A CONQUISTA MONGOL DA RÚSSIA SEGUNDO A PRIMEIRA CRONICA DE NOVGOROD EDUARDO CONSOLO DOS SANTOS1 Objetivo: O presente artigo pretende fazer uma análise da maneira como os invasores mongóis foram retratados na Primeira Crônica de Novgorod (em russo Novgorodskaya Pervaya Letopis’/Новгородская первая летопись), dando ênfase ao episódio da guerra de conquista (1237 – 1240) e a maneira como a invasão foi tratada pelos cronistas da época. De todos os documentos históricos da República de Novgorod, a Primeira Crônica é o mais antigo (ao menos dos que sobreviveram até os dias de hoje), cobrindo fatos que vão de 1016 até 1471. Sua cópia mais antiga é chamada de Sínodo, a qual remonta ao século XIII e que se encontra preservada no Museu Estatal de História em Moscou. No século XIV, esta cópia foi retomada pelos monges do monastério Yuriev de Novgorod. Também existem outras cópias importantes, entre elas a Acadêmica de 1444, a da Comissão de meados do século XV, a da Trindade de 1563 e a de Tolstói, datada da década de 1720. Mas antes de de analisar a Crônica e a forma como abordou tais eventos, é necessário abordar a maneira como se deu a expansão mongólica Europa adentro (incluindo a invasão ao território russo), seus antecedentes e seu contexto, para uma melhor compreensão do assunto. Justificativa: De modo geral, no ensino brasileiro de História dois assuntos bem pouco abordados são a Rússia pré-moderna e o Império Mongol. O estudo do medievo Brasil é bem focado na Europa ocidental, chegando a dar a impressão de que praticamente nada acontece a leste dos Alpes, do rio Oder e do alto curso do Danúbio. Com isso, a Europa oriental (Rússia incluso) fica bem marginalizada. A partir dos séculos XVII e XVIII, a Rússia emerge como uma das grandes potências no cenário geopolítico euroasiático, e desempenha grande papel em eventos como a Grande Guerra do Norte, as Guerras Napoleônicas, o Congresso de Viena e as duas Guerras Mundiais. Veio a se tornar o maior país do mundo em matéria de extensão territorial contínua, com um território que chegou a abarcar áreas de três continentes: Europa, Ásia e América do Norte, mantendo até os dias de hoje a maior parte dos ganhos territoriais da época. O mesmo vale para o Império Mongol e os khanatos que originaram de sua fragmentação, que ao final do século XIII dominava uma área que se estendia das fronteiras orientais da Polônia e da Hungria a embocadura do rio Amur e da Sibéria ao Vietnã, tendo contribuído para o desenvolvimento e surgimento das modernas Rússia, China e Irã. Desenvolvimento Ao longo dos séculos XVIII e XIX, a Europa (através de potências como França, Inglaterra, Alemanha e Rússia) se impôs economicamente, politicamente e militarmente sobre o mundo através do processo da expansão imperialista/neocolonialista, colonizando e/ou os colocando sob sua influência vastos rincões de continentes como África e Ásia. Mas, antes disso, sofreu ao longo de sua história com os ataques de vários invasores extracontinentais vindos de locais como o norte da África, a Ásia Menor e a Ásia Central, desde os persas de Dario e Xerxes no século V antes de Cristo até os turcos otomanos nos séculos XIV a XVII, passando por cartagineses, hunos, ávaros, magiares e mongóis, entre outros. 1 Graduado e Pós graduado em História pelo Centro Universitário Barão de Mauá. Passados já quase um milênio das invasões hunas de Átila, um novo grupo de invasores vindos dos fundões da Ásia veio a invadir o Velho Continente no século XIII. Sob a liderança do general Subotai e de Batu Khan, um dos netos de Genghis Khan por via de seu primogênito Jochi, os mongóis (os quais vieram a ser chamados de tártaros pelos europeus) conquistaram grandes áreas da Europa Oriental entre 1236 a 1242, incluindo a Rússia, a qual permaneceu sob o jugo mongol por cerca de dois séculos e meio, e invadindo na sequência Hungria, Polônia e Bulgária com sucesso entre 1241 e 1242. Outras investidas menores contra os poderes europeus ocorreram nos anos seguintes, incluindo a de 1258 contra a Lituânia, a de 1259/1260 contra a Polônia e a de 1265 contra a Trácia Bizantina. Ao longo dos séculos o atual território da Mongólia foi o lar de vários povos nômades das estepes que foram um grande problema para as civilizações sedentárias do sul, em especial a China. Entre tais povos estão os Xiongnu (conhecidos na Mongólia como Hunnu/Хүннү e tidos por alguns historiadores como Edward Gibbon e Joseph de Guignes como os antecessores dos hunos de Átila), os Xianbei, os JuanJuan, os Uigures e os Jurchen. Mas, no século XII, a Mongólia, assim como a Arábia pré-Maomé, não apresentava unidade política alguma, com território dividido em várias tribos. É em meio a esse contexto que Genghis Khan (nascido Temujin) nasce e vive seus primeiros anos. Após uma série de guerras internas, todas as tribos da Mongólia são unificadas e o Império Mongol é fundado em 1206, com Genghis Khan sendo aclamado como o Khan Supremo, ou Khagan, no kurultai2 do mesmo ano. Depois de conquistar grande parte do norte da China (incluindo Pequim), Genghis Khan voltou seus olhos para o Ocidente. Entre 1216 a 1218 o reino de Kara Khitai foi conquistado, seguido da conquista do Império de Khworezm, então governado pelo xá Mohammad II, entre 1219 a 1221. Cidades como Bukhara, Samarkand, Urgench e Otrar sofreram grandes devastações e matanças nas mãos dos invasores vindos do leste, e diante dessa situação, Mohammad II se refugia em uma ilha no Mar Cáspio. Acreditando que a captura do xá poderia fazer com que os povos recémsubjugados da Ásia Central se rendessem mais facilmente, Genghis Khan despachou um exército de cerca de 20 mil homens (ou seja, dois tumens3) liderado pelos generais Jebe Noyon e Subotai Bahadur para perseguir o xá, o qual morreu de pleurisia na ilha onde se refugiou (Chambers 1979: 18). No entanto, esta força expedicionária faria muito mais que uma simples perseguição a um rei fugitivo: os dois generais mongóis promoveram uma cavalgada de 7.500 quilômetros que levou os mongóis a entrarem em contato com o mundo cristão europeu, marchando a oeste até as proximidades de Kiev (Man 2004: 196-197). Fazendo o caminho inverso que os hunos fizeram em sua incursão de 395 contra o Império Bizantino, os mongóis primeiro atacaram o norte do Irã e no Azerbaijão, pilhando cidades como Ray, Zanjan e Qazvin, e investindo contra a Geórgia entre janeiro e fevereiro de 1221. Depois de uma série de escaramuças os mongóis, valendo-se de táticas como a falsa retirada, emboscadas e contra-ataques, venceram os georgianos. No mês seguinte, os mongóis retornaram ao sul, sitiando a cidade de Maraghah no noroeste do Irã. Ao final do mesmo ano Jebe e Subotai voltaram para o 2 Conselho de guerra entre vários povos nômades das estepes, onde os chefes e soberanos mongóis se reuniam para decidir suas ações, incluindo campanhas militares e até eleições de soberanos. 2 Dentro do exército mongol, o termo que se usava para designar um destacamento de 10 mil homens. Ao passo que uma tropa de dez homens era chamada de Arban, uma de 100 homens era chamada de Jagun e uma de 1000 homens, Minghann. Transcáucaso, vencendo novamente os georgianos e transpondo o Cáucaso via Derbent e a costa oriental do Mar Cáspio (Chambers 1979: 24). Nas estepes do sul da Rússia (a parte ocidental da grande estepe euroasiática, conhecida pelos antigos gregos e romanos como Cítia e pelos muçulmanos como Desht-i-Kipchak), os mongóis enfrentaram nas estepes entre os rios Kuban e Kuma uma força combinada de povos locais tais como os alanos e os cumanos. Estes últimos, nômades de origem túrquica (também conhecidos pelos russos como polovtsi), eram a força dominante na zona de estepes entre o Danúbio e o Volga. Para vencê-los, Jebe e Subotai se valeram da seguinte artimanha: enviaram um emissário aos cumanos oferecendo rebanhos carregados dos tesouros apanhados na Geórgia, o que fez com que dividissem suas forças para pegar tal tesouro, tornando-as presas fáceis para os mongóis, os quais retomaram os tesouros na sequência. Enquanto os mongóis se dirigiram para invernar na região do mar de Azov e na península da Criméia, o líder cumano Khotian se voltou para seus aliados do norte, os russos. Dentre os poderes europeus da época, os russos, na época divididos em vários principados, era o mais oriental de todos. As origens de sua civilização remonta ao ano 862, quando o chefe varegue4 semi-lendário Rurik toma a cidade de Novgorod, se impondo sobre a população eslava local e fundando uma dinastia, os rurikidas (em russo: y rikovi i/ рикови и), os quais após a morte de Rurik (879) transferiram a capital para Kiev. No ano de 988, sob a liderança de São Vladimir, os russos se converteram ao cristianismo ortodoxo, o que fez com que os russos tivessem uma orientação mais voltada para o sul (especialmente para o Império Bizantino) que para o oeste em matéria de política externa (Nicolle, 1999: 14-15). No entanto, a Rus’ de Kiev, como tal civilização é geralmente denominada, a partir da morte de Yaroslav I o sábio em 1054, sofre com a fragmentação de seu território, gerando principados como Kiev, Chernigov, Novgorod, Vladimir-Suzdal, Rostov, Galícia-Volínia, Ryazan e Smolensk, cujos soberanos geralmente usavam os títulos de Knyaz’/князь (Príncipe, Duque) e/ou Velikiy Knyaz’/Великий князь (Grande Príncipe, Grão-Duque). Todos eles governados por ramos da linhagem rurikida, cujos soberanos reinarão na Rússia até 1598, com a morte do tsar 5 Fyodor I. Khotian foi à procura de seu genro Mstislav Mstislavich o Ousado, Príncipe da Galícia, com quem era casado com uma de suas filhas. Juntos, cumanos e russos (incluindo efetivos dos vários principados) formaram uma força de cerca de 80 mil homens que perseguiu os mongóis por nove dias até se encontrar com os invasores no rio Kalka. Um enfrentamento se deu entre os dois exércitos, que terminou em vitória para os mongóis. Segundo John Man em sua biografia sobre Genghis Khan, a manobra usada pelos invasores asiáticos para vencer a batalha se deu da seguinte maneira: “Então os mongóis atacaram – de um modo fora do convencional, com a cavalaria pesada marchando contra os arqueiros dos polovtsi, levemente armados, depois os cavaleiros assaltando a cavalaria russa, movendo-se com lanças, chuços e espadas leves até que as forças atacantes iniciaram uma fuga caótica, desaparecendo na própria retaguarda e pressionando o grupo para o vale profundo [...] Dias depois, alguns sobreviventes alcançaram o Dnieper e velejaram rio abaixo; outros foram perseguidos até a morte, quando fugiam pelos prados” (Man 2004: 202-203). Após a batalha, alguns dos líderes do exército derrotado foram violentamente torturados e mortos pelos invasores, entre eles Mstislav III de Kiev: amarrados e 3 O termo usado para se referir aos agrupamentos vikings de origem sueca que, diferente dos da Noruega e da Dinamarca que iam se aventurar na Europa Ocidental, se dirigiam para o leste, na direção da Rússia e do Mundo Muçulmano. O Império Bizantino possuía uma tropa especial composta por tais guerreiros, a Guarda Varegue. 5 O termo tsar/ Царь deriva do Caesar romano, assim como o Kaiser alemão. Durante muito tempo os russos usaram tal título para se referir aos imperadores bizantinos (cuja capital, Constantinopla, era chamada de Tsargrad/ Царьград, “a cidade do Tsar”) e aos khans tártaros da Horda Dourada. Apenas a partir de Ivan IV o Terrível (r. 1547 – 1584) que tal título passou a ser utilizado pelos soberanos da Rússia Imperial. deitados no chão e morrendo de sufocamento, servindo de base para uma plataforma de madeira onde os comandantes mongóis se banquetearam e dançaram. Em seguida a força expedicionária se dirige a leste, passando pelo Volga e juntando-se ao acampamento de Genghis Khan no Irtysh ainda em 1223. Genghis Khan morreu em 1227 em meio a campanha contra os Xixia no norte da China. Pouco antes dividiu seu Império (que a época se estendia da costa leste do Mar Cáspio a embocadura do rio Amur e do sul da Sibéria ao Afeganistão) em quatro partes: Jochi ficou com a Sibéria Ocidental e o Cazaquistão, Tolui com a Mongólia e o sul da Sibéria, Djaghatai com a Transoxiana e Ogodei com o norte da China. No entanto, Jochi faleceu poucos meses antes de seu pai, e seus domínios foram divididos entre seus filhos, entre eles o seu primogênito Orda e Batu. Terminada a conquista dos Jin do norte da China, um kurultai se reuniu em Karakorum, a capital do Império Mongol, em 1235. Ao final foi decidido que seria enviado um grande exército de cerca de 150 mil homens para o Ocidente, sob a liderança de Batu Khan e Subotai. Na primavera de 1236, com o apoio de engenheiros chineses e persas, o exército mongol inicia sua marcha a Ocidente, desta vez adentrando na Europa via Urais. A primeira vítima do avanço mongol ao Oeste foram os búlgaros do Volga, com os quais já tinham travado escaramuças fronteiriças em 1229 e 1232. Uma a uma as principais cidades búlgaras caíram, e antes mesmo da primavera de 1237 o reino búlgaro foi totalmente submetido. O exército mongol, como Subotai tinha planejado, cruzou o Volga congelado no inverno do mesmo ano em direção aos principados russos, com um efetivo de cerca de 120 mil homens (Chambers 1979: 86-87). Mais uma vez, Subotai viu os russos sem unidade alguma, e resolveu conquistá-los um por um, de forma a impedir que os principados do sul ajudassem os do norte e vice-versa (Hildinger 2001: 135). Um a um os principados foram caindo diante da fúria dos invasores asiáticos. A primeira vítima foi o principado de Ryazan. Cidades como Isteslawetz e Pronsk foram saqueadas e arrasadas, e três dias antes do natal e após um cerco de cinco dias a própria Ryazan foi tomada e conquistada. Em seguida Batu e Subotai se dirigiram a Vladimir-Suzdal, primeiros mandando enviados a corte de Yuri II de Vladimir, o GrãoPríncipe de Vladimir-Suzdal. Mais uma vez, os embaixadores mongóis foram tratados com desdém pelos russos. A primeira cidade a cair nas mãos dos invasores foi Moscou (na época uma mera cidade provinciana). A partir de sete de fevereiro de 1238 Vladimir foi assediada, sendo pesadamente bombardeada pela artilharia mongol com rochas. O pânico se espalhou entre os moradores da cidade e ao final toda a família real de Vladimir foi morta (Chambers 1979: 90-91). Na sequência da queda de Vladimir, Subotai tomou a decisão de dividir as forças: ele se dirigiria ao norte para destruir o exército de Yuri II, enquanto que Batu se dirigiria ao nordeste para forçar Novgorod a permanecer na defensiva e quem sabe até investir na capital onde Subotai poderia se juntar a ele. O primeiro, depois de ver que o Grão-Duque nada fez, tomou as cidades de Yuriev, Rostov e Yaroslav, ao passo que o segundo anexou Dimitrov e Tver. No dia quatro de março, o general Burundai venceu Yuri II na batalha do rio Sit, o que colocou fim a qualquer esperança de resistência local contra os invasores. Batu, por sua vez, após destruir Torzhok6, se dirigiu até Novgorod, a capital da República de mesmo nome. No entanto, quando estava nas portas de Novgorod, a primavera chegou, o que fez com que o gelo e a neve derretessem, criando um labirinto de pântanos e fazendo com que o exército do neto de Genghis Khan perdesse a vantagem da mobilidade e recuasse para o sul (Chambers 1979: 92). Mas, mesmo não sendo invadida, Novgorod, cujo líder Alexandre Nevsky, que se notabilizaria por suas vitórias contra os suecos no rio Neva (1240) e contra os cavaleiros livonianos (que nada eram que a ramificação dos cavaleiros teutônicos que atuava no nordeste do Báltico) na batalha do lago Peipus (1242), se sujeitou a Horda Dourada (Barraclough 1993: 114). Terminada a conquista dos principados do norte, Batu e Subotai se dirigiram para o sudoeste, dirigindo-se para as estepes a oeste do rio Don, passando por Vyazma e Kozelsk. Durante o verão o exército mongol acampou e descansou nas estepes entre o Dnieper e o Don, investindo em seguida contra os povos da estepe ao sul: Berke, um dos irmãos de Batu, se dirigiu ao oeste para destruir os refugiados do Khan kipchak Bachman estabelecidos ao norte do Mar Negro, ao passo que Mongka venceu os circassianos e os alanos, estendendo os domínios tártaros até o norte do Cáucaso, ao passo que no sul do Cáucaso o general Chormagan, operando a partir do norte do Irã e do Azerbaijão, vassalizou a Geórgia e a Armênia na mesma época (Chambers 1979: 93). Da mesma forma com que nos idos de 370 os hunos fizeram grandes levas de ostrogodos se dirigirem para o Império Romano, os mongóis fizeram o mesmo com os cumanos, os quais se dirigiram em massa para a Hungria (Chambers 1979: 94). As próximas vítimas foram os principados de Chernigov e Pereyeslav, e, em meados de novembro de 1240, Kiev foi alcançada pelas vanguardas mongóis. Tributos foram demandados ao então governador de Kiev, Dimitri. No entanto, este matou os embaixadores enviados por Mongka. No dia 28 de novembro, com a chegada de Batu, o cerco a Kiev se iniciou. A artilharia mongol inicialmente se concentrou no Portal Polonês. Após esta cair, a cavalaria pesada entrou nas ruas da cidade, a qual foi tomada rua por rua no dia 6 de dezembro e na sequência arruinada e saqueada, ficando intacta apenas a Catedral de Santa Sofia. Nas três semanas seguintes as fronteiras ocidentais de Rus’ foram alcançadas, os principados da Galícia e Volínia conquistados e os príncipes menores que não fugiram entregaram suas propriedades para Batu (Chambers 1979: 97-99). Da seguinte forma a Primeira Crônica de Novgorod descreve tais fatos, valendose de elementos bíblicos para explicar a queda de cidades como Ryazan diante dos invasores, como no trecho abaixo: “Mas era tarde demais para se opor a fúria de Deus, como foi dito no passado por Deus, a Josué o filho de Num, quando os liderou para a Terra Prometida, então ele disse: ‘eu devo enviar antes de você a perplexidade, e trovão, e medo, e tremor sobre eles’. Assim também fez Deus antes que nos tomássemos a força e colocar-nos em perplexidade e trovões e temor e tremor por nossos pecados. E então os estrangeiros pagãos sitiaram Ryazan e a cercaram com uma paliçada. E o Knyaz Yuri de Ryazan, ficou na cidade com seu povo, mas o Knyaz Roman Ingorovich começou a lutar contra eles com seus próprios homens. Então o Knyaz Yuri de Volodimir enviou Yeremei como Voyevoda com uma patrulha e se juntou a Roman; e os Tártaros o cercaram em Kolomno, e eles lutaram duro e os conduziram para as muralhas. E aqui eles mataram Roman e Yeremei e muitos caindo aqui com o Knyaz e com Yeremei tendo visto nada. E os homens de Moscou fugiram e os Tártaros tomaram a cidade em 21 de dezembro, e eles avançaram contra ela no dia 16 do mesmo mês. Eles também mataram o Knyaz e a Knyaginya, e homens, mulheres e crianças, monges, freiras e sacerdotes, alguns pelo fogo, outros pela espada, e violaram freiras, esposas de sacerdotes, boas mulheres e garotas na presença de suas mães e irmãs. Mas Deus salvou o Bispo, pois 6 Leia-se Torjok, pois no idioma russo a partícula zh (cirílico ж) se lê e se pronuncia com som de j. ele partiu no mesmo momento quando as tropas investiram contra a cidade. [...] Então, os tártaros pagãos e ateus, tendo tomado Ryazan, se dirigiram para Volodomir, uma hoste de derramadores de sangue cristão. [...] E o Knyaz Yuri enviou Dorozh para patrulhar com 3,000 homens; e o Dorozh veio correndo, e disse: “Eles já nos cercaram, Knyaz." E o Knyaz começou a reunir suas forças sobre ele, e observando, os Tártaros vieram de repente, e o Knyaz, incapaz de fazer alguma coisa, fugiu. E isso aconteceu quando ele alcançou o rio Sit eles o alcançaram e lá sua vida acabou. E Deus sabe como ele morreu; para alguns dizem muito a respeito. E Rostov e Suzdal foram cada um em seu caminho. E os malditos, tendo chegado tomaram Moscou, Pereyaslavl, Yurev, Dmitrov, Volok, e Tver; ai eles também mataram o filho de Yaroslav. E daí os desregrados vieram e atacaram Torzhok no festival do Primeiro Domingo da Quaresma. Eles cercaram durante todo com um cerco que nem haviam tomado outras cidades, e ai os malditos lutaram com aríetes por duas semanas. E as pessoas na cidade estavam cansadas e de Novgorod não houve ajuda para elas; mas já cada homem começou a ficar perplexo e aterrorizado. E então os pagãos tomaram a cidade, e matou todos do sexo masculino e mesmo do feminino, todos os sacerdotes e monges, e todos despojados e injuriados deram suas almas ao Senhor em uma morte amarga e infeliz, em 5 de março, o dia da comemoração do Sagrado Mártir Nikon, na Quarta da semana da Páscoa. E lá, também, foram mortos Ivanko o Posadnik de Novi-torg, Yakim Vlunkovich, Gleb Boriso-vich, e Mikhailo Moisievich [...] Deus, no entanto, e a grande e sagrada Catedral Apostólica Igreja de Santa Sofia, e Santo Cirilo, e os oradores do 7 Vladyka sagrado e ortodoxo, dos Knyazes fiéis, e dos reverendíssimos monges da Veche hierárquica, protegeram Novgorod. [...] E qualquer terra que pecou Deus pune com morte ou fome, ou com punição dos pagãos, ou com seca, ou com chuvas fortes, ou qualquer outra punição, para ver se nos arrependemos e vivermos como Deus nos ordena; Por Ele nos diz o profeta: “Vire-me para mim com todo o seu coração, com jejum e lágrimas”. E se fizermos isso poderemos ser perdoados de nossos pecados (Anônimo 1914: 82-84, tradução nossa). Conclusão Nesse retrato dos invasores mongóis e do episódio da conquista (assim como o da batalha do rio Kalka e outros posteriores como o cerco de Moscou por Tokhtamysh em 1382), vemos a presença do típico discurso de cunho religioso da época medieval, chegando ao ponto de dizer que tais desgraças ocorreram em decorrência de supostos pecados do povo de Rus’. A respeito do discurso de fundo religioso que aparece nas Crônicas de Novgorod, há de se fazer algumas considerações. Assim como em toda a Europa medieval, a religiosidade entre os russos na época era muito forte. A Igreja Ortodoxa, tal como a Igreja Católica Romana na Europa Ocidental, possuía grande poder e prestígio dentro da sociedade russa. E se tinha algo que os principados que emergiram após o fim da Rus’ de Kiev tinham em comum era a religião cristã ortodoxa, da mesma forma com que os Califados que surgiram com a fragmentação do Império Árabe-Islâmico (Córdoba, Cairo, Bagdá) a partir de meados do século VIII tinham a religião islâmica em comum entre eles. Ou seja, uma unidade cultural-religiosa que não era acompanhada de uma unidade político-administrativa. Nas Crônicas uma grande ênfase é dada a violência infligida pelos invasores ao povo de Rus’, assim como ao fato de os invasores não serem cristãos (não raro sendo chamados de ateus), sem levar em consideração as razões pelas quais os invasores promoviam tais massacres, assim como foi feito em outros lugares como na China e em Khworezm. A respeito do uso da tática do terror psicológico pelos mongóis, Michel Hoàng faz a seguinte consideração: “Genghis Khan praticou uma estratégia sistemática de intimidação e terror. Pouco numerosos para enfrentar múltiplos pontos de resistência, pouco inclinados a enfrentar uma guerrilha desgastante, os mongóis muitas vezes aplicavam métodos sanguinários exemplares. A degolação maciça de uma guarnição e os massacres de civis tinham por objetivo dissuadir uma eventual resistência armada e poupar vidas dos efetivos mongóis. Essa estratégia de terror dissuasivo é muito diferente daquela que levou a lançar bombas atômicas em cidades japonesas?” (Hoàng 2002: 342-343). Da mesma forma com que Átila foi visto pelos romanos e depois pela mitologia eclesiástica medieval como o “Flagelo de Deus”, os mongóis são vistos pelos Cronistas de Novgorod em episódios como a batalha do rio Kalka e as invasões de Batu e 7 Assembléia popular constituída pelas principais famílias da Rus’ de Kiev. Tokhtamysh como uma espécie de arautos da Fúria de Deus, enviados pela suprema e única divindade do cristianismo para punir seus fiéis por causa de seus (supostos) pecados, sendo a desgraça que se abateu sobre Rus’ transformada em uma espécie de versão medieval do ocorrido em Sodoma e Gomorra. Dentro do cristianismo, a fúria de Deus (ou retribuição divina) por causa dos pecados das pessoas é algo que aparece na Bíblia em várias passagens, como no episódio das Pragas do Egito em Êxodo 7-14 e de Sodoma e Gomorra em Gênesis 19:23-29. Mas, ironicamente, é atribuída ao mesmo Deus que castigou a Rússia a salvação de Novgorod, assim como as vitórias de Alexandre Nevsky no Neva e no Peipus e mais adiante a vitória de Dimitri Donskoy na batalha de Kulikovo (1380) contra o general Mamai. Acima de tudo vemos nas Crônicas de Novgorod a presença da velha retórica da civilização x barbárie da qual as grandes civilizações sedentárias tais como Grécia e Roma no Ocidente (da qual os russos eram herdeiros) e o Islã e a China no Oriente possuíam em relação a povos por eles tidos como inferiores. No caso do Ocidente, tal retórica adotou roupagens diversas ao longo do tempo: na Antiguidade Clássica, o componente cultural e linguístico usado por Grécia e Roma; no Medievo entra em cena a retórica religiosa, como visto nas Crônicas de Novgorod; na Idade Moderna, com a colonização das Américas, entra em cena o discurso do “bom selvagem”, em que os nativos americanos eram apresentados como bons por natureza e incapazes de manifestarem maldade por muitos literários europeus da época, tais como Erasmo de Roterdã e Thomas Morus; e na Modernidade, com o neocolonialismo e a colonização de vastas áreas da Ásia e da África por potências como Inglaterra, França e Alemanha, tais políticas eram justificadas por retóricas como a do “fardo do homem branco”, na qual os colonizadores europeus tinham o dever de levar a “civilização e seus avanços” para o resto do mundo. E nisso os mongóis foram tidos como os grandes responsáveis pelo atraso econômico e social da Rússia em relação às potências da Europa Ocidental (Inglaterra, França e Alemanha) no século XIX por vários intelectuais da época, tais como Alexander Pushkin e Nikolai Karamzin. Valendo-se de um discurso de fundo secular e nacionalista, tais intelectuais alegavam que os mongóis, para além das depredações costumeiras, teriam dividido a antiga nacionalidade russa em três unidades distintas (algo que certamente também foi fortemente influenciada por poloneses, lituanos e austríacos em seus anos de domínio sobre a região), afastaram a Rússia do Ocidente e de eventos como o Renascimento e a Reforma Religiosa, dando uma orientação mais para o leste que para o oeste em matéria de política externa. O fato é que, em uma época em que se falava tanto na superioridade da Europa sobre o resto do mundo (discurso esse que era acompanhado de todo um arcabouço teórico-científico, o chamado racismo científico) e que esta tinha a missão de civilizar o resto do mundo com seus valores, os mongóis mostravam-se o bode expiatório perfeito para explicar as mazelas pelas quais a Rússia e sua sociedade passavam na época, da mesma forma com que no Brasil o colonizador português também foi tido como o grande responsável pelo atraso do país em relação às grandes potências no PósIndependência, em especial com o advento do Movimento Republicano jacobino no final do Segundo Reinado (1840 – 1889) e seu discurso antilusitano. No primeiro caso tratava-se um povo de, que diferente dos poloneses e lituanos de origem europeia (portanto racialmente e culturalmente mais próximos dos russos), era de origem asiática, portanto bárbaro, atrasado e incivilizado aos olhos dos imperialistas europeus do século XIX. E no segundo, pesava muito o fato de Portugal ser um país pobre e periférico dentro da Ordem que se instaurou na Europa após a Revolução Industrial. Ainda mais diante do sucesso dos Estados Unidos (visto por intelectuais como Raul Pompéia como um modelo a ser seguido), país este que foi colonizado pela Inglaterra, a qual na época era ninguém menos que a grande potência militar, política e econômica da época. Portanto, pela lógica, tudo parecia indicar que o ideal para o Brasil teria sido uma colonização inglesa ou mesmo um eventual triunfo do projeto holandês do século XVII. Mas, a despeito das diferentes roupagens, em comum o discurso do bárbaro x civilizado em todas essas épocas havia o fato de o bárbaro ser o outro, aquele que vive além das fronteiras e que possui hábitos e costumes diferentes dos ditos civilizados. Como o grande historiador francês medievalista Georges Duby diz em sua obra “Ano 1000 Ano 2000: Na pista de nossos medos“: “O estrangeiro, o vindo de longe, é o invasor absoluto, causa mais medo que o vizinho que agride. Lembro-me do terror que inspiravam, durante a Ocupação, os soldados tártaros recrutados pelos alemães. As hordas que surgiram impetuosamente do leste, multidões prontas a irromper, eis o temor, vivaz, permanente” (Duby 1995: 68). Fontes BARRACLOUGH, Geoffrey. 4. ed. Atlas da História do mundo. São Paulo: Folha de São Paulo, 1995. CHAMBERS, Joseph. T e devil’s orsemen: T e Mongol invasion of E rope. London: Cassel Publishers, 1979. COLLCUTT, Martin; JANSEN, Marius B.; KUMAKURA, Isao. Japão. Barcelona: Folio, 2008. DUBY, Georges. Ano 1000 Ano 2000: Na pista de nossos medos. São Paulo: Unesp, 1998. HILDINGER, Erik. Warriors of the steppe: a military history of Central Asia (500 B.C. to 1700 A.C.). Cambridge: Da Carpo, 2001. HOÁNG, Michel. Gengis Khan. 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