austrália deve ser examinada dentro deste contexto. A constituição da Commonwealth da Austrália foi elaborada em 1891, submetida a dois plebiscitos populares em 1898 e 1899, e aprovada em 1900, tornando-se a Austrália uma nação independente quase 80 anos após a independência do Brasil. A partir da II Guerra Mundial, quando os australianos se sentiram abandonados pela Grã-Bretanha e salvos, pela intervenção americana, de uma possível invasão do Japão, houve um movimento para repensar a tradição cultural e politica britânica, até então, arraigadas na Austrália. Em 1954, com a criação da South East Asia Treaty Organization (SEATO) contra a expansão comunista, o governo australiano se alinhou aos principais aspectos da política exterior norte-americana e a partir do momento em que as forças navais do Reino Unido se retiraram do “leste de Suez”, a influência britânica foi em grande parte substituída pela influência estadunidense na Austrália (BAINES, 1995). A crescente influência dos Estados Unidos da América nas esferas políticas, econômicas e ideológicas repercutiu-se na antropologia, redefinindo o estilo de antropologia naquele país e a estrutura dos departamentos de antropologia nas universidades, sobretudo a partir dos anos 1980. Nas pesquisas realizadas na Austrália em 1992 (BAINES, 1995) e 2010, vários/as antropólogos/as afirmaram que a antropologia que se faz seria caracterizada melhor como “semiperiférica”, no sentido usado por Cardoso de Oliveira (1988, p. 143-159) ao se referir às “antropologias periféricas”. A antropologia que se faz na Austrália pode ser considerada uma antropologia que surgiu e se consolidou como disciplina acadêmica dentro do contexto da “construção do império” (STOCKING JR., 1982) britânico e a posterior expansão do império estadunidense, mais do que uma antropologia que se desenvolveu no contexto da “construção da nação”, o que reforça ainda mais sua caracterização como “semiperiférica”. No Canadá, país de antiga colonização britânica e francesa, a antropologia foi implantada nas universidades com uma influência predominante dos Estados Unidos da América. Em pesquisas realizadas em centros de etnologia indígena no Canadá em 1995 (BAINES, 1996), 2002 e 2009, muitos/as antropólogos/as afirmaram a dificuldade de admitir a existência de um estilo propriamente canadense de etnologia indígena, ou mesmo de antropologia, tão forte é a influência da antropologia americana (com influências também das antropologias britânica e francesa), com uma aspiração compartilhada de estar realizando uma antropologia internacional. A antropóloga, Vered Amit, afirma que “em termos da reprodução da antropologia como disciplina acadêmica no Canadá, o problema pode ser não tanto que somos periféricos, mas que não somos periféricos o suficiente” (2006, p. 267). Amit esclarece sua afirmação referindo-se à antropologia semiperiférica que se faz no Canadá, e afirma: “somos um anexo marginal do centro, o que nos dá acesso a muitas das suas atividades sem nos permitir exercer muita influência no seu desenvolvimento. Não somos nem parte do centro, nem estamos fora dele” (2006, p. 273). A influência desmedida dos EUA sobre a antropologia que se faz no Canadá é descrita por Marilyn Silverman no que ela chama de “encontro colonial na academia canadense” (1991), que se tornou evidente durante num processo de seleção de professor por concurso público, do qual ela participou. Silverman descreve a situação em que a “metáfora central era „canadense [incompetente] versus americano [competente]‟” (1991, p. 388) e como os candidatos canadenses foram imediatamente descartados, pois os membros da banca iniciaram seu discurso, com a premissa do colonizado: que canadense é inferior. Nosso objetivo é de contratar alguém que demonstra excelência acadêmica. Por definição, tal candidato não poderia ser um de nós, inferiores. De onde deve vir tal candidato? É claro, de nossos superiores, do outro colonizador, dos Estados Unidos (1991, p. 391). Nesse artigo, Silverman, acentua a questão do pensamento colonizado de alguns dos seus colegas. Entretanto, ela conclui que “Certamente não é por acaso que os antropólogos canadenses, na periferia de um império, interessam-se pela trajetória político-econômica do poder e da exploração nas suas diversas formas” (1991, p. 392). David Howes assinala uma linha de pensamento entre antropólogos/as no Canadá que afirma que há uma ausência de uma tradição antropológica canadense, o que pode ser explicada pelo fato de que “na virada do século XXI apenas 25% do corpo docente de departamentos com doutorado em antropologia havia realizado seu doutoramento no Canadá” (2006, p. 200). O mesmo autor pergunta: Como poderia uma tradição local surgir em face da penetração maciça de forças externas? De acordo com Tom Dunk, esta situação é agravada pela "mentalidade essencialmente neocolonial", que sem dúvida prevalece em Canadá de língua inglesa, onde as concepções locais do que é bom são filtradas por ideias e padrões vindos de outro lugar (HOWES, 2006, p. 200). Este ponto de vista coincide com o que observa Silverman (1991) em seu “encontro colonial na academia canadense”. A pretensão universalista da antropologia e as assimetrias locais Ao abordar as singularidades de estilos da antropologia nas chamadas “periferias”, Cardoso de Oliveira afirma que não haveria de significar uma abdicação da pretensão universalista da disciplina de antropologia, “uma vez que a disciplina sempre „falou‟ uma única „linguagem‟, talvez mudando apenas o „tom‟” (1998, p.114). Acrescenta este autor que podemos considerar os elementos individualizantes nas antropologias periféricas que lhes conferem particularidades que, por mais marcantes que sejam, não nos autorizam a classifica-las com o epiteto de nacionais. Assim, não há necessidade de buscarmos nacionalizar nossas antropologias [...] (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998, p. 114). Entretanto, a pretensão universalista da antropologia não dá conta das desigualdades e assimetrias de situações coloniais ou neocoloniais. As perspectivas mais locais e étnicas também entram em contradição com a perspectiva universalista, resultando em posturas muito diferentes, por exemplo, entre as duas maiorias de antropólogos/as anglófonos/as e francófonos/as no caso do Canadá. Neste sentido é impossível discutir a antropologia que se faz no Canadá, sem destacar as diferenças entre a antropologia no Canadá anglófono e francófono e as tensões criadas na disciplina acadêmica por aspirações políticas para a independência de Quebec da Federação do Canadá. Cardoso de Oliveira ressalta que No caso do Canadá francês, no Quebec, já vamos observar um forte processo de etnicização da disciplina, gerando, a rigor, duas modalidades de antropologia, uma francófona, outra anglófona, profundamente marcadas por seus horizontes linguístico-culturais (1995, p. 188). Em entrevistas realizadas com antropólogos no leste do Canadá em 1995 (BAINES, 1996) e, em 2002, aqueles/as antropólogos/as anglófonos/as que compartilhavam a ideologia federalista do Canadá como uma nação bilíngue (francófona e anglófona) expressaram seu desejo de que antropólogos/as francófonos/as e anglófonos/as pudessem comunicar-se como membros da nação canadense. Aqueles/as francófonos/as que apoiavam a separação de Quebec da federação canadense enfatizavam a precariedade da comunicação entre antropólogos/as anglófonos/as e francófonos/as, ressaltando os estreitos laços dos/as antropólogos/as francófonos/as com a antropologia dos grandes centros no nordeste dos Estados Unidos e da França, e não com os/as antropólogos/as anglófonos/as do Canadá do resto do Canadá, tidos como seus opressores coloniais. A forte identificação de antropólogos/as francófonos/as no Quebec com os centros metropolitanos da disciplina pode também contribuir para a falta de diálogo entre os/as antropólogos/as anglófonos/as e francófonos/as na província, ponto de vista ressaltado por Azzan Júnior (2006). M. Estellie Smith nota que “os quebequenses há muito se orgulhavam de um „cosmopolitismo inato‟ considerado em falta na elite anglófona „indigesta e antiquada‟” (1984), postura refletida em algumas declarações feitas por antropólogos quebequenses sobre a antropologia em Quebec (BAINES, 1996). O antropólogo Guilherme Raul Ruben conclui que, apesar da “conflituosa questão da nacionalidade em Quebec” (1995, p. 125), a teoria da identidade formulada em Quebec no âmbito da antropologia continua sendo “essencialmente autônoma” da questão da nacionalidade. Ruben argumenta que a antropologia em Quebec recusa-se a tentar definir suas origens em relação à sua história institucional, uma vez que, de acordo com sua hipótese, as origens dos modernos programas universitários de pesquisa e de ensino da antropologia no Quebec (nas Universidades de Montreal e de Laval) são o resultado de uma relação proibida, e eu diria até incestuosa, entre seus legítimos pais (Tremblay e Dubreuil), criadores [...] dos dois programas institucionais e de um outro, socialmente proibido: a antropologia americana. Num contexto nacionalista, francês, católico e rural, como poderia ser aceita a participação de um parceiro inglês, protestante e industrial, como co-genitor dos modernos programas de ensino e pesquisa em antropologia no Quebec contemporânea? (RUBEN, 1995, p. 133-134). No mesmo artigo, este autor acrescenta: “o reconhecimento dos pais fundadores dos modernos programas de antropologia no Quebec implicaria reconhecer a profunda e íntima relação da província com o mundo inglês, o que inviabilizaria o caráter étnico que marca o estilo da disciplina no Quebec” (RUBEN, 1995, p. 134). Esses exemplos revelam as maneiras pelas quais uma complexa configuração de lealdades regionais, nacionais, imperiais, étnicas e indígenas em que os/as antropólogos/as estão imersos/as como membros de estados nacionais, e grupos regionais, étnicos e indígenas dentro de esses estados, permeiam suas perspectivas. Enquanto muitos/as antropólogos/as francófonos/as em Quebec sentem-se colonizados/as pelos canadenses anglófonos/as, a maioria dos/as canadenses francófonos/as e anglófonos/as sente-se colonizada pelos/as norte-americanos/as, e alguns/umas antropólogos/as indígenas sentem-se colonizados/as por todos/as. Como já foi abordada acima, a prática da etnologia indígena no Brasil tem sido caracterizada por muitos antropólogos brasileiros como um estilo de antropologia envolvido em que o/a antropólogo/a é politicamente engajado/a com os povos indígenas com quem ele/ela realiza pesquisas, e uma antropologia comprometida com a luta dos povos indígenas para efetivar seus direitos constitucionais e internacionais ratificados pelos acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007). No início de 1980, Julio Cezar Melatti escreveu que, Os anos 1970 foram marcados por um esforço que continua a estar presente, de alguns antropólogos em colaborar com os povos indígenas em quem eles são academicamente interessados em encontrar soluções para os seus problemas mais urgentes, como demarcação de terras, assistência médica, educação, direta administração pelos índios de sua produção para o mercado e outros (1984, p. 19-20), Melatti se refere a este esforço em colaborar com os povos indígenas como uma “Antropologia da Ação” segundo um termo usado por Cardoso de Oliveira. Este termo pode ser esclarecido dentro do contexto da antropologia que se faz no Brasil. Cardoso de Oliveira ressalta “a inviabilidade de desassociar a aplicação da antropologia, como um modo privilegiado de conhecimento do Outro, das condições socioculturais, inclusive políticas, que propiciaram seu surgimento enquanto disciplina.” (1988, p. 149), acrescentando que “tal conhecimento ocorre num meio ideologicizado, do qual nem o antropólogo, nem a disciplina logram escapar.” (1988, p. 149). Peirano argui que Os antropólogos são cidadãos de um determinado país, e eles são responsabilizados pelos direitos das populações que estudam. [...] Os antropólogos que estudam os índios estão olhando para parte da população do seu próprio país. Isso não é o caso de antropólogos que vão para o exterior e mais tarde regressam aos seus países de origem (1991, p. 101). Ao comparar o estilo de antropologia que se faz no Brasil com o estilo que é praticado na Índia, Peirano afirma que: “No Brasil uma teoria com engajamento político levou ao desenvolvimento do conceito de „fricção interétnica‟, [...] o engajamento político do antropólogo sendo inegável” (1992, p. 247-248). Esta proposta é reforçada por Ramos ao assegurar que “a antropologia brasileira sempre foi associada com uma preocupação de agir em defesa dos direitos daqueles que têm sido a maior fonte de inspiração antropológica, ou seja, os povos indígenas” (RAMOS, 2000, p. 172), acrescentando que “antropólogos brasileiros adquiriram um gosto para o ativismo” (2000, p. 173). Embora haja um consenso entre muitos/as antropólogos/as brasileiro/as de que um engajamento político caracteriza o estilo de antropologia que se faz no Brasil, observase um compromisso político semelhante de antropólogos/as que trabalham em outros Estados nacionais. Isto se torna muito claro entre os/as antropólogos/as que são cidadãos do país em que realizam suas pesquisas que seriam países de colonização europeia, onde o Estado se expandiu sobre as terras dos povos indígenas (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988; 1998). Porém, a pesquisa politicamente engajada é também praticada por antropólogos/as de “países de centro” da antropologia que realizam pesquisas com povos indígenas no Brasil, no Canadá, na Austrália, e em outros países. Vários/as antropólogos/as entrevistados na Austrália afirmam que os povos indígenas no país exigem um ativismo político de etnólogos/as australianos/as que realizam pesquisas em suas comunidades. Ao mesmo tempo, eles não fazem a mesma exigência para antropólogos/as vistos como "pesquisadores/as estrangeiros/as", que vêm a realizar pesquisas de campo na Austrália (BAINES, 1995). O resultado é que alguns/umas destes/as últimos/as são capazes de realizar suas pesquisas sobre temas etnológicos tradicionais (um professor de antropologia nascido na Austrália citou, como exemplo, em 1992, o trabalho, baseado em pesquisas com povos indígenas australianos, da antropóloga francesa Barbara Glowczewski), o que é mais difícil para os/as antropólogos/as australianos/as que enfrentam demandas políticas constantes das comunidades indígenas com quem realizam pesquisas. Apesar de diferenças, as pesquisas de Glowczewski são tão profundamente engajadas politicamente quanto as de muitos/as antropólogos/as nascidos/as na Austrália, no Brasil, ou no Canadá. Apesar do compromisso político compartilhado pela grande maioria dos antropólogos/as que realizam pesquisas junto a povos indígenas, podem surgir dilemas entre este compromisso político com os povos indígenas com os quais realizam pesquisas e uma identificação com objetivos nacionais, o que se torna claro no caso do antropólogo egípcio, Hussein Fahim, que realizou pesquisas com os núbios no sul do Egito. Na época da construção da grande barragem de Assuã no sul do Egito nos anos 1960, que provocou o deslocamento do povo núbio dos seus territórios tradicionais, ele compartilhou “um sentimento de simpatia para com os núbios realocados – um sentimento comum entre os pesquisadores estrangeiros durante o período de levantamento” (1977, p. 82). Entretanto, depois de assumir um cargo no governo egípcio, Fahim relata que passou a ter uma “compreensão melhor dos objetivos nacionais” (1977, p. 83), e afirma que começou a sentir menos simpatia frente à recusa dos núbios de tomar iniciativa para ajudar resolver seus próprios problemas. Acrescenta Fahim que como antropólogo indígena, para quem os objetivos nacionais são de primeira importância, ele passou a perceber a situação dos núbios dentro de um contexto nacional. Fahim descreve que quando assumiu como antropólogo que trabalhava para o governo, identificando-se com objetivos nacionais, passou a entrar em conflito direto com os interesses dos núbios. Enquanto os núbios “não esperavam nada” de um pesquisador estrangeiro que atuava entre eles na mesma época, “exigiam de mim um retorno na forma de decisões sobre a política governamental” (FAHIM, 1977, p. 83). Enquanto “eles sabem que ele (o antropólogo estrangeiro) não tem poder, no meu caso, os núbios exigem de mim uma ação” (1977, p. 83). As exigências dos povos nativos com relação a um “pesquisador indígena ligado ao governo” (1977, p. 83) obviamente são diferentes das suas exigências em relação a um/a antropólogo/a visto/a como estrangeiro/a. Dilemas parecidos podem ser enfrentados, tanto por antropólogos/as anglófonos/as que realizam pesquisas com povos nativos no Canadá, como por antropólogos/as francófonos/as que trabalham com povos nativos no Quebec. Alguns/umas antropólogos/as francófonos/as salientaram que, se eles são nacionalistas, os/as anglófonos/as, maioria no poder do governo federal, são imperialistas, mesmo que não sejam conscientes disso, e seu aparente apoio aos povos indígenas do Quebec só existe em oposição ao movimento de independência quebequense. Também podem surgir dilemas quando “interesses nacionais” entram em tensão com o compromisso dos/as antropólogos/as para os povos indígenas com quem realizam pesquisas, como no caso da construção de grandes projetos de desenvolvimento como as usinas hidrelétricas de grande escala. Em resenha de uma coletânea de artigos escritos por antropólogos sobre os impactos de usinas hidrelétricas na América do Sul, Teófilo da Silva e Baines comentam que, Observa-se, desse modo, uma lealdade frágil dos autorescolaboradores entre um nacionalismo caduco que visa o “desenvolvimento econômico do país” e um compromisso com os povos atingidos, em que vence o primeiro. Esta fragilidade repousa na aceitação das usinas hidrelétricas e demais empreendimentos como algo inevitável e irreversível a partir dessa crença no desenvolvimentismo que tem favorecido os interesses dos governos nacionais e das grandes empresas, sem abrir lugar para a opinião, participação e controle dos povos indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais e locais atingidos sobre os rumos destas mesmas obras e sem questionar as consequências nefastas da construção de grandes usinas hidrelétricas para essas populações e seus sistemas socioambientais. (BAINES; TEÓFILO DA SILVA, 2009, p 293). Os mesmos autores acrescentam: Como tem sido observado em outros estudos (Viveiros de Castro & Andrade, 1988; Ribeiro 1994), as grandes hidrelétricas, por exemplo, têm reproduzido um modelo de desenvolvimento que aumenta as desigualdades sociais e em que os governos tratam as hidrelétricas como obras para captar recursos, colocando-as no mercado para as empresas investirem com fins altamente lucrativos (BAINES; TEÓFILO DA SILVA, 2009, p. 293). As tensões surgem tanto em estilos de antropologia em países centrais da disciplina como em países onde a disciplina acadêmica de antropologia foi implantada posteriormente, e se associam a perspectivas universalistas e particulares. Como ressalta Adam Kuper, falando da perspectiva de um país central na disciplina, nos EUA, e defensor de uma antropologia internacional e universalista, na antropologia, Nosso objeto deve ser o confronto dos modelos correntes das ciências sociais com as experiências e modelos dos nossos sujeitos, enquanto insistimos que isso deveria ser um processo recíproco [...]. Isso é, inevitavelmente, um projeto cosmopolita, que não pode ser subordinado a qualquer programa político (1995, p. 551). Foi revelado que tendências para o nativismo observadas, por exemplo, na obra de alguns/umas antropólogos/as na Grécia, e expressas na forma de uma postura crítica ao hegemônico, têm sua origem no discurso hegemônico que está de moda na academia americana. Kuper, citando Gefou-Madianou, que critica essas tendências nativistas, observa que “É implícito nas suas obras que os antropólogos nativos gregos têm maior reflexividade e capacidade de „verdadeiramente‟ compreender a cultura grega e as categorias indígenas” (GEFOU-MADIANOU, 1993, p. 172-173 apud KUPER, 1995, p. 546). Kuper também cita Herzfeld (1986), que se dirige às limitações da tradição nativa grega de antropologia, “mostrando sua subordinação a programas políticos, e sua relação às vezes escamoteada ao discurso antropológico cosmopolita” (KUPER, 1995, p. 547). Kuper compartilha com Herzfeld uma “visão cética de etnografia nativista, com suas implicações nacionalistas – e às vezes até racistas” (KUPER, 1995, p. 547). Kuper chama atenção para o perigo de debates a nível local, que podem conduzir a uma “espécie de provincialismo etnográfico”, e coloca a pergunta: “Esgota-se a discussão ao cruzar as fronteiras entre as tradições regionais de estudos?” (1995, p. 550). Ao comparar a antropologia que se faz na Índia com aquela que se faz no Brasil, Mariza Peirano comenta que No nosso caso (do Brasil), entre o alto teor de politização local e o fascínio pelo modismo internacional, o viés paroquial parece surgir, estranhamente, na crença de que fazemos parte de um Ocidente homogêneo, [...] desconhecendo o fato de que, no momento em que se cruzam as fronteiras nacionais, o que era aqui uma discussão teórica se transforma imediatamente em simples etnografia regional" (1992, p. 229-230). Considerações finais Neste trabalho abordaram-se algumas maneiras em que antropólogos/as que realizam pesquisas junto a povos indígenas no Brasil, no Canadá e na Austrália apresentam seu trabalho e alguns dos dilemas enfrentados em relação às políticas indigenistas dos Estados nacionais. Uma questão que surge é a identidade nacional ou étnica que o/a antropólogo/a assume na sua relação com o Estado, repleta de ambiguidades e contradições que caracterizam as situações de contato interétnico. A antropóloga Kirin Narayan (1993), de mãe norte-americana e de pai indiana que realizou pesquisas na Índia questiona a noção de “antropólogo nativo”, ao abordar as ambiguidades que ela enfrentou em suas pesquisas na Índia e propõe a sua desconstrução pelo fato que, segundo ela, tem suas raízes na situação colonial que “polariza antropólogos „nativos‟ e antropólogos „autênticos‟” (1993, p. 672), além do fato de que os/as antropólogos/as nacionais de qualquer país ou grupo étnico, ao praticar a disciplina de antropologia estão se engajando em uma prática científica eminentemente ocidental, fato ressaltado por Gustavo Lins Ribeiro (2006) que aborda a antropologia como uma cosmopolítica. Conforme este autor, A antropologia, desde seu começo, é uma cosmopolítica sobre alteridade de origem ocidental. Se o reconhecimento de uma determinada afirmação em antropologia depende da sua validade, esta validade, em última instância, depende de sua consagração por uma comunidade de argumentação que é também uma comunidade cosmopolita. Até perspectivas nativistas teriam que passar por esse tipo de processo (RIBEIRO, 2006, p. 155). Chamando a atenção para a utilidade da discussão de Cardoso de Oliveira sobre as antropologias centrais versus as antropologias periféricas para problematizar as desigualdades, Gustavo Lins Ribeiro ressalta a necessidade de transcender tais desigualdades (RIBEIRO, 2006). Inspirado pelo movimento coletivo chamado World Anthropologies Network (Redes de Antropologias do Mundo), da qual ele é membro, Ribeiro afirma que esta rede busca contribuir para a articulação de uma antropologia diversificada que seja mais consciente das condições sociais, epistemológicas e políticas nas quais é produzida (RIBEIRO, 2006). O autor enxerga a antropologia como uma cosmopolítica ocidental concernente às estruturas de alteridade que se consolidou como disciplina acadêmica formal no século XX e que tem por objetivo “ser universal, mas que, ao mesmo tempo, é altamente sensível a suas próprias limitações e à eficácia de outras cosmopolíticas” (RIBEIRO, 2006, p. 148). Como um discurso político cosmopolita relativo à importância da diversidade para a humanidade, é parte de uma antropologia crítica da antropologia que descentraliza, re-historiciza e pluraliza a disciplina, enfatizando o papel cada vez mais importante desempenhado por antropologias não-hegemônicas na produção e na disseminação de conhecimento em escala global. Espera-se que as questões levantadas apontem para a complexidade do fazer antropologia junto com povos indígenas que estão, na sua maioria, cada vez mais impactados pelas políticas de Estados nacionais em um momento histórico em que muitos/as indígenas tornaram-se protagonistas políticos/as (OLIVEIRA; IGLESIAS, 2002), inclusive antropólogos/as em diálogo com os diversos posicionamentos que refletem a imersão de todos/as em meios ideologicizados, “do qual nem o antropólogo, nem a disciplina logram escapar” (1988, p.149), citando novamente Cardoso de Oliveira. 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