UM ESTUDO COMPARATIVO SOBRE A ORIGEM DAS CONSTELAÇÕES CLÁSSICAS Gil Alves Silva D.Sc. HCTE/UFRJ [email protected] Carlos Benevenuto G. Koehler HCTE/UFRJ (PQ) [email protected] Oscar Toshiaki Matsuura MAST/MCTI e HCTE/UFRJ (PQ) [email protected] RESUMO: Das 88 constelações adotadas oficialmente pela IAU1, 48 são conhecidas como constelações clássicas e foram descritas pelo astrônomo grego Claudio Ptolomeu no Almagesto (século II). Embora repletas de elementos que nos remetam à mitologia grega, parece que a maioria delas foi criada pelas grandes civilizações da Mesopotâmia, e o domínio de uma cultura sobre outra fez com elas chegassem à Grécia. Certamente ocorreram etapas intermediárias nessa migração – “desvios de percurso” cujas evidências se perderam no tempo. O objetivo deste trabalho é mostrar como alguns autores imaginam a história dessa migração – Mesopotâmia à Grécia, e conhecer suas explicações para esses “desvios de percurso”. Nosso intuito é comparar a versão de cada autor sem a preocupação de encontrar prós e contras, apenas buscando semelhanças (ou pontos de convergência) entre as hipóteses. PALAVRAS-CHAVE: Constelações clássicas. Grécia. Mesopotâmia. 1. A hipótese de Jorge Paulo Mauricio de Carvalho Jorge Paulo Mauricio de Carvalho é docente no Departamento de Matemática Aplicada da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, onde foi membro da comissão coordenadora do mestrado em ensino da astronomia, ministrando aulas, entre outras coisas, de história da astronomia. Paulo faz uma breve referência aos primeiros registros efetuados sobre as constelações que chegaram até nós. 1 União Astronômica Internacional, em inglês. Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 Segundo ele, “a origem das constelações é provavelmente muito anterior a alguns registros que datam de 420 a.C.”. Baseado nas posições das estrelas, Paulo supôs que a civilização responsável por esses registros se desenvolveu numa região próxima a latitude de 36º N, e considerando sua simetria em torno da estrela α Draconis – que dista cerca de 25º da estrela Polar – Paulo concluiu que estas observações devem ter sido feitas por volta do ano 2600 a.C.. Paulo acredita que a civilização minóica pode perfeitamente satisfazer as condições exigidas no tempo e no espaço, já que se desenvolveu numa latitude próxima de 36º N no período em questão. Ele também diz que “não é difícil encontrar razões para o interesse do povo minóico pelas constelações, já que sendo um povo de marinheiros o conhecimento das constelações seria uma ajuda preciosa nas suas viagens através de todo o Mediterrâneo”. Apesar de não estar explícito no texto, parece que esta hipótese não considera a possibilidade de outras civilizações estarem envolvidas no processo de criação das constelações, já que o autor não se ocupou de explicar quais delas foram criadas primeiro e como foram assimiladas pelos gregos. 2. A hipótese de Carole Stott Carole Stott é colunista da Astronomy Now, revista mensal britânica sobre astronomia e espaço. Trabalhou durante 14 anos no Observatório Real de Greenwich, foi fundadora e secretária da Scientific Instrument Society e autora de diversos livros e artigos relacionados à história da astronomia. Para Stott, se o Sol percorre a eclíptica2 em um ano – passando cada mês por uma constelação específica, “os 12 signos zodiacais foram as primeiras constelações a serem imaginadas”. Junto com elas, outro grande número de constelações – envolvendo em sua maioria estrelas do hemisfério norte celeste – foi desenvolvido por povos do Mediterrâneo e pelos árabes, e imortalizadas por Ptolomeu no Almagesto. Segundo Stott, Ptolomeu baseou seu trabalho no catálogo produzido por seu conterrâneo Hiparco (século II a.C.). Ela também aponta outra importante referência para a origem das constelações clássicas: o poema astronômico Fenômenos, 2 Plano orbital terrestre projetado na esfera celeste (também vista como a trajetória aparente do Sol no céu). Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 “escrito por Arato, por volta de 250 a.C., que inclui a descrição de 43 constelações e se baseou no trabalho de Eudoxo, que produziu a mais antiga descrição conhecida das figuras das constelações da época de 400 a.C.”. O que chama a atenção no relato de Stott é sua conjectura sobre as principais fontes gregas relacionadas às constelações. Apesar de não se preocupar em justificar a escolha do Mediterrâneo como berço das constelações (como fez Paulo), ela fornece uma pista do que pode ter acontecido nos séculos que separam Eudoxo de Ptolomeu. 3. A hipótese de Ian Ridpath Ian Ridpath é membro da Royal Astronomical Society e edita o Oxford Dictionary of Astronomy e o Norton Star Atlas. Escreveu e editou mais de 40 livros, entre os quais vários manuais de astronomia. Ridpath também acha que Ptolomeu não inventou as constelações que listou no Almagesto, as quais ele acredita serem bem mais antigas. Para ele, as primeiras constelações clássicas devem ter surgido por volta do ano 700 a.C., descritas nas obras de Homero (Ilíada e Odisséia) e Hesíodo (Teogonia e Os trabalhos e os dias). De fato, essas obras fazem referência às Plêiades, Híades, Ursa Maior, Órion, Sírius e Boieiro. Ian cita que a primeira clara evidência de um conjunto de constelações gregas veio com Eudoxo, que manteve contato com os sacerdotes egípcios e trouxe estes conhecimentos astronômicos para a Grécia. Eudoxo escreveu Enoptron (Espelho) e Phaenomena (Fenômenos), apenas este último sobrevivendo no extenso poema homônimo de Arato, escrito por volta de 275 a.C.. Segundo Ian, “em Fenômenos, Arato identifica 47 constelações”. Embora Eudoxo tenha conhecido as constelações através dos sacerdotes egípcios, Ridpath acredita que as constelações descritas em Fenômenos não foram inventadas nem por gregos, nem por egípcios, mas pelos minóicos3, e Eudoxo foi apenas o elo entre esses dois povos. É interessante notar que, até esse momento, os autores mencionados parecem convergir espacialmente à bacia do Mediterrâneo, mas a precisão ainda escapa quando o assunto é a época destes acontecimentos. A partir de agora, inscrições em templos e listas de estrelas 3 Para saber mais, ver ROY (1984). Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 irão contribuir sensivelmente em nossa tentativa de datar o surgimento das constelações clássicas, e este será o caminho seguido pelos próximos pesquisadores. 4. A hipótese de Craig Crossen Craig Crossen é pós-graduado em astrofísica. Seu interesse por história e mitologia das constelações lhe rendeu diversos artigos na Astronomy magazine. Para Crossen, o Almagesto conta com 49 constelações (embora não a catalogue como tal, Ptolomeu menciona Cabeleira de Berenice – uma nebulosa4 nas proximidades da constelação do Leão). Para ele, a lista de Ptolomeu tinha como base catálogos estelares mais antigos, além dos Fenômenos de Arato – escrito por volta de 270 a.C. e inspirado no trabalho anterior de mesmo nome de Eudoxo. Então, “podemos datar quase todas as constelações antigas em torno do século IV a.C.”. Também lembra que “Hesíodo, em seu compêndio agrícola Os trabalhos e os dias, menciona Órion, Plêiades, Híades, Arcturus e Sírius. A Ilíada e a Odisséia referem-se a todas essas, mais a Ursa Maior”. Crossen acredita que os gregos inventaram poucas das constelações clássicas, ressaltando que “a maioria das constelações clássicas (aproximadamente 30) veio à Grécia das grandes civilizações da Mesopotâmia”. Segundo ele, diversas tábuas de argila com escrita cuneiforme foram escavadas na Mesopotâmia, e “meia dúzia delas, contendo listas de estrelas e constelações, foram produzidas por volta do ano 1000 a.C., sendo que a mais importante, Mul-Apin, foi escrita por volta de 700 a.C.”. Crossen chama a atenção para uma peculiaridade de Mul-Apin: “apesar de escrita pelos assírios, os nomes de estrelas e constelações listados estão em sumério”, e achados arqueológicos datados entre 2100 e 1700 a.C. apresentam nomes de estrelas sumérias que posteriormente apareceram em tábuas assírias. Desse modo, o final dessa análise sugere uma investigação mais profunda dos mitos sumérios, não só por remontar aos primórdios da astronomia mesopotâmica, mas também pela possibilidade de se descobrir quais constelações foram criadas primeiro (e porquê). 4 Para um breve panorama histórico sobre a observação e catalogação das nebulosas, ver SILVA (2013). Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 5. A hipótese de Juan Antonio Belmonte Avilés Juan Antonio Belmonte Avilés é astrônomo do IAC (Instituto de Astrofísica de Canárias), especialista em arqueoastronomia5, e um dos responsáveis pelos trabalhos realizados no começo dos anos 1990’s sobre as orientações astronômicas das pirâmides de Güímar6 – apresentados em congressos e publicados no Journal for the history of Astronomy. Também é presidente da Sociedade Européia da Astronomia na Cultura (SEAC), além de autor de livros e artigos sobre história da astronomia. Belmonte acredita que, por volta de 3500 a.C., os sumérios fixaram-se na Baixa Mesopotâmia, fundindo-se étnica e culturalmente com a população local. Ele destaca um texto que data de 2500 a.C., onde aparece o nome mais antigo que conhecemos para designar um astro: Mul-Mul (em sumério, “estrelas”), uma menção ao aglomerado estelar das Plêiades. Também menciona as tábuas Mul-Apin, e assim como Crossen salienta que apesar de escrita pelos assírios, os nomes de estrelas e constelações que aparecem nestas tábuas estão em sumério. Belmonte reconhece a importância das obras de Homero e Hesíodo, mas admite que “As constelações clássicas aparecem descritas detalhadamente pela primeira vez na cultura ocidental na obra Fenômenos de Arato [...]” – trabalho baseado na obra homônima de Eudoxo. Belmonte também recorda Eratóstenes (século III a.C.), que em Catasterismos “explica as origens das diferentes constelações e asterismos7 segundo a mitologia grega”, e Hiparco, “que em Explicações dos fenômenos de Arato e Eudoxo inclui um apêndice [...] com nascer e ocaso de todas as constelações [...]”. Finaliza seu passeio pelas fontes gregas com a última grande figura da astronomia clássica, Cláudio Ptolomeu. Para Belmonte, embora alguns arqueoastrônomos acreditem serem os minóicos os responsáveis pela propagação do conceito de constelação da Mesopotâmia para o Egito (influenciados inclusive por Eratóstenes, que atribuía uma origem minóica às Ursas8), também é possível que esta migração esteja relacionada 5 Estudo das práticas astronômicas, sistemas cosmológicos e folclores celestes dos povos antigos, por intermédio do material ou conhecimento astronômico deixado por esses povos. 6 Cinco pirâmides escalonadas localizadas no município de Güímar – costa leste da ilha de Tenerife (Espanha). 7 Asterismos são grupos proeminentes de estrelas amplamente conhecidos, p. ex. as Plêiades (no Touro) e o Arado (na Ursa Maior). 8 Ursa Maior e Ursa Menor, duas constelações do hemisfério norte celeste. Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 aos fenícios, que habitavam o Levante (parte oriental do Mediterrâneo – atuais Líbano e Síria) e que em virtude dessa posição geográfica privilegiada conheciam a astronomia e a mitologia mesopotâmica, egípcia e grega. 6. A hipótese de Bradley Schaefer Bradley E. Schaefer faz parte do conselho editorial do Journal for the history of Astronomy e de Archaeoastronomy. É professor do Departamento de Física e Astronomia da Universidade Estadual da Louisiana, sendo graduado e pós-graduado em física no Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Schaefer trabalha o aspecto do céu visível em diversas épocas e lugares, aplicando-os à história da astronomia. Para ele, “a mais antiga evidência direta das constelações vem de inscrições em pedras e tabuinhas [tábuas] de argila escavadas na Mesopotâmia”. Schaefer cita como primeira referência um poema babilônico conhecido como Oração aos deuses da noite, datado por volta de 1700 a.C., que menciona três estrelas individuais, o aglomerado estelar das Plêiades e quatro constelações (entre elas a Carroça [Ursa Maior]). Schaefer diz que: “A partir de 1100 a.C., tábuas cuneiformes listam mais de 30 nomes de constelações”, e três dessas tábuas (Mul-Apin) “contém uma longa lista de observações das posições e movimentos de quase todos os grupos de estrelas dos mesopotâmios”. Reproduzido diversas vezes e com poucas alterações, esse texto contém a maioria das constelações que tempos depois seriam reconhecidamente utilizadas pelos gregos. Assim como Belmonte, Schaefer cita Homero e Hesíodo como as mais antigas fontes gregas a mencionar constelações e estrelas (Órion, Ursa Maior, Plêiades, Híades, Sírius e Arcturus). Ele diz: “A primeira discussão completa dos céus gregos vem do livro de Eudoxo (366 a.C.), conhecido hoje apenas através da longa cópia de Arato e Hiparco”. Combinando os registros de Eudoxo, Schaefer demonstra que ele estava simplesmente reproduzindo dados observacionais que já tinham mais de 700 anos à época, da mesma forma que Hiparco repetiu o próprio Eudoxo dois séculos depois. A época e o lugar combinam bem com as observações de Mul-Apin, ambos utilizando-se de uma base de dados original compilada por algum observador (ou observadores) assírio(s) em torno de 1100 a.C.. Como Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 Eudoxo e Hiparco descrevem a maior parte das constelações clássicas (ainda que algumas tenham nomes distintos), a conclusão de Schaefer é que a maioria delas já estava definida em alguma época próxima de 1100 a.C.. Mas quando os gregos teriam recebido as constelações mesopotâmicas? A única restrição imposta por Schaefer é que esta transferência tenha ocorrido aproximadamente entre 1100 e 400 a.C.. Ele diz: “A ausência de qualquer evidência das constelações gregas (exceto Ursa [Maior] e Órion, mencionadas em Homero) antes de 500 a.C. sugere que a maior parte da transferência da tradição ocorreu após essa época”. Schaefer também cita evidências textuais de que “o sistema zodiacal babilônio, baseado na divisão em partes iguais, chegou à Grécia em torno de 400 a.C.”, mas como existiram muitos caminhos e possibilidades para que o conhecimento migrasse da Mesopotâmia à Grécia, admite não saber o bastante para se decidir por algum. Considerações Finais Muito resumidamente, podemos dizer que as constelações clássicas estão repletas de elementos que nos remetem à mitologia grega, e parece que a maioria delas chegou aos gregos vindas das grandes civilizações da Mesopotâmia. Essas culturas povoaram o céu com histórias de seus deuses e heróis, e o intercâmbio entre elas fez com que essas lendas chegassem ao Egito, onde devem ter sido encontradas quase inalteradas por Eudoxo. Citado por cinco dos seis autores, Eudoxo parece ser o principal ponto de convergência entre as hipóteses, sempre com papel de destaque como mediador entre as constelações mesopotâmicas e gregas. REFERÊNCIAS ALLEN, R.H. Star names – their lore and meaning. New York, Dover, 1963. AVILÉS, J.A.B. Las leyes del cielo. Astronomia y civilizaciones antiguas. Madrid, Temas de Hoy, 1999. BERRY, A. A Short History of Astronomy. New York, Dover, 1961. CARVALHO, J.P.M. Uma odisséia no tempo – Introdução à História da Astronomia. Porto, Imprensa da Universidade do Porto, 2000. CROSSEN, C.; TIRION, W. Binocular astronomy. Virginia, Willmann-Bell Inc., 1992. RIDPATH, I. Star Tales. New York, Universe Books, 1988. Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 ROY, A. E. 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Disponível em: <http://www.ianridpath.com/startales/contents.htm>. Acesso em: 10 maio 2008. Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248