A FICÇÃO FRANCESA E A CONSOLIDAÇÃO DO ROMANCE NO BRASIL Andréa Correa Paraíso Müller (UEPG/PG-UNICAMP) Gênero relativamente novo e desprovido do prestígio desfrutado por gêneros clássicos como a epopeia e a tragédia, foi no século XIX que o romance conseguiu legitimar seu espaço no mundo das letras, alcançando um número cada vez maior de leitores e conquistando, aos poucos, a aceitação de críticos e literatos. Assim como na Europa, o romance também ganhou destaque no Brasil oitocentista. Se até meados do século a produção romanesca nacional ainda engatinhava, o mesmo não se dava com a leitura: desde fins do século XVIII, narrativas ficcionais estrangeiras, traduzidas ou não, circulavam por aqui, consumidas por um público crescente. No decorrer do século XIX, a presença do gênero romanesco em terras brasileiras foi-se intensificando progressiva e significativamente. Uma grande parte da ficção estrangeira que circulou no país __ em volumes comercializados pelas livrarias e lojas de artigos variados ou em folhetins na imprensa __ era de origem francesa. Em meados do século, os romances franceses predominavam nos anúncios que os livreiros cariocas estampavam nos jornais, destacavam-se nos rodapés desses mesmos jornais e ganhavam adaptações no teatro. Se, por um lado, a prosa romanesca francesa serviu de inspiração e estímulo aos primeiros romancistas brasileiros, por outro, também foi vista como concorrente de uma literatura nacional em processo de formação e afirmação. No momento em que uma grande parte dos homens de letras brasileiros esforçava-se para valorizar a produção literária nacional, o romance francês circulava intensamente no Brasil, sobrepondo-se até mesmo à ficção portuguesa. Procuraremos, neste trabalho, refletir sobre a presença do romance francês no Brasil de meados do século XIX, considerando-a como parte de um contexto maior, o da consolidação do gênero romanesco no país. ROMANCES FRANCESES NO BRASIL EM FINS DO SÉCULO XVIII E INÍCIO DO XIX Muito antes que os primeiros romances brasileiros fossem compostos, já havia por aqui quem apreciasse prosa ficcional e se interessasse pelas narrativas escritas na Europa. 63 Os resultados da pesquisa desenvolvida por Márcia Abreu (2003) comprovam a presença de romances no Brasil já entre fins do século XVIII e início do XIX. A pesquisadora debruçou-se sobre as solicitações para envio de livros ao Brasil que eram dirigidas aos órgãos responsáveis pela censura: a Real Mesa Censória de Lisboa e, a partir de 1808, também a Mesa do Desembargo do Paço, no Rio de Janeiro. A partir dos dados levantados por Abreu, observa-se, entre os pedidos de obras das chamadas belasletras, uma significativa presença de textos de prosa de ficção, entre os quais destacamse, pela quantidade, os de origem francesa. Entre 1769 e 1807, dos dezoito títulos mais solicitados à censura portuguesa para envio ao Rio de Janeiro, oito eram narrativas ficcionais em prosa (ABREU, 2003: 90). Entre essas narrativas, pelo menos quatro eram francesas, sendo três em língua original e uma traduzida. De 1808 a 1826, a lista dos treze títulos de belas-letras mais requeridos à Real Mesa Censória incluía sete de prosa ficcional (ABREU, 2003: 107), dos quais quatro eram franceses. E entre as requisições submetidas à Mesa do Desembargo do Paço, no Rio de Janeiro, no período de 1808 a 1821, 21 títulos foram mencionados pela pesquisadora como os mais solicitados entre as obras de belas-letras (ABREU, 2003:114). Desses títulos, nove eram de prosa ficcional, dos quais ao menos cinco eram de origem francesa. Tais dados demonstram que o romance, gênero que, apesar da desconfiança de muitos eruditos, vinha obtendo um público cada vez maior na Europa, também circulava no Brasil e começava a conquistar a preferência dos leitores de belas-letras que aqui viviam, já que figurou nas listas de livros mais solicitados. O número considerável de narrativas francesas entre esses títulos sugere uma certa popularidade da prosa ficcional vinda da França já em fins do século XVIII e início do XIX. A presença de títulos franceses também é significativa entre os primeiros romances impressos no Brasil. Até 1808, a publicação de textos de qualquer natureza estava proibida na colônia. Em maio daquele ano, no entanto, após a transferência da corte portuguesa para o Brasil, instalou-se a Impressão Régia. Destinava-se a imprimir documentos e papéis administrativos; porém, seu “decreto de fundação permitia a impressão de obras diversas, desde que em concordância com a censura vigente” (SOUZA, 2008:25). Em meio a essas obras diversas, foram publicados alguns romances. Simone Mendonça de Souza (2008:27-28) esclarece que foram onze os títulos de prosa ficcional publicados pela Impressão Régia. Observamos que, entre esses onze títulos publicados pela Impressão Régia, pelo menos cinco são traduções de textos 64 franceses: O diabo coxo, de Alain René Le Sage; História de dois amantes ou o templo de Jatab, episódio extraído Mémoires turcs, de Claude Godard d’Aucour; Paulo e Virginia, de Bernardin de Saint-Pierre; Triste effeito de huma infidelidade, episódio extraído de Mémoires et aventures d’un homme de qualité, do abade Prévost; e As duas desafortunadas, extraído do volume Contes Moraux, de François Marmontel. Os livros publicados pela Impressão Régia, assim como os importados, foram anunciados pelos livreiros nos principais periódicos da época. Conhecer esses anúncios possibilita verificar quais os títulos mais presentes no comércio livreiro local. A pesquisa de Regiane Mançano (2010) sobre publicidade de romances nos jornais fluminenses de 1808 a 1844 apresenta dados relevantes para o estudo da leitura de prosa ficcional no Brasil da primeira metade do século XIX, dados esses reveladores também da forte presença da ficção francesa em terras brasileiras. Observando os anúncios veiculados no Correio Braziliense (1808-1822), na Gazeta do Rio de Janeiro (18081822) e no Jornal do Commercio (1827-1844), a pesquisadora elabora uma lista do que ela denomina “romances duradouros”, ou seja, aqueles que permaneceram nos anúncios dos periódicos por dezessete anos ou mais. É bastante acentuada a presença da ficção francesa: 56% das obras anunciadas durante 17 anos ou mais eram de origem francesa (MANÇANO, 2010: 72-73). Além da longevidade, Mançano analisa também a intensidade com que os romances foram anunciados. Com base no número de anúncios de cada obra veiculados no período delimitado no estudo, a pesquisadora arrola os títulos mais anunciados. Novamente os romances franceses são maioria: 80% dos títulos de prosa ficcional mais frequentemente divulgados na Gazeta do Rio de Janeiro de 1808 a 1822 eram de origem francesa. No Jornal do Commercio, dez dos onze romances mais anunciados entre 1827 e 1835 eram franceses. No mesmo jornal, entre os dez romances com mais anúncios no período de 1836 a 1844, pelo menos sete eram franceses (MANÇANO, 2010:98). Regiane Mançano relaciona a presença das traduções de romances estrangeiros à consolidação de um público para o gênero romanesco no Brasil: No Brasil das primeiras décadas do século XIX, foram as traduções, e não a produção de romances, que garantiram a presença regular do gênero entre as possibilidades de leitura o que, certamente, foi indispensável para que se consolidasse um público leitor de romances (MANÇANO, 2010:113). 65 Se a ficção estrangeira foi responsável pela formação de um público consumidor de romances no Brasil, a prosa ficcional francesa teve papel significativo nesse processo, levando-se em conta a sua presença preponderante em solo brasileiro. MEADOS DO SÉCULO XIX: ROMANCES FRANCESES POR TODA PARTE A partir de meados do século XIX, a presença de romances no Brasil foi-se intensificando cada vez mais. Com o advento do romance-folhetim, o número de narrativas em circulação aumentou consideravelmente. O crescente público brasileiro passou a ter à sua disposição uma grande variedade de romances estrangeiros, além das primeiras incursões de escritores nacionais pelo gênero. A prosa ficcional francesa, majoritária desde fins do século XVIII, tornou-se praticamente onipresente. Folhetins de sucesso na França foram traduzidos com rapidez espantosa, a fim de figurarem nos rodapés dos jornais brasileiros. Romances folhetinescos e narrativas mais tradicionais ofereciam-se ao leitor nos anúncios estampados nos periódicos, que divulgavam tanto as últimas novidades quanto as velhas histórias já conhecidas e consagradas, como Paulo e Virgínia. Os romances de grande êxito logo ganhavam adaptações para o palco, repetindo no teatro a repercussão do folhetim ou livro. Os romances franceses predominavam nos anúncios que os livreiros publicavam nos jornais da corte. Eram apresentados tanto traduzidos como em língua original. Não era raro encontrar também, nas divulgações dos livreiros, romances de outras nacionalidades, ingleses notadamente, traduzidos para o francês. A avultada quantidade de títulos em língua francesa denota a existência de uma parcela do público __ considerável, ao que tudo indica __ que dominava o idioma. Grande parte da publicidade de romances da livraria Garnier em meados do século XIX __ uma das mais importantes do Rio de Janeiro na época e também uma das que mais publicavam anúncios na imprensa __ era de obras francesas em língua original. Entretanto, embora o francês não fosse empecilho para que uma parte dos leitores tivesse acesso às novidades literárias chegadas de Paris, havia um grande número de traduções em circulação. Muitas delas vinham de Portugal, mas o mercado brasileiro já contava com tradutores eficientes, ao menos no que se refere à rapidez, que vertiam para o português romances recém-surgidos na França. Em meados do 66 Oitocentos, já havia por aqui tradutores que se dedicavam profissionalmente à atividade, geralmente contratados pelos jornais para traduzir folhetins. Nomes como Caetano Lopes de Moura, José Alves Visconti Coaracy, Francisco de Paula Brito, Justiniano José da Rocha e Antonio José Fernandes dos Reis foram responsáveis por um expressivo número de traduções de romances de sucesso na época, principalmente os de maior apelo popular (FARIA, 2008), grande parte dos quais de origem francesa. Traduzidos ou no idioma de origem, o fato é que, em meados do século XIX, os romances franceses pareciam estar por toda parte. Uma pesquisa realizada em anúncios de romances veiculados pelo Jornal do Commercio do Rio de Janeiro em 1857 e em 1858 permitiu-nos ter noção da presença do gênero romanesco no Brasil da época e do volume de títulos franceses em meio aos mais anunciados. O Jornal do Commercio foi escolhido como fonte por tratar-se do periódico que mais divulgava anúncios de livrarias na corte. Os exemplares do referido jornal foram consultados em microfilmes no Arquivo Edgard Leuenroth, da Universidade Estadual de Campinas – SP. No ano de 1857, identificamos ao todo 249 títulos de narrativas ficcionais anunciadas no Jornal do Commercio, das quais 186 eram francesas. Em 1858, foram 259 narrativas anunciadas, entre as quais 185 francesas. Entre os romancistas com o maior número de títulos anunciados (seis ou mais) no periódico pesquisado, em 1857 e em 1858, também predominam os franceses. Em 1857, entre os seis mais anunciados, quatro eram franceses: Alexandre Dumas (com 33 romances anunciados), Balzac (com 24), Eugène Sue (com 12) e Paul de Kock (com 11). Os outros dois eram o escocês Walter Scott (com 18 romances anunciados) e o português Camilo Castelo Branco (com 7). Em 1858, todos os seis romancistas com maior número de títulos anunciados eram franceses: Dumas (com 35 títulos), Sue (com 14), Élie Berthet (com 11), Joseph Méry (com 7), Frédéric Soulié (com 6) e Paul de Kock (com 6). Entre esses autores franceses cujos romances eram tão frequentes na imprensa brasileira de meados do século XIX, pouquíssimos são conhecidos atualmente. Com exceção de Balzac e Dumas, certamente nenhum deles é familiar ao público de hoje. Estavam, porém, entre os nomes mais célebres da literatura do período. Nem todos eram apreciados pela crítica, que, tanto aqui quanto, principalmente, na França, fazia objeções aos romancistas populares, autores de folhetins. Mas estavam entre os escritores mais lidos do século XIX em praticamente todo o mundo ocidental (MOLLIER, 2003:601). 67 São mencionados por Brito Broca (1979) como sendo os folhetinistas mais apreciados do período, lidos por muitos dos escritores brasileiros. A maioria não foi incorporada ao cânone; muitos desses romancistas que tanta notoriedade alcançaram no século XIX, quando aparecem nas histórias literárias, são registrados como autores menores. No entanto, ignorá-los corresponderia a ignorar as preferências e modos de ler de todo um período. Os romancistas franceses que ganharam destaque no Brasil eram sucesso também em seu país de origem e, como já mencionamos, em quase todo o mundo ocidental. Jean-Yves Mollier explica que, com o advento do folhetim, foi ganhando impulso na França uma espécie de indústria do romance: escritores produziam rapidamente narrativas ao gosto popular, que eram publicadas nos rodapés dos jornais, mas também em livros editados em coleções de preços reduzidos, visando a um mercado cada vez mais amplo. Assim, o romance francês circulou e ganhou extraordinária aceitação em vários outros países: Ora, em poucos anos surge uma geração de romancistas franceses que toma a frente da cena, com grande empenho em não arredar pé. Eugène Sue, Paul Féval, Frédéric Soulié e Alexandre Dumas pertencem a essa primeira equipe de pais do romance-folhetim, e suas obras eclipsam todas as outras muito rapidamente, a ponto de fazer sombra até mesmo a Charles Dickens na própria Grã-Bretanha (MOLLIER, 2008:87). Os romancistas que ocupavam as livrarias e as páginas de jornais brasileiros não eram, pois, escritores obscuros de obras comercializadas somente aqui; ao contrário, eram os nomes de maior sucesso no mercado livreiro internacional em meados do século XIX. Romances desses autores franceses tão difundidos preenchiam também os folhetins da imprensa brasileira. Desde que a estratégia criada em 1836 pelo jornalista francês Émile de Giradin __ publicar romances em capítulos no espaço do folhetim (rodapé) dos jornais ___ chegou ao Brasil, a ficção romanesca francesa tornou-se presença constante nos rodapés dos jornais brasileiros. Segundo Marlyse Meyer, o primeiro romance-folhetim publicado no Brasil foi Capitão Paulo, de Alexandre Dumas, veiculado em 1838, no Jornal do Commercio (MEYER, 1996:32). Desde então, inúmeros romances de autores franceses de sucesso foram editados em capítulos na imprensa brasileira, superando de longe, pelo menos em meados do século XIX, a 68 quantidade de romances de outras nacionalidades. O notável número de folhetins franceses leva a crer que eram bem aceitos pelos leitores, do contrário os jornais não insistiriam em publicá-los. Marlyse Meyer observa que Tão fulgurante e rápida penetração do folhetim francês sugere a constituição no Brasil, nas décadas de 1840 e 1850, de um corpo de leitores e ouvintes consumidores de novelas já em número suficiente para influir favoravelmente na vendagem do jornal que as publica e livros que as retomam [...] Pode-se dizer que essas produções populares estrangeiras contribuem para formar público para as produções nacionais (MEYER, 1996: 292293). Os romances estrangeiros, marcadamente franceses, colaboraram para ampliar o público leitor brasileiro, contribuindo para a consolidação do gênero romanesco no país. Podem ter contribuído também para a formação do imaginário e do repertório de muitos romancistas locais, que certamente sabiam que o modelo das narrativas estrangeiras, sobretudo francesas, tinha grande aceitação junto aos leitores. Não se pode esquecer, quando se trata da presença do romance francês no Brasil oitocentista, que, ao lado dos folhetins de sucesso desprezados pelas histórias literárias do século XX, também circulavam por aqui obras de autores hoje considerados clássicos da literatura francesa, como Chateaubriand, Hugo, Vigny, George Sand e Balzac; os dois últimos, aliás, muito presentes nos anúncios de livrarias. Eram lidos e admirados e tinham suas obras divulgadas na imprensa assim como os folhetinistas populares. Tanto os romancistas que se tornaram canônicos quanto os que praticavam uma literatura de massa e hoje são considerados menores podem ter deixado marcas na produção ficcional brasileira: Os livros traduzidos pertenciam, na maior parte, ao que hoje se considera literatura de carregação; mas eram novidades prezadas, muitas vezes, tanto quanto as obras de valor. Assim, ao lado de George Sand, Mérimée, Chateaubriand, Balzac, Goethe, Irving, Dumas, Vigny se alinhavam Paul de Kock, Eugène Sue, Scribe, Soulié, Berthet, Gonzalés, Rabou, Chevalier, David, etc. Na maioria franceses, revelando nos títulos o gênero que se convencionou chamar folhetinesco. Quem sabe quais e quantos desses subprodutos influíram na formação do nosso romance? Às vezes, mais do que os livros de peso em que se fixa a atenção (CANDIDO, 2000:108). Que o nascente romance brasileiro tenha assimilado traços da ficção francesa, tanto da pertencente à chamada grande literatura como à “literatura de carregação”, 69 parece natural; afinal, desde fins do século XVIII, narrativas francesas circulavam por aqui, preenchendo, em grande medida, o imaginário romanesco nacional. Embora o romance brasileiro tenha buscado, desde cedo, sua identidade própria, a prosa romanesca francesa, folhetinesca ou não, constituiu parte significativa do repertório literário de leitores e escritores brasileiros. No Brasil oitocentista, não foram raros os escritores que mencionaram romances franceses entre suas leituras de juventude. José de Alencar, em Como e porque sou romancista, confessa sua dificuldade em ler Balzac na língua original, ao mesmo tempo em que revela sua avidez por Dumas, Vigny, Chateaubriand e Hugo, assim como sua admiração pelo romance francês: Gastei oito dias com a Grenadière; porém um mês depois acabei o volume de Balzac; e no resto do ano li o que então havia de Alexandre Dumas e Alfredo Vigny, além de muito de Chateaubriand e Victor Hugo. A escola francesa, que eu então estudava nesses mestres da moderna literatura, achava-me preparado para ela. O molde do romance, qual mo havia revelado por mera casualidade aquele arrojo de criança a tecer uma novela com os fios de uma ventura real, fui encontrá-lo fundido com a elegância e beleza que jamais lhe poderia dar (ALENCAR, 2005:40-41). Em suas Memórias, Taunay menciona o popular Eugène Sue entre suas leituras juvenis: “Assim da biblioteca do tio Beaurepaire tirei o Judeu Errante, oito grossos volumezinhos, edição de Bruxelas, que devorei sem parar” (TAUNAY, apud SILVA, 2009:25). Mas essa quase onipresença do romance francês nem sempre foi vista com bons olhos por críticos e intelectuais brasileiros. Enquanto muitos letrados demonstravam entusiasmo pela ficção vinda do país de Chateaubriand, outros expressavam desconfiança em relação à excessiva penetração da literatura francesa junto ao leitorado brasileiro. O próprio Taunay, que confessara ter lido com avidez Eugène Sue, reprovou, mais tarde, o demasiado apego de muitos leitores ao romance francês em detrimento da literatura brasileira (PERRONE-MOISÉS, 2007:57). As páginas da imprensa brasileira oitocentista, tão impregnadas de romances franceses, também reservaram espaço para os que criticavam tais leituras. Surgiam vozes preocupadas com os prejuízos que o consumo de romances estrangeiros, marcadamente franceses, poderia ocasionar ao conhecimento da língua materna e da 70 literatura nacional. Na edição de abril a junho de 1862 da Revista Popular, um artigo anônimo intitulado “O amor próprio” deplorava o desconhecimento, por parte das moças bem educadas, de sua própria língua materna e o interesse que elas demonstravam pelo idioma e pelos romances franceses, corruptores da inocência: [...] pretendo tractar do amor proprio nacional, isto é, do amor que deveríamos ter pelo que é nosso [...] A educação litteraria entre nós é a causa primaria do mal, porque falta o amor proprio. A moça de educação esmerada, que se prepara para ingressar nos grandes e esplendidos salões, que lingua aprendeu senão a franceza? Ignora os preceitos rudimentares da sua lingua, nunca viu mesmo a grammatica portugueza; mas sabe francez, quanto basta para lêr o Courrier des Dames e uma dóse de romances, que depravão o coração, corrompendo a innocencia (REVISTA POPULAR, 1862: 238-241). 1 As críticas à leitura de romances franceses estavam, em geral, ligadas ao nacionalismo. Em meados do Oitocentos, artistas e intelectuais brasileiros esforçavamse para edificar e valorizar uma literatura nacional. O entusiasmo por autores franceses, tanto romancistas como poetas e críticos, chegou a ser visto como desprezo pelas produções brasileiras, conforme se pode observar neste trecho de um artigo que foi publicado, sem menção de autoria, na Revista Mensal do Ensaio Filosófico Paulistano: Andamos embebidos com a literatura francesa; Victor Hugo, Lamartine, Sainte-Beuve e os mais atraem toda a nossa atenção, enquanto entre nós, no nosso país e nas demais partes da América o gênio americano se desenvolve e se eleva às alturas dos gênios europeus; e nós, descuidados de tudo o que é nosso, os ignoramos ou os lemos com tal desleixo que passam despercebidas as suas belezas (apud PERRONE-MOISÉS, 2007:60-61). Não deixa de soar paradoxal essa preocupação, em nome do nacionalismo, com o excesso de interesse pela literatura francesa, uma vez que o próprio nacionalismo romântico nos chegou por intermédio da França. Leyla Perrone-Moisés sustenta que até mesmo o enfoque na natureza e nos nativos, tão valorizado por alguns românticos como traço de brasileirismo, foi inspirado pela obra de Chateaubriand. O fato é que, em um momento em que os esforços se concentravam na fundação de uma literatura brasileira, 1 Mantivemos a ortografia original. 71 a presença tão abundante de romances franceses e a atenção despertada pelos mesmos adquiriu, para alguns críticos, ares de concorrência. Inundando a imprensa e as livrarias brasileiras em meados do século XIX, presente por toda parte, o romance francês ora serviu de repertório e modelo, ora afigurou-se como concorrente para o romance brasileiro. Mocinho e vilão, não pode ser ignorado quando se trata da consolidação do gênero romanesco no Brasil. CONSIDERAÇÕES FINAIS A prosa ficcional francesa circulou no Brasil desde fins do século XVIII. Predominou entre os primeiros romances impressos e comercializados aqui. Em meados do século XIX, com a voga do folhetim, sua presença intensificou-se, assim como em várias partes do mundo. Desperto, ao mesmo tempo, entusiasmo e desconfiança nos artistas e homens de letras brasileiros. Causou rejeição e forneceu modelos. Mas, sobretudo, esteve por toda parte: nos anúncios, nos folhetins, nas livrarias e lojas de variedades, nas críticas... Não se pode refletir sobre a consolidação do gênero romanesco no Brasil oitocentista sem considerar o papel do romance francês nesse processo. Presente em solo brasileiro muito antes da explosão do folhetim, a prosa ficcional francesa, seja ela popular ou erudita, contribuiu para a formação de um público leitor para o romance. Quando a produção romanesca brasileira foi amadurecendo e firmando-se, já existia aqui um público de prosa ficcional, habituado às narrativas estrangeiras, predominantemente francesas. O romance francês compõe boa parte do imaginário e do repertório romanesco de leitores e autores brasileiros do século XIX. Compreender melhor a consolidação do romance em nosso país requer, pois, que se leve em conta a presença do romance francês no Brasil oitocentista. REFERÊNCIAS ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2003. ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Campinas: Pontes, 2005. 72 BROCA, Brito. O que liam os românticos. In: ___. Românticos, pré-românticos, ultraromânticos: vida literária e romantismo brasileiro. São Paulo: Polis; Brasília: INL, 1979. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. FARIA, Gentil de. As primeiras adaptações de Robinson Crusoé no Brasil. Revista Brasileira de Literatura Comparada. 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