eduardo consolo dos santos - Centro Universitário Barão de Mauá

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A CONQUISTA MONGOL DA RÚSSIA SEGUNDO A PRIMEIRA CRONICA DE
NOVGOROD
EDUARDO CONSOLO DOS SANTOS1
Objetivo: O presente artigo pretende fazer uma análise da maneira como os
invasores mongóis foram retratados na Primeira Crônica de Novgorod (em russo
Novgorodskaya Pervaya Letopis’/Новгородская первая летопись), dando ênfase ao
episódio da guerra de conquista (1237 – 1240) e a maneira como a invasão foi tratada
pelos cronistas da época.
De todos os documentos históricos da República de Novgorod, a Primeira
Crônica é o mais antigo (ao menos dos que sobreviveram até os dias de hoje),
cobrindo fatos que vão de 1016 até 1471. Sua cópia mais antiga é chamada de Sínodo,
a qual remonta ao século XIII e que se encontra preservada no Museu Estatal de
História em Moscou. No século XIV, esta cópia foi retomada pelos monges do
monastério Yuriev de Novgorod. Também existem outras cópias importantes, entre elas
a Acadêmica de 1444, a da Comissão de meados do século XV, a da Trindade de 1563
e a de Tolstói, datada da década de 1720. Mas antes de de analisar a Crônica e a
forma como abordou tais eventos, é necessário abordar a maneira como se deu a
expansão mongólica Europa adentro (incluindo a invasão ao território russo), seus
antecedentes e seu contexto, para uma melhor compreensão do assunto.
Justificativa: De modo geral, no ensino brasileiro de História dois assuntos bem
pouco abordados são a Rússia pré-moderna e o Império Mongol. O estudo do medievo
Brasil é bem focado na Europa ocidental, chegando a dar a impressão de que
praticamente nada acontece a leste dos Alpes, do rio Oder e do alto curso do Danúbio.
Com isso, a Europa oriental (Rússia incluso) fica bem marginalizada. A partir dos
séculos XVII e XVIII, a Rússia emerge como uma das grandes potências no cenário
geopolítico euroasiático, e desempenha grande papel em eventos como a Grande
Guerra do Norte, as Guerras Napoleônicas, o Congresso de Viena e as duas Guerras
Mundiais. Veio a se tornar o maior país do mundo em matéria de extensão territorial
contínua, com um território que chegou a abarcar áreas de três continentes: Europa,
Ásia e América do Norte, mantendo até os dias de hoje a maior parte dos ganhos
territoriais da época. O mesmo vale para o Império Mongol e os khanatos que
originaram de sua fragmentação, que ao final do século XIII dominava uma área que se
estendia das fronteiras orientais da Polônia e da Hungria a embocadura do rio Amur e
da Sibéria ao Vietnã, tendo contribuído para o desenvolvimento e surgimento das
modernas Rússia, China e Irã.
Desenvolvimento
Ao longo dos séculos XVIII e XIX, a Europa (através de potências como França,
Inglaterra, Alemanha e Rússia) se impôs economicamente, politicamente e militarmente
sobre o mundo através do processo da expansão imperialista/neocolonialista,
colonizando e/ou os colocando sob sua influência vastos rincões de continentes como
África e Ásia. Mas, antes disso, sofreu ao longo de sua história com os ataques de
vários invasores extracontinentais vindos de locais como o norte da África, a Ásia
Menor e a Ásia Central, desde os persas de Dario e Xerxes no século V antes de Cristo
até os turcos otomanos nos séculos XIV a XVII, passando por cartagineses, hunos,
ávaros, magiares e mongóis, entre outros.
1
Graduado e Pós graduado em História pelo Centro Universitário Barão de Mauá.
Passados já quase um milênio das invasões hunas de Átila, um novo grupo de
invasores vindos dos fundões da Ásia veio a invadir o Velho Continente no século XIII.
Sob a liderança do general Subotai e de Batu Khan, um dos netos de Genghis Khan
por via de seu primogênito Jochi, os mongóis (os quais vieram a ser chamados de
tártaros pelos europeus) conquistaram grandes áreas da Europa Oriental entre 1236 a
1242, incluindo a Rússia, a qual permaneceu sob o jugo mongol por cerca de dois
séculos e meio, e invadindo na sequência Hungria, Polônia e Bulgária com sucesso
entre 1241 e 1242. Outras investidas menores contra os poderes europeus ocorreram
nos anos seguintes, incluindo a de 1258 contra a Lituânia, a de 1259/1260 contra a
Polônia e a de 1265 contra a Trácia Bizantina.
Ao longo dos séculos o atual território da Mongólia foi o lar de vários povos
nômades das estepes que foram um grande problema para as civilizações sedentárias
do sul, em especial a China. Entre tais povos estão os Xiongnu (conhecidos na
Mongólia como Hunnu/Хүннү e tidos por alguns historiadores como Edward Gibbon e
Joseph de Guignes como os antecessores dos hunos de Átila), os Xianbei, os JuanJuan, os Uigures e os Jurchen.
Mas, no século XII, a Mongólia, assim como a Arábia pré-Maomé, não
apresentava unidade política alguma, com território dividido em várias tribos. É em
meio a esse contexto que Genghis Khan (nascido Temujin) nasce e vive seus primeiros
anos. Após uma série de guerras internas, todas as tribos da Mongólia são unificadas e
o Império Mongol é fundado em 1206, com Genghis Khan sendo aclamado como o
Khan Supremo, ou Khagan, no kurultai2 do mesmo ano. Depois de conquistar grande
parte do norte da China (incluindo Pequim), Genghis Khan voltou seus olhos para o
Ocidente. Entre 1216 a 1218 o reino de Kara Khitai foi conquistado, seguido da
conquista do Império de Khworezm, então governado pelo xá Mohammad II, entre 1219
a 1221. Cidades como Bukhara, Samarkand, Urgench e Otrar sofreram grandes
devastações e matanças nas mãos dos invasores vindos do leste, e diante dessa
situação, Mohammad II se refugia em uma ilha no Mar Cáspio.
Acreditando que a captura do xá poderia fazer com que os povos recémsubjugados da Ásia Central se rendessem mais facilmente, Genghis Khan despachou
um exército de cerca de 20 mil homens (ou seja, dois tumens3) liderado pelos generais
Jebe Noyon e Subotai Bahadur para perseguir o xá, o qual morreu de pleurisia na ilha
onde se refugiou (Chambers 1979: 18). No entanto, esta força expedicionária faria
muito mais que uma simples perseguição a um rei fugitivo: os dois generais mongóis
promoveram uma cavalgada de 7.500 quilômetros que levou os mongóis a entrarem
em contato com o mundo cristão europeu, marchando a oeste até as proximidades de
Kiev (Man 2004: 196-197).
Fazendo o caminho inverso que os hunos fizeram em sua incursão de 395
contra o Império Bizantino, os mongóis primeiro atacaram o norte do Irã e no
Azerbaijão, pilhando cidades como Ray, Zanjan e Qazvin, e investindo contra a
Geórgia entre janeiro e fevereiro de 1221. Depois de uma série de escaramuças os
mongóis, valendo-se de táticas como a falsa retirada, emboscadas e contra-ataques,
venceram os georgianos.
No mês seguinte, os mongóis retornaram ao sul, sitiando a cidade de Maraghah
no noroeste do Irã. Ao final do mesmo ano Jebe e Subotai voltaram para o
2
Conselho de guerra entre vários povos nômades das estepes, onde os chefes e soberanos mongóis se reuniam para decidir suas
ações, incluindo campanhas militares e até eleições de soberanos.
2
Dentro do exército mongol, o termo que se usava para designar um destacamento de 10 mil homens. Ao passo que uma tropa de
dez homens era chamada de Arban, uma de 100 homens era chamada de Jagun e uma de 1000 homens, Minghann.
Transcáucaso, vencendo novamente os georgianos e transpondo o Cáucaso via
Derbent e a costa oriental do Mar Cáspio (Chambers 1979: 24).
Nas estepes do sul da Rússia (a parte ocidental da grande estepe euroasiática,
conhecida pelos antigos gregos e romanos como Cítia e pelos muçulmanos como
Desht-i-Kipchak), os mongóis enfrentaram nas estepes entre os rios Kuban e Kuma
uma força combinada de povos locais tais como os alanos e os cumanos. Estes
últimos, nômades de origem túrquica (também conhecidos pelos russos como polovtsi),
eram a força dominante na zona de estepes entre o Danúbio e o Volga. Para vencê-los,
Jebe e Subotai se valeram da seguinte artimanha: enviaram um emissário aos
cumanos oferecendo rebanhos carregados dos tesouros apanhados na Geórgia, o que
fez com que dividissem suas forças para pegar tal tesouro, tornando-as presas fáceis
para os mongóis, os quais retomaram os tesouros na sequência. Enquanto os mongóis
se dirigiram para invernar na região do mar de Azov e na península da Criméia, o líder
cumano Khotian se voltou para seus aliados do norte, os russos.
Dentre os poderes europeus da época, os russos, na época divididos em vários
principados, era o mais oriental de todos. As origens de sua civilização remonta ao ano
862, quando o chefe varegue4 semi-lendário Rurik toma a cidade de Novgorod, se
impondo sobre a população eslava local e fundando uma dinastia, os rurikidas (em
russo: y rikovi i/ рикови и), os quais após a morte de Rurik (879) transferiram a
capital para Kiev. No ano de 988, sob a liderança de São Vladimir, os russos se
converteram ao cristianismo ortodoxo, o que fez com que os russos tivessem uma
orientação mais voltada para o sul (especialmente para o Império Bizantino) que para o
oeste em matéria de política externa (Nicolle, 1999: 14-15).
No entanto, a Rus’ de Kiev, como tal civilização é geralmente denominada, a
partir da morte de Yaroslav I o sábio em 1054, sofre com a fragmentação de seu
território, gerando principados como Kiev, Chernigov, Novgorod, Vladimir-Suzdal,
Rostov, Galícia-Volínia, Ryazan e Smolensk, cujos soberanos geralmente usavam os
títulos de Knyaz’/князь (Príncipe, Duque) e/ou Velikiy Knyaz’/Великий князь (Grande
Príncipe, Grão-Duque). Todos eles governados por ramos da linhagem rurikida, cujos
soberanos reinarão na Rússia até 1598, com a morte do tsar 5 Fyodor I. Khotian foi à
procura de seu genro Mstislav Mstislavich o Ousado, Príncipe da Galícia, com quem
era casado com uma de suas filhas. Juntos, cumanos e russos (incluindo efetivos dos
vários principados) formaram uma força de cerca de 80 mil homens que perseguiu os
mongóis por nove dias até se encontrar com os invasores no rio Kalka. Um
enfrentamento se deu entre os dois exércitos, que terminou em vitória para os mongóis.
Segundo John Man em sua biografia sobre Genghis Khan, a manobra usada
pelos invasores asiáticos para vencer a batalha se deu da seguinte maneira:
“Então os mongóis atacaram – de um modo fora do convencional, com a cavalaria pesada
marchando contra os arqueiros dos polovtsi, levemente armados, depois os cavaleiros assaltando a
cavalaria russa, movendo-se com lanças, chuços e espadas leves até que as forças atacantes iniciaram
uma fuga caótica, desaparecendo na própria retaguarda e pressionando o grupo para o vale profundo [...]
Dias depois, alguns sobreviventes alcançaram o Dnieper e velejaram rio abaixo; outros foram perseguidos
até a morte, quando fugiam pelos prados” (Man 2004: 202-203).
Após a batalha, alguns dos líderes do exército derrotado foram violentamente
torturados e mortos pelos invasores, entre eles Mstislav III de Kiev: amarrados e
3
O termo usado para se referir aos agrupamentos vikings de origem sueca que, diferente dos da Noruega e da Dinamarca que iam
se aventurar na Europa Ocidental, se dirigiam para o leste, na direção da Rússia e do Mundo Muçulmano. O Império Bizantino
possuía uma tropa especial composta por tais guerreiros, a Guarda Varegue.
5
O termo tsar/ Царь deriva do Caesar romano, assim como o Kaiser alemão. Durante muito tempo os russos usaram tal título para
se referir aos imperadores bizantinos (cuja capital, Constantinopla, era chamada de Tsargrad/ Царьград, “a cidade do Tsar”) e aos
khans tártaros da Horda Dourada. Apenas a partir de Ivan IV o Terrível (r. 1547 – 1584) que tal título passou a ser utilizado pelos
soberanos da Rússia Imperial.
deitados no chão e morrendo de sufocamento, servindo de base para uma plataforma
de madeira onde os comandantes mongóis se banquetearam e dançaram. Em seguida
a força expedicionária se dirige a leste, passando pelo Volga e juntando-se ao
acampamento de Genghis Khan no Irtysh ainda em 1223.
Genghis Khan morreu em 1227 em meio a campanha contra os Xixia no norte da
China. Pouco antes dividiu seu Império (que a época se estendia da costa leste do Mar
Cáspio a embocadura do rio Amur e do sul da Sibéria ao Afeganistão) em quatro
partes: Jochi ficou com a Sibéria Ocidental e o Cazaquistão, Tolui com a Mongólia e o
sul da Sibéria, Djaghatai com a Transoxiana e Ogodei com o norte da China. No
entanto, Jochi faleceu poucos meses antes de seu pai, e seus domínios foram divididos
entre seus filhos, entre eles o seu primogênito Orda e Batu.
Terminada a conquista dos Jin do norte da China, um kurultai se reuniu em
Karakorum, a capital do Império Mongol, em 1235. Ao final foi decidido que seria
enviado um grande exército de cerca de 150 mil homens para o Ocidente, sob a
liderança de Batu Khan e Subotai. Na primavera de 1236, com o apoio de engenheiros
chineses e persas, o exército mongol inicia sua marcha a Ocidente, desta vez
adentrando na Europa via Urais.
A primeira vítima do avanço mongol ao Oeste foram os búlgaros do Volga, com
os quais já tinham travado escaramuças fronteiriças em 1229 e 1232. Uma a uma as
principais cidades búlgaras caíram, e antes mesmo da primavera de 1237 o reino
búlgaro foi totalmente submetido. O exército mongol, como Subotai tinha planejado,
cruzou o Volga congelado no inverno do mesmo ano em direção aos principados
russos, com um efetivo de cerca de 120 mil homens (Chambers 1979: 86-87). Mais
uma vez, Subotai viu os russos sem unidade alguma, e resolveu conquistá-los um por
um, de forma a impedir que os principados do sul ajudassem os do norte e vice-versa
(Hildinger 2001: 135).
Um a um os principados foram caindo diante da fúria dos invasores asiáticos. A
primeira vítima foi o principado de Ryazan. Cidades como Isteslawetz e Pronsk foram
saqueadas e arrasadas, e três dias antes do natal e após um cerco de cinco dias a
própria Ryazan foi tomada e conquistada. Em seguida Batu e Subotai se dirigiram a
Vladimir-Suzdal, primeiros mandando enviados a corte de Yuri II de Vladimir, o GrãoPríncipe de Vladimir-Suzdal. Mais uma vez, os embaixadores mongóis foram tratados
com desdém pelos russos. A primeira cidade a cair nas mãos dos invasores foi Moscou
(na época uma mera cidade provinciana). A partir de sete de fevereiro de 1238 Vladimir
foi assediada, sendo pesadamente bombardeada pela artilharia mongol com rochas. O
pânico se espalhou entre os moradores da cidade e ao final toda a família real de
Vladimir foi morta (Chambers 1979: 90-91).
Na sequência da queda de Vladimir, Subotai tomou a decisão de dividir as
forças: ele se dirigiria ao norte para destruir o exército de Yuri II, enquanto que Batu se
dirigiria ao nordeste para forçar Novgorod a permanecer na defensiva e quem sabe até
investir na capital onde Subotai poderia se juntar a ele. O primeiro, depois de ver que o
Grão-Duque nada fez, tomou as cidades de Yuriev, Rostov e Yaroslav, ao passo que o
segundo anexou Dimitrov e Tver. No dia quatro de março, o general Burundai venceu
Yuri II na batalha do rio Sit, o que colocou fim a qualquer esperança de resistência local
contra os invasores.
Batu, por sua vez, após destruir Torzhok6, se dirigiu até Novgorod, a capital da
República de mesmo nome. No entanto, quando estava nas portas de Novgorod, a
primavera chegou, o que fez com que o gelo e a neve derretessem, criando um
labirinto de pântanos e fazendo com que o exército do neto de Genghis Khan perdesse
a vantagem da mobilidade e recuasse para o sul (Chambers 1979: 92). Mas, mesmo
não sendo invadida, Novgorod, cujo líder Alexandre Nevsky, que se notabilizaria por
suas vitórias contra os suecos no rio Neva (1240) e contra os cavaleiros livonianos (que
nada eram que a ramificação dos cavaleiros teutônicos que atuava no nordeste do
Báltico) na batalha do lago Peipus (1242), se sujeitou a Horda Dourada (Barraclough
1993: 114).
Terminada a conquista dos principados do norte, Batu e Subotai se dirigiram
para o sudoeste, dirigindo-se para as estepes a oeste do rio Don, passando por
Vyazma e Kozelsk. Durante o verão o exército mongol acampou e descansou nas
estepes entre o Dnieper e o Don, investindo em seguida contra os povos da estepe ao
sul: Berke, um dos irmãos de Batu, se dirigiu ao oeste para destruir os refugiados do
Khan kipchak Bachman estabelecidos ao norte do Mar Negro, ao passo que Mongka
venceu os circassianos e os alanos, estendendo os domínios tártaros até o norte do
Cáucaso, ao passo que no sul do Cáucaso o general Chormagan, operando a partir do
norte do Irã e do Azerbaijão, vassalizou a Geórgia e a Armênia na mesma época
(Chambers 1979: 93).
Da mesma forma com que nos idos de 370 os hunos fizeram grandes levas de
ostrogodos se dirigirem para o Império Romano, os mongóis fizeram o mesmo com os
cumanos, os quais se dirigiram em massa para a Hungria (Chambers 1979: 94). As
próximas vítimas foram os principados de Chernigov e Pereyeslav, e, em meados de
novembro de 1240, Kiev foi alcançada pelas vanguardas mongóis.
Tributos foram demandados ao então governador de Kiev, Dimitri. No entanto,
este matou os embaixadores enviados por Mongka. No dia 28 de novembro, com a
chegada de Batu, o cerco a Kiev se iniciou. A artilharia mongol inicialmente se
concentrou no Portal Polonês. Após esta cair, a cavalaria pesada entrou nas ruas da
cidade, a qual foi tomada rua por rua no dia 6 de dezembro e na sequência arruinada e
saqueada, ficando intacta apenas a Catedral de Santa Sofia. Nas três semanas
seguintes as fronteiras ocidentais de Rus’ foram alcançadas, os principados da Galícia
e Volínia conquistados e os príncipes menores que não fugiram entregaram suas
propriedades para Batu (Chambers 1979: 97-99).
Da seguinte forma a Primeira Crônica de Novgorod descreve tais fatos, valendose de elementos bíblicos para explicar a queda de cidades como Ryazan diante dos
invasores, como no trecho abaixo:
“Mas era tarde demais para se opor a fúria de Deus, como foi dito no passado por Deus, a Josué o
filho de Num, quando os liderou para a Terra Prometida, então ele disse: ‘eu devo enviar antes de você a
perplexidade, e trovão, e medo, e tremor sobre eles’. Assim também fez Deus antes que nos tomássemos a
força e colocar-nos em perplexidade e trovões e temor e tremor por nossos pecados. E então os
estrangeiros pagãos sitiaram Ryazan e a cercaram com uma paliçada. E o Knyaz Yuri de Ryazan, ficou na
cidade com seu povo, mas o Knyaz Roman Ingorovich começou a lutar contra eles com seus próprios
homens. Então o Knyaz Yuri de Volodimir enviou Yeremei como Voyevoda com uma patrulha e se juntou a
Roman; e os Tártaros o cercaram em Kolomno, e eles lutaram duro e os conduziram para as muralhas. E
aqui eles mataram Roman e Yeremei e muitos caindo aqui com o Knyaz e com Yeremei tendo visto nada. E
os homens de Moscou fugiram e os Tártaros tomaram a cidade em 21 de dezembro, e eles avançaram
contra ela no dia 16 do mesmo mês. Eles também mataram o Knyaz e a Knyaginya, e homens, mulheres e
crianças, monges, freiras e sacerdotes, alguns pelo fogo, outros pela espada, e violaram freiras, esposas de
sacerdotes, boas mulheres e garotas na presença de suas mães e irmãs. Mas Deus salvou o Bispo, pois
6
Leia-se Torjok, pois no idioma russo a partícula zh (cirílico ж) se lê e se pronuncia com som de j.
ele partiu no mesmo momento quando as tropas investiram contra a cidade. [...] Então, os tártaros pagãos e
ateus, tendo tomado Ryazan, se dirigiram para Volodomir, uma hoste de derramadores de sangue cristão.
[...] E o Knyaz Yuri enviou Dorozh para patrulhar com 3,000 homens; e o Dorozh veio correndo, e disse:
“Eles já nos cercaram, Knyaz." E o Knyaz começou a reunir suas forças sobre ele, e observando, os
Tártaros vieram de repente, e o Knyaz, incapaz de fazer alguma coisa, fugiu. E isso aconteceu quando ele
alcançou o rio Sit eles o alcançaram e lá sua vida acabou. E Deus sabe como ele morreu; para alguns
dizem muito a respeito. E Rostov e Suzdal foram cada um em seu caminho. E os malditos, tendo chegado
tomaram Moscou, Pereyaslavl, Yurev, Dmitrov, Volok, e Tver; ai eles também mataram o filho de Yaroslav.
E daí os desregrados vieram e atacaram Torzhok no festival do Primeiro Domingo da Quaresma. Eles
cercaram durante todo com um cerco que nem haviam tomado outras cidades, e ai os malditos lutaram com
aríetes por duas semanas. E as pessoas na cidade estavam cansadas e de Novgorod não houve ajuda
para elas; mas já cada homem começou a ficar perplexo e aterrorizado. E então os pagãos tomaram a
cidade, e matou todos do sexo masculino e mesmo do feminino, todos os sacerdotes e monges, e todos
despojados e injuriados deram suas almas ao Senhor em uma morte amarga e infeliz, em 5 de março, o dia
da comemoração do Sagrado Mártir Nikon, na Quarta da semana da Páscoa. E lá, também, foram mortos
Ivanko o Posadnik de Novi-torg, Yakim Vlunkovich, Gleb Boriso-vich, e Mikhailo Moisievich [...] Deus, no
entanto, e a grande e sagrada Catedral Apostólica Igreja de Santa Sofia, e Santo Cirilo, e os oradores do
7
Vladyka sagrado e ortodoxo, dos Knyazes fiéis, e dos reverendíssimos monges da Veche hierárquica,
protegeram Novgorod. [...] E qualquer terra que pecou Deus pune com morte ou fome, ou com punição dos
pagãos, ou com seca, ou com chuvas fortes, ou qualquer outra punição, para ver se nos arrependemos e
vivermos como Deus nos ordena; Por Ele nos diz o profeta: “Vire-me para mim com todo o seu coração,
com jejum e lágrimas”. E se fizermos isso poderemos ser perdoados de nossos pecados (Anônimo 1914:
82-84, tradução nossa).
Conclusão
Nesse retrato dos invasores mongóis e do episódio da conquista (assim como o
da batalha do rio Kalka e outros posteriores como o cerco de Moscou por Tokhtamysh
em 1382), vemos a presença do típico discurso de cunho religioso da época medieval,
chegando ao ponto de dizer que tais desgraças ocorreram em decorrência de supostos
pecados do povo de Rus’. A respeito do discurso de fundo religioso que aparece nas
Crônicas de Novgorod, há de se fazer algumas considerações.
Assim como em toda a Europa medieval, a religiosidade entre os russos na
época era muito forte. A Igreja Ortodoxa, tal como a Igreja Católica Romana na Europa
Ocidental, possuía grande poder e prestígio dentro da sociedade russa. E se tinha algo
que os principados que emergiram após o fim da Rus’ de Kiev tinham em comum era a
religião cristã ortodoxa, da mesma forma com que os Califados que surgiram com a
fragmentação do Império Árabe-Islâmico (Córdoba, Cairo, Bagdá) a partir de meados
do século VIII tinham a religião islâmica em comum entre eles. Ou seja, uma unidade
cultural-religiosa que não era acompanhada de uma unidade político-administrativa.
Nas Crônicas uma grande ênfase é dada a violência infligida pelos invasores ao
povo de Rus’, assim como ao fato de os invasores não serem cristãos (não raro sendo
chamados de ateus), sem levar em consideração as razões pelas quais os invasores
promoviam tais massacres, assim como foi feito em outros lugares como na China e
em Khworezm. A respeito do uso da tática do terror psicológico pelos mongóis, Michel
Hoàng faz a seguinte consideração:
“Genghis Khan praticou uma estratégia sistemática de intimidação e terror. Pouco numerosos para
enfrentar múltiplos pontos de resistência, pouco inclinados a enfrentar uma guerrilha desgastante, os
mongóis muitas vezes aplicavam métodos sanguinários exemplares. A degolação maciça de uma guarnição
e os massacres de civis tinham por objetivo dissuadir uma eventual resistência armada e poupar vidas dos
efetivos mongóis. Essa estratégia de terror dissuasivo é muito diferente daquela que levou a lançar bombas
atômicas em cidades japonesas?” (Hoàng 2002: 342-343).
Da mesma forma com que Átila foi visto pelos romanos e depois pela mitologia
eclesiástica medieval como o “Flagelo de Deus”, os mongóis são vistos pelos Cronistas
de Novgorod em episódios como a batalha do rio Kalka e as invasões de Batu e
7
Assembléia popular constituída pelas principais famílias da Rus’ de Kiev.
Tokhtamysh como uma espécie de arautos da Fúria de Deus, enviados pela suprema e
única divindade do cristianismo para punir seus fiéis por causa de seus (supostos)
pecados, sendo a desgraça que se abateu sobre Rus’ transformada em uma espécie
de versão medieval do ocorrido em Sodoma e Gomorra. Dentro do cristianismo, a fúria
de Deus (ou retribuição divina) por causa dos pecados das pessoas é algo que aparece
na Bíblia em várias passagens, como no episódio das Pragas do Egito em Êxodo 7-14
e de Sodoma e Gomorra em Gênesis 19:23-29. Mas, ironicamente, é atribuída ao
mesmo Deus que castigou a Rússia a salvação de Novgorod, assim como as vitórias
de Alexandre Nevsky no Neva e no Peipus e mais adiante a vitória de Dimitri Donskoy
na batalha de Kulikovo (1380) contra o general Mamai.
Acima de tudo vemos nas Crônicas de Novgorod a presença da velha retórica da
civilização x barbárie da qual as grandes civilizações sedentárias tais como Grécia e
Roma no Ocidente (da qual os russos eram herdeiros) e o Islã e a China no Oriente
possuíam em relação a povos por eles tidos como inferiores.
No caso do Ocidente, tal retórica adotou roupagens diversas ao longo do tempo:
na Antiguidade Clássica, o componente cultural e linguístico usado por Grécia e Roma;
no Medievo entra em cena a retórica religiosa, como visto nas Crônicas de Novgorod;
na Idade Moderna, com a colonização das Américas, entra em cena o discurso do
“bom selvagem”, em que os nativos americanos eram apresentados como bons por
natureza e incapazes de manifestarem maldade por muitos literários europeus da
época, tais como Erasmo de Roterdã e Thomas Morus; e na Modernidade, com o
neocolonialismo e a colonização de vastas áreas da Ásia e da África por potências
como Inglaterra, França e Alemanha, tais políticas eram justificadas por retóricas como
a do “fardo do homem branco”, na qual os colonizadores europeus tinham o dever de
levar a “civilização e seus avanços” para o resto do mundo.
E nisso os mongóis foram tidos como os grandes responsáveis pelo atraso
econômico e social da Rússia em relação às potências da Europa Ocidental (Inglaterra,
França e Alemanha) no século XIX por vários intelectuais da época, tais como
Alexander Pushkin e Nikolai Karamzin. Valendo-se de um discurso de fundo secular e
nacionalista, tais intelectuais alegavam que os mongóis, para além das depredações
costumeiras, teriam dividido a antiga nacionalidade russa em três unidades distintas
(algo que certamente também foi fortemente influenciada por poloneses, lituanos e
austríacos em seus anos de domínio sobre a região), afastaram a Rússia do Ocidente
e de eventos como o Renascimento e a Reforma Religiosa, dando uma orientação
mais para o leste que para o oeste em matéria de política externa.
O fato é que, em uma época em que se falava tanto na superioridade da Europa
sobre o resto do mundo (discurso esse que era acompanhado de todo um arcabouço
teórico-científico, o chamado racismo científico) e que esta tinha a missão de civilizar o
resto do mundo com seus valores, os mongóis mostravam-se o bode expiatório perfeito
para explicar as mazelas pelas quais a Rússia e sua sociedade passavam na época,
da mesma forma com que no Brasil o colonizador português também foi tido como o
grande responsável pelo atraso do país em relação às grandes potências no PósIndependência, em especial com o advento do Movimento Republicano jacobino no
final do Segundo Reinado (1840 – 1889) e seu discurso antilusitano.
No primeiro caso tratava-se um povo de, que diferente dos poloneses e lituanos
de origem europeia (portanto racialmente e culturalmente mais próximos dos russos),
era de origem asiática, portanto bárbaro, atrasado e incivilizado aos olhos dos
imperialistas europeus do século XIX. E no segundo, pesava muito o fato de Portugal
ser um país pobre e periférico dentro da Ordem que se instaurou na Europa após a
Revolução Industrial. Ainda mais diante do sucesso dos Estados Unidos (visto por
intelectuais como Raul Pompéia como um modelo a ser seguido), país este que foi
colonizado pela Inglaterra, a qual na época era ninguém menos que a grande potência
militar, política e econômica da época. Portanto, pela lógica, tudo parecia indicar que o
ideal para o Brasil teria sido uma colonização inglesa ou mesmo um eventual triunfo do
projeto holandês do século XVII.
Mas, a despeito das diferentes roupagens, em comum o discurso do bárbaro x
civilizado em todas essas épocas havia o fato de o bárbaro ser o outro, aquele que vive
além das fronteiras e que possui hábitos e costumes diferentes dos ditos civilizados.
Como o grande historiador francês medievalista Georges Duby diz em sua obra “Ano
1000 Ano 2000: Na pista de nossos medos“:
“O estrangeiro, o vindo de longe, é o invasor absoluto, causa mais medo que o vizinho que agride.
Lembro-me do terror que inspiravam, durante a Ocupação, os soldados tártaros recrutados pelos alemães.
As hordas que surgiram impetuosamente do leste, multidões prontas a irromper, eis o temor, vivaz,
permanente” (Duby 1995: 68).
Fontes
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