Ensaios de Resistência de Pico e Residual em Solos Tropicais de Gnaisse Ana Paula Fonseca Coordenação de Construção Civil, CEFET-RJ, Rio de Janeiro Willy Alvarenga Lacerda Programa de Engenharia Civil, COPPE/UFRJ, Rio de Janeiro RESUMO: O presente trabalho apresenta os resultados e as análises de ensaios de laboratório para verificação da resistência ao cisalhamento de pico e residual de alguns solos tropicais, um deles em processo de laterização, os demais saprolíticos. Os ensaios realizados foram: cisalhamento direto para verificação da resistência de pico e cisalhamento por torção – tipo ring shear para obtenção da resistência residual. A comparação entre os resultados de resistência de pico e residual também será apresentada neste trabalho. PALAVRAS-CHAVE: Resistência ao cisalhamento, resistência residual, solos tropicais. 1 INTRODUÇÃO No presente trabalho foram estudados os solos envolvidos no escorregamento ativado pela voçoroca de Três Barras, localizada próximo à cidade de Bananal, no estado de São Paulo. Existem dois mecanismos de movimento de massa associados nesta concavidade: a erosão do material mais friável (residual jovem) e o escorregamento da massa de solo sobrejacente. Para possibilitar o estudo deste caso, principalmente dos mecanismos de escorregamentos ocorridos na área, foi realizado um estudo da resistência ao cisalhamento dos solos tropicais em processo de laterização e saprolíticos encontrados no local. Como um dos escorregamentos desenvolvese ao longo de uma superfície polida e quase plana, o estudo da resistência residual é de grande importância. O desenvolvimento da superfície de cisalhamento e seu posterior comportamento são tópicos em pesquisa, tanto para escorregamentos recentes, quanto para antigos escorregamentos que podem ter um potencial para reativação. Os solos ensaiados foram divididos em dois grupos: um solo em processo de laterização (amostras L - 9E) e solos saprolíticos de gnaisse (amostras S – 9A, 9B e 9D). A Tabela 1 apresenta a descrição dos materiais estudados. Os solos mais alterados (em processo de laterização) apresentam-se com alto teor de oxihidróxidos de ferro e alumínio, cor e aparente homogeneidade características dos solos lateríticos, podendo ser de origem residual (solo residual maduro) ou coluvionar. Os solos considerados saprolíticos neste trabalho são os que possuem características herdadas da rocha de origem, mesmo que tenham sofrido algum rearranjo de suas partículas por alguma movimentação. Tabela 1. Descrição dos solos estudados. Solo Descrição do material Solo saprolítico coletado no contato soloS 9A rocha, na região que não sofreu movimentação. Solo saprolítico cujo bloco (9B) possuia S 9B a dois materiais diferentes (amostra amarela S 9B v – 9Ba e amostra vermelha 9Bv). Neste bloco passava uma das superfícies de cisalhamento. Solo saprolítico coletado no contato soloS 9D rocha, na região aonde sofreu movimentação. L 9E Solo superficial em processo de laterização 2 ENSAIOS DE LABORATÓRIO 2.1 Ensaio de Cisalhamento Direto Para determinação da resistência de pico dos solos estudados foram realizados ensaios de cisalhamento direto em amostras de 50 mm de lado e 20 mm de altura, na condição inundada e na umidade natural, sob as tensões normais de 25, 50, 100, 200 e 400 kPa. As velocidades de ensaio foram calculadas de acordo com Head (1982). A Tabela 2 apresenta a média dos valores dos índices físicos dos corpos de prova utilizados nos ensaios de cisalhamento direto. Tabela 2. Valores médios dos índices físicos dos corpos de prova utilizados nos ensaios de cisalhamento direto. So(%) wo(%) Solo γd(KN/m3) eo S 9A 15,6 0,68 66,3 16,7 S 9B a 11,1 1,43 91,7 48,3 S 9B v 15,1 0,77 82,5 23,4 S 9D 15,6 0,68 75,8 19,2 L 9E 12,3 1,14 46,9 19,9 Obs.: γd = peso específico seco, eo = índice de vazios inicial do solo, So = saturação inicial, wo = umidade inicial. Pode-se verificar que os valores dos índices de vazios dos solos saprolíticos foram sempre menores que dos solos em processo de laterização, exceto no solo da amostra S – 9B amarelo, muito provavelmente porque por este solo passa uma superfície natural de cisalhamento. Esta diferença entre os valores de índice de vazios de solos lateríticos e saprolíticos era esperada, visto que a estrutura do solo após a laterização é comumente bastante porosa. A umidade da amostra S - 9B amarela também é consideravelmente alta, confirmando a hipótese de que, próximo à superfície de cisalhamento, a umidade do solo é mais elevada, pois o solo pode ter se expandido (situação inicial “sobre-adensado”) e absorvido água. Outro aspecto importante é que amostra S 9B amarela tem limite de liquidez mais alto, é mais plástica, devendo assim, ter maior capacidade de reter de água. 2.2. Ensaio de Cisalhamento por Torção (Tipo Ring Shear) Foram realizados ensaios de torção, no equipamento ring shear tipo Bromhead existente no Laboratório de Geotecnia da COPPE/UFRJ. Na preparação das amostras, o solo era seco ao ar, destorroado, passado na peneira 40 (0,42 mm) e homogeneizado com água destilada em umidade entre os limites de liquidez (wL) e de plasticidade (wP), aproximadamente 0,8wL. Para os dois solos não plásticos (S-9A e S-9D), a água foi colocada de acordo com a experiência já adquirida durante os ensaios dos demais solos. A umidade ideal para moldagem é aquela em que o solo consegue preencher por completo a célula sem que ocorra extravasamento considerável de solo quando é aplicada a tensão normal. A metodologia dos ensaios de ring shear realizados obedeceu às recomendações de Vasconcelos (1992), baseadas no manual do equipamento. Adotou-se, nos ensaios realizados, sempre a técnica de estágio único (cada corpo de prova foi ensaiado somente sob uma tensão normal). O critério de parada do ensaio foi o de leituras constantes durante 30 minutos. Bromhead (1986) em Vasconcelos (1992) considerou que constância de leituras durante 20 minutos é um critério satisfatório para encerrar o ensaio. A velocidade adotada para os ensaios de cisalhamento por torção foi de 0,096°/min ao longo da circunferência média do corpo de prova, que corresponde a 0,0712 mm/min. Um estudo sobre a influência da velocidade nos ensaios de ring shear nos solos estudados é apresentado em Fonseca (2006). 3 RESULTADOS OBTIDOS 3.1 Ensaio de Cisalhamento Direto As Figuras 1 a 5 apresentam as envoltórias de cisalhamento dos solos estudados. O critério de critério de ruptura utilizado foi o de MohrCoulomb. O resumo dos parâmetros obtidos está apresentado na Tabela 3. Alguns autores propõem que a envoltória seja curva até Tabela 3. Parâmetros obtidos nos ensaios de cisalhamento direto. Solo Inundado Umidade Natural c' (kPa) φ' (°) c' (kPa) φ' (°) S–9A 46,7 29,8 40,6 40,3 S – 9 B a 31,4 19,6 40,2 24,7 S – 9B v 10,9 28,9 56,5 28,4 S – 9D 31,2 32,8 72,3 29,9 L – 9E 17,9 30,2 37,7 35,2 Obs.: c' = coesão efetiva, φ' = ângulo de atrito. 500 S - 9Bamarelo Inundado wnatural Tensão cisalhante (kPa) 400 300 200 100 0 0 100 200 300 Tensão normal (kPa) 400 500 Figura 2. Envoltória de cisalhamento de pico do solo S – 9B amarelo (inundado e umidade natural). 500 Inundado L - 9B vermelho wnatural 400 Tensão cisalhante (kPa) próximo da tensão de escoamento e a partir daí, passe a ter um comportamento semelhante à dos solos normalmente adensados. Futai (2002) verificou que, para solos tropicais, mesmo após a tensão de escoamento a envoltória continua curva. O autor propôs uma equação para ajuste de uma envoltória curva, levando em consideração a estrutura do solo nas diferentes tensões normais ensaiadas. Embora em alguns dos solos estudados fique clara a tendência da envoltória curva, optou-se, para a analise dos escorregamentos observado no campo, pela utilização de parâmetros obtidos por ajuste linear. 300 200 100 500 Inundado S - 9A 0 wnatural 0 100 Tensão cisalhante (kPa) 400 200 300 Tensão normal (kPa) 400 500 Figura 3. Envoltória de cisalhamento de pico do solo S – 9B vermelho (inundado e umidade natural). 300 200 500 S - 9D Inundado wnatural 100 0 0 100 200 300 Tensão normal (kPa) 400 500 Figura 1. Envoltória de cisalhamento de pico do solo S – 9A (inundado e umidade natural). Tensão cisalhante (kPa) 400 300 200 100 0 0 100 200 300 Tensão normal (kPa) 400 500 Figura 4. Envoltória de cisalhamento de pico do solo S – 9D (inundado e umidade natural). 500 500 L - 9E Inundado Tensão cisalhante (kPa) 400 Tensão cisalhante (kPa) S - 9A 450 wnatural 300 200 100 400 350 300 250 200 150 100 50 0 0 0 100 200 300 Tensão normal (kPa) 400 0 500 Figura 5. Envoltória de cisalhamento de pico do solo L – 9E (inundado e umidade natural). 50 100 150 200 250 300 350 400 450 500 Tensão normal (kPa) Figura 6. Envoltória de cisalhamento residual do solo S– 9A. 500 S - 9B amarelo Ensaio de Cisalhamento por torção Nas Figuras 6 a 10 são mostradas as envoltórias secantes passando pela origem e pelo ponto de mais alta tensão ensaiada, pois o ângulo que elas fazem com a horizontal é mais próximo do que seria obtido numa envoltória residual final. Os valores dos parâmetros residuais dos solos estudados são mostrados na Tabela 4. Foram obtidos os parâmetros residuais de duas maneiras: por interpolação linear dos pontos de resistência residual de cada ensaio, obtendo-se assim coesão (c’r) e ângulo de atrito (φ’r), e, pela obtenção do ângulo de atrito secante ao ponto de resistência quando a tensão normal é 400 kPa (φ’r), com coesão nula. O ponto de 400 kPa foi escolhido por ser a maior tensão ensaiada em todos os solos, mas também foram obtidos os ângulos de atrito residuais secantes a todas as tensões normais ensaiadas, representados na Figura 11. Sabe-se que, na prática, a obtenção de parâmetros por interpolação linear superestima o intercepto coesivo pois a envoltória de resistência residual é curva, tendendo a ter coesão nula. Na maioria dos solos, o ângulo de atrito tende a ficar constante após uma determinada tensão. 400 350 300 250 200 150 100 50 0 0 50 100 150 200 250 300 350 400 450 500 Tensão normal (kPa) Figura 7. Envoltória de cisalhamento residual do solo S– 9B amarelo. 500 S - 9B vermelho 450 Tensão cisalhante (kPa) 3.2 Tensão cisalhante (kPa) 450 400 350 300 250 200 150 100 50 0 0 50 100 150 200 250 300 350 400 450 500 Tensão normal (kPa) Figura 8. Envoltória de cisalhamento residual do solo S– 9B vermelho. 500 50 400 40 300 35 250 30 200 150 25 20 100 15 50 10 0 0 50 100 150 200 250 300 350 400 450 500 Tensão normal (kPa) Figura 9. Envoltória de cisalhamento residual do solo S– 9D. 500 L - 9E 450 Tensão cisalhante (kPa) S-9B amarelo S-9A S-9B vermelho S-9D L-9E L-SP1 45 350 φr (°) Tensão cisalhante (kPa) kPa, passando pela origem. S - 9D 450 5 0 0 50 100 150 200 250 300 350 400 σ (kPa) Figura 11. Variação do ângulo de atrito residual com a tensão normal aplicada para os solos estudados. 400 350 3.3 Comparação entre Valores de Resistência de Pico e Residual 300 250 200 150 100 50 0 0 50 100 150 200 250 300 350 400 450 500 Tensão normal (kPa) Figura 10. Envoltória de cisalhamento residual do solo L–9E. Tabela 4. Parâmetros obtidos nos ensaios de ring shear. Solo c’r(kPa)todas φ’r (°) todas φ’r(°)σ =400 tensões tensões kPa (c’r = 0) S - 9A 1,7 26,7 27,1 S - 9Ba 1,2 11,8 11,9 S - 9Bv 6,9 14,4 15,2 S - 9D 3,4 21,4 21,7 L - 9E 17,1 24,1 26,2 Obs.: cr' = coesão “residual” efetiva, φr' = ângulo de atrito residual. Verificando a variação do ângulo de atrito residual com a tensão normal (Figura 11), concluiu-se que, na maioria dos solos estudados, não houve estabilização do valor de φ'r até σ' = 400 kPa. Somente no solo residual micáceo 9B amarelo houve estabilização do valor de φ'r a partir da tensão de 100 kPa. Para todos os solos estudados, levou-se em consideração, para efeito de comparação e análise dos resultados, a envoltória resistência residual sendo a reta secante ao ponto de 400 Na comparação dos comportamentos de pico e residual dos solos estudados, analisando-se as Tabelas 3 e 4, pode-se observar que: todos os solos saprolíticos estudados exceto o solo S – 9A apresentaram queda acentuada nos valores de resistência ao cisalhamento de pico para residual. Estes solos possuem mica, conforme Fonseca (2006). Segundo Lupini et al. (1981) solos arenosos com altos teores de mica podem apresentar superfícies de deslizamento com forte orientação de partículas. No solo em processo de laterização estudado, assim como nos estudados em Lacerda e Fonseca (2003) houve uma diferença pequena entre os valores de resistência de pico e residual. Os parâmetros residuais obtidos são elevados se relacionados com a fração argila (FA) destes solos, conforme Figura 12. Mesmo possuindo altos teores de argila os solos lateríticos estudados neste trabalho não apresentaram alinhamento de partículas e queda acentuada no valor de resistência até atingirem a condição residual. Este fenômeno decorre da presença de grumos formados durante o processo de laterização. Os solos saprolíticos, por apresentarem mica na sua composição, tiveram seus valores de ângulo de atrito residual mais baixo do que o esperado levando-se em consideração a 450 para os ensaios nos solos em processo de laterização. Diferentemente dos solos micáceos, somente o solo S – 9A não apresentou grande diferença entre φ’P e φ’r, provavelmente devido à heterogeneidade do material. porcentagem de argila. 35 30 L-9E φr (°) 25 L-SP1 S-9A 20 Limites propostos por Skempton S-9D 15 S-9Bvermelho AGRADECIMENTOS S-9Bamarelo 10 5 0 0 20 40 60 80 100 FA (%) solos saprolíticos solos em processo de laterização Figura 12. Valores obtidos de φ’r e fração argila obtidos com defloculante (FA) lançados no gráfico de Skempton (1985). Fonseca (2006) Os autores gostariam de registrar os seus agradecimentos ao CNPq e à FAPERJ pelo apoio financeiro a esta pesquisa e aos alunos Raquel Maciel, Vitor Aguiar e Marina Duarte pelo apoio na execução dos ensaios de laboratório. REFERÊNCIAS 4 CONCLUSÕES Os resultados dos solos estudados não se enquadraram nas correlações entre ângulo de atrito residual e fração argila ou índice de plasticidade, propostas por Skempton (1985) e Lupini et al. (1981). Os solos saprolíticos, por possuírem partículas lamelares (mica), na suas fração areia e silte, apresentaram ângulo de atrito menor do que o esperado. Por outro lado, os solos em processo de laterização, apesar de apresentarem altas porcentagens de argila, apresentaram ângulos de atrito residuais altos, por causa da formação de grumos pelo processo de laterização, fazendo com que o solo se comportasse mecanicamente como um solo granular. O solo S – 9B amarelo apresentou o mais baixo valor de φ’r (11,9º). Em campo, observa-se que algumas das superfícies de cisalhamento passam por camadas compostas por este solo. A envoltória de resistência residual dos solos é curva. O ângulo de atrito secante decresce com o aumento da tensão normal aplicada e, a partir de um determinado valor de σ’, φ’r tornase constante. Vários autores relatam que este valor situa-se em torno de 150 a 200 kPa. Para os solos estudados na presente trabalho, somente o solo S – 9B amarelo apresentou valores constantes de φ’r. Os demais solos não apresentaram estabilização do valor de φ’r até σ’ = 400 kPa. Não houve queda apreciável no valor de φ’r Bromhead, E.N.,1986, “The stability slopes”. Surrey University Press, London. Fonseca, A.P., 2006, “Análise de mecanismos de escorregamento associados a voçorocamento na Bacia do Rio Bananal (SP/RJ)”. Tese de Doutorado COPPE/UFRJ. Futai,M.M., 2002, Estudo teórico-experimental do comportamento de solos tropicais não saturados: Aplicação a um caso de voçorocamento, Tese de Doutorado, COPPE/UFRJ, Rio de Janeiro. Head, K.H., 1982, Manual of Soil Laboratory Testing., v.2, Published by Pentech Press Ltd., London. Lacerda, W.A., Fonseca A.P., 2003, “Residual strength of colluvial and residual soils”; SOIL ROCK AMERICA 2003, XII Pan-American Conference on Soil Mechanics and Geotechnical Engineering, Eds. Culligan, Einstein and Whittle, June, vol 1 pp 485488, Boston. Lupini, J.F., Skiner, A.E., Vaughan, P.R., 1981. "The drained residual strength of cohesive soils". Géotechnique, 31(2), pp 181-213. skempton, A.W., 1985, "Residual strength of clays in landslides. Folded strata and laboratory", Géotechnique, v.35, n.1 pp.3-18. Vasconcelos, M.F.C., 1992. A resistência residual de solos determinada através de ensaio de cisalhamento por torção. Tese de Mestrado COPPE/UFRJ, Rio de Janeiro.