Monetarização das políticas sociais: a lógica do capital que porta juros Giselle Souza da Silva 1 [email protected] Modalidad de trabajo: Eje temático: Palabras claves: Resultados de investigaciones. Políticas Sociales y desarrollo en el contexto neoliberal y los desafíos para el Trabajo Social. Políticas Sociales; capital financero; Securidad Social Introdução2 A análise das políticas sociais na atualidade em sua totalidade só é possível pelo estudo dos múltiplos fenômenos que se apresentam na sociedade capitalista e suas determinações. O sistema capitalista viveu então nos últimos tempos uma mudança caracterizada pela passagem de um regime de acumulação centrado na esfera da produção para uma acumulação de dominância financeira3. O capital portador de juros constitui-se a partir do avanço das relações capitalistas de produção até tornar-se, em nossos dias, dominante nas relações sociais. De capital usurário do antigo regime, esta fração do capital torna-se base fundamental pra manutenção e expansão da produção capitalista, puncionador dos lucros, ou seja, da extração e realização da mais-valia. Desde o desenvolvimento do capital na Idade dos monopólios – final do século XIX – até o período recente, temos a hipertrofia do setor financeiro e ganha maior tonalidade, jamais vista anteriormente, as operações financeiras internacionais. A atuação desenfreada deste capital mundializado a partir da década de 1980 traz consigo a anarquia da esfera financeira em relação à produção material, que tem conseqüências sobre a economia dos diversos Estados nacionais, centrais e periféricos4. A política econômica empreendida pelo capital financeiro fez aumentar exponencialmente o endividamento estatal e este tem repercussão sobre o financiamento público das políticas sociais. 1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Brasil. Ponencia presentada en el XIX Seminario Latinoamericano de Escuelas de Trabajo Social. El Trabajo Social en la coyuntura latinoamericana: desafíos para su formación, articulación y acción profesional. Universidad Católica Santiago de Guayaquil. Guayaquil, Ecuador. 4-8 de octubre 2009. 2 Este trabalho é parte do projeto de dissertação elaborado com vistas à qualificação no primeiro semestre do ano de 2009 no Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e é também parte dos estudos realizados no Grupo de Estudos e Pesquisas em Orçamento Público e Seguridade Social da mesma instituição coordenado pela Profª Drª Elaine Behring. 3 Sobre este estudo, Cf. Chesnais (2005). 4 Consequência em âmbito global dada a crise que nos acomete nos últimos dias e reafirma a contradição deste modo de produção e desta forma de capital assentada na especulação. 1 Opera-se atualmente um largo processo de desmonte das políticas sociais destinadas a reprodução social dos subalternizados ao capital, alargando-se a apropriação privada de parte do fundo público5 pelos rentistas, donos do capital que porta juros. E os mecanismos estratégicos para tanto são a transferência crescente de recursos sociais para a esfera financeira de um lado – por meio das contra-reformas das políticas sociais e do repasse de recursos do fundo público para o pagamento da dívida – e, de outro lado, os programas de transferência de renda que, além de alimentar o capital portador de juros por sua lógica, enfatizam a focalização das políticas sociais em detrimento das conquistas de universalização duramente alcançadas pela classe trabalhadora. Tais programas configuram-se na estratégia do capital portador de juros de financeirização da vida social e contribui para a contra-reforma das políticas sociais e da Seguridade Social. O presente trabalho visa analisar as políticas sociais, fundamentalmente a Seguridade Social brasileira na contemporaneidade a partir de uma análise marxista a cerca do capital que porta juros e sua dinâmica, a qual envolve toda sociedade em tempos de capitalismo financeirizado. Do capital que porta juros em Marx6 à mundialização do capital na contemporaneidade O capital que porta juros sempre existiu na história, antes mesmo da sociedade capitalista de produção, na forma de capital usurário. Mas é na sociedade capitalista que esta forma de capital torna-se mercadoria específica com valor de uso e valor. O valor de uso do capital que porta juros é o de ser utilizado como capital, impulsionando a produção de valor através do capitalista funcionante, aquele que investe diretamente no processo produtivo. Por sua vez, o valor deste capital assume a forma de juro. Para entendermos melhor, voltemos à teoria do valor. Marx afirma novamente no livro III que a riqueza provém do trabalho e só este é capaz de criar valor. Se é somente o trabalho que cria valor, o que determina o juro? O juro, ou a remuneração do capital que se converte em 5 Aqui compreendido historicamente como uma conquista política da classe trabalhadora e instrumento vital para a reprodução da força de trabalho, e também um pressuposto fundamental do financiamento da acumulação do capital, segundo Oliveira (1998). Para o autor o fundo público explica uma forma de sustentação de produção e reprodução do valor, sendo tensionado – de forma desigual – em favor dos interesses do capital e da força de trabalho. Discordamos, porém de sua concepção de ser o fundo público um antivalor por não ter como finalidade a geração de lucros. Embora não gere lucros diretamente, ele está intrinsecamente ligado ao ciclo de produção e reprodução do valor e não pode assim ser considerado uma antimercadoria, um antivalor (Behring, 2007). 6 Tomaremos como referência neste item a seção V do Livro III d’O Capital de Karl Marx, que tem como questão fundamental as implicações da transformação do capital em mercadoria num dado momento de desenvolvimento do sistema capitalista. Marx assinala nos capítulos desta seção as profundas transformações do capitalismo, que serão posteriormente analisadas Lênin (2005) e outros autores da tradição marxista. 2 mercadoria, corresponde a uma parcela do mais-valor extraído pelos capitalistas funcionantes, cuja atividade destina-se a extrair mais valor. Os juros são uma parte do lucro como define Marx: a parte do lucro que lhe paga chama-se juro, o que portanto nada mais é que um nome particular, uma rubrica particular para uma parte do lucro, a qual o capital em funcionamento, em vez de pôr no próprio bolso, tem de pagar ao proprietário do capital. (1983. p.256) Sob a forma dinheiro – equivalente de troca que em si já é meio alienante de equiparação de diferentes valores de uso, na qual se apaga todas as determinações – o capital que porta juros parece não estar “contaminado” pelo processo de extração de mais-valia. Como diz o autor, “da mesma maneira que o crescimento pertence à árvore, assim o produzir dinheiro pertence ao próprio capital nesta sua forma pura de [capital] dinheiro” (Marx, 1982, p. 197). Assim, como capital que porta juros, o capital assume a forma mais pura de fetiche. Constitui-se na forma mais alienada e fetichista do capital por fazer desaparecer – para os que não têm clara a base social que o dá vida – as mediações dos processos de produção e circulação. Porém, como nos esclarece a análise de Marx, o excedente neste modo de produção só pode vir do trabalho humano não-pago, e este interessa tanto ao capitalista envolvido diretamente nesta expropriação quanto ao que espera apenas seus resultados, parte do lucro, o juro. Quando o capital portador de juros passa a operar com a especulação, com a acumulação futura, descolada de sua base real, material, como no caso dos títulos públicos, tem-se o que Marx denominou capital fictício, que se origina daquela forma de capital. O capital fictício constitui-se na forma ilusória que adquire os rendimentos que parecem provir do capital portador de juros. Neste caso, a emissão de papéis, como nas sociedades por ações e os títulos da dívida pública, são a forma ilusória, fictícia que assume o capital ao especular com o que Marx chama de valores imaginários, A emissão de títulos e ações amplia a acumulação e valorização do capital do capital, e, se o juro que remunera o capital que porta juros só pode provir do lucro, a especulação constitui-se em uma forma de aumentar a exploração da força de trabalho, fonte de criação de toda a riqueza. Assim, desmistifica-se a idéia de ser o juro a “procriação” do capital e sua remuneração por usá-lo por determinado tempo. Esta é sua aparência. Sua essência é ser ele parte do lucro, remuneração por usar o capital a fim de produzir mais valor no processo de trabalho. Esta forma de capital ganha acentuada centralidade no capitalismo na idade dos monopólios, porém o capital portador de juros não está mais sozinho. O processo de 3 concentração e centralização do capital em alto grau de desenvolvimento leva aos monopólios e faz com que se desenvolvam o capital bancário e industrial de tal forma que permite a fusão entre ambos, o qual Lênin chama de capital financeiro7. Mandel (1982), ao analisar a fase monopolista avançada do capital, afirma o que Lênin já havia apontado: a concentração de capital a nível nacional conduziu igualmente à centralização do capital, o que significou uma redução nas disparidades entre os diferentes capitais por força dos monopólios e associações monopolistas. Tal movimento levou à supercapitalização que nas palavras de Mandel significou (...) uma expansão crescente de capital e a um interesse capitalista cada vez maior não apenas em expedições militares periódicas para assegurar a livre exportação de mercadorias, mas em ocupação e controle militares permanentes para garantir novos campos de investimento para as exportações de capital (Mandel, 1982, p. 220). Para Mandel, este estágio tardio do capitalismo monopolista – o período pós Segunda Guerra Mundial – amplia as funções do Estado, não só no âmbito do planejamento econômico estatal como na socialização dos custos, no que define como “tendência inerente ao capitalismo tardio à incorporação pelo Estado de um número sempre maior de setores produtivos e reprodutivos às ‘condições gerais de produção’ que financia” (p. 339). Crescente parte do orçamento público é destinada tanto a acumulação do capital quanto à reprodução da força de trabalho, assumindo o Estado um elenco de funções econômicas diretas e indiretas à reprodução ampliada do capital. Assim, as dificuldades de valorização do capital e realização da mais-valia dão origem à hipertrofia e autonomia crescente do Estado capitalista tardio. As transformações a que passa o capitalismo a partir da década de 1970 produzem uma nova forma de organização da vida social em torno da relação Estado, capital e força de trabalho. No âmbito das relações entre o modelo de produção chamado de “acumulação flexível” 8 e o Estado, este se refuncionaliza, deixando de lado seu caráter social – fruto também de conquistas da classe trabalhadora. A liberalização e desregulamentação dos mercados retomam o princípio liberal de laissez-faire, de mercados auto-reguláveis. Mas ainda que a intervenção do Estado, enquanto regulador da economia tenha sido consideravelmente diminuída, sua função enquanto garantidor das condições gerais da produção capitalista não cessam – por ser precisamente este seu papel central, mas não único, neste modo de produção – já que o novo modelo de 7 8 Para um estudo mais aprofundado ler Imperialismo: fase superior do capitalismo de Lênin (2005). Cf. Harvey (2004). 4 produção depende que o Estado assegure as condições necessárias ao capital para que este obtenha o êxito no processo de acumulação e valorização. A partir do final do século XX, tem-se uma nova configuração do capitalismo mundial circunscrita a uma nova fase do imperialismo, para Chesnais (1996), a fase da “mundialização do capital”. O estilo de acumulação desta fase vem das novas formas de centralização de gigantescos capitais financeiros (fundos mútuos e fundos de pensão), que tem função de frutificar-se na esfera financeira. O mecanismo de transferência de riqueza para a esfera financeira que mais nos interessa tratar aqui é o serviço da dívida pública. Esta se torna fonte de poder dos fundos de investimento e sobrecarregam o capital fictício (Iamamoto, 2008). Remunerados à altas taxas de juros sempre superiores ao crescimento da economia, como no caso brasileiro, estes títulos, ao buscar o financiamento do déficit orçamentário, funcionam como uma bola de neve sobre o endividamento público. Os grandes credores da divida pública são hoje os fundos de pensão e fundos mútuos de investimento (aplicam cerca de um terço das carteiras em títulos da dívida). Parte significativa dos recursos sociais, advindos dos impostos e contribuições sociais, é destinada a esses fundos. E a remuneração destes credores da dívida pública, dos rentiers, é feita por meio do desmantelamento das conquistas sociais, do desfinanciamento das políticas sociais. O capital que porta juros, o capital fetiche, ao estender sua lógica para o Estado, por meio fundamentalmente da emissão de títulos da dívida pública, se apropria também de parte do trabalho necessário constituído em forma de políticas sociais e ainda diretamente por meio do crédito, ao inserir a classe trabalhadora no circuito das finanças à custa do seu endividamento. As políticas sociais se tornam serviços as quais os trabalhadores compram por meio do crédito. Capital portador de juros e políticas sociais: monetarização dos direitos A supremacia do capital fetiche atinge todos os âmbitos da vida social e a sede de lucratividade desta forma de capital se espraia para além dos investimentos privados. As políticas sociais se tornam alvo de investimento do capital financeiro, tentativa de solucionar o fenômeno da superacumulação. A grande massa de capitais ociosos em busca de valorização empurra para a privatização (direta ou indireta) alguns setores de utilidade pública como campo de inversão do lucro em serviços de saúde, de educação e de previdência (Behring, 2008). 5 A lógica de financeirização das relações sociais atinge os recursos destinados à reprodução social da classe trabalhadora. A seguridade social – sistema de proteção social constituído em boa parte do mundo que tem base em determinadas políticas sociais – transforma-se em alvo prioritário de mudanças e ajustes tanto nos países centrais do capitalismo como nos países periféricos9. Os organismos internacionais são os mentores da aplicação das (contra-) reformas e seus documentos orientam a quebra da universalização das políticas de assistência social, saúde e previdência ao enfatizarem a necessidade da focalização destas políticas numa gestão “eficiente” do Estado. O endividamento público – produto da política monetária recessiva, da liberalização e desregulamentação financeira, da abertura dos mercados – faz com que as conquistas da classe trabalhadora sejam destruídas total ou parcialmente, por meio de contra-reformas. No Brasil, as políticas de saúde, previdência e assistência social, a partir da década de 1990, são alvo de regressivas reformas no momento em que a crise do capital – fruto das contradições do processo de acumulação – passa a ser respondida por meio de medidas denominadas neoliberais. O orçamento da seguridade passa a ser o mais afetado por estes ajustes fiscais praticados nos últimos governos em nome da “redução do déficit nas contas públicas”. E a finalidade destas reformas para o grande capital consiste em suprimir os direitos sociais já conquistados e alargar as “conquistas” do capital10. Um dos mecanismos fundamentais utilizados para “minimizar os impactos dos gastos com a dívida” e “equilibrar as contas públicas” – objetivos estes propostos pelas grandes agências multilaterais – é a Desvinculação de Recursos da União (DRU) de 200011. Esta, ao (re)alocar recursos para formação do superávit primário promove a transferência de recursos – que deveriam financiar e ampliar as políticas da seguridade social – para financiar a dívida pública. Tal mecanismo possibilitou o repasse de milhões de reais das políticas sociais para o grande capital e por isso pode ser classificado como um tipo de programa de transferência de renda para os rentistas (Antunes e Gimenez, 2007) já que transfere recursos das políticas sociais destinadas à classe trabalhadora 9 Para maior aprofundamento a cerca da cultura da crise dos sistemas de Seguridade Social ao redor do mundo, cf. Mota (2000). 10 Não é a toa que ganha tonalidade a afirmativa falaciosa do déficit do sistema de previdência pública, daí necessidade de reformá-lo. 11 Criada anteriormente sob a forma de Fundo Social de Emergência (1994) e depois Fundo de Estabilização Fiscal (1997) e a partir de 200 é reformulada com a denominação de Desvinculação de Recursos da União. com a qual a seguridade passa a ser a mais atingida já que permite a desvinculação de 20% dos recursos destinados às políticas da Seguridade Social. O referido mecanismo transfere os recursos do orçamento da seguridade social para o orçamento fiscal com a finalidade de facilitar a formação de superávits. O superávit primário produzido é destinado prioritariamente ao pagamento de da dívida pública. 6 para o pagamento de juros da dívida. O fundo público passa a ser canalizado de forma direta para alimentar o mercado financeiro. A contra-reforma do sistema de seguridade social nada mais é do que uma estratégia do grande capital de consolidar as bases do projeto neoliberal ao qual se vincula e garantir, de um lado, a transferência de recursos das mãos da classe trabalhadora (políticas sociais) para a acumulação e valorização do capital (particularmente o capital portador de juros, via pagamento da dívida pública pela remuneração de títulos públicos); e, de outro lado, possibilitar a expansão do capital para setores das políticas sociais que lhe são atraentes, como novos nichos de investimento – para responder à crise da superacumulação – e de alta lucratividade Ao mesmo tempo – e não como elemento autônomo e desconexo do avanço do capital sobre as políticas de seguridade social – ganham ênfase no Brasil – e na América Latina – os programas de transferência de renda, tais como o Bolsa Família 12. As conseqüências desta dinâmica do capital na cena contemporânea é o agravamento da questão social e se expande 13 a desigualdade de toda ordem. Uma das maiores expressões da questão social radicalizada na contemporaneidade é a ampliação da pobreza. E é neste aspecto que entram em cena os programas focais, pobres para pobres. A transferência de renda funciona como uma espécie de alavanca para incluir no circuito de consumo dos bens, serviços e direitos existentes na sociedade grupos sociais que estão impedidos dessa participação14. Inserem o segmento da classe trabalhador mais pauperizado no mundo do consumo e as inclui no circuito de financeirização da vida social ao operarem com a transferência de dinheiro por meio de instituições bancáriofinanceiras. Os programas de transferência de renda operam com o repasse das ditas “bolsas”, promovem a inserção das camadas mais pobres no processo de circulação de mercadorias e garantem a reprodução da acumulação capitalista. As ditas “bolsas” que transferem renda de forma monetizada e focalizada e com valores ínfimos para os estratos mais pobres da população e sem qualquer efeito efetivamente redistributivo. Ao lado da desregulamentação monetária e financeira e da abertura dos mercados e manutenção de índices elevados das taxas de juros, desmontam-se os equipamentos 12 Criado em 2003 o Programa Bolsa Família visa organizar e unificar os demais programas já existentes e consistirá em benefício monetário às famílias em situação de extrema-pobreza e miséria 13 Sobre a questão social, sua gênese e sua configuração nos marcos do capital mundializado, cf. Iamamoto (op. cit.) capítulo II. 14 Em uma pretensa análise podemos dizer que assim como o crédito atua para meio de garantir o consumo das massas trabalhadoras e assim a valorização do capital – daí sua importância para a produção capitalista em si contraditória – podemos dizer que tais programas funcionam também com este fim mas para classe mais pauperizada, para os pobres e miseráveis, agora inseridos no circuit do consumo, ainda que do subconsumo. 7 públicos e se financeirizam os serviços ao mesmo tempo em que são abertos novos espaços de acumulação e valorização do capital. E isto só é possível porque realizadas contra-reformas nas políticas sociais, especialmente na seguridade social, para “desuniversalizar” as políticas sociais e destruir os direitos legalmente conquistados. Os programas de transferência de renda, segundo Gonçalves e Filgueiras (2007) são a contra face das políticas econômicas baseadas no superávit fiscal primário. Há uma ligação direta e estreita entre a política econômica que privilegia o pagamento de juros e as “bolsas”. A política do governo de Fernando Henrique Cardoso engendrou uma gigantesca dívida pública que drena cada vez mais recursos do Estado, e o governo Lula tem prosseguido no mesmo caminho. Em tempos de capital fetiche ganham enorme espaço estes programas já que são de grande poder ideo-político e relativamente ‘baratos’ em seu custeio em relação ao investimento em políticas sociais universais. Com “a falta de recursos devida aos exorbitantes gastos com juros, conseguese um pequeno montante de recursos públicos para prover uma pequena bolsa para a população mais pobre” (Antunes e Gimenez, 2007, p.67). Os recursos cada vez maiores destinados ao pagamento da dívida pública são subtraídos das políticas sociais, fundamentalmente, da Seguridade Social por meio da Desvinculação de Recursos da União e “sobra” aos governos para combaterem o agravamento da questão social e possíveis tensões – que culminem em insubordinação da parcela da população que vive nas condições mais precárias – operar com programas focalizados, de baixíssimo alcance e valores pífios. Os repasses feitos pelas instituições bancário-financeiras, com benefícios pauperizados mediados pelo cartão magnético, expressão alienante e monetarizada do direito, se sustentam no discurso ideológico de eficiência, eficácia e racionalidade das instituições privadas na gestão do fundo público. De outro lado, recursos são drenados das políticas sociais para alimentar a elite rentista, os “acionistas das finanças”, grandes beneficiários da política econômica recessiva e do desmantelamento das políticas sociais (Granemann 2007). E mais, tais programas remuneram o capital portador de juros ao transferir a distribuição dos recursos a estas instituições bancário-financeiras, as quais são pagas pelo Estado para realizarem tais operações. Ou seja, se os beneficiários dos programas não pagam diretamente pelo uso dos serviços dos bancos que recebem o benefício, o 8 Estado o faz. Consistem assim na monetarização dos direitos sociais15, tornados mercadoria e substituídos por recursos monetários, por dinheiro, e não mais acesso a serviços universais. A alienação é exacerbada e levada ao seu extremo. Desta forma o capital realizará, então, como resposta a esta sua necessidade as contra-reformas do Estado e diminuirá a atuação deste para a classe trabalhadora ao mesmo tempo em que ampliará as bases e as possibilidades para a valorização do capital. Em outras palavras: os instrumentos que permitem remunerar os capitais especuladores são as contra-reformas. Os direitos sociais e políticos são limites importantes para a extração de mais-valia e ao entendermos que todo lucro e, portanto, todo juro, vêm da extração da mais-valia, compreenderemos que as contra-reformas governamentais ao reduzirem os direitos sociais e políticos, reduzem os mecanismos limitadores da extração da mais-valia, do lucro, e também da parte financeirizada desse lucro, o juro. Considerações Finais O capital portador de juros, forma mais mistificada e fetichizada do capital, tornase em nossos dias central na dinâmica capitalista e sua atuação mundializada subordina as demais formas de capitais. O estudo do capital portador de juros numa perspectiva crítica e marxista permite-nos compreender os fenômenos sociais que se apresentam a partir de determinado grau de desenvolvimento do capitalismo na sua totalidade. A proteção social tanto nos países centrais como periféricos sofrem com os rebatimentos com a mundialização do capital. As políticas sociais passam a ser organizar de acordo com os interesses do capital com base nas finanças. Isto se traduz tanto no desmonte dos direitos sociais até então conquistados – permitindo a expansão do capital superacumulado para os serviços sociais, por meio das contra-reformas, como novos espaços de valorização – quanto na focalização das políticas e programas destinados aos mais atingidos pela financeirização do capital, os pobres e miseráveis. Este é o caso dos programas de transferência de renda. Para privilegiar o capital com ênfase nas finanças, os governos de Fernando Henrique e Lula da Silva seguem a política econômica orientada pelo capital internacional 15 Análise trazida por Granemann (2007), na qual autora afirma que os programas de transferência de renda inserem a força de trabalho no mundo das finanças por meio do provimento de “bolsas” e transformam o cidadão de direitos em “cidadãoconsumidor”. Tais ‘bolsas’ são fundamentais para a reprodução da acumulação capitalista porque “A modelagem destas novas mercadorias exige do Estado a redução das políticas sociais como equipamentos públicos e sua transformação em ‘direitos monetarizados’ operados nos mercados bancário-financeiros e não mais como ações do Estado executada por um corpo de servidores próprios” (Granemann, 2007, p. 58). 9 em meio ao processo de mundialização da economia, ao mesmo tempo que, ampliaram e ampliam as possibilidades de aplicação das orientações das agências multilaterais e a focalização passa a ser palavra e ação chaves na condução dos projetos e programas sociais. Ganham enorme espaço no cenário social os programas de transferência de renda com condicionalidades e estes passam a ter a primazia na condução das políticas assistenciais. Assim, os programas de transferência de renda nos moldes do Programa Bolsa Família, além de importante medida para conter as tensões sociais advindas das classes extremamente pauperizadas, permitem o aprofundamento da financeirização das relações sociais em todos os segmentos da classe trabalhadora. Sua funcionalidade e sucesso para o grande capital é inegável tanto no âmbito ideológico quanto no econômico. Porém, na perspectiva da classe trabalhadora, é incontestável serem tais programas de baixíssimo efeito redistributivo e contrariarem os princípios de universalidade e equidade; ademais de não se constituírem em direitos contestáveis legalmente por não encontrarem sustentação em legislação e lutas de cunho menos transitório do que a vontade dos diferentes governos. São paliativos construídos diante do agravamento da ‘questão social’ e operam com bastante eficácia as estratégias do capital para a manutenção e o crescimento da acumulação do capital financeiro, ainda que travestida como ‘política social’. 10 Referências Bibliográficas: ANDERSON, Perry. “Balanço do neoliberalismo” In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. ANTUNES, Daví, GIMENEZ, Denis. Transferência de Renda aos Ricos e aos Pobres no Brasil - Notas sobre os Juros Altos e o Bolsa-Família; Carta Social e do Trabalho Unicamp, n.º 5, abril de 2007 . Disponível em: http://www.eco.unicamp.br/cesit/index1.html BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em Contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. 2ª Ed. São Paulo: Cortez, 2008. ______________. Política Social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez, 2007. CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996. 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