1 DA TEORIA DO CAPITAL HUMANO À TEORIA DO CAPITAL SOCIAL: REBATIMENTOS DAS POLÍTICAS NEOLIBERAIS SOBRE A EDUCAÇÃO NO ATUAL MOMENTO HISTÓRICO Helena de Araújo Freres – UFC/IMO-UECE [email protected] Susana Vasconcelos Jimenez – IMO-UECE/UFC [email protected] Maria das Dores Mendes Segundo – IMO-UECE/UFC [email protected] Palavras-chaves: neoliberalismo, política educacional brasileira, capital social Este artigo tem como objetivo apresentar considerações críticas acerca das políticas neoliberais sobre a educação nos países periféricos, particularmente sobre a política educacional brasileira, buscando desvelar o papel que a educação assume no contexto histórico de crise do capital no que se refere ao rejuvenescimento da Teoria do Capital Humano e à denominada Teoria do Capital Social. Asseveramos que, no plano ideológico, os termos capital humano e capital social representam os processos de legitimação da exploração do homem pelo homem, passando a fazer parte, inclusive, das políticas sócio-educacionais elaboradas em âmbito mundial, correspondendo ao chamamento dos indivíduos para a construção de um mundo melhor, conforme o jargão comum, no interior do próprio capital. Pressupomos, outrossim, que o termo capital social é operativamente mais funcional no atual contexto histórico, uma vez que este se encontra envolto em uma capa ideológica que esconde de forma mais eficaz o atrelamento da educação à lógica do mercado. Sob tal lógica atuam os organismos internacionais, particularmente o Banco Mundial, representante por excelência do sistema do capital no que tange ao receituário para a educação nos países periféricos. Assim sendo, referido termo – que conclama a todos para que mudem o mundo, bastando que cada um faça sua parte – é utilizado como mecanismo ideológico de cooptação das subjetividades para que os indivíduos considerem-se imediatamente responsáveis pela solução dos problemas que afligem a humanidade, tais como a pobreza e a destruição ambiental, que expõem as chagas abertas pelo sistema metabólico do capital sobre o conjunto da humanidade. É nesse sentido que a educação é posta como a categoria central no desenvolvimento histórico dos homens. Em outras palavras, através da educação, forma-se o capital social, que, supostamente, promoverá a paz e a harmonia entre os povos, dispensando, desse modo, a superação das bases sociais que geram esses mesmos problemas. Por esse motivo, o termo em estudo está carregado de significados que desembocam numa visão subjetivista de coesão social. Para iniciar nossa exposição, é necessário explicitar que o modo de produção capitalista, instituído pela sociedade burguesa, pauta-se na produção de mercadorias. A teoria marxiana nos ensina que a teoria do valor-trabalho é a pedra de toque da funcionalidade da sociedade burguesa, visto que as mercadorias são trocadas em proporção ao tempo de trabalho socialmente necessário para a sua produção. 2 Com base nas leituras das obras de Marx, compreendemos que a produção capitalista necessita da força de trabalho para possibilitar a acumulação de capital, através da realização do que o pensador alemão chamou de “mais-valia”. Para ampliar sua acumulação, o capital produz a divisão do trabalho e utiliza processos de alienação e de expropriação da classe trabalhadora. Desse modo, no processo de acumulação capitalista, a força de trabalho humana se converte em mercadoria, que possui valor-deuso e valor de troca. Para Marx (2004), a força de trabalho constitui-se em uma mercadoria especial por tratar-se de uma mercadoria fundamental para o funcionamento desta forma de organização societal, pois é produtora de outras mercadorias, valendo menos do que produz. Portanto, força de trabalho e produto do trabalho são propriedades do capitalista. O processo de trabalho é, pois, de acordo com Marx (2004, p. 219), “[...] um processo que ocorre entre coisas que o capitalista comprou, entre coisas que lhe pertencem”. Nesse processo de produção da riqueza para outrem, o trabalhador, conforme, Marx (1964), “desce até ao nível de mercadoria, e de miserabilíssima mercadoria”, cuja miséria aumenta à medida que produz mercadorias. Em outras palavras, quanto mais riqueza produz, mais miserável se torna porque riqueza e pobreza coexistem numa relação antagônica na sociedade produtora de mercadorias. Conforme o próprio Marx (1964, p. 159), O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata, quanto maior número de bens produz. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporção com que produz bens. No contexto do pós-segunda guerra, a produtividade do trabalho possibilitou a existência de um acentuado desenvolvimento econômico. Nesse contexto, surgiu a Teoria do Capital Humano (TCH) para dar um impulso ao desenvolvimento econômico e social. Em sua clássica formulação elaborada por Schultz, na Escola de Chicago, na década de 1950, a TCH representa o mecanismo teórico-prático de formação de indivíduos aptos para impulsionar o desenvolvimento econômico e seu próprio desenvolvimento pessoal. De acordo com a literatura produzida sobre essa temática (FURTADO, 2003), a Teoria do Capital Humano (TCH) surgiu no momento da história em que o capitalismo desenvolvia-se vertiginosamente, fazendo surgir a necessidade de constituição de uma nova área do conhecimento denominada Economia da Educação. Nesse contexto, a educação foi considerada como fator de desenvolvimento econômico das nações e dos próprios indivíduos, visto que esta propiciava a aprendizagem de conhecimentos, valores e habilidades necessários ao processo de produção. É importante acrescentar que a TCH assumiu a função ideológica de garantir a hegemonia dos Estados Unidos após a Segunda Guerra sobre todos os cantos do globo, a pretexto de defender os países da periferia do capital, frente à ameaça do avanço do comunismo no mundo. A TCH parte do pressuposto de que um investimento mínimo na instrução para a classe trabalhadora aumentaria, em igual proporção, a capacidade de produção. Assim, para Schultz e sua equipe no Centro de Estudos de Desenvolvimento, após longos anos 3 de pesquisa, a resposta ao enigma referente aos diferentes ritmos de acumulação da riqueza entre as diferentes nações repousaria no fator H (capital humano), responsável por mais de 50% das diferenças entre nações e indivíduos. Por esse prisma, esperava-se que as nações subdesenvolvidas que investissem pesadamente em capital humano entrariam em processo de desenvolvimento tanto da sociedade como um todo como dos próprios indivíduos. Estes, a propósito, ao investirem neles mesmos, sairiam de um patamar inferior, ascendendo socialmente. Assim, a TCH diz respeito a uma perspectiva de modernização em cujo horizonte se delineia o projeto desenvolvimentista do próprio capital. Em outras palavras, desenvolver o capital humano é possibilitar o acesso à educação para que sejam adquiridos os conhecimentos mínimos necessários para aumentar a capacidade produtiva. Esse complexo é o lócus privilegiado para a aquisição dos conhecimentos, das habilidades e das atitudes adequadas à produção e é ela que pode transformar o trabalhador em capitalista, visto que o próprio Schultz teve a oportunidade de acentuar que “[...] os trabalhadores vêm-se tornando capitalistas, no sentido de que têm adquirido muito conhecimento e diversas habilidades que representam valor econômico” (SCHULTZ apud FURTADO, 2003, p. 106). Todavia, é inerente à lógica do sistema do capital a existência de uma tendência geral à queda da taxa de lucros. Após esse período de grande crescimento, esse sistema, conforme entende Mészáros (2006), começou a expor os sinais de desaceleração do crescimento, evidenciado por uma exacerbada queda das taxas de lucro, configurando um quadro de crise1 distinto das crises cíclicas que, ao longo da história do capital, marcaram os anos de prosperidades e de debilidades na sua lógica de reprodução. De acordo com o mesmo autor, essa crise, de natureza estrutural, inédita na história do capital, de feição rastejante e global, intensificou a barbárie humana. Como as taxas de lucros estavam decrescentes, fez com que o sistema reorganizasse um processo de reestruturação apoiado em um aparato ideológico e político de sustentabilidade da própria lógica, envolvendo, dentre outros fatores, amplas políticas de quebra de monopólios e privatização de empresas estatais; cortes nas despesas públicas, essencialmente, nos serviços sociais de saúde e de educação; consolidação do neoliberalismo como ideário político-ideológico de manutenção do capital nos países periféricos. Nesse contexto, o capital, no esforço de recomposição de suas taxas de lucro, confere à produção um caráter crescentemente destrutivo, fundado, por excelência, na ampliação da taxa de exploração da força de trabalho. Ainda mais, essa crise não se caracteriza somente pela destruição e/ou precarização da força de trabalho em sua totalidade, mas também pelo esgotamento dos recursos naturais, que vêm dando sinais de extenuação jamais vistos, como demonstra a degradação de vastas áreas do planeta, colocando sob risco, a própria existência humana. Os rebatimentos da crise mundial alcançam todas as dimensões da existência humana, acirrando os comportamentos e impedindo, ainda com maior força, que as pessoas tomem consciência das raízes mais profundas dessa problemática. Considerando que os problemas humanos agudizam-se exponencialmente nos tempos hodiernos, a crise estrutural do capital joga a humanidade às margens de sua própria destruição. Com efeito, como aponta Mészáros (2006), no processo de subordinação do trabalho ao capital no contexto da crise estrutural, o complexo industrial-militar atua como agente onipotente e efetivo no deslocamento das contradições internas do capital, destruindo as forças produtivas e exercendo decisivo controle, direta e indiretamente, sobre a classe trabalhadora. 4 Não restando, como aponta o mesmo autor, qualquer possibilidade de amenizar a barbárie social, sob o império do capital, resta ao sistema criar renovadas estratégias para equilibrar os efeitos desastrosos proporcionados por sua crise econômica com reflexos nos demais setores da sociedade, mascarando a realidade da luta de classes e, ao mesmo tempo, buscando manipular as consciências dos trabalhadores de modo que esteja garantida a reprodução da sociabilidade burguesa. Nesse processo, na própria crise econômica, são adotadas medidas para contribuir com a lógica da reprodução do capital. Dentre essas medidas, elegeu-se o complexo da educação como a viga mestra de sustentação do sistema vigente, uma vez que, por sua própria natureza, esta consegue fornecer os conhecimentos instrumentais necessários ao processo de produção de mercadorias, promovendo, ao mesmo tempo, o envolvimento manipulatório das consciências. Dito de outro modo, em vista da presente crise, o capital exige uma nova redefinição do papel da educação como a atividade humana, por excelência, capaz de resolver todos os problemas da humanidade agudizados a partir das três últimas décadas: redução da pobreza, desenvolvimento econômico, viabilização da chamada ecossustentabilidade e efetivação da paz no mundo. Na década de 1990, acentua-se o processo de mercantilização da educação para o atendimento das reais necessidades do mercado. Para tanto, reformas educacionais ocorreram no Brasil nesse período, conforme sabemos, para atrelar escancaradamente a educação à lógica do capital. Referidas reformas foram resultado da influência dos organismos internacionais, sobretudo o Banco Mundial, representantes por excelência do capital, sobre a educação nos países periféricos, conforme dissemos anteriormente. Em outras palavras, a função social da educação é posta pelos organismos internacionais, representantes cabais do sistema do capital, como a panacéia para a resolução das mazelas sociais provenientes do capitalismo, camuflando, sob a “varinha mágica da globalização” (MÉSZÁROS, 2000), as procedências e os desdobramentos da crise estrutural do sistema. Nesse sentido, o trabalhador deve ser formado de acordo com as necessidades do capital em crise. Para promover as esperadas mudanças no mundo, o produtor da riqueza deve receber uma formação propícia que o torne tanto capital humano como capital social, formando-se para a “escravidão moderna” (TONET, 2007), possuindo “qualidades” que o tornem apto e adaptado à execução de tarefas no mercado de trabalho. Destarte, o trabalhador deve ser flexível, empreendedor, empregável, líder, capaz de tomar decisões, dentre tantas outras habilidades a serem desenvolvidas para lutar pelas parcas vagas no mercado de trabalho e para se manter em uma delas. Desse modo, a manipulação ideológica é utilizada veementemente para a continuidade do sistema vigente, para que o capital incuta nos indivíduos a falsa noção de que existiriam alternativas para a resolução dos problemas humanos por dentro do próprio capitalismo, certificando a igualdade de oportunidades para todos diante das severas condições do mercado. Conforme afirmamos, o capital, sob a crise inédita em sua história, elaborou um aparato ideológico de cooptação das subjetividades, cujos desdobramentos são avassaladores sobre a humanidade e o seu devir-histórico. Faz parte desse aparato o rejuvenescimento da chamada Teoria do Capital Humano (TCH). Como a educação, no seio da lógica do capital, configura-se como um fator de produção que amplia o conceito de capital e supera as diferenças entre capitalista e trabalhador, a TCH rejuvenescida é fundamental no processo de (de)formação dos indivíduos. Na verdade, essa teoria ganhou força nas duas últimas décadas do século passado, assumindo nova 5 configuração com novos conceitos e novas categorias que mascaram ainda mais o antagonismo de classes. Conforme se vê, o rejuvenescimento da Teoria do Capital Humano não alterou seu significado ao longo de sua curta história que revalorizou, no contexto de crise do capital, o papel econômico da educação, enfatizando, por essa via, a importância produtiva dos conhecimentos de ordem instrumental e ajustados ao mundo do mercado. Vale assinalar que a Teoria do Capital Humano foi rejuvenescida em plena ascensão do modelo neoliberal, representando a responsabilização de cada indivíduo pelo desenvolvimento não somente econômico, mas também social e individual. Mendes Segundo (2005) reafirma que a educação, no contexto histórico em que o neoliberalismo se consolida, resgata a Teoria do Capital Humano (TCH). Destaca a autora que, nesse contexto, houve uma redefinição do aparelho estatal e uma consequente descentralização da gestão da educação pública (municipalização) em que o Estado passou a propiciar uma qualificação de mão de obra para atender ao mercado por meio da educação básica. Nesses termos, o Estado assumiu a garantia de uma escola pública de qualidade (visando à formação dos trabalhadores que funcionavam como o “capital humano” para abastecer o mercado de trabalho), mas restrita à educação básica. Esse investimento, como já foi lembrado, visava provocar o crescimento econômico e a melhoria da vida das pessoas, visto que ela é posta como a base de acesso às atividades produtivas. Como o capital está sempre revolucionando seu processo de produção e reprodução, dentro desse contexto, os discursos que o legitimam ganham, sistematicamente, novos contornos que empobrecem mais ainda as mentes dos indivíduos. Assim, a denominação capital humano não mais responde, sozinha, neste século XXI, às novas exigências postas pelo capital para a formação dos indivíduos de acordo com as necessidades da produção de mercadorias. Nesse sentido, a formação do capital humano ganha contornos para além da alegada condição de fator de desenvolvimento econômico. Agora, os indivíduos devem ser tanto capital humano, quanto capital social. O termo capital social representa a hipermistificação do real na sociedade hodierna no que tange à formação dos indivíduos, pois passa a delinear uma retórica em nome da solidariedade internacional, da paz, da preocupação com a comunidade e com a sustentabilidade, representando a miríade de supostas novas relações sociais. Para garantir a coesão social entre os grupos, faz referência a valores como confiança e reciprocidade, indicando a cooperação mútua como mecanismo primordial para a resolução de problemas e conflitos. Sob esse prisma, o capital social traz como preocupação basilar a harmonia entre os povos, somando-se, desse modo, à TCH, que restringia sua preocupação ao crescimento econômico tanto nacional como individual. Todavia, o capital social está em seu nascedouro enquanto paradigma, não oferecendo, até os dias de hoje, uma definição clara e precisa (PIRES, 2005). De todo modo, diz respeito a um conceito que busca, supostamente, aliviar a pobreza e melhorar a qualidade de vida através da chamada construção comunitária. Assim, destaca como objetivo fazer com que os indivíduos […] superen los sentimientos de dependencia y ganen confianza en sí mismos. El punto de partida es la creación de un sentido de comunidad entre los vecinos, que desarrollan confianza mutua 6 trabajando juntos en proyectos que hacen uso de los activos individuales y colectivos del mismo barrio. El nuevo capital humano y social se convierte en una base para mejoras futuras (DIAZ, 2007, p. 1 – negritos nossos). Nesse sentido, como podemos apreender, a educação é o locus privilegiado para a formação do capital social, embora tal conceito não se relacione apenas a essa atividade humana. De fato, é a educação quem assume o papel de propagação do ideário dominante, pois, de acordo com as palavras desse mesmo ideário, ela “agrega” um número maior de “atores sociais”. Conforme o entendimento do Banco Mundial, Las escuelas son más efectivas cuando los padres y los ciudadanos locales se involucran en sus actividades. Los maestros están más comprometidos, los estudiantes alcanzan mejores resultados en los exámenes y se usan mejor las instalaciones de las escuelas en aquellas comunidades en las cuales los padres y ciudadanos se interesan en el bienestar educativo de los niños (BANCO MUNDIAL apud PIRES, 2005, p. 89). Como se pode perceber, a passagem acima é um convite ao voluntariado para somar esforços visando à solução de problemas que vão além dos muros da escola. Dessa forma, é evidente, então, que o termo capital social mistifica a realidade atual, na qual a barbárie humana e a crescente destruição global do planeta são cada vez mais evidentes. Assim, este “se convierte en un activo para encarar iniciativas aún más importantes en el futuro”, “con amplia participación de los vecinos, que juegan el rol central en el planeamiento […] la implementación del capital social de los pobres” (DIAZ, 2007, p. 12). Além disso, Si el análisis del capital social considera las dimensiones que emergen de la interacción de una diversidad tensionada por relaciones de poder que juegan a favor o en contra de la afirmación identitaria de los sujetos, los beneficios de un capital social “saludable” para los pobres se traducen en lazos sociales donde no se excluyen sus “diferencias”, por el contrario, se buscan los medios más adecuados para su expresión y diálogo con otras identidades (idem, ibidem, p. 13 – aspas do autor). De acordo com Motta (2009), a inserção de novas bases ideológicas para legitimar a implementação das políticas neoliberais amplia a função da educação e da escola. A autora registra, por essa via, que Em meados da década de 1990, os intelectuais orgânicos do capital chegaram à conclusão de que não basta “educar para o desemprego”, isto é, não basta atribuir à escola a função de atender as demandas do capital, qualificando e modernizando as forças produtivas para aumentar a capacidade competitiva; não basta atribuir à escola a função de atender a demanda do trabalhador de inserção no mercado de trabalho – é preciso “educar para sobreviver”; é necessário atribuir outras funções à escola. E opera-se uma outra etapa de “rejuvenescimento” da “teoria do capital humano” introduzindo 7 elementos da “teoria do capital social” de Robert Putnam. (MOTTA, 2009, p. 555 – aspas da autora). É importante assinalar que as teorias do capital humano e do capital social são valorizadas no contexto da propalada economia do conhecimento, em que é apregoada a tese de que vivemos numa sociedade para além do trabalho. Nessa sociedade, o conhecimento é posto como o fator de produção e, sob esse axioma, o trabalhador intelectual converte-se no legítimo produtor da riqueza. Em sua crítica à tese que propala a vigência da sociedade do conhecimento, Lessa advoga que, ideologicamente, busca-se legitimar a falsa concepção de que “[...] não é mais o capital que explora o trabalho abstrato pela extração da mais-valia, mas sim o capital social que se reproduz pelo trabalho imaterial” (2005, p. 34 – grifos nossos). Na direção contrária à de Lessa, Drucker, teórico da Administração que faz a defesa da economia baseada no conhecimento, afirma que, nessa sociedade, a aprendizagem é “vitalícia” (1993, p. 156 – aspas do autor). Assim sendo, a escola cumpre papel importante de formação para toda a vida. Por isso, o autor assinalou as especificações da escola para atender às necessidades do que ele chamou “sociedade pós-capitalista”: A escola de que necessitamos deve prover uma educação universal de ordem superior – muito além do que “educação” significa hoje. Ela precisa imbuir os estudantes de todos os níveis e todas as idades de motivação para aprender e da disciplina do aprendizado permanente. Ela tem que ser um sistema aberto, acessível tanto a pessoas altamente educadas como a pessoas que, por qualquer razão, não tiveram acesso a uma educação avançada anteriormente. Ela precisa comunicar conhecimento como substância e também como processo [...]. Finalmente, o ensino não pode ser monopólio das escolas. Na sociedade pós-capitalista, a educação precisa permear toda a sociedade. As organizações empregadoras de todos os tipos – empresas, agências governamentais, instituições sem fins lucrativos – também precisam se transformar em instituições de aprendizado e de ensino. As escolas devem, cada vez mais, trabalhar em parceria com os empregadores e suas organizações. (1993, p. 154 – aspas do autor). No que se refere aos conhecimentos que devem ser aprendidos na escola, Drucker postula: [...] a educação universal apresenta tremendos desafios. Os conceitos tradicionais de educação não são mais suficientes. Ler, escrever e aritmética continuarão a ser necessários como hoje, mas a educação precisará ir muito mais além desses itens básicos. Ela irá exigir familiaridade com números e cálculos; uma compreensão básica de ciência e da dinâmica da tecnologia; conhecimento de línguas estrangeiras. Também será necessário aprender a ser eficaz como membro de uma organização, como empregado. A educação universal significa um compromisso claro com a prioridade do ensino escolar. Ela requer que a escola – especialmente aquela das crianças – subordine tudo o mais à aquisição de aptidões básicas. A menos que a escola comunique com sucesso essas aptidões, ela fracassará em sua obrigação crucial: dar aos iniciantes autoconfiança e competência e 8 capacitá-los para que, em futuro próximo, possam ter êxito na sociedade pós-capitalista, a sociedade do conhecimento (1993, p. 155). Compreendemos que aquilo que o autor chama de conhecimento universal é, na verdade, o básico, sendo este o nível de ensino que deve ser alcançado pelos indivíduos, principalmente em se tratando dos países periféricos – conforme defendem os fóruns e conferências mundiais de Educação Para Todos, a começar por Jomtien, em 1990. A tese do referido autor não anuncia qualquer novidade, a mesma está recorrentemente posta nos documentos do Banco Mundial voltados à educação. Ao afirmar que, na dita sociedade do conhecimento, é necessário que as pessoas aprendam a aprender e demonstrem a devida motivação para fazê-lo, Drucker endossa os termos inscritos nesses documentos, principalmente no Relatório Delors, de 19932. Sob a lógica do capital, é negado à classe trabalhadora o conhecimento acumulado. Em seu lugar, são valorizados conhecimentos superficiais, pragmáticos, instrumentais, voltados à lógica do mercado, submetidos às necessidades imediatistas da proclamada economia do conhecimento, base da sociedade do conhecimento. Referida tese é apregoada, como dissemos, num contexto histórico de negação do trabalho como a categoria central do mundo dos homens e tal negação rebate-se na anulação da pedra de toque da teoria marxiana: o trabalho como protoforma originária do ser social. Considerando que o desenvolvimento do indivíduo pressupõe a condição ineliminável de apropriação do patrimônio material e também espiritual para que se construa como membro do gênero humano, sob a lógica da exploração do homem pelo homem esse desenvolvimento não tem a menor possibilidade de existir para a totalidade da humanidade, visto que grande parte dela está “[...] confinada a um nível muito próximo da animalidade” (TONET, 2007, p. 76). De acordo com a ontologia marxiana, é importante assinalar que é a apropriação do conhecimento, cientificamente sistematizado, que possibilita a cada indivíduo vir a ser partícipe do gênero humano, visto que tudo no mundo dos homens é produto histórico dos próprios homens, inclusive eles mesmos. Na contraposição à lógica do capital, a educação é uma mediação importante na luta pela emancipação humana, visto que há em seu interior uma contradição que permite a utilização de seu espaço para o direcionamento da atividade educativa tendo em vista o horizonte da superação desse sistema. Segundo Tonet (2005, p. 242-243), existe a possibilidade de realização de atividades emancipadoras. Afirma o autor que essas atividades emancipadoras constituem-se no que é possível fazer diante da enorme tarefa posta pelos homens, que é a construção de um patamar superior de sociabilidade. Para tanto, o autor afirma que “[...] uma atividade educativa emancipadora hoje implicaria alguns requisitos” básicos. Esses requisitos seriam: [1] o conhecimento amplo e aprofundado do objetivo último da educação, que é transmitir os conhecimentos e habilidades produzidos historicamente pela humanidade nos campos mais variados da atividade humana – visto que é essa a natureza e a função social da atividade educativa; [2] o conhecimento, também o mais amplo possível, a respeito do processo social em curso, ou seja, da natureza da sociedade capitalista, cuja lógica preside na exploração dos homens pelos próprios homens; [3] o conhecimento acerca da natureza da crise estrutural do capital, que intensifica as dores da humanidade; [4] a clareza em relação à necessidade de domínio das disciplinas lecionadas pelos educadores, não bastando um conhecimento superficial acerca delas; por fim, [5] a articulação da atividade específica da educação com as lutas sociais mais abrangentes. 9 O autor acrescenta que [...] entendemos que tudo isso possibilitará conferir à atividade educativa, ainda que em formas extremamente limitadas, dada à natureza e à adversidade do momento presente, um caráter revolucionário, ou, em outras palavras, colocá-las como uma mediação para a construção de uma ordem social qualitativamente superior a esta em que vivemos. Reiteramos a clássica formulação de Saviani (2003) quanto à função e à especificidade da educação, à qual caberia “transmitir a cada indivíduo singular a humanidade que foi produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”, ou, em outras palavras, produzir a “humanidade no homem” (2003, p. 13). Uma prática educativa revolucionária não pode prescindir dessa tarefa, pois o conhecimento cumpre uma função primordial no processo de enriquecimento dos indivíduos e da própria sociedade: a articulação entre generidade e individualidade humanas. Portanto, uma educação efetivamente comprometida com a formação plena dos indivíduos deve valorizar o conhecimento historicamente acumulado pela humanidade ao longo dos tempos. Para finalizar, podemos afirmar, com base na ontologia marxiano-lukacsiana, que a educação pautada por um referencial revolucionário deve assumir uma postura crítica de denunciar a sociabilidade burguesa movida pela lógica da reprodução do capital por meio da exploração do homem pelo homem, que vem se intensificando de maneira brutal com o processo de crise estrutural do capitalismo. Em outras palavras, somente uma educação comprometida com a classe trabalhadora e, por conseguinte, com a própria humanidade, é capaz de se contrapor à lógica perversa do sistema do capital, visto que tal práxis educativa emancipadora aponta para a superação desse sistema. A função social da educação é a reprodução social através da mediação das consciências dos indivíduos. A consciência, de acordo com a ontologia marxianolukacsiana, não tem primazia sobre a prática, mas é de fundamental importância, possuindo o mesmo estatuto ontológico. Lembremos aqui uma passagem muito conhecida dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, nos quais Marx afirma que a teoria não tem força material, mas esta se apresenta quando a coletividade dela se apodera. _____________________________________________________________________________ É importante destacar que, conforme Marx (2004), as crises são sempre crises de superprodução, caracterizadas pelo aumento da produtividade do trabalho, uma vez que a tendência geral da queda da taxa de lucro é inerente à lógica do capital. 2 A Conferência Mundial de Educação Para Todos, ocorrida em Jomtien, na Tailândia, em 1990, instituiu a Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, onde o diretorgeral Frederico Mayor convidou Jacques Delors para presidir essa Comissão, a qual reuniu quatorze personalidades de todas as regiões do mundo, vindas de horizontes culturais e profissionais diversos. O texto Educação: um tesouro a descobrir é o resultado do trabalho dessa Comissão indicada pela Unesco com o objetivo de refletir sobre educar e aprender para o século XXI. 10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS D´ARAÚJO, Maria Celina. Capital Social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003 (Coleção Ciências Sociais Passo a Passo) DÍAZ, Galo Viteri. Capital Social y reducción de la pobreza. Revista OIDLES, Vol 1, nº 2 (diciembre 2007), disponible em http://www.eumed.net/rev/oidles/02/Diaz.htm Acesso em 19.06.2010 DRUCKER, Peter. Sociedade pós-capitalista. São Paulo: Pioneira, 1993 FURTADO, Isabel. Economia Política, Liberalismo e Utilitarismo: as re(ve)lações e os segredos entre emprego e educação. (Tese de Doutorado em Educação). Universidade Federal do Ceará, 2003. LESSA, Sérgio. Para além de Marx? Crítica da teoria do trabalho imaterial. São Paulo: Xamã, 2005. LUKÁCS, Georg. As Bases Ontológicas do Pensamento e da Atividade do Homem. 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